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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.38 no.1 São Paulo jan./jun. 2020

 

Dinâmicas do cuidado: da Psicologia Analítica ao SUS

 

Dynamics of care: Analytical Psychology and the Brazilian Unified Health System (SUS)

 

 

Victor de Freitas HenriquesI; Marina de Carvalho OliveiraII

IDoutorando em História e Filosofia da Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestrado e Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei. E-mail: <vf_henriques@hotmail.com>
IIMestrado em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei. Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: <marina.carvalho.psi@gmail.com>

 

 


RESUMO

O artigo resgata premissas da psicologia analítica enquanto possibilidades de reanimação da discussão sobre dificuldades enfrentadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de trabalho teórico em que delimitamos a equidade, derivada dos princípios do SUS, e a concepção de dinamismo de alteridade, encontrada na psicologia analítica, como pontos convergentes do diálogo que visa compreender fatores necessários à existência da situação de saúde e cuidado. Defendemos que diretrizes formuladas pelo Ministério da Saúde sobre autonomia e protagonismo de usuários e agentes do SUS na busca da promoção da saúde e na superação da dicotomia entre saúde/doença como uma sendo ausência da outra são enriquecidas quando analisadas em conjunto da relação dialética presente na psicologia analítica entre a imagem do cuidador e do doente. Inicialmente, fazemos o resgate da noção de equidade no contexto da saúde pública e, posteriormente, a relacionamos ao dinamismo de alteridade e cuidado no contexto da psicologia analítica.

Palavras-chave: Saúde Pública, Equidade, Psicologia Analítica, Dinamismo de Alteridade, Cuidado


ABSTRACT

This article rescues premises of Analytical Psychology to stimulate discussions about difficulties faced by the Brazilian Unified Health System (SUS). It's a theoretical work in which we delimit equity, one of SUS principles, and the otherness dynamism conception found in Analytical Psychology as converging points of a dialogue that aims to understand necessary factors for the existence of the situation of health and care. We argue that guidelines formulated by the Ministry of Health on autonomy and centrality of SUS users and agents in the pursuit of health promotion and overcoming the dichotomy between health/disease as one being the opposite of other, are enriched when analyzed together with the dialectic relationship pointed out by Analytical Psychology between the image of the healer and the wounded. Initially, we rescued the notion of equity in the context of public health and, later, related it to the idea of otherness dynamism and care in the context of Analytical Psychology.

Keywords: Public Health, Equity, Analytical Psychology, Otherness Dynamism, Care


 

 

1. Introdução

Três décadas após a concepção das leis e diretrizes que implementaram o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, novas/velhas dificuldades ainda se fazem presentes quanto às atribuições dos dispositivos que o compõem. A não valorização dos trabalhadores e a negligência quanto aos direitos dos usuários, a falta de agentes qualificados que conheçam as necessidades específicas das populações locais, a ausência de monitoramento e avaliação quanto à efetiva implementação de ações debatidas em encontros e planejamentos dos órgãos de gestão, os interesses corporativos e político/partidários que se sobrepõem aos interesses da população, a homogenização das práticas que desconsideram especificidades e diversidades históricas, culturais e sociais, a ausência de modelos decentralizados que privilegiam o protagonismo dos usuários e os crescentes efeitos das políticas neoliberais cujo interesse na mercantilização da saúde empreende e divulga uma imagem de ineficiência das políticas públicas do Estado em prol da eficácia do setor privado têm sido apontados como fatores que sobreviveram ao longo dos anos e que operam na contramão da reconstrução e expansão do SUS (MOREIRA et al., 2015, SILVA et al., 2018).

Tais dificuldades não são inerentes ao SUS sendo que estas já haviam sido identificadas no contexto da saúde no país pelos movimentos que ficaram conhecidos na década de 1970 como Reforma Sanitária, sendo a própria criação do SUS uma proposta de superação das mesmas. Assim, esforços foram sendo empreendidos na tentativa de garantir o fornecimento e acesso a serviços de saúde de qualidade por meio dos dispositivos do SUS.

Nesse sentido, em 2003, houve a criação da Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde (PNH) com a intenção de oferecer diretrizes que corresponsabilizassem trabalhadores e usuários na construção de uma rede eficiente de saúde. O princípio da humanização mostrou-se tão polissêmico quanto o termo que o designa, sendo discutido principalmente em dois documentos lançados pelo Ministério da Saúde em 2004: HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização - a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS e Humaniza SUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. A noção de humanização apresentada nos documentos versa, entre outras coisas, sobre a valorização de trabalhadores e usuários do SUS, assim como a responsabilidade dos mesmos na construção e gestão colaborativa de suas atividades (BRASIL, 2004; 2009). Em pesquisa realizada por Martins e Luzio (2017) na qual foram conduzidas entrevistas com trabalhadores, usuários e apoiadores do SUS a respeito da compreensão acerca da ideia de humanização, pode-se depreender que as definições de humanização são encontradas em seus vocabulários e, muitas vezes, em suas práticas, o que não implica na não existência e permanência dos fatores já mencionados que minam a reconstrução e expansão do SUS.

Desse modo, acreditamos que a reanimação das discussões acerca das dificuldades ainda presentes no âmbito da saúde pública no Brasil é de extrema necessidade. Buscamos contribuir com tal problematização a partir da noção de imagem presente no campo da psicologia analítica, pois, ao analisarmos os documentos do HumanizaSUS concebidos pelo Ministério da Saúde e suas diretrizes sobre equidade, autonomia, protagonismo dos usuários e dos agentes do SUS na busca da promoção da saúde e na superação da dicotomia entre saúde/doença, percebemos afinidades entre os temas no que diz respeito à possibilidade do indivíduo vivenciar diferentes papéis exercendo variadas funções durante seus processos de cura e adoecimento.

Encontramos na literatura da psicologia analítica a concepção de que cada ação é mediada por uma imagem, um processo simbólico que pode ser transformado em trabalho. Partindo dessa premissa, a possibilidade de um usuário de determinado serviço de saúde se ver enquanto agente ativo, empenhado, que trabalhe na compreensão e administração de seu processo de adoecimento, seria mediada pela capacidade do mesmo de reconhecer, significar e atuar a partir das imagens de saúde e doença que traz consigo.

Para demonstrarmos tais aproximações, apresentamos o Humaniza SUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS como um dos marcos no oferecimento de diretrizes que convocam e corresponsabilizam usuários e trabalhadores a exercerem papéis determinantes na promoção de saúde. A ideia de corresponsabilização do usuário permite inferir a existência da imagem de um curador em potencial, pois versa sobre a sua capacidade de compreensão e participação dos processos que vivencia. Assim, podemos pensar as diretrizes como lentes que focalizam as imagens de cuidado, ou seja, as etapas, atividades e movimentos necessários à existência do mesmo.

Posteriormente, apresentamos a noção de equidade presente não apenas no Humaniza SUS, mas, também, enquanto um dos princípios do SUS, as dificuldades em sua conceituação e compreensão e como tal ideia é fundamental para que usuários e trabalhadores dos serviços de saúde possam evocar as imagens de cuidado e transformá-las em ação.

Em seguida, resgatamos o conceito de dinamismo de alteridade na literatura da psicologia analítica enquanto potência teórica capaz de fomentar e oferecer bases para a discussão da importância da autonomia e participação dos usuários dos serviços de saúde em seus processos de adoecimento e cura.

O resgate e a reanimação de uma discussão têm como objetivo não deixar que propostas significativas sejam perdidas. Ao elegermos o Humaniza SUS, um texto com mais de uma década e meia de existência enquanto ponto de partida, estamos reiterando a ideia da necessidade de recuperarmos o que já foi dito e rompendo com a falsa premissa que associa progresso e desenvolvimento a ineditismos. Reconhecemos que de modo algum toda a questão dos desafios enfrentados pelo SUS tenha sido revelada, não havendo a necessidade de novos enfoques e, justamente por isso, resgatamos antigas premissas que se mostram atuais ao mesmo tempo que buscamos oferecer novas possibilidades de diálogo e problematização na aproximação com o campo da psicologia analítica.

 

2. Origem e Função do Humaniza SUS: Documento Base Para Gestores e Trabalhadores do SUS

Em 2004, o Ministério da Saúde do Brasil lançou documento intitulado Humaniza SUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS, fruto da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS (PNH) de 2003. Por meio do documento, o Ministério da Saúde apresentou os avanços, até à época, das conquistas oriundas da Lei Federal no 8.080/1990 que preconiza a implementação do SUS, mas, também, apontou os principais desafios enfrentados na reforma da saúde pública no Brasil, como: a necessidade de ampliação e qualificação da atenção básica, a superação da dicotomia entre saúde e doença como uma sendo a ausência da outra e a fomentação da cogestão, em que trabalhadores e usuários participam dos processos de produção de saúde (BRASIL, 2009).

Observando que a dificuldade na promoção da saúde e do cuidado na rede do SUS estava ligada à falta de entendimento por parte dos próprios profissionais das instituições acerca do que configuram tais práticas, o Ministério da Saúde destacou como possíveis causas para a situação tanto a pouca participação dos mesmos nos processos de gestão da rede de saúde; o que dificultava o protagonismo dos profissionais e os impediam de se perceberem enquanto agentes de transformação dos cenários nos quais estavam inseridos, impossibilitando uma noção ampliada de cuidado que acabava refletindo na criação de vínculos frágeis com os usuários, quanto, também, o baixo investimento dos profissionais do SUS no processo conhecido como formação continuada e permanente, pratica essa que preconiza a constante atualização dos profissionais em suas áreas de atuação (BRASIL, 2009).

A criação desses materiais visa suprir tais defasagem, pois convoca e corresponsabiliza os profissionais na construção das dimensões do cuidado e promoção de saúde. Assim, o Ministério oferece diretrizes para os profissionais do SUS a partir da ideia de humanização, compreendida como a "valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores" (BRASIL, 2009, p. 8), a partir de ações e posicionamentos tais quais "a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários, a construção de redes de cooperação e a participação coletiva no processo de gestão" (BRASIL, 2009, pp. 8-9), assim como "ofertar atendimento de qualidade articulando os avanços tecnológicos com acolhimento, com melhoria dos ambientes de cuidado e das condições de trabalho dos profissionais" (BRASIL, 2004, p. 6).

Para que as diretrizes sejam cumpridas, o Ministério elenca alguns pontos, dos quais destacamos: 1) necessidade do acolhimento das singularidades dos sujeitos atendidos e 2) a superação da dicotomia saúde/doença como uma sendo a ausência da outra (BRASIL, 2009).

A ênfase nestes pontos se deve ao fato de percebermos neles um motivo comum fundamental para a existência da situação de saúde e cuidado: o princípio da equidade. Pensamos a equidade como possibilidade da mobilização dos atores envolvidos em determinada situação, como, por exemplo, a possibilidade de o usuário do sistema de saúde ocupar, também, o papel de agente transformador de sua condição e não apenas ser identificado como sujeito passivo do processo.

Apesar do termo equidade encontrar-se difundido no campo da saúde, Paim e Silva (2010) ressaltam que ele não figura entre os princípios do SUS, seja na Constituição ou na Lei Orgânica da Saúde, sendo usado, na verdade, como sinônimo de igualdade, este sim tomado como um princípio junto à universalidade e integralidade.

 

3. Dificuldades na definição de equidade no âmbito do SUS e suas implicações para o cuidado e promoção da saúde

Paim e Silva (2010), a partir de ampla revisão de literatura sobre a equidade nas práticas do SUS, denunciam a imprecisão com a qual o termo foi empregado em produções teóricas como teses, dissertações e artigos. Para eles, o alargamento semântico e a polissemia do qual o termo fora alvo em razão de sua proximidade etimológica com outros vocábulos, como igualdade, contribuíram para o esvaziamento de seu sentido. A confusão não se restringe ao plano teórico-conceitual, podendo, também, afetar a prática dos profissionais que atuam a partir de tais ideias.

Denúncia semelhante é relatada por Vieira-da-Silva e Almeida Filho (2009) que, ao resgatarem documentos da Organização Mundial de Saúde (OMS), teorias de justiça e trabalhos filosóficos sobre igualdade e desigualdade na saúde, constataram que a ideia de equidade foi utilizada em oposição ao termo iniquidade que, por sua vez, era empregado para descrever a ausência de igualdade.

Barros e Sousa (2016) argumentam que o perigo de tratar a equidade como sinônimo de igualdade está no fato disso desconsiderar as diferenças e diversidades dos fenômenos na saúde, como as heterogeneidades étnicas e culturais dos indivíduos, ao propor igualdade de tratamento e compreensão dos casos. O termo equidade surge da necessidade de salientar e acolher diferenças existentes entre a população. É no reconhecimento das diferenças e não na eliminação das mesmas que o cuidado pode se dar de modo justo.

Ao pensarmos no contexto de grandes desigualdades sociopolíticas como o Brasil, o princípio da equidade orienta os setores da saúde para a identificação de populações vulneráveis garantindo às mesmas atendimento prioritário. Barros e Sousa comentam:

No enfoque que prioriza os mais necessitados sob o ponto de vista econômico, clara está a preocupação com a vulnerabilidade apresentada pelos grupos desfavorecidos, que não apenas sofrem maior incidência de doenças, como também uma maior carga de condições crônicas e de incapacidades em idade precoce (2016, p. 15).

Albrecht, Rosa e Bordin (2017) salientam que a noção de equidade, mais do que um conceito, trata-se de um princípio social, um valor abstrato cuja operacionalização é buscada junto ao campo da moral e da ética e invocada em pautas de justiça social. No contexto da saúde, Barros e Sousa (2016) nos oferecem interessante delimitação da ideia de equidade: conjunto de estratégias que permitem a instauração da igualdade de oportunidades às condições e serviços de saúde, levando-se em consideração as diferenças socioculturais, econômicas e étnicas dos sujeitos.

 

4. O dinamismo de alteridade como possibilidade do acolhimento das diferenças

O conceito de dinamismo de alteridade nos permite alimentar a discussão sobre a busca da equidade e sua operacionalização nos processos de saúde. Byington (2019) o descreve como o movimento de encontro entre sujeitos no qual é constelada a possibilidade de interação e expressividade legítima entre os mesmos, desde que não haja nesse encontro processos de suplantação de suas personalidades e nem tentativas de dominação e subjugação de suas vivências entre si.

O dinamismo de alteridade trata-se de um funcionamento arquétipo, uma matriz psíquica e comportamental expressada pela condição humana e também moduladora da mesma (JUNG, 2012a). A ação arquetípica revelada pelo dinamismo é o da relação, do encontro entre semelhantes ou distintos e das trocas a partir das quais limites e possibilidades são vislumbrados. O ser humano, enquanto ser social, tem no desenho do arquétipo de alteridade a possibilidade de se reconhecer tanto quanto individuo quanto como membro de grupos.

Byington (2019) salienta que o encontro caracterizado pela alteridade se diferencia da mera aproximação por trazer em si a premissa de um encontro significativo, transformador, que potencializa e oferece condições para que os envolvidos abram mão do narcisismo e do egoísmo em prol da criação conjunta.

Assim, as premissas contidas no dinamismo de alteridade nos parece oferecer um caminho para a constelação da situação de equidade, pois, trazem consigo o movimento do acolhimento das diferenças nas quais os sujeitos envolvidos não buscam imprimir suas experiências uns nos outros em uma tentativa de nivelamento, mas, sim, resguardam suas particularidades, seus contextos socioculturais e étnicos, ao mesmo tempo em que buscam uma resolução mútua para a situação em questão.

Transpondo tal situação para o cenário do SUS, poderíamos falar de encontros motivados pelo dinamismo de alteridade e equidade na medida em que profissionais de saúde e usuários dos serviços conseguissem estabelecer trocas em um mesmo patamar, ainda que seus percursos tenham sido até então díspares. Para que esse patamar exista, tanto os usuários precisam ocupar lugar ativo em seus processos de adoecimento e cura, quanto os profissionais de saúde precisam estar abertos para aprenderem com os usuários, acolhendo seus entendimentos sobre saúde e suposições quanto ao seu tratamento.

Diferentes vivências produzem diferentes sentidos sobre saúde, cura e adoecimento. As dificuldades de implementação de práticas que buscam agregar, dar voz e expressão às múltiplas concepções de saúde e, consequentemente, aos variados tipos de tratamentos possíveis, podem ter raízes na falta de incorporação destes variados discursos e na compreensão quanto ao papel dos atores envolvidos na questão. Afinal, o que devem fazer profissionais e usuários dos serviços de saúde para garantirem tanto a oferta quanto o recebimento de um acompanhamento e tratamento de qualidade? A corresponsabilização de ambos em todas as etapas do processo de adoecimento e saúde é a resposta lançada pelo SUS. Como fazer? O encurtamento da distância entre profissionais e usuários parece oferecer um interessante caminho. Tal aproximação propõe a superação de papéis estanques e enrijecidos em que uma categoria, os profissionais, detém a capacidade de planejamento e execução do tratamento e a outra, os usuários, é sujeito passivo do processo.

As premissas da psicologia analítica que compreendem a mobilização e atuação a partir dos papéis de curador e doente fornecem uma possibilidade para a superação desta dicotomia. Dar voz aos sujeitos que constroem o SUS, usuários e trabalhadores, é colocá-los no lugar da ação. Colocá-los no lugar da ação é acolher suas imagens, suas experiências de apreensão e percepção dos fenômenos, é investigar os elementos fantasiosos que estruturam e alimentam suas concepções de cura, doença, possibilidades, falhas, capacidade de gerir e administrar seus sintomas, capacidade de acolher, doar e requerer cuidado. O sujeito com voz passa a ocupar e querer ocupar diferentes lugares e papéis e, assim, transita possuindo diversos lugares de fala: fala sobre seu sintoma com propriedade, propõe adequações de tratamento que coadunem com outras dimensões de sua vida e deixa de ser apenas o doente passando a ser alguém que administra os desafios e aspectos de sua saúde.

Saber evocar tais papéis e, consequentemente, as ações de cuidado, é algo que está no cerne do princípio de equidade e na política de humanização do SUS: não há tratamento sem a responsabilização e cogestão que incite o doente a mobilizar em si os elementos autocurativos. Ao trabalhar no sentido de fazer emergir esta potência no usuário do serviço, o profissional de saúde poderá focar menos na questão da adesão, uma vez que o paciente também administrará seu processo, e dirigir sua atenção para a compreensão das idiossincrasias do discurso daquele, abrindo a possibilidade de novos aprendizados pela prática ao acolher o paciente como um todo e não enquanto uma patologia específica.

 

5. Curador ferido e doente: a dinâmica dos papéis no cuidado

Groesbeck (1975) e Guggenbühl-Craig (1979) pontuam que todo indivíduo acometido por alguma patologia traz consigo o potencial de despertar em si a imagem do curador, ou seja, o comportamento de autocuidado. O termo patologia possui raízes na noção grega de pathos, que remete à mobilização dos afetos e do acometimento do sujeito por vivências passionais que podem causar sofrimento (CAROTENUTO, 1989). Tais colocações revelam o quanto os processos de adoecimento e cura são dinâmicos, não havendo papéis estanques como o apenas doente, o apenas saudável, o exclusivamente curador e nem o exclusivamente curado.

Pensar os papéis de curador e doente no contexto do SUS é trazer para a realidade da saúde pública a discussão sobre as polaridades a partir das quais os processos de gestão do cuidado são comumente encarados. A polarização estanque que rotula os profissionais de saúde como detentores das forças curativas e os usuários dos serviços como eternos adoecidos, falha ao não admitir e facilitar a possibilidade do dinamismo de alteridade, ou seja, a possibilidade de que profissionais de saúde saibam acolher os usuários resgatando suas potencialidades para que se reconheçam enquanto agentes transformadores de sua situação.

O conceito de curador ferido resgata a natureza dinâmica das relações em que processos de adoecimento e cura estão em jogo. Encontramos em Groesbeck (1975) a descrição dos movimentos de projeção e recolhimento de conteúdos conscientes e inconscientes que se fazem presentes em um encontro entre curador e doente. Tais movimentos são descritos pelo autor como aspectos que ilustram a própria natureza da transferência em um encontro terapêutico.

A capacidade do curador em conseguir identificar junto ao doente a natureza do sofrimento deste está diretamente relacionada à profundidade com a qual o próprio curador consegue mapear as próprias questões que o aflige, suas feridas. Não se trata de ser ou estar isento de questões, sintomas, patologias e problemas em geral, algo pouco provável na condição humana. Trata-se de buscar ter consciência dos aspectos que lhe são sensíveis para que, assim, também possa receber os conteúdos de seu interlocutor, que solicitará que os mesmos sejam acolhidos, sem que haja sobrecarga afetiva (GROESBECK, 1975).

Tanto Jung (2012b) quanto Groesbeck (1975) salientam a necessidade do contato do terapeuta ou, no caso, qualquer profissional de saúde que lide com as aflições de terceiros, com seus próprios conflitos. Desse modo, ao estar mais cônscio dos limites e interações entre seus conteúdos e os conteúdos daquele que auxilia, o profissional em questão estará menos suscetível à contaminação psíquica que poderia paralisar a si e, consequentemente, o próprio tratamento. Contudo, suportar as dificuldades do outro ao mesmo tempo em que suporta suas próprias é tido como condição inicial para um processo de cuidado. Pela transferência, o profissional de saúde experimenta quando e como re-endereçar os conteúdos conjuntamente analisados de volta para o usuário, ajudando-o a tornar-se senhor de suas próprias questões.

A promoção da cura é vista por Groesbeck (1975) como um processo de constante revisão dos afetos mobilizados que surgem nas próprias práticas de cuidado. Desse modo, cura passa a ser entendida como um processo dinâmico advindo da participação conjunta de profissionais e usuários.

Guggenbühl-Craig (2018) adverte que o enrijecimento dos papéis no processo de adoecimento e cura pode ser identificado a partir de certos posicionamentos dos profissionais de saúde e usuários. Para o autor, a ideia de infabilidade do profissional tampona e sufoca a autonomia do usuário na medida que este é visto e passa a se ver e atuar enquanto incapaz, ignorante e ingênuo. Se esta postura for acolhida e vivenciada pelo usuário estará retroalimentando no profissional a ilusão do conhecimento absoluto.

No início da relação entre profissional e usuário, Guggenbühl-Craig (2018) diz que a ideia da existência de diferença de patamar entre ambos quanto ao conhecimento e capacidade de administrar situações de adoecimento, adquire tom positivo e torna-se condição para que as imagens de cura e doença sejam evocadas. A confiança depositada pelo usuário no profissional de saúde desperta no mesmo a disposição de acolher, informar e cuidar. Tais imagens são percebidas nas crenças, condutas, hipóteses, temores e expectativas manifestadas nos diagnósticos, prognósticos e tratamentos.

Caso este desbalanço inicialmente necessário se prolongue, a polarização e o enrijecimento dos papéis levarão ao surgimento de resistências de ambas as partes, podendo ser observadas em ações como falta de adesão e compromisso com o tratamento por parte do usuário e dificuldade do profissional em rever a conduta até então adotada.

A necessidade da transformação da imagem de autocuidado em ação pode ser depreendida da ideia de profilaxia, prática de natureza educativa que visa prevenir ou minimizar os efeitos de patologias a partir da aquisição do conhecimento sobre as mesmas. A profilaxia traz a necessidade de o paciente adquirir condições de manter e regular sua saúde. Observamos nesta premissa um ponto fundamental na transição da imagem do doente para a imagem do curador. O princípio de humanização do SUS, ao defender a autonomia e participação do sujeito em seu tratamento dizendo que produzir saúde é produzir sujeitos, se beneficia do discurso sobre a necessidade de constelar imagens de cuidado ao reconhecer a capacidade do indivíduo de transitar entre diferentes papéis ao longo de seus processos de adoecimento e saúde.

A superação da dicotomia entre saúde e doença na qual uma é entendida como ausência da outra pode ser vislumbrada na complementaridade trazida pelas imagens do curador e doente, nas quais abdicamos da ideia de fenômenos contrários para falarmos de diferentes momentos em um mesmo ciclo.

Ao colocar em questão as definições de normal e patológico, Canguilhem (2009) postula que o indivíduo dito saudável é aquele que acolhe os desequilíbrios que acometem um suposto estado homeostático idealizado pelo discurso médico e percebe o adoecimento não como antônimo ou ausência de saúde, mas como um processo adaptativo atravessado por noções históricas e culturais.

Apesar de o discurso sobre saúde ser produto dos processos civilizatórios, não podemos dizer que as definições atuais de cura, doença e nem mesmo as condutas profissionais do campo foram construídas levando em consideração a multiplicidade de abordagens existentes ou que já existiram. O saber médico, especializado, experimental e empírico triunfou sobre as demais terapêuticas gozando do status de discurso oficial. Nesse sentido, a capacidade de cura foi relegada aos profissionais de saúde e as teorias de cura e saberes tradicionais foram tachadas de ineficientes (FOUCAULT, 1977).

O princípio da equidade busca resgatar a possibilidade de o sujeito trazer para seu tratamento possíveis discursos de cura e autocura, favorecendo que este evoque imagens de cuidado que sejam legítimas e pertinentes. Tem sido observado maior aceitação quanto ao oferecimento de práticas integrativas pela Medicina Tradicional e Complementar em dispositivos do SUS, reflexo importante da abertura para a incorporação de outros saberes às práticas já instauradas. Contudo, programas mais contínuos e a expansão dos mesmos ainda são necessários (SOUSA, TESSER, 2017).

 

6. Considerações finais

Quando as singularidades do usuário, seu pano de fundo social, cultural e histórico são levados em consideração no acolhimento e delineamento de seu tratamento, em um encontro verdadeiramente pautado no dinamismo de alteridade, são criadas as condições para que o discurso deste sobre si mesmo seja incorporado ao processo. Isso não se trata, apenas, de um procedimento ético, mas, sim, do cerne do tratamento. Para Silveira (2017), os pacientes trazem consigo teorias próprias sobre seus processos de adoecimento, sendo seus sintomas as expressões de tal fenômeno. Silveira enxergou neste movimento o que denominou como processos autocurativos, nos quais os sintomas são compreendidos como tentativas de reestabelecimento de uma ordem anterior. Podemos dizer que o paciente traz consigo tanto o potencial de evocar nos profissionais o repertório e conduta necessária ao seu tratamento, a partir da manifestação de seus sintomas e da comunicação de suas próprias teorias de cura, quanto de se tornar o próprio "curador", indivíduo ativo e crítico quanto aos rumos de seu tratamento.

O empoderamento do usuário enquanto participante das etapas de seu tratamento não se dá em detrimento da complexidade envolvida na aquisição de habilidades, técnicas e conhecimentos adquiridos pelos profissionais da saúde que dedicam anos de formação e aperfeiçoamento em suas áreas. Trata-se de processo dialético no qual o discurso do usuário produz sentido no encontro com o conhecimento dos profissionais, ao mesmo tempo em que o profissional é educado pelo próprio paciente quanto suas particularidades. O paciente enquanto sujeito, produto e construtor de sua própria história torna-se peça fundamental de seu tratamento.

Ao falarmos da participação e cogestão do tratamento pelo usuário, estamos trabalhando com a ideia de uma ação em potencial. A concretização de tal possibilidade apenas ocorrerá mediante a mobilização e compreensão de tais potências. Para que haja uma gestão compartilhada do cuidado entre curador e doente, é necessário que haja uma horizontalização das relações, condição para que ambas as partes possam se expressar igualmente. Assim, as ideias de equidade e dinamismo de alteridade contribuem com esta horizontalização na medida em que acolhem e ressaltam a condição inicial de diferença entre os atores do processo; de um lado os usuários, com suas vivências e um discurso sobre si mesmo, e, do outro, os profissionais, seu acumulo de experiência e conhecimentos técnicos; ao mesmo tempo em que trabalham para a criação de condições para que tais diferenças sejam igualmente valorizadas e acolhidas gerando discursos e práticas que satisfaçam os envolvidos.

Sendo a alteridade a configuração que busca conectar e valorizar a relação entre a dimensão do Outro e a dimensão do Eu (BYINGTON, 2008), temos em sua aproximação com as premissas ventiladas pelo ideal de equidade no campo da saúde pública a convergência do diálogo entre psicologia analítica e SUS, uma vez que ambas as perspectivas trazem para a discussão o acolhimento e o respeito pelas diferenças e a criação conjunta de possibilidades entre os envolvidos de maneira democrática.

Por mais paradoxal que possa parecer, é na diferença inicial que a condição para a participação ativa do usuário se dá, pois, assim, será possível traçar o horizonte que evidenciará os diferentes níveis de compreensão e atuação existentes entre usuários e trabalhadores no que tange à saúde, passo inicial para que se crie um terreno comum que favoreça a possibilidade de trocas. Não se trata de nivelamento ou síntese em que os elementos envolvidos abdicam de suas singularidades para transformarem-se em outro, mas, da disposição de que uma linguagem comum seja concebida, esta entendida como veículo de trocas que de forma conjunta constrói o objetivo esperado.

 

Referências

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Recebido em: 22/05/2020
Revisão: 07/07/2020

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