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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.38 no.1 São Paulo jan./jun. 2020

 

Ritos de passagem e dinâmicas de consciência

 

Ritos de pasaje y dinámicas de conciencia

 

 

Maria Zelia de Alvarenga

Médica (FMUSP), psiquiatra (AMB), analista junguiana pela Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e afiliada à IAAP (International Association for Analytical Psychology). Tem os seguintes livros publicados: Mitologia simbólica (em colaboração); O Graal: Arthur e seus cavaleiros (em português e inglês - Editora Karnac); Édipo, um herói sem proteção divina; Ulisses o herói da astúcia (em colaboração com Sylvia Baptista), Por que os deuses castigam? (todos editados pela Casa do Psicólogo); Os deuses castigam? (Publicação particular); Anima/Animus de todos os tempos (em colaboração). Fundadora do Centro de Estudos Boitatá. e-mail:<mza@boitata.org>/<mzalvarenga@gmail.com>

 

 


RESUMO

O texto se ocupa em descrever os sete principais ritos de passagem ocorridos com os seres humanos, concomitantemente às sete diferentes transformações de padrões de consciência nominados como: Urobórica, da Grande Mãe, do Deus Pai, do Encontro ou Coniunctio, da Comunicação, da Antevisão do Futuro e finalmente da Totalidade. Os ritos de passagem explicitam momentos de superação-transgressões às interdições, com os quais o ser humano atinge novos tempos de vida, e suas respectivas dinâmicas de consciência, decorrentes de demandas intrínsecas da natureza. Como consequência da superação desses momentos heroicos, adquire-se conhecimentos que são incorporados à psique, a par de desejos desconhecidos mobilizarem comportamentos para a ultrapassagem dos obstáculos. Os ritos de passagem são precedidos da vivência de morte e sucedidos pelo novo tempo de Vida.
 

Palavras-chave: Ritos de Passagem, As Sete Dinâmicas de Consciência, Morte e Renascimento.


RESUMEN

El texto trata sobre la descripción de los siete ritos principales de pasaje que ocurrieron con los humanos, concomitantemente con las siete transformaciones diferentes de patrones de conciencia nombrados como: Urobórica, de la Gran Madre, del Dios Padre, del Encuentro o Coniunctio, de la Comunicación, de la Vista Preliminar del Futuro y finalmente de la Totalidad. Los ritos de pasaje explican momentos de superación-transgresiones a las interdicciones, con las cuales el ser humano alcanza nuevos tiempos de vida, y sus respectivas dinámicas de conciencia, que surgen de las demandas intrínsecas de la naturaleza. Como consecuencia de la superación de estos momentos heroicos, se adquiere conocimiento que se incorpora a la psique, junto con deseos desconocidos que movilizan comportamientos para superar obstáculos. Los ritos de iniciación son precedidos por la experiencia de muerte y seguidos por el nuevo período de Vida.

Palabras clave: Ritos de Pasaje, Las Siete Dinámicas de la Conciencia, Muerte y renacimiento


 

 

1. Introdução

Muitos são os ritos de passagem, em função dos quais nos forjamos, marcando momentos de superação-transgressões às interdições, com o que atualizamos novos tempos de vida, novas dinâmicas de consciência, decorrentes de demandas intrínsecas da natureza. Mas para o novo tempo de Vida acontecer haveremos de "morrer" simbolicamente.

Como consequência da superação desses momentos heroicos, adquirimos e incorporamos conhecimentos que até então não tínhamos competência para exercê-los, mas para os quais tínhamos demandas por atualizá-los. Ao mesmo tempo, desejos desconhecidos entram em cena mobilizando novos comportamentos, em função dos quais ultrapassamos os obstáculos.

Importante lembrar que toda e qualquer vivência de abandono, de bullying ou tudo quanto configura abuso físico e/ou psíquico permeando principalmente as dinâmicas primordiais de consciência, pertinentes aos respectivos ritos de passagem, aceleram a emergência por alcançar as dinâmicas de consciência subsequentes. Entretanto, a urgência por se assumir essas novas responsabilidades que se apresentam por imposição, e nunca por escolha ou deliberação, não se consuma por completo, pois não há como a estruturação suficiente da psique se fazer para suportar os desafios emergentes. O indivíduo segue como que eternamente sobrecarregado, onerado por encargos que considera estafantes e, aparentemente sem um motivo plausível ou, num momento outro qualquer, quadros expressos por patologias físicas e/ou psíquicas emergem e regressões expressivas se apresentam, reconfigurando momentos passados em que os ritos de passagem anteriores foram ativados precocemente.

A demanda para o relacionamento é uma inerência da natureza, é uma realidade primordial, arquetípica, estando presente independentemente da deliberação consciente de caráter reflexivo. Mesmo porque, desde a mais tenra idade, a criança precisa da presença e da interação com as figuras continentes. A demanda por relacionar-se é integrante da natureza da criatura, demanda essa que tem especificidade para transformar as criaturas em seres humanos. Assim, se essa demanda não se atualizar, a criatura (ser humano) não se faz suficientemente humana, tornando-se, ao longo da vida, alguém com conflitos em todas as relações por conta de suas carências de humanização. Ao longo da vida a criatura irá experimentar incontáveis padrões de relacionamentos que agregarão novos referenciais às vivencias humanizantes, como condições saudáveis ou patológicas, em decorrência dos traumas vividos nas fases da mais primeva infância.

 

2. O campo interacional das vivências humanizantes

Até algumas décadas atrás e mesmo hoje, nas pequenas cidades do interior, as pessoas da mesma família, representadas por mãe, pai, avós, tios, primos e agregados, como vizinhos, compunham um campo interacional de vivências humanizantes no interior do qual a criança crescia acolhida como membro da "grande família". As crianças encontravam, desde a mais tenra idade, um campo interacional de vivências humanizantes, composto por muitos rostos de crianças, adolescentes, adultos, idosos. A criança nunca era filho único, mas sempre tinha muitos avós, tias e tios, primos etc. As "vilas" onde cresciam configuravam continentes de vivência humanizantes, mas, algumas vezes também de abusos.

Assim, esse campo interacional, como toda e qualquer realidade humana, podia ser continente das mais terríveis perversões, como são os relatos que encontramos em nossos consultórios.

Ao longo dos anos e das décadas esse campo interacional foi se fragmentando. À medida que as cidades cresciam e se tornavam verticais, os núcleos familiares foram se reduzindo, chegando a ponto de não mais sabermos sequer o nome de nossos vizinhos de porta. O campo interacional de vivências humanizantes foi empobrecendo e, sincronicamente, quer me parecer, os quadros de transtorno de pânico, ansiedade, vida sem sentido, aumentaram significativamente!

Assim, podemos inferir sobre a existência de vivências inter-relacionais profundamente negativas, estabelecidas entre a criança e o campo no qual estão inseridas, por conta desse campo estar cada vez mais restrito, mas, mais que tudo, os campos estão empobrecidos de energia continente. As crianças, precocemente são cuidadas por figuras substitutas que forjam feridas que não cicatrizam e que dificilmente serão reparadas ao longo da vida e de processos de análise.

Quando a criança se sente apartada da relação (abandonada aos cuidados de outros), é invadida por uma emoção atroz de medo, uma vez que ainda não se estruturou minimamente como ser humano, ainda não se sabe! O corpo está formado, mas a condição de como é sentir-se ou saber-se como ser humano ainda não lhe confere segurança para se sentir contida em si mesma, ou seja, sem o risco de desvanecer-se ou perder-se de si mesma. E esta forja ocorre precocemente. Faltando algo que depende totalmente da relação com a mãe/pai e do campo interacional humanizante extremamente empobrecido, a criança, ao se vir apartada do outro que lhe confere humanidade, vive a situação povoada por um medo apavorante. Quando o pai e/ou a mãe se afastam a vivência primordial da criança sentir-se contida, sentir-se envelopada, envolvida pelo continente do "útero reconfigurado"1 redunda numa realidade em que ela (criança) deixa de ser ou de existir, como se se perdesse de si mesma. Ainda não é, ainda não estruturou consciência de si mesma, não se sabe, o terror de ser abandonada não é propriamente de abandono, mas sim o medo de deixar de ser, ou a condição de se perder da possibilidade do vir a ser.

Quer me parecer que o fulcro da grande maioria dos quadros de incertezas, de inseguranças, de transtornos de pânico, decorre dessas carências de cuidados mais primários que concorrem para o estabelecimento da condição de tornar-se humana.

Todos os seres se tornam cada vez mais humanos quanto maiores forem as experiências vividas, estruturadas em diferentes padrões de relacionamentos. Porém a estruturação de todos os padrões subsequentes estabelecidos com as diferentes situações com as quais os seres se deparam ao longo da vida somente é sustentada se a mais primeva das vivências tiver sido suficientemente continente para estruturar embasamento para que as que ocorrerão a posteriori.

A estruturação da condição de humanizar-se, decorrente dos incontáveis "casamentos" humanizadores, depende de como os primórdios foram estruturados. Carências decorrentes dessas vivencias primordiais possivelmente irão comprometer a estruturação de novos padrões relacionais ("casamentos") com os irmãos, com colegas e/ou amigos, com os vários parceiros sejam de conjugalidade, de trabalho, de sociedades etc.

Assim, se a criatura não tiver uma saudável estruturação de primeira infância dificilmente vai casar-se com um homem, ou com uma mulher, mas, provavelmente, irá se casar com um "pai" ou uma "mãe".

Por outro lado, conhecemos relatos sobre criaturas que, sob vivências de grande sofrimento causadas por morbidades de extrema gravidade, criaturas essas que, parecem, vieram para pouco tempo estar conosco quando então, transcendendo os ritos de passagem naturais, atualizam competências pertinentes a dinâmicas de consciência inauditas. Essas vivencias, plenas de antevisão de futuro, concorrem para que tanto a dinâmica do Encontro como a dinâmica da Comunicação e as demais sejam exercidas com a plenitude de alguém incorporado pela presença da divindade.

 

3. Ritos de passagem e dinâmicas de consciência

Os ritos de passagem fundamentais são sete assim como o são as dinâmicas de consciência. Todos os ritos têm um caráter dramático, povoados sempre pelas vivências de vida, morte e renascimento e expressam a condição de que sem o morrer não há como o nascer para a totalidade plena. Os ritos de passagem:

São precedidos pela morte e sucedidos pelo novo tempo de Vida;

Para realizá-los haverá perdas e enfrentamentos dos desafios;

Para cada rito vivido, novos padrões de consciência se atualizam;

Todo rito implica sair da singularidade específica para viver a conquista de novos padrões relacionais;

•É da ingerência da natureza abdicar da conformidade de uma dinâmica de consciência, optar pelo desafio de um novo rito de passagem e partir para a aquisição de um novo padrão de consciência, sem que os anteriores padrões de consciência deixem de estar presentes em todos os seres humanos;

Todo rito de passagem demanda responsabilidade pelas mudanças conquistadas;

Sempre podem anunciar a antevisão de um futuro diferente do provável.

O primeiro rito de passagem ocorre na concepção da nova vida. Configura a primeira vivência de morte e renascimento. Eis que um espermatozoide e um óvulo se congregam e se fundem. Ambos abdicam da individualidade para que a vida aconteça. Simbolicamente, ambos morrem para forjarem um ovo ou zigoto, ou seja, o protótipo do novo ser. Morte é necessária para fazer Vida. A coniunctio de dois origina o Uno.

Ao se fundirem, a grandiosidade do desconhecido se apresenta; uma sabedoria inaudita acontece quando o um e o outro abdicam da própria identidade para se tornarem o uno e somente assim a sabedoria da Natureza se atualiza. E, ao se fazerem uno, se dividem em dois, depois em quatro, oito, 16 e assim sucessivamente até que parte desta mórula, ou seja, parte deste agregado de células, supostamente idênticas, uma vez que decorrem de uma única célula primordial - instância essa cuja regência desconhecemos - que "determina" que parte dessa mórula formará o saco amniótico, dentro do qual o futuro embrião se desenvolverá, e se forjará a placenta para alimentar o futuro ser em gestação.

As demais células se compõem imageticamente como um corpo urobórico, com o que, cada grupamento celular, de per si, dará origem aos incontáveis componentes do futuro ser humano: boca e anus se separam, a uroboros se abre, se alonga, a protuberância da cabeça emerge, a coluna se forja, os apêndices, braços e pernas, despontam e todos os órgãos acontecem.

Ao final de 10 semanas, o embrião estará absolutamente completo. Nas próximas 30 semanas, dando continuidade a esse processo fenomenal, no qual transformações ímpares ocorrem, fazendo a vida acontecer, um novo ser se forja, único como nenhum outro. Passa a se chamar feto. E, finalmente, após um período total de 38 a 40 semanas estará pronto para nascer, apesar de, diferentemente dos demais mamíferos não primatas, sem autonomia para locomover-se ou buscar alimento.

A dinâmica de consciência que permeia esse tempo de vida denomino-o como Dinâmica Urobórica sob a regência da divindade Natureza.

O primeiro rito de passagem, tanto quanto a primeira dinâmica de consciência, se traduzem e se ocupam com a origem e a manutenção da Vida!

Estando o feto pronto, apto para seu próximo desafio, haverá de submeter-se, simbólica e literalmente, ao seu segundo rito de passagem e, como tal, por nova vivência de morte. Atravessar o conduto vaginal, e após dar nascimento à cabeça, a escápula se contorce, o tórax passa a ser "massageado para acordar os pulmões", os batimentos cardíacos se aceleram, emerge o abdômen... O segundo rito de passagem acontece como o nascer para a luz.

Até algumas décadas atrás, o nascimento ocorria mais natural e necessariamente por via baixa, com o que o feto precisava atravessar o estreito canal vaginal, por onde coubesse sua cabeça e para que a escápula, certamente mais larga, atravessasse esse conduto, necessitava de malabarismos intensos, seguidos por um tórax com suas costelas que também se retorciam e se massageavam, e assim os pulmões serem ativados, cumprindo sua função de sobrevida, qual seja, respirar. Após o segundo rito de passagem, a criaturinha vive o colo protetor sob a tutela da segunda dinâmica de consciência que denomino como do Feminino ou da Deusa Mãe, amplamente estudada pela Psicologia Analítica sob a denominação de Matriarcal.

Esta dinâmica retrata a instauração do encontro eu-outro, sem consciência reflexiva, por parte do nascituro, de "quem é o Eu e quem é o Outro". Todavia, à medida que os vários Outros se diversificam o Eu se estrutura, a relação deixa de ser de exclusividade, mas sempre na interdependência com um Outro. Na dinâmica da Deusa Mãe, a Vida é sempre soberana.

O nascituro se desenvolve natural e simbolicamente no colo da mãe/pai, sendo alimentado, aconchegado, acarinhado, atualiza a linguagem, bem como competência para andar sobre somente duas patas, liberando as mãos que com seus movimentos concorrerão para que múltiplos estímulos cerebrais aconteçam, continuamente se vendo refletido nos olhos e faces de suas figuras protetoras. A dinâmica de consciência presente é a do Feminino ou da Grande Mãe, sob a regência do arquétipo da Deusa Mãe.

A vivência do colo protetor traduz a concomitância da complementação do tempo gestacional intrauterino com os primeiros ritos fenomênicos do processo de hominização. O nascituro, por conta da postura bípede das humanas (que tiveram tanto a largura do quadril como do túnel por onde se forma o conduto vaginal diminuídos, bem como das transformações ativadas, decorrentes do processo de deambulação e da postura ereta), nasce absolutamente imaturo para a própria sobrevivência. Assim, os primeiros anos de vida extrauterina configuram o que há de mais fundamental para a estruturação de uma criatura saudavelmente humana. Nesses primeiros tempos de vida, o útero se reinventa nos braços que envolvem o recém-nato, a par da placenta se fazer representada simbolicamente pelo seio que alimenta, mobilizando as demandas mais primordiais de sobrevivência. O nascituro é instado a acolher o seio e o movimento oral de sugar atualiza-se de imediato. A par dessa condição, tanto no sentido fisiológico quanto psicológico, a interação dos olhares, decorrentes das faces recíprocas que se encontram - mãe (ou substituta) e criança -, constroem-se os primeiros estágios da relação vinculante que gera humanização, forja evidente da certeza de estar sendo cuidado com diké e aidós, ou seja, com justiça e adequação e recebendo do cuidador(a) o que ele(a) tem de melhor, com o que a emergência do vínculo concreto se faz.

Esses cuidados são fundamentais para a forja da inerência humanizante da criatura, ou seja, nascemos como criaturas e estruturamos nossa condição humana na interação decorrente dos cuidados do útero reinventado pelas mãos/colo da mãe/pai/cuidadores!

O útero reinventado, bem como todos os cuidados desse tempo de dinâmica da Grande Mãe, configura estrutura de limite físico-emocional entre as figuras continentes e a criança, e vive um continente limitante de caráter físico e que tem fundamentalmente a finalidade protetora para a integridade física. O limite físico é imposto pelas figuras humanizantes. Na dinâmica seguinte haverá de viver a condição de ter e de submeter-se a um limite verbal-psíquico-emocional tão imperiosamente necessário para a estruturação saudável da personalidade. O limite também é imposto, mas é verbalizado e estabelece a assimetria do poder ao qual a criança aprende a se render. É meu entender que as sete dinâmicas de consciência, presentes desde todo sempre na natureza do ser, se atualizam concomitantemente, porém com diferentes padrões e de diferentes intensidades.

O tempo do colo e dos primeiros tempos de Vida condiz com o caráter da dinâmica de consciência em que predominam os vivências do feminino, todavia estruturas de interação masculina, inerentes à natureza, entram em cena, com o que a criança vai sendo "convidada" a atualizar o controle dos esfíncteres, a fazer uso das mãos para segurar a mamadeira por si mesma, ou seja, paulatinamente adquire autonomia para sair do ninho e enfrentar o mundo coletivo. A criança apreende o sentido das palavras, dos interditos, dos limites físicos, constata a assimetria do poder para os quais precisará exercer-se por atitudes pertinentes à dinâmica do masculino. A par disso, descobre o encanto da brincadeira com outros, especialmente com alguns em que a sintonia prevalece. Perde-se o colo continente, ou melhor, abdica-se dele, vivendo esse momento, simbolicamente, como um morrer.

O segundo rito de passagem implica a emergência da segunda dinâmica de consciência e traduz e se ocupa com a manutenção da espécie!

E, então, o terceiro rito de passagem entra em cena, e o medo emerge, muitas vezes de intensidade assustadora. O medo desse tempo decorre, possivelmente, de um padrão de consciência em que os primórdios do processo reflexivo estão se consumando. Deparar-se com o limite do tempo, com o limite da Vida, do dia, da descoberta literal da Morte, das frustrações, do não impeditivo, quando então os desafios das primeiras atividades de caráter reflexivo entram em cena: ler, escrever, tocar um instrumento musical, respeitar limites, cumprir tarefas, obedecer às ordens, configuram realidades assustadoras, necessariamente impositivas, bem como imprescindíveis à estruturação de relacionamentos assimétricos.

O pior de todos os medos, e talvez, neste momento de vida, quando se vive o terceiro rito de passagem e os prenúncios da consciência reflexiva emergem, o medo da solidão, da perda, do ficar sozinho são mais que assustadores. O medo de estar sozinho, portanto, desamparado ou perdido de si mesmo, explode porque a natureza mais profunda nos diz que somente somos quando em relação. A vivência é que fora da relação não somos.

Ao longo da vida, todos os seres irão buscar parcerias, casamentos, vínculos, sociedades, relações! Todos se buscam e sentem que se constroem, ou se fazem humanos em função das relações. Sem a relação o ser não é!

Em grande parte da vida as relações são concretas, objetivas. Todavia, as relações tendem a se tornar subjetivas, simbólicas, povoadas pelas memórias de todos os casamentos estabelecidos ao longo do caminho e iluminadas pelos casamentos interiores com todos os Outros que incorporamos em função da elaboração de nossas sombras, as mais sombrias, com o que podemos realmente realizar o maior e o melhor de todos os casamentos, qual seja, consigo mesmo, com o Self, com Deus, tornando-nos plenamente humanos. Quando assim se der, as criaturas se tornam o que são para deixarem de ser o que sabem.

É tempo do masculino, da discriminação, da assimetria do poder. É tempo de sair do ninho familiar, sair do "colo" para entrar, simbolicamente, no reino da regra, da ordem, da norma, do cumprimento das tarefas, no reino do coletivo, das obrigações e dos deveres. É tempo da dinâmica do Masculino ou do Pai, sob a regência do arquétipo do Deus Pai.

Há anos, como ainda hoje acontece nas pequenas cidades, essa separação da pequena família para o grande coletivo acontecia nas ruas, com os vizinhos do "bem" e do "mal". Hoje, acontece cada vez mais precocemente com a ida às escolas pré-primárias, quando a criança é inserida, muito mais cedo, no reino do grande universo coletivo.

No tempo do terceiro rito de passagem, a instituição da terceira dinâmica de consciência confirma que os cânones do Estado de Direito são estabelecidos e a Vida torna-se soberana somente dentro da tribo ou do clã.

O terceiro rito de passagem realiza-se sob a dinâmica de consciência de caráter patriarcal, com a regência do deus Pai, traduz e se ocupa com a implantação do Código!

O quarto rito de passagem se apresenta, mobilizado, desencadeado e atualizado em função das grandes transformações neuroendócrinas. É a adolescência plena com sua quase intimação de se olhar para o outro diferente de si e com ele interagir de forma inédita. O conflito decorrente das demandas imperiosas pelas vivências de sexualidade, concomitante às demandas da coabitação carnal que emergem assustadoramente. O quarto rito de passagem é o mais desafiador até então vivido! Implica a experiência e a vivência dos maiores conflitos. Demanda que meninos e meninas sejam preparados para se tornarem adultos e, para tanto, enfrentarem desafios aterradores. O herói/heroína, profundamente mobilizado, acontece para todos. O primeiro estágio se traduz por sair da tutela familiar de pai e mãe; implica deixar de ser filho/filha. Entretanto, as demandas da emergência de autonomia do adolescente não coincidem com os pressupostos de aceitação dos pais, os quais, defasados, algumas vezes, por quase duas gerações, entendem que autonomia significa competência para responder por sua própria sobrevivência.

Nos pressupostos de nossa sociedade atual, os adolescentes não são trabalhados para cumprir os ritos de passagem como: suportar a dor, caçar um animal selvagem e enfrentar o medo de dormir no território sagrado dos mortos, tal como os integrantes de povos chamados "selvagens", que determinam as tarefas a serem cumpridas. Porém, no sentido mítico-simbólico, tanto para o universo masculino como para o feminino a ativação do herói/heroína acontece como demanda da própria natureza

Quer me parecer que em nossa sociedade, no sentido de classe média, a passagem pelos ritos da adolescência para adultícia foi restringida exclusivamente para os domínios do intelectivo, como, por exemplo o de conseguir passar num vestibular.

Há de convir, entretanto, que as relações sexuais entre adolescentes têm ocorrido cada vez mais precocemente; a ingestão de bebidas alcoólicas aumentou de forma indiscriminada, sem respeito qualquer às restrições chamadas legais. De outra parte os envolvimentos de caráter homossexual têm se tornado prática de experimentos, principalmente entre meninas. Quer me parecer que, principalmente entre as meninas, os encontros eróticos de caráter homossexual seja uma tentativa de experimentar o gozo do prazer erótico com alguém de seu mesmo gênero, para que, depois dessa vivência, aceitar o desafio de uma relação heterossexual. De outra parte, notamos a emergência tanto com os rapazes como com as moças, de grupos de juvenis absolutamente avessos a qualquer envolvimento hetero ou homossexual: são jovens que participam de grupos, festejam, viajam juntos, mas sem atividade erótica, a par daqueles que permanecem numa relação de envolvimento puramente virtual.

O tempo da "juventude" também aumentou nas classes sociais mais abastadas. O chamado "jovem", apesar de ter idade de adulto pleno, mantem-se na casa dos pais, usufruindo das benesses do cotidiano, sem ônus econômico qualquer, desfrutando das acomodações, alimentos, limpeza, roupas lavadas etc., ou seja, tudo absolutamente sem custos econômicos, a par de desfrutarem de benesses para as quais ainda não têm competência para custear.

Para o universo feminino, com suas heroínas ativadas, o enfrentamento das tarefas que levariam à introspecção e explicitadas de forma magnífica pelo mito de Eros e Psique está cada vez mais sendo insuficiente. Tarefas que explicitam com riqueza de detalhes a estruturação de como se forja a natureza mais profunda do feminino na mulher, tais como: separar as sementes misturadas, ou seja, reconhecer os grãos da própria constituição e adquirir discriminação; descobrir como evitar o confronto com a força bruta, incorporando-se de paciência e lucidez para conseguir o resultado almejado; confiar que a presença do sagrado se fará para conquistar a água da origem; render-se à sabedoria da edificação do processo reflexivo que instrui sobre como entrar e sair do reino da morte. Assim, ao adentrar simbolicamente o reino da morte deverá atentar para não ser enredada com as demandas de outros com escolhas que não são suas, quais sejam: a mão que pede ajuda; o burriqueiro coxo, as tecedeiras, com o que, ao retornar, surgirá como mulher adulta, plena de femininos, reconhecendo-se e sabendo-se feminina ousando abrir a caixinha do pote da beleza-sedução-envolvência. O mito expressa com sabedoria como é deixar de ser uma menina e transformar-se numa Mulher, realidade essa que enseja a concomitância do nascimento-emergência do Homem adulto, expresso na personagem Eros que surge para arrebatar Psique.

A natureza do ser feminino está magnificamente expressa no mito de Eros e Psique, quando do retorno da jovenzinha do reino de Hades carregando a caixinha com o creme da beleza. Psique, ao assumir sua demanda de querer manter-se bela, característica próprio de sua natureza, mas que ela abominava por afastá-la das pessoas, principalmente dos homens. Ao retornar do reino dos mortos, simbolicamente, ao deixar sua meninice, ao transpor o limiar do rito de passagem, constata, descobre que deseja ser Mulher, ou seja, deseja ser feminina, bonita, sensual, necessitada da presença-complementação da figura de um masculino. E, assim, abre a caixinha: ao se tornar uma Mulher viabiliza-se também a possibilidade de Eros se fazer Homem com a plenitude do Masculino. Eros deixa sua dependência com a figura mãe-Afrodite e referencia-se com a expressão maior do masculino-Zeus. Assim, incorporado, resgata Psique.

São tempos de concomitância de vivências ambivalentes como: introversão/extroversão; atividade/passividade; aceitar desafios/ evitação; responsabilidade/inconsequência; contestar/submeter-se; e tantas outras ambivalências avolumando os conflitos.

Tanto os meninos quanto as meninas estão submetidos, simbolicamente, à emergência do herói tanto quanto da heroína pois ambos representam lutas que darão abertura para a emergência dos arquétipos de anima e animus.

No sentido mítico, nesse momento, entram em cena os mais significativos mitos de criação com a emergência das mais profundas questões sobre a realidade de ser humano:

Quem sou eu?

Por que estou aqui?

Qual o propósito de minha existência?

Como aceitar a responsabilidade por tudo quanto faço?

Estas questões foram formuladas por filósofos de todos os tempos, sendo que a quarta somente emergiu com Kant (século XVIII), ou seja, qual a minha responsabilidade diante desses acontecimentos?

Há de convir que estas questões, conscientes ou não, implicam o peso atroz da responsabilidade e da culpa por tudo quanto der de errado. De um lado, o herói, tanto quanto a heroína, não quer abandonar o espaço da vida, da velocidade, contestações, autonomia, infrações, drogas; de outra parte anima/animus se apresentam com atitudes profundamente sui generis, com demandas por estabelecer relacionamentos de companheirismo. Mas os conflitos decorrentes dessas brigas autorreflexivas primordiais redundam, muitas vezes, em mortes literais.

Dos ritos de passagem, inegavelmente este momento é o mais complexo, pois pede a morte da inocência, a implantação da lucidez da responsabilidade e, fundamentalmente, do encontro com o outro que pensa, sente, age de forma diferente, mas que atrai, fascina, convida para estar junto.

O herói/heroína ativado pede timé, pede reconhecimento por seus feitos, mas, ao mesmo tempo, não quer deixar sua intrepidez. Objetivamente, as vivências de morte, expressivas nos ritos de passagem, têm um sentido simbólico. A par disso, na emergência da adultícia o peso da reflexão enlouquece.

O fato da quarta questão ser tão recente na história é um alerta para a constatação de que a consciência da responsabilidade sobre o que sou e o que faço ainda ser um fenômeno em fase de elaboração coletiva.

O coletivo ainda espera salvadores da pátria; ignora que atribuir ao estado a responsabilidade pela própria sobrevivência é não se tornar adulto, ignora que estamos destruindo o planeta e aceitam que o locupletar-se com o dinheiro do outro é regra.

As mudanças individuais são mais céleres que as coletivas!

Histórica e simbolicamente, o coletivo vive um rito de passagem da adolescência para a adultícia em que é iminente assumir a responsabilidade por tudo quanto acontece na própria vida, na família, com os filhos, no trabalho, no país, na Terra...

O tempo da quarta dinâmica de consciência tem se estendido de forma significativa, principalmente nas classes sociais mais diferenciadas no sentido econômico.

O quarto rito de passagem pede o exercício da dinâmica de consciência do Encontro, sob a regência do arquétipo da Coniunctio e se ocupa da consumação da paridade!

O quinto rito de passagem reclama pela conjugalidade com o que a convivência com o outro diferente de si demanda o exercício pleno da comunicação. É tempo de parcerias, de troca de ideias, de informações, de sentimentos, tempo de decisões comuns entre parceiros, entre sócios, entre amigos, tempos de deliberações sobre como estruturar o núcleo familiar bem como manutenção da própria espécie, do firmar-se profissionalmente, do conviver e tornar-se socialmente responsável, por si mesmo, pela família, pela sociedade, pela Terra onde se vive!

O quinto rito de passagem implica diálogos e comunicação com o outro, implica integridade de propósitos e coerência de valores, implica fidelidade e lealdade consigo mesmo e com os demais. O quinto rito de passagem implica o mais pleno exercício das virtudes dispensadas por Zeus às criaturas, quais sejam: diké e Aidós, ou seja, justiça plena para com o outro e fazer para o Outro o melhor de si. Essas virtudes implicam necessariamente estar em relação com o outro e somente assim nos fazemos realmente seres humanos.

Pierre Soliè, em seu texto "Mitanálise" (1986), propõe que os primeiros tempos de vida o ser humano considera o outro como propriedade sua e implica um relacionamento "amoroso" de caráter antropofágico; o segundo tempo se traduz por relacionamento amoroso de tipo "caritas", ou seja, implica cuidar do outro pelo outro mas ainda depende do reconhecimento pelo outro. Somente no terceiro tempo viabiliza-se o amor do Ágape sagrado com o ocupar-se do outro mesmo que o outro não saiba ou reconheça estar sendo cuidado.

A Comunicação, quando exercida de forma criativa, pedirá Congruência entre o que se fala e o que se faz, bem como Complacência para com o outro que ainda não atingiu esse patamar de compreensão. Quando exercida em sua plenitude maior, a voz do emitente terá competência para vibrar em sintonia com o Outro, criando ressonâncias de apaziguamento.

Assim, manter-se na integridade de propósitos representa um desafio enlouquecedor, pois a tentação por proveitos escusos se faz presente com muita frequência.

A comunicação entre as pessoas é um fenômeno tão complexo quanto inédito por ser continente das mais espetaculares criações humanas, quanto das piores aberrações, motivos de brigas, crimes, guerras.

De outra parte, a comunicação implica poesia, música, beijos e abraços, toques sutis entre almas que se encontram. É inseminadora e fertilizante, criadora que gera criaturas.

A dinâmica da Comunicação, atributo singularmente atualizado pelos seres humanos, confere um poder de comando, como também confere certezas e esperanças de mudança, a par de explicitar as decepções e amarguras diante do que a criatura tem de mais sórdido, mais degradante e sombrio.

O quinto ritual de passagem exercido sob a vigência da dinâmica de consciência da Comunicação, sob a regência do arquétipo do Verbo encarnado é o que melhor expressa o processo de humanização por traduzir em falas (faladas, escritas, poéticas, cifras musicais, imagens, gesticulações) o que a criatura pensa e reflete sobre o refletido, o que tem de ideias e o que com elas constrói, o que sente e como sofre, o que a emociona e se traduz em vibrações epifânicas. Enfim, a comunicação é a marca indelével do ser humano e do como se fazer humano!

A dinâmica da Comunicação implica ouvir o que o outro fala, incorporando-se desse referencial, fazendo dele instância sua, estruturando-se como decorrência do casamento de suas próprias ideias, falas, pensamentos com as ideias falas e proposições do outro. A dinâmica da Comunicação implica lutar pela implantação de realidades decorrentes do casamento de suas próprias demandas com as demandas do outro, quando então, não há mais a minha demanda e a do outro, mas sim a nossa, ou seja, a dinâmica da Comunicação pede que concebamos com o outro filho dessa transubstanciação!

A dinâmica da Comunicação pede a elaboração do mais severo dos sete pecados capitais, qual seja, a arrogância de supor-se douto criador de soluções, quando na realidade somos todos vasos continentes do grande universo do inconsciente coletivo, expressão junguiana para traduzir o campo akáshico, fonte de sabedoria que aguarda que façamos as perguntas para respostas que já estão a nossa espera.

O quinto rito de passagem sob a condução da dinâmica de consciência da Comunicação, sob a regência do Verbo Encarnado expressa e se ocupa com o casamento de atos e de ideias!

O sexto rito de passagem emerge veiculado por reflexões e constatações sobre a demanda da necessidade de afastar-se da pessoalidade da família, do casamento, do trabalho, dos filhos, da sociedade. O sexto rito de passagem pede introspecção, recolhimento, pede o exercício da reflexão mais profunda sobre suas próprias ideias, sobre o quanto se exerceu pela reto-ação2, avaliando-se sobre o que aprendeu com a Vida, o que descobriu como verdade soberana, se realmente alcançou o entendimento de que a fala falada como a fala silenciosa deve ser o mais poderoso instrumento de conciliação, de paz, de aconchego, e de transmitir a Verdade, alicerçada na Ética, imbuído da consciência de que o processo de individuação está a caminho.

O herói desse tempo implica o exercício da Areté - Excelência, não havendo mais a demanda pela Timé - honorabilidade. A dinâmica de consciência que permeia o exercício do tempo do sexto rito de passagem realiza-se pela antevisão de futuros diferentes do provável, com a certeza de poder-se realizar e interferir na criação de realidades alternativas.

A vivência do sexto tempo de Vida retrata a constatação de poder forjar futuros diferentes do provável, atualizando e experimentando competências até então chamadas extraordinárias. A arte do aprender e do ensinar conferindo tranquilidade; a arte do curar e do curar-se conferindo certezas; a arte do transportar e do transportar-se conferindo deslumbramentos; a arte de transformar a natureza da matéria conferindo a constatação de nos sabermos imortais.

O sexto rito de passagem vivido sob a dinâmica de consciência da Vidência ou Antevisão do Futuro, sob a regência do arquétipo da Profecia ou do(a) Velho(a) Sábio (a) retrata a proposição da existência de diferentes possibilidades de um vir a ser, que depende de escolhas feitas em momentos cruciais nos quais se deixa a condição de um porvir provável para um diferente futuro possível.

Momentos cruciais traduzem-se, na realidade de todos nós, como desafios nos quais o risco de vida (de si mesmo, do filho, do amado) é iminente, seja por conta de processos físicos ou psíquicos; ou por condições de perdas catastróficas com vivências de extrema solidão e desamparo; ou por realidades invasivas com perda de autonomia e liberdade; ou quando o outro de nós é roubado, sequestrado, abusado...

Momentos cruciais mobilizam angústias, ativam feridas da alma, desencadeiam medos antigos, desorganizam a vida e pedem soluções imediatas, apesar de não as encontrarmos. Todavia, esses momentos também despertam a fé e demandas por constrição, bem como evocam memórias de nossos ancestrais crentes no poder das orações.

E, eis que os "milagres" acontecem trazendo-nos a certeza de que as transformações quanto a diferentes futuros possíveis despertam como realidades, talvez, nunca dantes cogitadas pela consciência. A física quântica afirma que diferentes futuros possíveis aguardam por serem despertados no momento presente em que os desejarmos (BRADEN, 2017) expressando a realidade do novo ser nascituro no qual nos tornaremos, ou já nos tornamos! Já somos então o futuro possível e distanciados nos sentimos do futuro provável que seríamos.

Interessante atentar para o quanto de reclamações emergem no seio de uma dinâmica familiar quando um de seus componentes, em processo de análise, apresentando as modificações decorrentes de suas epifanias analíticas, ouve: "Você está muito diferente! Já não é mais o mesmo! Que aconteceu consigo? Parece que não o reconheço!".

E, então, quando se atenta para memórias passadas, que são, na realidade, muito recentes, as pessoas se sentem tão distantes do que foram, por diferentes se sentirem, assustadas com o que faziam, consentiam ou deixavam passar, sem contestações.

Quer me parecer que o processo de individuação é uma demanda imperiosa pela instauração de um futuro possível diferente do provável, futuro esse adormecido nos escaninhos da psique e que aguarda a emergência da revelação!

Assim, ao vivermos o sexto rito de passagem estruturado pela sexta dinâmica de consciência em nosso processo existencial tornamo-nos videntes (ALVARENGA, 2018), permeados por um padrão de inteligência noética que nos torna cada vez "mais humanos", seja por incitar-nos a ser a solução dos conflitos, como a nos compelir para realizar as mudanças, mas, mais que tudo, pela emergência imperiosa do processo de individuação clamar por se atingir o autoconhecimento, meta maior do fenômeno da humanização. Assim, autoconhecimento implica assumir por inteiro e intensamente a demanda de saber e de ocupar-se do Outro, em si mesmo. Esse Outro subjetivo, muitas vezes depositário de projeções, as mais sombrias, necessita ser conhecido e reconhecido como instância da própria pessoa, em seu mais profundo processo reflexivo.

Assim, o próximo passo para traduzir uma expressão transformadora do desenvolvimento do padrão de consciência para atingir-se a plenitude da condição humana implicaria alcançar um quociente de inteligência que traduzisse a síntese da condição intelectiva, com a emocional e a espiritual, e expressasse o ser em sua plenitude maior, ou seja, ocupado com a redenção do outro em si mesmo.

A dinâmica da Vidência e sua competência para divisar possíveis diferentes futuros está intimamente ligada ao poder da prece e sob a regência do "efeito Isaias" que propõe como oração mais poderosa aquela que mentaliza um futuro diferente do provável e que já é realidade, pois, despertado se fez pelo desejo inquebrantável da fé. Todavia, para alcançarmos um futuro diferente do provável precisaremos ser numa nova Ética instituída e fundamentada, no meu entender, em quatro princípios, quais sejam: no Fogo da mais profunda consciência reflexiva que nos intima a refletir sobre assumir a responsabilidade por tudo quanto nos cerca, pois tudo tem a ver conosco; na Techné mais inventiva que somos e temos para mudar nosso momento histórico; na Diké como consciência plena do senso de Justiça para todos e com todos; e, finalmente, na virtude plena da Aidós que nos conduz para realizarmos e fazermos o que somos de melhor para o Outro, quem quer que ele seja e para o bem comum (ALVARENGA, 2011).

Assim sendo, próximos estaremos da sétima morada, da sétima dinâmica de consciência e lá nos aguarda a cerimônia ritualística da coniunctio com a divindade, segundo pressuposto de Teresa D´Ávila (1981), ou a cerimônia ritualística da coniunctio com o Self, segundo as proposições de Jung, com o que o autoconhecimento se faz, meta maior do processo de individuação.

Há que lembrar de não terem as diferentes dinâmicas um caráter sequencial, pois podem ocorrer, tanto a quinta como a sexta e a sétima, numa condição eventual, expressando momentos de sabedoria não inteligíveis para quem os enuncia. A fixação defensiva em qualquer uma delas é possível, e pode impedir o caminhar para o Self. Vidência implica antevisão de futuro e configura a melhor e a maior oportunidade para divisarmos o caminho para a individuação

O sexto rito de passagem ocorre sob a sexta dinâmica de consciência regida pelo arquétipo do Velho(a) Sábio(a), expressa e se ocupa da antevisão do futuro!

O sétimo rito de passagem, ou seja, tempo da Compreensão Universal, sob a regência do arquétipo da Totalidade, comporta a arte de aceitar que somente com a morte literal experimentaremos um tempo inédito de vida.

É tempo do desapego, tempo de preparar-se para a partida, tempo de perdoar-se por não ter atingido a meta almejada, tempo de se despedir dos que ficam, lembrando que o afastamento é temporário, tempo de purgar as mágoas.

O sétimo rito de passagem implica o preparo para a morte literal.

 

Referências

ALVARENGA, M. Z. As sete dinâmicas de consciência, a hominização, inteligência espiritual e o processo de individuação. In: CONGRESSO LATINO AMERICANO DE PSICOLOGIA ANALÍTICA, 8. 2018, Bogotá. Anais... Bogotá: Comitê Latino-Americano de Psicologia Analítica, 2018.         [ Links ]

_________. O encontro de Prometeu, Héracles e Quiron: a morte e o morrer: ritos de passagem. Junguiana, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 58-65, jun. 2011.         [ Links ]

BRADEN, G. O efeito Isaias: decodificando a ciência perdida da prece e da profecia. São Paulo, SP: Cultrix, 2017.         [ Links ]

D´ÁVILA, T. As moradas do castelo interior. São Paulo, SP: Paulus, 1981.         [ Links ]

SOLIÈ, P. Mitanálise junguiana. Barueri, SP: Nobel, 1986.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 26/05/2020
Revisado em 28/06/2020

 

 

1 É meu entender que, pelo fato de os seres chamados humanos nascerem absolutamente imaturos, o colo traduzido pelos "braços maternos" que envolvem o nascituro, por meses e meses, configura um útero reconfigurado.
2 Reto-ação, conceito da filosofia hindu, implica dispor-se para o exercício de atividade que vise o bem-estar do outro ou do coletivo, sem demandar pelo reconhecimento.

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