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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.38 no.1 São Paulo jan./jun. 2020

 

RESENHA

 

A vida começava lá: uma história de repercussão corporal

 

 

Sylvia Mello Silva Baptista

Psicóloga e Analista junguiana pela SBPA/IAAP, escritora com livros publicados na área de Psicologia Analítica (Venenos e Antídotos - ensaios sobre a clínica junguiana e mitologia grega, O Arquétipo do caminho, entre outros) e em Literatura (Ganga, Segunda Pedra)

 

 

BARBA, Fernando Barba; TORRES, Renata Ferraz. São Paulo: Stacchini Editorial, 2019.

Tum-plic-pof, peito-estalo-palma. Qual é o som que o corpo tem? Fernando Barba perseguiu essa resposta desde sempre. Agora, as descobertas são outras, não menos instigantes e estimulantes. Outras.

Fernando Barba viveu 45 anos, morreu e renasceu. No início de 2007, começou a sentir tonturas, enjoos e fortes dores no pescoço que acabaram por levá-lo abruptamente a uma neurocirurgia para a retirada de um tumor próximo ao cerebelo. A operação foi um sucesso, porém acordou com sequelas, entre elas dificuldades na fala e locomoção.

Hoje, os 47 que constam em seu RG trazem 2 anos de reinvenção, resiliência e amor à vida. Não é para qualquer um. Os heróis gregos costumam ter dois nascimentos. Visitam os Ínferos, conhecem o Hades e retornam ao mundo dos humanos transformados. O deus do renascimento é Dioniso, divindade complexa e intrincada, que vive de braço dado com Apolo, o deus da música. É nesse território que Barba caminha, é dessa matéria que ele é feito. Seu testemunho é tocante, como são as falas dos que beijaram a face da morte e nos dão o privilégio de ouvi-los e com eles aprender sobre a vida.

O livro traz já no título uma brincadeira com as palavras. É com a nota Lá que se afinam os instrumentos e é ali, lá, que a vida se faz. Nietzsche atesta numa epígrafe: "Sem música, a vida seria um erro". O convite é para deixar a sua história repercutir em nossos corpos. Barba faz essa provocação acompanhado de sua irmã, Tata, de mãos dadas. Ela o incentivou e com ele muito trabalhou para que a ideia do livro se materializasse. O ingrediente principal nesse projeto: o mais puro amor e admiração mútuos.

Fernando e Renata ficam para trás, e é com Barba e Tata, na intimidade, que faremos esse passeio. A construção do texto é simples e direta. Os capítulos se apresentam numa única e enxuta palavra. Não há floreios. É assim mesmo. Na lata. No corpo. Pá tchi cum bum.

Começando pelas raízes, vamos conhecendo os antepassados de Barba, bisavós, avós, pais, irmãos, e ele próprio nesse contexto. Quem é quem em sua vida, as casas onde morou, as escolas onde estudou, a padaria, o pão na chapa, as lojas de discos, a música acontecendo silenciosa, os esportes e os amigos. Ah, os amigos... A cada capítulo, impressiona a quantidade deles, surgindo, transbordando das páginas, uma infinidade. Vamos conhecendo Barba através de suas escolhas, das canções que curtia, dos professores com quem aprendia, dos instrumentos que tocava. Foram muitos. A começar pelo piano, seguido do violão, da guitarra, da cítara, da flauta, do pífano, da tabla... E veio a faculdade, a mudança de cidade, as primeiras bandas, as aulas de rítmica, a primeira escola musical, a descoberta da percussão corporal como interesse e o mergulho no estudo desse universo.

Vieram também os olhares para o cuidado com o corpo e o espírito, a yoga, a filosofia de autoconhecimento, perpassando o nascimento do Barbatuques, grupo e método cada vez ganhando mais espaço no coração do autor, contaminando os parceiros e o meio musical. Tum-túm, tum-túm, tum-túm. O que começou como brincadeira foi ganhando contornos de trabalho. Mas nunca deixou de ser brincante. Barba casou a percussão corporal com a educação e ensinou crianças, jovens e adultos a fazerem vibrar música e, portanto, alegria a partir de seus corpos. Simples assim; cada um com seu instrumento à distância de um dedo. Isso é enorme! É revolucionário.

Chegou a vez dos CDs, a fama se espalhando, os convites, os shows, as turnês internacionais, o aperfeiçoamento das bases, as oficinas, as sementes. Mas também as dificuldades com o dinheiro, com as relações no grupo, com os compromissos, a vida como ela é. Verso e reverso.

A ordem dos relatos não é exatamente cronológica. Os temas se apresentam, e ali Barba visita a sua história construindo um desenho de sua presença naquele assunto, na citação dos amigos que o acompanharam, nas fotos de diferentes momentos, nas lembranças dos músicos com quem tocou. Alguns deles também cruzaram a nossa história, ou a história de todo brasileiro, paulistano ou não, que ame música e tenha prestado atenção na cena musical da cidade e do país nos últimos 20 e tantos anos. Eu duvido que algum leitor atravesse o livro sem reconhecer pelo menos uma pessoa, um lugar, um show, um parceiro ou um amigo do Barba. A nossa vida também está ali descrita, em alguma medida. Se não nas situações ou relações, nas emoções e passagens, tão sonoras e humanas, próximas como peito-estalo-palma. É emocionante ver a construção, passo a passo, de um caminho em direção a si mesmo, tão pessoal e coletivo.

E como na realidade da existência - ou num vinil -, há o lado B: a descrição do processo de adoecimento, o choque com o diagnóstico, o sofrimento frente ao maior limite de todos; mas também a mobilização dos amigos e familiares para retribuir tudo o que Barba ofereceu no seu lado A, e quem fez e faz parte da sua biografia: médicos, fisioterapeutas, cuidadores, e a sempre constante presença de Tata a lhe entregar um fio de Ariadne para sair do labirinto em que o tumor tentou lhe aprisionar. A depressão, a tristeza, o luto estão ali visíveis, bem como o movimento em direção à vida e ao renovar-se, redescobrir-se.

Sua fiel companheira, a música, se instalou ao seu lado. Em suas palavras: "A música brinca com a contradição de sermos nós mesmos e, também, outra pessoa". Barba é outra pessoa, e é ele mesmo; é muitos! E se há um denominador comum nessa diversidade que o habita e que soube tão talentosamente cultivar, é a generosidade e a capacidade de escutar o outro. É no coração e nas mãos que brota o toque que nos alcança ao ouvi-lo, o toque que ele nos ensina a buscar em nosso corpo: peito-estalo-palma. A vida começava lá é um livro vivo, emocionante na sua simplicidade em contar uma história que poderia ser a nossa, ao mesmo tempo com o tom singular de alguém tão sensível e genial, cujo relato se encerra reverenciando o mistério da vida. Essa conversa é mesmo um privilégio.

 

 

Recebido em: 12/2019
Revisão: 20/06/2020

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