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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.38 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

Sincronicidade: relações entre a obra junguiana e novas proposições teóricas*

 

Sincronicidad: relaciones entre la obra junguiana y nuevas proposiciones teóricas

 

 

Eduardo Arruda SautchukI; Michel Alexandre FillusII

IMestrando em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). e-mail: <du.sautchuk@gmail.com>
IIDoutor em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e de cursos de Especialização. e-mail: <michelfillus@gmail.com>

 

 


RESUMO

A sincronicidade é um dos conceitos mais complexos e importantes da psicologia analítica. O presente artigo é uma revisão de literatura e objetiva apresentar o conceito a partir da visão junguiana clássica como alternativa ao paradigma da causalidade e, em seguida, mostrar novas contribuições de autores contemporâneos acerca do tema. Foram investigados possíveis diálogos entre a sincronicidade e outras áreas do conhecimento. Verificou-se que há uma linha de pensamento atual baseada na teoria de Sistemas Adaptativos Complexos (SACs), que permite uma importante mudança de perspectiva em relação ao fenômeno sincronístico. Além disso, contribuições sobre a noção de tempo dentro da sincronicidade e sobre as bases filosóficas da hipótese junguiana são expostas de maneira complementar a discussão. Conclui-se que a sincronicidade está além de uma improvável coincidência: pode representar um importante fator dinâmico na propriedade de emergência e de auto-organização da psique.

Palavras-chave: Sincronicidade, Complexidade, Emergência, Psicologia analítica.


RESUMEN

La sincronicidad es uno de los conceptos más complejos y importantes de la psicología analítica. El presente artículo es una revisión de la literatura, que tiene como objetivo presentar el concepto desde la visión clásica junguiana, como una alternativa al paradigma de la causalidad, y luego mostrar nuevas contribuciones de autores contemporáneos acerca del tema.. Se investigaron posibles diálogos entre la sincronicidad y otras áreas del conocimiento. Se verificó que existe una línea de pensamiento actual basada en la teoría de Sistemas Adaptativos Complejos (SACs) que permite un importante cambio de perspectiva en relación al fenómeno sincronístico. Además, se exponen de forma complementaria a la discusión aportaciones sobre la noción de tiempo dentro de la sincronicidad y sobre las bases filosóficas de la hipótesis junguiana. Se concluye que la sincronicidad está más allá de una coincidencia improbable: puede representar un factor dinámico importante en el surgimiento y autoorganización de la psique.

Palabras clave: Sincronicidad, Complejidad, Emergencia, Psicología analítica.


 

 

1. Introdução

A sincronicidade é um dos conceitos mais complexos propostos por Jung em sua teoria psicológica. Ela está relacionada à teoria dos arquétipos, aos conceitos de Si-mesmo, de unus mundus e à compreensão das relações entre psique-mundo, mente-matéria. O fenômeno sincronístico embasa a dinâmica e a realidade psíquica humana e sua relação com o macrocosmo. Ademais, ela compõe as noções básicas para a formulação de um paradigma junguiano (PENNA, 2014; STEIN, 2006).

Essa ideia surgiu da observação, por Jung, de raros eventos que representam uma coincidência significativa. O evento sincronístico, então, é uma coincidência porque não pode ser explicado pela causalidade e não respeita as leis da probabilidade do acaso. Ao mesmo tempo, esse evento tem um significado importante para o indivíduo. Apesar de ser provável que um ou mais eventos desse tipo ocorram na vida de uma pessoa, fenômenos sincronísticos podem ser confundidos com meras coincidências. A hipótese de Jung constata sua relevância, mostrando que tais fenômenos são capazes de impactar profundamente a psique individual.

Por exemplo, ao relatar o episódio do besouro1, Jung (2014) enfatizou que a experiência sincronística transformou a postura racional de uma paciente em relação a seu problema. Foi um importante fator para o processo terapêutico do caso. Em uma carta a Jung, essa mesma paciente descreve semelhanças intrigantes entre um sonho que ela teve e uma história que Jung havia lido antes de uma sessão com ela (MOURA, 2014, p. 405).

Outro exemplo de fenômeno sincronístico, também de motivação onírica, que teve grande impacto no processo analítico, tanto para terapeuta quanto para paciente, é oferecido por Angela Connolly (2015). A autora relata uma sessão com a paciente chamada Mary:

Do nada, ela [Mary] chegou na sua sessão um dia dizendo que tinha tido um sonho estranho com meu pai [de Connolly]. Ela tinha sonhado que meu pai estava muito doente, mas que eu não estava cuidando dele adequadamente, pois seu quarto estava em completa desordem e ela então descreveu a sala em grande detalhe. Para meu choque intenso, o quarto que ela descreveu era o do meu ex-analista que morrera alguns anos antes. Os detalhes correspondiam exatamente, não com o quarto quando eu estava em análise, mas o quarto quando eu o visitava durante sua doença final. (p. 171)2

Situações como a descrita por Connolly são investigadas em uma pesquisa realizada no Reino Unido por Roxburgh et al. (2016) com terapeutas. A saber, 44% dos participantes relataram ter experienciado a sincronicidade no setting terapêutico e 67% sentiram que experiências sincronísticas podem ser importantes na psicoterapia. Tendo em vista que o trabalho analítico é apontado como uma abertura a eventos emergentes da psique em níveis de organização que transcendem o ego, a relevância clínica dos fenômenos sincronísticos fica evidente (CAMBRAY, 2020).

Dada a dimensão do tema, Jung (2014) define a sincronicidade em sentidos estrito e amplo. No que tange ao sentido estrito, tem-se uma improvável coincidência significativa para o indivíduo. Assim, Jung pensou em uma conexão não causal entre eventos psíquicos e físicos. Já no sentido amplo coloca-se que a sincronicidade não estaria restrita a um tipo de fenômeno raro e improvável, mas seria um princípio de ordenação acausal na natureza. A conexão acausal de eventos, ou a sincronicidade, configura-se como outra possibilidade de entender a relação entre dois eventos, de maneira complementar à causalidade. Nesse aspecto, ir além do paradigma da causalidade é fundamental para a compreensão da teoria junguiana e de sua prática.

A causalidade é um conceito pouco questionado. A naturalização histórica e cultural3 desse paradigma foi construída pelo desenvolvimento racionalista da ciência ocidental nos últimos séculos. A busca pela objetividade máxima na compreensão científica resultou em uma ciência compartimentada e disciplinar, limitada em suas possibilidades. Segundo Penna (2004), Jung contestou dogmatismos e afirmou a natureza paradoxal da psique humana, abordando-a em sua complexidade.

Dessa forma, conhecimentos oriundos de outras áreas são importantes para a ideia de sincronicidade. A integração de conceitos, principalmente dos campos da física, da química e da matemática, proporciona a ampliação de seu entendimento e de seu alcance. Atualmente, a sincronicidade é abordada além dos limites da relação analítica, estabelecendo conexões com aspectos da cultura e da coletividade. Roderick Main (2007), nesse âmbito, discute aspectos espirituais e religiosos da experiência sincronística; Cambray (2013), por sua vez, afirma que fenômenos sincronísticos podem ser coletivos e assumir a proporção de movimentos culturais ou de momentos significativos de mudança em uma sociedade, chamados sincronicidades culturais.

O objetivo deste artigo é revisar as noções de sincronicidade na psicologia analítica, destacando publicações contemporâneas sobre o tema, inclusive aquelas que estabelecem relações com outras áreas do conhecimento.

 

2. Método

Esta revisão de literatura visa compor o estado do conhecimento, de modo a "[...] mapear e discutir uma certa produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento" (FERREIRA, 2002, p. 258). A amostra foi selecionada de modo intencional (quando da literatura clássica), complementada pelo método "bola de neve" (aplicado à literatura pós-junguiana). Esse método, proposto por Yin (2016), permitiu que determinada referência levasse à exploração das seguintes, úteis na busca pelas publicações mais recentes.

Inicialmente, foi consultada a literatura clássica sobre o tema da sincronicidade nas obras completas de Jung e a partir de colaboradores considerados autores da escola clássica da psicologia analítica.

Posteriormente, foram acessadas as bases de dados PePSIC, Redalyc e SciELO, nas quais buscou-se pelo termo "sincronicidade" no título e/ou no resumo de publicações brasileiras de até cinco anos atrás, ampliando-se, em seguida, para trinta anos atrás (1990), resultando em zero (0) artigos. Assim sendo, a seguir, buscou-se pelo termo "sincronicidade" no título e/ou no resumo de publicações em revistas especializadas nacionais, sem critério de tempo de publicação, resultando em cinco (5) publicações, das quais apenas uma (1) apresentou a sincronicidade como tema central.

A base de dados internacional Wiley Online Library também foi alvo das buscas com o termo "synchronicity" no título de publicações desde 2015, no campo da psicologia (excluindo publicações de outras áreas que empregam o termo em sentido diferente, como a economia), resultando em oito (8) publicações, das quais apenas cinco (5) se referem à sincronicidade proposta por Jung. Decidiu-se, então, ampliar o critério de tempo de publicação, a fim de atingir publicações relevantes referenciadas nos resultados da primeira busca. Desse modo, considerando desde 2002, obtiveram-se 40 resultados.

 

3. Resultados e discussão

A seleção dos artigos e das publicações ocorreu de modo intencional, segundo os critérios de: literatura clássica relevante, abordagem com outras áreas do conhecimento e ampliação do pensamento junguiano.

Foram selecionadas 27 publicações, dispostas no quadro abaixo. Delas, onze (11) foram classificadas como "junguiana clássica" por apresentarem ideias que explicam a concepção de sincronicidade elaborada por Jung em sua obra e por outros autores considerados representantes da "escola clássica"4; onze (11) publicações oferecem novas proposições acerca do tema, classificadas no quadro abaixo como "pós-junguiana"5 por seu caráter crítico e inovador; por fim, quatro (4) são de autores de outras áreas do conhecimento, classificadas como "física teórica". As publicações selecionadas estão ordenadas cronologicamente a seguir:

 


Quadro 1 - Clique para ampliar

 

As principais ideias dessas publicações serão apresentadas no decorrer deste texto. As seções 1 e 2 referem-se às noções clássicas fundamentais da sincronicidade e às novas proposições encontradas, respectivamente.

 

4. A alternativa junguiana ao paradigma da causalidade

A separação do conhecimento da matéria e do conhecimento da psique inconsciente começou no século XVII com a ascensão do racionalismo. A título de exemplo, a alquimia tornou-se química e física, cada vez mais objetiva e concreta, separando-se dos mitologemas e dos símbolos que antigamente permeavam o conhecimento da natureza em geral. Marie-Louise von Franz (1992), nesse contexto, utiliza o símbolo do hermafrodita para expressar o destino da alquimia, no contexto da época de seu florescimento: uma união prematura de opostos que precisou ser dividida em ciência da matéria e em ciência da psique, antes de aproximarem-se novamente.

Ao estudar as produções alquímicas, Jung preferiu, inicialmente, investigar o valor simbólico das imagens, compreendendo seu valor como expressão de conteúdos do inconsciente coletivo. O autor não discutiu a questão de um possível vínculo entre os processos psíquicos e biológicos e/ou microfísicos, ainda que estivesse convencido de sua existência (VON FRANZ, 1992). Apesar da questão psique-matéria permear seus estudos de alquimia, Jung a abordou diretamente em outros textos, oferecendo contribuições a partir de sua crítica ao reducionismo materialista e afirmando sua opção por um paradigma de maior complexidade.

Ao identificar os dois tipos de pensamento humano, Jung (2013b) ilustra aquilo que o raciocínio lógico causal é capaz de alcançar, bem como aquilo que lhe escapa. Nesse âmbito, ele descreve o pensamento dirigido, baseado na linguagem, cuja máxima expressão é a ciência racionalista; está relacionado à adaptação do homem a sua realidade externa e à capacidade de reflexão dele. O outro pensamento em questão é o não-dirigido, não-verbal, associativo, geralmente chamado de sonho, que a causalidade e a lógica racional têm dificuldade em apreender.

No mais, Jung (2013b) atribui importante valor ao pensamento não-dirigido e o coloca em destaque na composição de seu método para explorar o inconsciente6. Tal acento de suas proposições o levou a abordar experiências de complexidade crescente. Sobretudo, o maior desafio ao modo lógico de pensamento é a hipótese de sincronicidade, cuja posição é exatamente complementar à causalidade do pensamento dirigido.

O ensaio sobre sincronicidade foi uma das últimas publicações de Jung (2014), fruto de anos de experiência e contato com fenômenos extraordinários e de décadas de colaboração e correspondências com Pauli, o que o levou à conjectura de conexão entre psique e matéria. Assim sendo, Jung encorajou-se com a possibilidade de publicar seu ensaio sobre sincronicidade no livro em coautoria com Wolfgang Pauli, The Interpretation of Nature and the Psyche (JUNG, PAULI, 2012). Desde então, outros autores ofereceram contribuições importantes a partir de Jung.

Ira Progoff (1990) reforça a perspectiva de Jung ao argumentar que o princípio de relação acausal proposto pela sincronicidade não representa uma negação às leis de causa e efeito, trata-se de um princípio que as complementa. O autor considera, ademais, o fundamento arquetípico da ideia de sincronicidade, indicando que acontecimentos sincronísticos estariam relacionados à constelação de um arquétipo. Por situar-se no campo psicoide, a constelação arquetípica teria manifestações tanto no plano material quanto no psíquico, sincronisticamente (PROGOFF, 1990).

Segundo von Franz (1992), os fenômenos de sincronicidade são imagens do interior que se relacionam significativamente a eventos exteriores objetivos de forma não causal. Tais fenômenos deflagrariam a existência de um padrão a priori na natureza, anterior à consciência humana: um fator formal da natureza que é anterior à tentativa de explicação e apreensão da psique.

Esse fator foi chamado por Jung de conhecimento absoluto, pois independe do conhecimento consciente. Tem-se uma forma de existência transcendental, contida em um espaço-tempo psiquicamente relativo, portanto, irrepresentável. Fenômenos de sincronicidade, então, são atos de criação no tempo, representantes da ordenação acausal que é percebida pelos indivíduos por meio do significado.

Por esse motivo, esses fenômenos foram considerados, em épocas anteriores, manifestações de divindades ou um sinal do Tao, na China (VON FRANZ, 1992). As reflexões de Von Franz abordam os possíveis limites da separação entre o físico e o psíquico, ponto crucial do interesse de Jung pela física quântica.

A física quântica ofereceu a Jung uma possibilidade de conjecturar uma relação entre psique e matéria. Jung (2012) afirma que a microfísica e a psicologia profunda têm um fundo comum, que é físico e psíquico ao mesmo tempo e, dessa forma, não é nenhum dos dois, mas uma terceira coisa, de natureza neutra, que só pode ser concebida por meio de alusões. Jung expõe, no mais, que o princípio de conexão acausal da sincronicidade é o unus mundus:

É a coincidência cheia de sentido que defini como o princípio sincronístico. Este princípio indica que existe uma conexão, ou respectivamente uma unidade, de acontecimentos que não têm entre si nenhuma ligação causal, e desse modo representam um aspecto da unidade do ser, que se pode designar como o "unus mundus" (par. 327).

Nesse contexto, Aufranc (2009) aborda as mudanças que a física quântica promoveu em relação às possibilidades de compreensão do mundo no século passado, as mesmas que inspiraram Jung em seu diálogo com Pauli para elaborar a ideia de sincronicidade. A autora indica que cientistas quânticos, como Pauli, fizeram experimentos que questionaram os velhos paradigmas da física clássica, incapazes de explicar o funcionamento do mundo quântico.

Físicos como Heisenberg, Schrödinger, von Neumann e Wolfgang Pauli tiveram que elaborar novos princípios científicos para descrever a física quântica. A ciência deparou-se, desse modo, com as noções de incerteza, de interferência da consciência por meio da observação dos eventos, de não-localidade (interconexão) e de totalidade. Cabe salientar que suas implicações foram extensas. Portanto, o sentido surge em meio ao acaso; ou, a ordem geral que surge do arquétipo alcança, simultaneamente, em sua natureza psicoide, matéria e psique. Essa interconexão referida como quântica é experienciada por nós como sincronicidade (AUFRANC, 2009).

Dessa maneira, a física quântica possibilitou a autores junguianos clássicos ampliarem sua compreensão, assim como a ideia de sincronicidade despertou o interesse de físicos como Rocha Filho (2014), que buscou fazer uma aproximação da física com a psicologia analítica, considerando, especialmente, aspectos energéticos da psique. Todavia, a física quântica não é a única área do conhecimento que dialoga com as ideias da sincronicidade. A seguir, serão apresentadas as contribuições de autores contemporâneos acerca de novos entendimentos sobre a sincronicidade, baseando-se na interdisciplinaridade.

 

5. Novas perspectivas para a sincronicidade

Os conceitos de emergência e de capacidade auto-organizativa de sistemas complexos proporcionaram uma nova possibilidade de compreensão da sincronicidade. Abaixo, publicações que relacionam essas novas ideias são apresentadas em sequência cronológica. A saber, é dada ênfase à explanação dos conceitos teóricos que as fundamentam.

Em seguida, são colocadas contribuições complementares que versam sobre o conceito de tempo para a sincronicidade e sobre suas bases filosóficas. Ainda, consideram-se perspectivas para a pesquisa sobre sincronicidade na atualidade.

5.1 Os Sistemas Adaptativos Complexos (SACs)

Joseph Cambray (2002; 2020) sugere que é possível reconsiderar a ideia de sincronicidade a partir da complexidade. A ciência da época de Jung não possuía entendimento acerca do comportamento de sistemas abertos longe do equilíbrio, como é o caso dos sistemas auto-organizados. A título de explanação, sistemas vitais em organismos, ou seja, a própria vida, podem ser considerados sistemas auto-organizados (CAMBRAY, 2002).

Segundo Cambray (2002), os Sistemas Adaptativos Complexos (SACs) são uma nova forma de pensar a respeito de sistemas iniciada no trabalho de Ilya Prigogine, prêmio Nobel de química de 1977. Prigogine procurava entender como é possível que ordem e organização surjam espontaneamente em meio a condições caóticas, por meio do que ele chamou de processo de auto-organização em sistemas abertos longe do equilíbrio. Esse campo do conhecimento desenvolveu-se e é conhecido, na contemporaneidade, como complexidade, em que é preponderante o pensamento de Edgar Morin.

Pesquisadores do Instituto de Santa Fe, ao explorarem possíveis aplicações dos conceitos provenientes da teoria da complexidade e da teoria do caos, elaboraram a ideia dos SACs7. Os Sistemas Adaptativos Complexos têm propriedades emergentes: propriedades de auto-organização que respondem às necessidades ambientais. Um fenômeno emergente representa, assim, uma resposta adaptativa que ocorre na margem entre a organização do sistema e o caos do ambiente (CAMBRAY, 2002).

A auto-organização, nesse viés, dá-se como um movimento coletivo em direção a uma finalidade que não seria possível de ser realizada por uma única parte do sistema sozinha. No contexto psíquico, por exemplo, é interessante notar que os trabalhos de Saunders e Skar (2001) e de Hogenson (2001) consideram os arquétipos como propriedades emergentes da atividade e do desenvolvimento do sistema cerebral.

Segundo Cambray (2002), um fenômeno emergente pode parecer, para um indivíduo, uma coincidência (por ser um acontecimento inexplicável ao entendimento da consciência individual) significativa (por representar um movimento de organização). A partir disso, os fenômenos sincronísticos podem ser considerados aspectos emergentes do Self, adquirindo importante papel no processo de individuação, na compreensão junguiana da psique, como um SAC. Portanto, Cambray (2002, 2020) possibilitou a abordagem da sincronicidade pelo viés emergente da psique.

Hogenson (2005), imbuído da ideia das propriedades emergentes da psique, explora o comportamento de um sistema auto-organizado para introduzir a ideia de criticalidade8. Quando o movimento de um sistema auto-organizado se prolonga ao máximo, atinge um ponto conhecido como criticalidade auto-organizada.

Para explicá-la, Hogenson (2005) apresenta uma análise clássica do fenômeno a partir do exemplo dado pelo físico Per Bak (1996): imagine que você está deixando que grãos de areia caiam lentamente sobre uma mesa, formando um acúmulo cônico. À medida que o monte de areia vai crescendo, os grãos vão caindo pelas laterais do monte, mantendo sua forma cônica. Em um determinado momento, imprevisível, a queda de um dos grãos de areia formará uma avalanche no lado da pilha, fazendo uma grande quantidade de areia deslizar. Tal fenômeno indica que o sistema atingiu um ponto de criticalidade auto-organizada, de forma que a queda de um grão de areia causa uma grande reorganização do acúmulo todo. Não há como prever exatamente qual grão causará a avalanche ou quando ela acontecerá, o evento é emergente das propriedades auto-organizativas do sistema ao atingir um ponto de criticalidade.

A frequência de pequenos deslizamentos de areia pelo lado do monte é alta e as avalanches são ocasionais e escassas. Um gráfico desses dados conteria, no eixo vertical, a importância dos eventos, ou seja, o tamanho dos deslizamentos de areia; e, no eixo horizontal, estaria a frequência desses eventos. Quanto maior o deslizamento, menor sua frequência e vice-versa. Esse padrão é conhecido como lei de potência, uma linha logarítmica dupla (visualmente, semelhante a uma linha reta decrescente), como se pode observar na figura a seguir:

 

 

A lei de potência9 é um modelo de distribuição diferente da clássica distribuição normal, também conhecida como curva de Gauss. Análises estatísticas mostram que alguns fenômenos humanos e naturais são baseados na lei de potência, por exemplo: a frequência de palavras em um texto; a formação de comunidades habitacionais, desde vilas a metrópoles; o padrão de transferência de íons dentro do cérebro; e até a ocorrência de terremotos (HOGENSON, 2005).

Basicamente, a lei de potência significa que pequenos acontecimentos se dão frequentemente e grandes acontecimentos se dão raramente. Como exemplo, podem ser citadas pequenas vilas, as quais são muito mais numerosas que grandes metrópoles; ou, então, no caso de um texto, palavras pequenas com significados simples são mais frequentes que palavras com significados complexos.

Nesse âmbito, Hogenson (2005) ressalta outro aspecto de sistemas auto-organizativos que se comportam obedecendo à lei de potência. Nele, há um padrão de autossimilaridade nos fenômenos observados. Independentemente da escala com que se observa um fenômeno, uma mesma estrutura básica será encontrada.

O aspecto de autossimilaridade é conhecido como estrutura fractal, presente em diversos sistemas complexos. Um exemplo de estrutura fractal encontra-se a seguir:

 

 

A autossimilaridade, no exemplo do monte de areia, encontra-se no fato de que, independentemente de seu tamanho, o evento é sempre um deslocamento de areia pela lateral do monte. Hogenson (2005) defende que a estrutura geométrica fractal (autossimilar) descrita pela lei de potência é capaz de definir, também, a organização do sistema simbólico e da sincronicidade. Esse é um ponto crucial no argumento do autor.

Faz-se importante considerar que Jung coloca o fenômeno sincronístico como estatisticamente improvável, baseado na compreensão estatística clássica da distribuição normal da curva de Gauss. Entretanto, Hogenson (2005) evidencia que a lei de potência e as propriedades dos sistemas fractais permitem uma revisão da perspectiva de Jung. Ao apresentar essa hipótese, o autor oferece um novo entendimento estatístico do fenômeno sincronístico, o qual já não é sinônimo de improbabilidade.

O argumento de Hogenson (2005) fundamenta-se na concepção de que o sistema psíquico proposto por Jung é baseado no símbolo. O autor defende que a psique humana não cria o mundo simbólico, mas o habita. Desse modo, o mundo simbólico é descoberto pela psique de forma parecida com que as leis matemáticas da natureza são descobertas pela ciência, mas existem independentemente disso. Hogenson (2005), então, sugere que o universo simbólico seja visto como mais que meramente um sistema de representações:

[...] mas como um domínio auto-organizativo relativamente autônomo em si mesmo, então nós podemos investigar o grau em que o simbólico se conforma à dinâmica estruturante da lei de potência logarítmica dupla, e por extensão demonstra estruturas autossimilares ou fractais [...]. Em outras palavras, o complexo, o arquétipo, a sincronicidade e o Self "existem" como momentos em uma distribuição de escala invariável governada por uma lei de potência. Como grandes cidades, grandes erupções vulcânicas, e quebras catastróficas do mercado financeiro, eventos sincronísticos são extremamente raros, como o próprio Jung argumentou, mas eles não são improváveis no sentido que se assumiria ser o caso dentro da teoria de probabilidade mais convencional. (p. 281)10

No trecho citado, Hogenson (2005) expõe sua hipótese de que o sistema simbólico é um sistema auto-organizativo complexo que apresenta autossimilaridade entre seus elementos, estruturalmente distribuídos por uma lei de potência. Ele argumenta que os conceitos apresentados acima fundamentam um princípio de dinamismo, chamado densidade simbólica, o qual seria capaz de reunir em um sistema os conceitos básicos da teoria junguiana, como complexos, arquétipos e sincronicidade.

Ademais, Hogenson (2005) sugere que o evento sincronístico acontece quando a densidade simbólica chega a um momento crítico. Ou seja, trazendo à tona o exemplo do monte de areia, a altura da pilha de areia simbólica chega a um ponto de criticalidade em que uma "avalanche simbólica" ocorre e, assim, reorganiza-se a psique do indivíduo.

Seria necessário, de acordo com Hogenson (2005), investigar mais profundamente o ponto principal da teoria junguiana: a noção de símbolo. O fenômeno sincronístico é raro quando considerado sob a perspectiva da estatística clássica, mas pode ser entendido como o aspecto emergente das propriedades auto-organizativas do sistema simbólico habitado pela psique quando o ponto de criticalidade auto-organizada é atingido. Esse momento representaria um período de transição no desenvolvimento do processo de individuação.

A partir da relação entre eventos sincronísticos e períodos de transição na vida de um indivíduo, Robert Sacco (2016) defende que seria importante encontrar um fundamento matemático que permitisse a verificação quantitativa da sincronicidade. Em uma carta, Jung sugere que a ponte entre os eventos mentais e físicos parece ser formada pelos números (MAIN, 1997, p. 159-160 apud SACCO, 2016). Além disso, remonta-se à noção de função transcendente para Jung (2000):

Por "função transcendente" não se deve entender algo de misterioso e por assim dizer supra-sensível ou metafísico, mas uma função que, por sua natureza, pode-se comparar com uma função matemática de igual denominação, e é uma função de números reais e imaginários. A função psicológica e "transcendente" resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes. (par. 131)

Em referência ao trabalho de Hogenson (2005), Sacco (2016) ressalta que os processos de crescimento em sistemas vivos estão relacionados aos padrões fractais. Esse autor menciona as árvores como um exemplo de sistema natural que exibe organização e comportamento fractal. É possível perceber a autossimilaridade entre os galhos e os troncos, assim como a distribuição de acordo com a lei de potência: quanto menores os galhos, mais aparecem (em maior quantidade); quanto maiores, menor a quantidade, até chegar ao tronco.

Compreendendo que a psique se desenvolve de forma semelhante, Sacco (2016) propõe que fractais seriam o mecanismo mediador entre conteúdos conscientes e inconscientes em eventos sincronísticos. Portanto, os fractais poderiam corresponder ao aspecto matemático da função transcendente.

A escala da lei de potência dos fractais é uma função da razão de Phi (φ), valor atribuído à sequência Fibonacci. Esta é conhecida por estar relacionada aos padrões estruturais de uma variedade de fenômenos, desde a distribuição e a quantidade de sementes em uma flor de girassol até o comportamento do mercado de ações. Ao analisar os sistemas naturais, defende-se que a lei de potência (a proporção da frequência entre coisas pequenas e grandes) dos sistemas fractais está relacionada ao número Phi (φ) (SACCO, 2016).

Isso implica, por exemplo, no caso da árvore, que a proporção entre a quantidade e o tamanho de galhos seguiria a razão de Phi (φ). Sobre isso, o autor afirma: "Assim, o universo funciona de acordo com as regras de escalamento fractal Phi, e Phi é a fundação matemática do mundo físico" (SACCO, 2016, p. 209, tradução nossa). Ou seja, Phi (φ) seria a ponte entre o mundo físico e o psíquico.

O cérebro e suas mil trilhões de ligações neurais podem ser considerados um sistema complexo capaz de auto-organização. O DNA, fundamento da vida e fonte da organização do crescimento do organismo humano, tem em sua geometria a proporção áurea (φ). Além dessas ideias, são apontados por Sacco (2016) nove (9) estudos relacionados aos padrões fractais identificados na psicologia em variados temas (por exemplo: tempo de reação; busca visual; padrões de fala; memória; autoestima; neurodinâmica da personalidade; autoconceito).

A hipótese inovadora de Sacco (2016) é que, uma vez que a codificação de informação realizada por mente-cérebro parece estar baseada na proporção áurea (φ), a consciência humana teria seu funcionamento relacionado à razão de Phi (φ). Esta seria o fator de mediação entre conteúdos conscientes e inconscientes durante a ocorrência de eventos sincronísticos.

Nesse aspecto, o autor elabora um modelo desenvolvimentista chamado Fibonacci life-chart method (FLCM), com o qual seria possível prever quando transições na vida do indivíduo ocorreriam a partir de sua data de nascimento. Eventos sincronísticos seriam mais frequentes nesses períodos, momentos em que o sistema simbólico da psique estaria em um estado de criticalidade auto-organizada (SACCO, 2016).

5.2 Conceito de tempo e bases filosóficas

Yiassemides (2011) faz uma importante reflexão sobre a questão do tempo envolvendo a noção de sincronicidade. Segundo a autora, enquanto o significado parece estar consolidado como ponto-chave no entendimento da sincronicidade, o tempo ainda é um assunto evitado pelos autores pós-junguianos.

Isso pode se dar em virtude da insuficiência da explicação dada por Jung sobre os aspectos temporais do conceito de sincronicidade e sobre a relação entre o arquétipo psicoide e a sincronicidade. Sugere-se que a sincronicidade seja entendida como uma expressão do psicoide e que o tempo seja o elemento crucial na ligação entre sincronicidade e psicoide11 (YIASSEMIDES, 2011).

O argumento de Yiassemides (2011) fundamenta-se na ideia de relativização do tempo, compreendendo que a fixação de tempo e espaço é necessidade da consciência. Se o evento sincronístico deve ser significativo para seu observador, só pode sê-lo dentro de uma consciência temporal de um observador. Diferenciam-se dois tempos: o tempo da consciência (individual) e o tempo relativo (da realidade unitária).

Além disso, a autora propõe que Jung considerava o tempo implicitamente como um "campo temporal unificado" que se manifesta dependendo do contexto (YIASSEMIDES, 2011, p. 454). Ela defende que há uma função da consciência que realiza a desrelativização do tempo para que a consciência possa apreendê-lo, deixando-o fixo, cronológico, como é na experiência humana. Contudo, o tempo fixo, assim como o espaço, não existem em si, são "'produzidos' pela consciência" (JUNG, 2014, par. 840), por uma necessidade psíquica.

A cognição necessita de um estado definido de tempo e espaço, da separação entre objeto e observador, entre psique e matéria. Todavia, a psique é capaz de transcender esse estado de separação dual e entrar em contato com o nível da unicidade do unus mundus na ocasião de eventos significativamente interconectados (YIASSEMIDES, 2011). Assim sendo, a experiência consciente se fundamenta em uma separação entre psique e matéria, entre sujeito e objeto.

Entretanto, essa separação não representa a realidade em si, apenas a forma como a realidade é experienciada. Há uma realidade unitária subjacente à separação dualista da experiência consciente da psique, o que von Franz chamou de dualismo unitário.

Segundo von Franz (1974), "Jung usou a expressão unus mundus para designar a realidade unitária transcendental subjacente ao dualismo da psique e matéria" (p. 171). É possível afirmar que essa realidade unitária a que von Franz se refere é o psicoide. Em suma, Yiassemides (2011) argumenta que a ideia de tempo é crucial na discussão do campo psicoide e estruturalmente fundamental na sincronicidade. A realidade unitária experienciada dicotomicamente (psique-matéria) é uma compreensão elaborada por Jung e Pauli a partir da propriedade psicoide do arquétipo.

A noção de psicoide repercute no campo filosófico, em termos de ontologia e epistemologia, a partir das contribuições contemporâneas de Atmanspacher (2014a). O autor indica relações entre o conhecimento elaborado por Jung e Pauli e outras áreas, como a filosofia e a física.

Empregando termos da filosofia, o autor classifica a sincronicidade como uma perspectiva de monismo de aspecto dual12, que tem sua origem no pensamento de Espinoza. Ele representa uma alternativa à concepção ontologicamente dualista proposta por Descartes, que seria uma separação completa entre mente e matéria (ATMANSPACHER, 2014a).

Trata-se, assim, da combinação de uma concepção ontologicamente monista, porém epistemologicamente dualista. A ontologia monista, por sua vez, é expressa pelo pensamento de que a realidade, em essência, é holística e indivisível. Entretanto, é epistemologicamente dualista porque essa realidade só pode ser acessada ou experienciada por um sujeito, por meio da separação entre o domínio psíquico e o material (ATMANSPACHER, 2014b).

Conforme coloca Atmanspacher (2012), a ideia de monismo de aspecto dual se traduz na conjectura de Jung e Pauli (2012) na concepção de uma realidade psicoide subjacente à dualidade psíquico-física experienciável (epistemologia dualista). O domínio subjacente, por sua vez, é chamado unus mundus (ontologia monista). Portanto, os domínios da matéria (físico) e da mente (psique) são aspectos ou perspectivas provenientes de um domínio de realidade neutra (nem física, nem psíquica) subjacente, o que se assemelha à ideia de arquétipo psicoide proposta por Jung.

O domínio neutro, indiferenciado e inseparado, é incognoscível. Dessa maneira, o indivíduo apenas pode ter contato com as manifestações contextuais dos aspectos, por exemplo, matéria e mente. Ou seja, os mundos físico e psíquico seriam representações do arquétipo psicoide: a realidade unitária indiferenciada ou unus mundus. No mais, os domínios físico e psíquico são estados já diferenciados dessa realidade. A visão do monismo de aspecto dual implica relações entre mente e matéria:

Fazer uma diferenciação é um princípio primordial de toda epistemologia, às vezes chamada de uma divisão epistêmica. [...] Quando o unus mundus holístico é dividido, surgem correlações entre os domínios resultantes. [...] Conceber a distinção mente-matéria em termos de uma divisão epistêmica de um domínio psicofisicamente neutro implica em correlações entre mente e matéria como uma consequência direta e genérica. É importante, entretanto, enfatizar logo de início que essas correlações não são devidas a interações causais (no sentido de causa eficiente como geralmente é buscada na ciência) entre o mental e o material (ATMANSPACHER, FACH, 2013, p. 228, tradução nossa).

Atmanspacher e Fach (2013) defendem que eventos sincronísticos seriam uma forma de relações mente-matéria. Eles propõem uma tipologia estrutural-fenomenológica de relações mente-matéria, realizando a classificação de uma série de dados empíricos considerados "experiências humanas extraordinárias", coletados pelo Institute for Frontier Areas of Psychology (IGPP), de Fraiburgo, na Alemanha.

Os autores argumentam que as proposições de Jung e Pauli sobre eventos sincronísticos estariam bem alinhadas à tipologia das experiências extraordinárias, representando a possibilidade de uma base empírica13 de eventos que poderiam ser considerados sincronísticos.

5.3 Perspectivas para a pesquisa

Recentemente, Cambray (2019) e Kime (2019) evidenciaram diferentes perspectivas sobre a sincronicidade. Joe Cambray (2019) aborda a ideia de sincretismo (a combinação de diferentes práticas e crenças), ressaltando a capacidade de Jung de integrar o amplo e diverso material cultural em sua teoria. O autor defende que a noção de sincretismo pode representar um importante elemento para a compreensão da teoria de Jung, especificamente acerca da sincronicidade e da teoria dos arquétipos.

Cambray (2019) sugere, ainda, que a noção de possível adjacente14 pode ser um próximo passo para o estudo de sincronicidades, a nível tanto pessoal quanto cultural, bem como de suas implicações na prática clínica.

Enquanto Cambray procura expandir as fronteiras do pensamento psicológico dialogando com outras áreas do conhecimento, Kime (2019) aponta para uma direção diferente: apresenta uma crítica ao uso e à definição comumente empregados na psicologia analítica do termo "sincronicidade", questionando sua relevância para o campo da psicologia individual e situando a sincronicidade no campo da metafísica.

 

6. Considerações finais

A noção de sincronicidade é fundamental para a compreensão da dinâmica psíquica proposta por Jung, pois está relacionada à natureza e a propriedades dos arquétipos em seu aspecto formal. Sua discussão ultrapassa a fronteira da psique, atingindo os fundamentos ontológicos e epistemológicos a respeito da "realidade em si-mesma".

Os sentidos estrito e amplo concebidos por Jung permanecem como alicerce para o trabalho de pesquisadores do tema. Desse modo, autores mais recentes puderam avançar a partir deles. Ademais, entende-se que o fenômeno sincronístico é um evento emergente da capacidade auto-organizativa da psique, o que permite uma mudança de perspectiva acerca da sincronicidade (CAMBRAY, 2002, 2020).

Em vez de ser considerado raro e improvável, o fenômeno sincronístico assume a condição de um importante momento da dinâmica de organização da psique (CAMBRAY, 2002; HOGENSON, 2001; 2005). Cabe salientar, nesse contexto, que a perspectiva temporal da sincronicidade é geralmente negligenciada e precisa ser investigada. Entretanto, deve-se considerar que a natureza da sincronicidade não é cronológica (YIASSEMIDES, 2011), portanto a tentativa de determinação temporal quantitativa parece contraditória (SACCO, 2016).

A demonstração de que a sincronicidade está apoiada em uma concepção monista de aspecto dual esclarece bases ontológicas e epistemológicas do domínio psicoide (ATMANSPACHER, 2012; YIASSEMIDES, 2011). Além disso, a busca por investigar a sincronicidade em sentido empírico também pode ser considerada paradoxal: é frutífera para aproximar-se de outras áreas do conhecimento, mas incoerente no sentido de que a sincronicidade é, intrinsecamente, crítica às bases empíricas causais dominantes na ciência hoje (ATMANSPACHER, 2014a; ATMANSPACHER, FACH, 2013).

A investigação da sincronicidade mostra-se continuamente desafiadora. Por isso, é criticada para sugerir os limites do campo da psicologia (KIME, 2019). No entanto, o espírito de interdisciplinaridade e de inovação da sincronicidade é o que permite o diálogo com outras áreas do conhecimento e a atualização constante da teoria junguiana (CAMBRAY, 2019). A discussão da sincronicidade é capaz de evidenciar, então, a relevância de coincidências significativas - muitas vezes incompreendidas - e de ampliar a compreensão da dinâmica psíquica.

 

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Recebido em: 14/09/2020
Revisado em: 21/11/2020

 

 

* Esta pesquisa é oriunda do trabalho realizado em Iniciação Científica na graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
1 Relato completo em Jung (2014, par. 843).
2 Tradução nossa.
3 Para uma análise sobre o processo histórico no qual a causalidade tornou-se o paradigma dominante na ciência, ver: Capra (1990).
4 Divisão de escolas na psicologia analítica proposta por Samuels (2011).
5 Idem anterior.
6 Jung (2013a; 2000) propôs uma alternativa ao pensamento reducionista causal em sua obra muito antes de empregar o termo "sincronicidade", quando sugeriu o ponto de vista da finalidade para o trabalho clínico em "A energia psíquica" e no cap. IX de "Natureza da psique".
7 Termo criado em 1992 por John H. Holland.
8 Quando um sistema atinge o ponto de criticalidade, um pequeno acontecimento que se desvia do padrão organizacional pode fazer com que o sistema inteiro se reorganize de forma abrupta e imprevisível (HOGENSON, 2005).
9 "Lei de potência" vem do inglês, power law, expressão usada para representar um padrão de distribuição de escala de eventos de um mesmo tipo. Para mais esclarecimentos, buscar a referência de Hogenson (2005).
10 Tradução nossa.
11 A ideia de psicoide no trabalho de Jung foi introduzida para articular a característica de que o arquétipo pertence a ambos os reinos: material e espiritual. Então, o arquétipo tem uma natureza dual que está além do nível psíquico. A natureza psicoide do arquétipo forma uma ponte entre as esferas psíquica e material da realidade (YIASSEMIDES, 2011).
12 Uma discussão aprofundada de como a ideia de sincronicidade elaborada por Jung e Pauli caracteriza-se como um pensamento monista de aspecto dual pode ser encontrada em Atmanspacher (2012). Para exemplos de outras variantes do pensamento dualista elaboradas por outros autores, como David Bohm e David Chalmers, ver Atmanspacher (2014b).
13 Uma discussão acerca da investigação empírica de eventos sincronísticos pode ser encontrada, também, na última parte Synchronicity, (ROESLER, ATMANSPACHER, 2018) do livro editado por Christian Roesler Research in analytical psychology: empirical research. Suas ideias possibilitam mais solidez para futuras pesquisas acerca do fenômeno sincronístico.
14 Termo original em inglês: adjacent possible, elaborado por Stuart Kauffman em 1996, pesquisador do Instituto de Santa Fe. Ver: Gravino et al. (2016) para um exemplo de aplicação prática do conceito.

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