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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.38 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

'A Queda do Céu': reflexões junguianas sobre o alerta xamânico de Davi Kopenawa

 

'La caída del cielo': reflexiones junguianas sobre la alerta chamánica por Davi Kopenawa

 

 

Zara Lyrio

Doutoranda em História e Filosofia da Psicologia na Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre e Ciências da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Especialista em Ciência da Religião - UFJF, Especialista em Psicologia Junguiana - IBMR. Pós Graduada em Interdisciplinaridade entre Educação, Ecologia e Espiritualidade - ITF. Membro analista Sociedade Brasileira de Psicologia Junguiana (SBPA - IAAP). Editora Assistente e Membro do Conselho Editorial Revista Junguiana. E-mail: <zaralyrio@ircn.org.br>

 

 


RESUMO

Neste artigo serão apresentadas algumas considerações junguianas sobre a narrativa etnográfica intitulada "A Queda do Céu", buscando demonstrar, por meio de uma análise comparativo-reflexiva, perspectivas em comum entre a visão do xamã Yanomami, Davi Kopenawa e as ideias do Psiquiatra suíço, Carl Gustav Jung. Para tal, será necessário apresentar alguns princípios da crítica indígena sobre o modo de relação das sociedades tecnológicas com a natureza - marcada pela exploração dos recursos naturais e desrespeito à cultura indígena. Refletir sobre os pontos em comum entre esta visão nativa, descrita na obra em questão e a Psicologia Complexa, sobretudo pelo viés ao qual Jung denominou arquétipo psicóide, em que a relação corpo-mente-mundo encontra-se em ressonância e em íntima relação de interdependência. Sendo assim, o objetivo central deste trabalho é elaborar um diálogo entre o pensar mítico e a teoria junguiana, no sentido de observar de que modo ambas perspectivas apontam conexões intrínsecas entre natureza e cultura.

Palavras-chave: "A Queda do Céu", Davi Kopenawa, cultura Yanomami, interdependência, anima mundi, psicóide, cultura-natureza.


RESUMEN

En este artículo se presentarán algunas consideraciones junguianas sobre la narrativa etnográfica titulada "La caída del cielo", buscando demostrar a través de un análisis comparativo-reflexivo perspectivas en común entre la visión del chamán Yanomami, Davi Kopenawa y las ideas del psiquiatra suizo Carl Gustav Jung. Para ello, será necesario presentar algunos principios de la crítica indígena sobre la forma en que las sociedades tecnológicas se relacionan con la naturaleza, marcada por la explotación de los recursos naturales y la falta de respeto a la cultura indígena. Reflexionar sobre los puntos en común entre esta visión nativa, descrita en la obra en cuestión y la Psicología Compleja, especialmente debido al sesgo que Jung denominó arquetipo psicoide, en el que la relación cuerpo-mente-mundo está en resonancia y en una íntima relación de interdependencia. Por lo tanto, el principal objetivo de este trabajo es elaborar un diálogo entre el pensamiento mítico y la teoría junguiana, con el fin de observar cómo ambas perspectivas apuntan a conexiones intrínsecas entre naturaleza y cultura.

Palabras clave: "La caída del cielo", Davi Kopenawa, cultura Yanomami, interdependencia, anima mundo, psicoide, cultura-naturaleza.


 

 

1. Introdução

"A Queda do Céu" é um livro que nasce para ser testemunho da cultura de um povo, um manifesto xamânico e um grito de alerta vindo do coração da Amazônia. Tem como fonte os relatos recolhidos na língua nativa do xamã Yanomami, Davi Kopenawa, pelo etnólogo Bruce Albert.

Trata-se da biografia deste líder ativista indígena em suas reflexões frente ao contato predador de sua tribo com os brancos na década de 1960. Relata por meio de sua experiência pessoal, não raro dramática, a memória do desenrolar desta interferência. Grupos de garimpeiros, estradeiros e missionários - e sua malha de epidemias, violência e destruição, sem considerar o respeito à sua cultura - invadem a floresta explorando seu território em busca dos bens e serviços naturais.

Descreve a vocação xamânica de Davi Kopenawa, fruto da riqueza de um saber cosmológico, oriundo de suas vivências nativas próximas à natureza, aos pajés e xamãs de sua tribo; juntamente com uso de substâncias consideradas "plantas de poder", desde a infância até sua iniciação na fase adulta. Narra uma das principais tônicas de seu protagonista, Davi Kopenawa, a defesa apaixonada pelo direito à existência de um povo nativo, que, ao longo dos anos, tem sido devorado por uma máquina civilizacional incomensuravelmente devastadora do ponto de vista tecnológico.

Afigura-se ainda como uma antropologia reversa1, espelhando uma elucidação do mundo, segundo um saber originário distinto do civilizacional e da descrição do colonizador. Apresenta uma análise xamânica etnográfica, num recorte crítico da economia política da natureza sobre aqueles aos quais denomina "o povo da mercadoria"2. Para Davi Kopenawa, este adjetivo está ligado à civilização ocidental, que valoriza o lucro pelo capital econômico (bens de consumo) em detrimento ao valor humano. Deturpando o sentido subjetivo das relações, subverte o lugar dos sujeitos de tal forma que, os mesmos tornam-se meios, meras "ferramentas" com a finalidade do enriquecimento material.

Ao longo do texto observa-se a articulação do conhecimento sobre os costumes de uma cultura; a declaração política de saberes tradicionais e uma visão cosmológica e espiritual do mundo, quase suprimida na sociedade atual. O que resulta dessa descrição e análise é a mensagem, em tom profético, de que: "quando a Amazônia sucumbir à devastação desenfreada e o último xamã morrer, o céu cairá sobre todos e será o fim do mundo" (ALBERT, KOPENAWA, 2010, p. 489). Explicando o mito em outros termos:

A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar de calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem da montanha para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os malefícios, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar (p. 6).

Tal mito apoia uma visão cultural da qual Davi Kopenawa é representante e indica que a sustentabilidade da vida na terra está diretamente conectada com a preservação da floresta e está intrinsecamente ligada à vida de seus habitantes originários. Uma vez que, "enquanto os xamãs ainda estiverem vivos, eles poderão evitar a queda do céu, mesmo que ele fique muito doente" (ALBERT, KOPENAWA, 2010, p. 489).

Segundo essa compreensão, os xamãs "afastam as coisas perigosas" (ALBERT, KOPENAWA, 2010) a fim de defender os habitantes da floresta, mas não só, "trabalham em defesa dos brancos que vivem sob o mesmo céu" (p. 492), de modo que, por essa visão, mesmo que não percebamos, esta conexão xamã-floresta-sustentabilidade, intervém a todos e, mesmo nos centros urbanos, permanece indelével.

Como obra literária, "A Queda do Céu" é uma narrativa elaborada a quatro mãos e está dentre as mais significativas contribuições à pesquisa dos povos amazônicos. É o encontro "entrebiográfico" e o resultado do trabalho, amizade e observação que durou por volta de 30 anos entre Davi Kopenawa e Bruce Albert (2010), combinando a história de um projeto político que fez convergir os caminhos de um pensador indígena com os ideais de um antropólogo. Ambos com uma longa e dolorosa bagagem no empenho conjunto em defender os Yanomami das mais diversas violências a que vêm sendo submetidos desde os primeiros contatos com os ditos civilizados - napë (forasteiro, inimigo) (ALBERT, KOPENAWA, 2010).

Os povos Yanomami formam uma sociedade de caçadores-agricultores da floresta tropical do Norte da Amazônia. Constituindo um contíguo cultural e linguístico complexo de, minimamente, quatro subsistemas adjacentes que falam línguas da própria família (Yanomae, Yanõmami, Sanima e Ninam). A extensão territorial que ocupam, cobre, aproximadamente, 192.000 km2, situados em ambos os lados da fronteira Brasil-Venezuela, na região do interflúvio Orinoco - Amazonas (afluentes da margem direita do rio Branco e esquerda do rio Negro). Em 2010, a população total dos Yanomami estava avaliada em cerca de 26.000 membros (ALBERT, KOPENAWA, 2010).

Seu contato com a sociedade urbana é relativamente recente, entre os anos de 1910 e 1940 (ALBERT, MILIKEN, 2009). Inicialmente, deu-se de maneira acidental, eram encontros esporádicos e os primeiros aos quais contataram eram "coletores de produtos da floresta como, piaçaba, militares de expedição de delimitação de fronteiras, sertanistas do Serviço de Proteção ao Índio - SPI ou viajantes" (p. 14).

Entretanto, a partir daquele momento e nos anos seguintes, o registro nos programas do governo e missões de evangelização demonstra que diversos acontecimentos subsequentes não se mostraram nada favoráveis ao convívio pacífico entre os indígenas e os brancos. É importante considerar, sobretudo a violência física direta, indiscriminada. "Estimulada não só pela cobiça, que o ouro em grandes quantidades sempre provocou ao longo da história, mas também pela presença de inúmeros prostíbulos na área Yanomami, nos quais o consumo de álcool era muito elevado" (LEONARDI, 2000, p. 84). A chegada das estradas e do garimpo ocasionaram, além dos danos à natureza, um grande massacre moral e físico que custou a vida de mais de mil e duzentos Yanomamis.

Os índios conviveram com isso durante anos, e essa convivência alterou hábitos ancestrais e deixou sequelas. Logo no início da invasão garimpeira, em agosto de 1987, quatro índios do Paapiú "foram assassinados a bala e seus corpos esquartejados pelos garimpeiros". Em 1994, o Líder indígena Davi Kopenawa denunciava à ONU a ação de garimpeiros, afirmando que esses estavam prostituindo as mulheres, espalhando doenças, fomentando brigas entre grupos Yanomamis com distribuição de arma e cachaça. Muitas índias foram estupradas por garimpeiros, nas roças onde trabalhavam. Houve caso de estupro e assassinato de mãe e filha na mesma roça [...] Por onde passou a Perimetral [...] Nessas beiras de estrada algumas índias eram seduzidas por brancos em troca de miçangas (p. 84).

Davi Kopenawa, que havia nascido em 19563, cresce vivenciando tamanha violência contra seu povo e, já no início da juventude, engaja-se em uma luta incansável contra a destruição de sua tribo e da floresta. A partir de então, tornou-se o principal porta-voz da causa Yanomami, no Brasil e no mundo. Visitou, ao longo dos anos 80 e 90, diversos países da Europa e os Estados Unidos (EUA), onde é conceituado como um dos mais expoentes defensores da Amazônia e de seus habitantes iniciais. Em 1988, ganhou o Global 500 Award do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP) e, em 1989, o Right Livelihood Award, classificado como prêmio Nobel alternativo. Em 1999, recebeu a condecoração da Ordem do Rio Branco, pelo Presidente da República Brasileira, Fernando Henrique Cardoso. Em 2008, recebeu a menção honrosa especial do conceituado Prêmio Bartolomé de Las Casas, conferido pelo governo espanhol, por sua ação em defesa dos direitos dos povos autóctones das Américas.

Bruce Albert, por sua vez, nascido no Marrocos em 1952, torna-se doutor em Antropologia pela Universidade de Paris e diretor de pesquisa do Institut de Recherche pour le Développement (IRD) - Paris. Trabalha desde 1975 como defensor dos direitos e da cultura dos Yanomami no Brasil. É cofundador da organização não governamental, criada em 1978, denominada Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), por meio da qual auxiliou Davi na batalha para obter do governo brasileiro o reconhecimento legal do direito de ocupação exclusiva do atual território.

Esta cooperação e interação revelou-se em uma notável força político-simbólica na qual, para o imaginário coletivo, a Amazônia tornou-se um ícone da crise ecológica planetária. A partir da publicação deste livro, coparticipações com pesquisadores do Instituto Socioambiental Hutukara (ISA) e a Associação Yanomami (HAY) têm promulgado diversos projetos de publicação de intelectuais Yanomami a respeito de múltiplos temas, dentre eles, alimentação, plantas medicinais, história, xamanismo, mitologia, etc. Iniciativas deste tipo estão multiplicando-se em todo o Brasil, e não somente no campo da escrita, como também nas artes plásticas e nas músicas autóctones.

 

2. O diálogo Eu-Outro e a Alma do Mundo

Não possuímos nosso Eu. Ele sopra de fora sobre nós, foge de nós por muito tempo, e nos retorna em um suspiro (HOFMANNSTHAL apud, BORTEN, 2001, p. 5).

Jung observou atentamente a história do desenvolvimento psíquico humano e demonstrou em vários momentos de sua obra que a adaptação ao meio ambiente e os avanços do conhecimento científico e tecnológico exigiram o fortalecimento do estado de consciência racional, discriminativo e, consequentemente, um estranhamento em relação à aura mágica da "représentation collective"4. Termo originalmente descrito por Lévy-Bruhl e utilizado por Jung para designar certas representações gerais próprias do pensar nos sistemas originais, além da dinâmica e desenvolvimento da psique.

O modus operandi vigente dos indivíduos que habitam as sociedades não indígenas é marcado por uma maior tendência ao afastamento do contato da consciência com os aspectos instintivos. Contudo, de acordo com a visão junguiana, o inconsciente não é apenas um repositório de aspectos rechaçados segundo o interesse adaptativo da consciência. A percepção simbólica faz parte da psique como um todo e é uma importante função anímica que compensa e amplia a atitude racional da consciência. Desse modo, "quanto mais capazes formos de nos afastar do inconsciente por um funcionamento dirigido, maior a possibilidade de surgir uma forte contraposição, a qual, quando irrompe, pode ter consequências desagradáveis" (JUNG, 1993, par. 139).

Em "Civilização em Transição", Jung (1993) aponta a necessidade do autoconhecimento e o quanto a influência do diálogo com os próprios instintos torna mais clara a consciência do lugar e da responsabilidade dos indivíduos no mundo. À medida em que, "o que é perfeito não necessita dos outros" (par. 579), quanto maior o reconhecimento dos aspectos inconscientes da personalidade, maior a integração das próprias imperfeições. Por conseguinte, maior transformação nas atitudes, no sentido da modéstia, da percepção sobre a finitude, sobre a impermanência, sobre a auto insignificância e sobre a percepção da importância da interdependência.

Esse tipo de reflexão não deve ser considerado um sentimentalismo superficial. A questão das relações humanas e da conexão interior é urgente em nossa sociedade, dada a atomização dos homens, que se amontoam uns sobre os outros e cujas relações pessoais se movem na desconfiança disseminada [...] A falta de compreensão gerada pelas projeções compromete justamente o amor pelos outros homens [...] Onde acaba o amor, tem início o poder, a violência e o terror. [...] Não pretendemos aqui apelar para um idealismo mas somente transmitir uma consciência da situação psicológica (par. 580).

Segundo a teoria junguiana, a defesa contra o relacionamento com a própria interioridade acontece pelo medo da perda do falso ideal de controle do eu em relação às forças do inconsciente. Contudo, o que perde-se em essência é o relacionamento com a própria alma, a fonte mais valiosa de sentido existencial.

Dessa forma, pelo temor de submergir no relacionamento com a própria natureza instintiva, os seres humanos perderam o contato com a psique profunda - nos dois aspectos, enquanto forças internas instintivas e enquanto anima mundi. "Aquele lampejo de alma especial, aquela imagem seminal que se apresenta em cada coisa por meio de sua forma visível [...] Não apenas animais e plantas almados, como na visão romântica, mas a alma que é dada em cada coisa" (HILLMAN, 1993, p. 14).

O que vale dizer que, para Jung, nossas raízes inconscientes estão mergulhadas e estendem-se para toda a natureza. Nós estamos na psique e não ela em nós. Pela concepção da ideia de que a alma do mundo é um todo orgânico, um sistema vivo, unitário, não dual, em que cada ser individual está mergulhado, que permeia e anima toda a vida. "Quando aceitamos este ponto de vista temos que supor que a vida é realmente um "continuum" e destinado a ser como é, isto é, toda uma tessitura na qual as coisas vivem com ou por meio uma da outra" (JUNG, 1976, par. 180).

Sem essa experiência de sentido desse "continuum", o indivíduo torna-se isolado e não percebe o princípio autorregulador natural, presente na interconexão intrínseca da existência. Sentindo-se só, relaciona-se com o mundo externo numa comunicação empobrecida e unilateral, visando somente autossatisfação imediata. Acarretando resultados catastróficos contra a sustentabilidade da própria vida: devastação desenfreada dos recursos naturais, desmatamento extensivo, extinção de diversas espécies, poluição, pandemias, fome e escassez de alimentos, etc.

Então, vazio de sentido, busca nos bens de consumo material aplacar a angústia que a falta dessa comunicação com as energias do inconsciente provoca. Por esse caminho, na medida em que o ser humano "conseguiu dominar a natureza, mais lhe subiu o orgulho de seu saber e poder, e mais profundo o seu desprezo por tudo que é apenas casual e natural, isto é, pelos dados irracionais, inclusive a própria psique objetiva" (JUNG, 1993, par. 562).

Em termos alquímicos, sem a alma não há "vinculum". Ela é o próprio Eros e, segundo Jung, é sua função "unir o que o Logos separou" (JUNG, 1993, par. 132). Tanto no sentido interno, quanto externo, com os outros seres na natureza. É justamente a respeito dessa antítese entre amor e poder que Davi Kopenawa está nos chamando a atenção - do amor à floresta, do amor à natureza; do não domínio, sobreposição ou desrespeito em relação a ela e seus mistérios.

De acordo com Jung, para que este vínculo realize-se de maneira equilibrada, é necessário que o mesmo seja vivenciado de maneira dialética, isto é, no respeito à diversidade próprio às relações de horizontalidade nas quais os opostos estejam considerados. Tanto no âmbito individual, dos sujeitos consigo mesmos, quanto na esfera coletiva, isto é, dos sujeitos entre si e com a natureza. Tal atitude realizaria uma das grandes aspirações contemporâneas, em termos individuais e coletivos.

O arquétipo da alteridade é o arquétipo que propicia à consciência o encontro dialético com os opostos, através do qual a elaboração simbólica pode alcançar sua capacidade plena. Dialética aqui significa que os polos de todas as polaridades podem se relacionar em oposição, mas também em harmonia, dependendo do contexto. Trata-se da relação de um encontro pleno entre o Ego e o Outro, no qual os símbolos podem ser elaborados até o máximo de seu potencial metafórico, e portanto necessitam a extensão plena da elaboração simbólica permitida pelo princípio de sincronicidade (BYINGTON, 2002, p. 26).

Davi Kopenawa traz em sua narrativa, por um lado, o exemplo desse olhar imaginativo quando evidencia a experiência original indígena de conexão mítica-afetiva com o mundo natural e com a vida, afirmando em muitos trechos o quanto "amam a floresta e a querem tanto defender" (ALBERT, KOPENAWA, 2010, p. 468). Por outro lado, faz uma crítica sobre como os sujeitos urbanos encontram-se desconectados da natureza e o quanto este afastamento embota as forças criativas da psique. Numa entrevista a F. Watson, em 1992, publicada nesta obra, nos chama a atenção para um pensar imaginativo: "acho que vocês deveriam sonhar com a terra, pois ela tem coração e respira" (p. 468).

Por seu turno, Jung (1997) diz que sem o laço de amor, os elementos não se ligam e não se transformam. É preciso deixar-se tocar pela experiência desse pensar simbólico. Em visita à tribo dos índios Pueblo, registra uma conversa em que um deles lhe diz sobre o "pensar com a barriga" ou com a cabeça, que eles "pensavam com a barriga". E diziam mais: "só um doido é que pensa, só ele tem pensamentos na cabeça. Nós não pensamos" (JUNG, 1975, p. 219).

Por esta e tantas outras pesquisas e reflexões, Jung compreendeu o que ocorre na dinâmica do pensar exclusivamente racional das civilizações tecnológicas contemporâneas: a perda da alma, isto é, a perda desse pensar mítico-imaginativo e, consequentemente, a incapacidade de ouvir e integrar a voz profunda do não-eu psíquico projetados simbolicamente nos elementos da natureza. Pois, "são essas projeções que fazem do feiticeiro mana, e são elas que fazem com que os animais, árvores e até pedras possam falar, e exigem - precisamente porque são partes da alma - obediência absoluta do indivíduo" (JUNG, 1993, par. 138).

Segundo Jung, este modo de pensar mágico dos povos autóctones, "não é mais lógico nem mais ilógico" (JUNG, 1993, par. 107) do que o nosso, o que mudam são os pressupostos. Entre aqueles e a natureza, ainda não há a "separação" produzida pela cultura, como é o caso das civilizações tecnológicas contemporâneas.

O pensamento dos xamãs se estende por toda parte, debaixo da terra e das águas, para além do céu e nas regiões mais distantes da floresta e além dela. Eles conhecem as inumeráveis palavras desses lugares e as de todos os seres do primeiro tempo [...] A mente dos grandes homens brancos, ao contrário, contém apenas traçado das palavras emaranhadas para as quais olham sem parar em suas peles de papel (ALBERTO, KOPENAWA, 2010, p. 468).

Vê-se assim que não é muito difícil perceber o efeito da perda desse vínculo e do sentido existencial nas grandes cidades nos dias atuais, desde quando a máxima progredir foi declarada como pedra angular na atualidade: a colonização, a erradicação de costumes tradicionais, ligados ao cultivo da terra como um ser vivo, o escárnio a crenças e obras de nações indígenas inteiras, com base essencialmente na mais arrogante falta de discernimento.

Ailton Krenak, pensador indígena crítico da modernidade, diz que esse estado atual "jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade" (KRENAK, 2020, p. 9). Valores e razões de vida de comunidades tradicionais foram e continuam sendo indefinidamente negados. Por fim, "a promessa da riqueza e da fraternidade, torna-se concretamente a indigência, o desenraizamento, o abandono, e isto não a título provisório, mas de maneira cada vez mais definitiva" (LATOUCHE, 1996, p. 78).

O vazio pela perda de sentido de vida dos grandes centros urbanos chegou também à mata, uma vez que "destituídos de sua riqueza - a sua identidade cultural e seu território - os índios viraram pedintes" (GAMBINI, 2000, p.149). Os guerreiros caçadores da floresta de ontem, são os alcoolistas, deprimidos e mendicantes de hoje, nas metrópoles ou nas extensas fazendas de gado, soja, etc. Latifúndios, muitos deles adquiridos por meio de demarcações ilegais, tornam-se a promessa de habitação e alimento para centenas de indígenas, mas, na realidade, os dominam e escravizam.

Consequentemente, "a perda da identidade cultural implica o fim de um grupo: alguns poucos indivíduos podem sobreviver, mas sua existência vegetativa já não tem mais nenhum traço de força, orgulho, criatividade ou vontade" (p. 146). Sendo assim, a "destruição de culturas autóctones em decorrência de conquista, colonização ou contato tem sido um dos tópicos centrais dos estudos etnológicos das últimas décadas" (Idem), estudos estes nos quais inclui-se "A Queda do Céu" (ALBERTO, KOPENAWA, 2010).

Entendemos ser necessário à civilização contemporânea desenvolver o olhar inclusivo e mesmo generoso, no qual traga de volta a anima mundi para as relações dos seres humanos consigo mesmo e o cosmo. Que reflita a imagem do espelho índio, isto é, o olhar para o todo, em que a alteridade tenha garantido o seu lugar de pertencimento. De maneira que os símbolos, o cotidiano, a natureza base para viver à todas as formas de vida, sejam o reflexo do Si-Mesmo. Para que enfim, o amor pelo mundo se desenvolva na sua manifestação mais ampla e includente.

Ademais, pela leitura que fazemos da teoria de Jung, compreendemos que está em consonância com seus postulados afirmar que, necessitamos integrar o olhar indígena e permitir ecoar em nós seu gesto original: "trocamos bens entre nós generosamente para estender nossa amizade. Se não fosse assim, seríamos como os brancos, que maltratam uns aos outros sem parar por causa das suas mercadorias" (ALBERT, KOPENAWA, 2010, p. 414). O que para a crítica intelectual parece um olhar ingênuo, romântico ou idealizado, na verdade revela-se a mais alta e sofisticada maneira de tornar sustentável a vida.

Num tempo marcado pelo crescimento dos etnocentrismos, xenofobismos e fundamentalismos, a provocação do diálogo e da acolhida ao outro urge com um significado único. Diálogo e hospitalidade são expressões que se interagem e complementam. Diante do quadro atual, marcado pelo apelo da interligação, há que ampliar as malhas dessa acolhida, envolvendo não apenas os humanos, mas abrindo o leque para a dimensão mais ampla de toda a criação. O ser humano está relacionado, está vinculado na rede maior que tece o universo. Habitar a Terra ganha, assim, um significado novo, de inserção do humano no mundo da vida (TEIXEIRA, 2017, p. 1).

É urgente, cada vez mais é nítida a irremediável necessidade de evocar, encontrar e desenvolver a dinâmica de funcionamento regida pelo arquétipo do fraterno5, tanto no âmbito individual, quanto coletivo. É a ideia do como se instaurasse um novo modo de estar no mundo, a partir desse "'impacto do irmão', mais profundamente, mais precisamente, na experiência de assimilação e apreciação da diversidade. A primeira e fundadora experiência da semelhança na diferença, instaurada pela entrada em cena do irmão" (BARCELLOS, 2006, p. 142).

Nesse sentido, relações assimétricas, hierarquizadas, em que um dos lados tem o suposto saber, poder e, o outro, inferiorizado, submete-se por sentir-se impróprio, inferior ou inadequado, sejam transformadas em diálogos mais equalizados. De acordo com uma perspectiva horizontal do dar e do receber, mútuos, compartilhado. Em que ambos são atendidos e desenvolvem-se.

Esse Outro-irmão de que estou falando - o semelhante que não é igual, mas é um par (e serão, mais tarde, os pares, os muitos Outros) - é um outro que, precisamente, divide comigo a mesma origem. Aqueles, ou aquilo (enquanto princípios), que paternalizam e maternalizam esse outro, são os mesmos que paternalizam e maternalizam a mim. E, no entanto, ele é diferente. Não seria essa, para a alma, uma iniciação à diversidade em sua forma mais próxima? Essa iniciação desdobra-se, acredito, nos compromissos entre os pares, o acordo entre os irmãos, o pacto civilizatório; ou seja, talvez naquilo a que chamamos ética (BARCELLOS, 2006, p. 142-43).

Sem a vivência, a integração dessa dinâmica não há familiaridade, diálogo, troca. Pois a mesma permite o encontro com o semelhante e o diverso. São as relações que em seu aspecto positivo, têm o potencial de propiciar reparação de traumas, de desenvolver a maturidade, que fazem o indivíduo sair de sua pequena circunferência e espraiar-se no mundo, dialogando com a natureza de forma equânime: "há muita coisa que me preenche: plantas, animais, nuvens, o dia e a noite, e o eterno que há no homem. Quanto mais acentua a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumenta meu sentimento de parentesco com todas as coisas" (JUNG, 1975, p. 310). Nisso reside a saúde tanto individual, quanto coletiva, precisamente porque quanto mais o sujeito isola-se do mundo, mais infecundo ele se torna. Como um explorador incansável dos fenômenos psíquicos, Jung compreendeu, neste sentido que a alma não encerra-se em si mesma, mas estende-se no mundo. "Ela apenas cintila aqui e acolá6, cada vez que é despertada por acontecimentos exteriores e interiores, instintos e emoções" (JUNG, 1998, par. 79).

Por conseguinte, Jung observou que há um padrão de funcionamento anímico psicóide, ou seja, que há um entrelaçar recíproco entre matéria e psique, consequentemente sincronístico, que integra todos os fenômenos. Constatou que a "psique não é individual, mas deriva da nação, da coletividade, até mesmo da humanidade. De alguma forma somos parte de uma psique única e abrangente, de um homem singular e imenso - usando as palavras de SWEDENBORG" (JUNG, 1993, par. 175). Em outros termos, pode-se dizer que, "não é a alma que está em nós, mas nós que estamos na alma, com a amplitude de sua ontologia do esse in anima" (BARCELLOS, 2006, p. 99).

Para Jung, há na psique individual uma função especial a desempenhar no universo. Paradoxalmente, à medida em que o indivíduo interioriza-se, mais ele aproxima-se do todo. Percebeu também que "a alma do mundo é uma força natural, responsável por todos os fenômenos da vida e da psique" (JUNG, 1985a, par. 393).

Psique e matéria "se encontram permanentemente em contato entre si, e em última análise, se assentam em fatores irrepresentáveis [...] Encerradas em um e só mesmo mundo" (JUNG, 1985a, par. 418), de acordo com ideia de unus mundus. Dessa forma, "há, não só a possibilidade, mas até mesmo uma certa probabilidade de que matéria e psique sejam dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa" (JUNG, 1985a par. 418). Portanto, a esta correspondência entre a psique e a matéria, expressa numa conexão essencialmente desconhecida, mas passível de experiência, Jung denominou arquétipo psicóide.

Na visão Yanomami, essa unidade psicofísica não é conceitual, mas projetada no cotidiano, nos elementos da natureza.

Somos guiados pelos caminhos de espelhos brilhantes dos xapiri, imagens dos ancestrais animais yarori que se transformaram no primeiro tempo [...] e que trabalham como auxiliares dos xamãs. Que se espalham pela floresta e se estendem até os confins da terra, onde moram os brancos e estão plantadas as árvores de onde os xapiri obtêm seus infinitos cantos e cujos "troncos são cobertos de lábios que se movem sem parar, uns em cima dos outros" (ALBERT, KOPENAWA, 2010, p. 314).

Por essa perspectiva mítica: o mundo - como floresta fecunda, transbordante de vida; a terra - como um ser que "tem coração e respira"; e o corpo - sua "pele social", que se relaciona externamente, como afirmou o xamã Orowam7: "O jaguar é meu parente verdadeiro. Meu corpo verdadeiro é jaguar. Há pelos em meu corpo verdadeiro" (VILAÇA, 2000, p. 62).

Assim como na constituição das relações de consubstancialidade, a comensalidade é fundamental na definição do xamã como membro de determinada espécie, de modo que um xamã pode "trocar" de espécie se passar a acompanhar outros animais, o que significa que, além de andar ao lado desses animais, vai comer como eles e junto com eles (VILAÇA, 2000, p. 63).

Dessa forma, tanto na teoria de Jung, a respeito dos processos psicofísicos, quanto para o indígena em sua relação com o meio, há uma correspondência entre natureza e psique. Não há, para a visão de Davi Kopenawa, distinção entre ele e o mundo, sua "ontologia é integralmente relacional, na qual as substâncias não são a realidade última" (CASTRO, 2004, p. 244).

Jung que vê a cisão entre natureza e cultura como alienante e fonte da crise de sentido humano. Por entender que, "o mundo, tanto por fora como por dentro é sustentado por bases transcendentais, algo tão certo quanto a nossa própria existência" (JUNG, 1989, par. 442). Embora, segundo ele, seja "dificílimo para a nossa consciência construir os modelos intelectuais que deveriam ilustrar a "coisa em si" de nossas percepções. Nossas hipóteses são incertas e tateantes" (JUNG, 1989, par. 442). Mesmo assim, ele insiste que,

Enquanto não compreendermos seus pressupostos, ele continuará sendo um enigma para nós, enigma difícil de solucionar, mas que se tornará relativamente fácil a partir do momento em que chegarmos a compreendê-lo. Poderíamos dizer isto também desta maneira: o primitivo deixa de ser um enigma para nós desde que conheçamos nossos próprios pressupostos (JUNG, 1993, par. 112).

Dentro desse campo reflexivo, algumas proposições atuais precisam urgentemente ser revistas de fato, tanto no modo de ser, quanto de estar no mundo: o modus operandi atual nas grandes cidades que compreende aceleração como meio de eficiência, cada vez mais vinculada à produção capitalista. "Com o avanço do capitalismo, foram criados os instrumentos de deixar viver e de fazer morrer: quando o indivíduo para de produzir, passa a ser uma despesa. Ou você produz as condições para se manter vivo ou produz as condições para morrer" (KRENAK, 2020, p. 8).

É crucial que um diálogo ético seja instituído como um princípio na relação natureza e cultura, porque é fundamental desenvolver propostas dentro de uma dinâmica que contemple a fraternidade, dentro de um pensar ético-planetário no qual os meios devem estar em acordo com os fins. Em que a justiça e a equidade venham fazer parte das diretrizes básicas dos projetos sócio-político-científicos, cujo objetivo seja a sustentabilidade da vida na Terra a longo prazo, considerando as futuras gerações. Precisamos encontrar um modo de transformar a história: "o medo de uma destruição planetária poderia nos salvar do pior, mas essa ameaça continuará pairando como uma nuvem sinistra sobre a nossa existência, caso não encontremos uma ponte capaz de superar a cisão psíquica e política do mundo" (JUNG, 1993, par. 575).

É imprescindível observar e fazer um autoexame sobre até que ponto estamos nos relacionando com base na percepção da interdependência de todas as coisas. Notamos, em algum instante, que há um balé cósmico no qual a humanidade está inserida e mantém-se em ressonância contínua com a natureza, com o todo?

O que emitimos na relação com o mundo reverbera de volta, refletindo, sobretudo, no diálogo com a psique objetiva, com as raízes instintivas arquetípicas. Ou seja, nossas ações e omissões refletem nesse "processo psicóide" (JUNG, par. 367), tanto o meio interfere na psique, quanto a psique interfere no meio, como já disse Jung no texto "Alma e Terra", do volume "Civilização em Transição" (1993). Ademais, a voz da consciência é apenas um dos cantos, um dos falares e um dos sons e manifestações. Há outras linguagens no universo que precisam ser integradas para que a vida possa seguir em busca da plenitude. Esta é uma meta e, é justamente essa a ideia: a integração dos opostos.

Assim, há uma reciprocidade entre as perspectivas trazidas neste texto: por um lado, Davi Kopenawa e o xamã, que em seu conjunto de crenças, veem-se na pele do jaguar, numa apreensão da realidade que estabelece-se como mito. Por outro, Jung, que em suas pesquisas sobre os processos psíquicos e as manifestações míticas, observa acerca da "conexão cruzada significativa" (JUNG, 1985b, par. 827) e afirma, através do arquétipo psicóide, que psique e natureza são unidades psicofísicas. Numa linguagem direta, Jung, em entrevista à Hull e MaGuire (1982, p. 119), afirma: "precisamos projetar-nos nas coisas que nos cercam. O meu eu não está confinado no meu corpo. Estende-se a todas as coisas que fiz e todas as coisas à minha volta."

Está dito neste texto que há um alerta vindo dos habitantes da floresta, como também vindo da natureza instintiva do humano, ambos podem ser interpretados simbolicamente, como vindos do inconsciente, da alma do mundo. Estão expressos nos sinais ambientais, sociais e psíquicos. Sua importância demonstramos ser confirmada pelo pensamento de Jung. Contudo, como Diz Davi Kopenawa, "os brancos continuam ignorando nossas palavras [...] [pois] acham que são mentiras" (ALBERT, KOPENAWA, 2010, p. 486-94). Quem sabe, a Psicologia Complexa possa auxiliar-nos a compreender esta linguagem e perceber sua gravidade a tempo.

A imagem está constelada. De que maneira vamos tratá-la?

Se destruírem a floresta, o céu vai quebrar de novo e vai cair na terra [...] Mas eles não têm medo de desaparecer, porque são muitos. Contudo se nós deixarmos de existir na floresta, jamais poderão viver nela; nunca poderão ocupar os rastros de nossas casas e de nossas roças abandonadas. Irão morrer também eles, esmagados pela queda do céu. Não vai restar mais nada. Assim é. Enquanto existirem os xamãs vivos, eles conseguirão conter a queda do céu [...] O que os brancos chamam de futuro, para nós é um céu protegido das fumaças de epidemia xawara8 e amarrado com firmeza acima de nós! (ALBERT, KOPENAWA, 2010, p. 494).

 

3. Considerações finais

Esta obra, por sua importância dentro do cenário atual, torna profundamente complexa e limitada a tarefa de falar sobre ela, pois há diversos saberes que entrelaçam o tema. Ao mesmo tempo, percebe-se que importa registrar e multiplicar esta fala de Davi Kopenawa a quem souber ouvir, sobre o olhar do índio em direção à sociedade contemporânea; a respeito do mundo; da alma do mundo e sobre o futuro, como reflexo do agora.

Podemos ver que Jung compreendeu e deu status de valor terapêutico ao pensamento mítico-simbólico. Um exemplo disto é o diálogo possível de sua teoria com a narrativa de Davi Kopenawa. Como se vê, indubitavelmente, seus argumentos ultrapassam ao largo um conhecimento estritamente acadêmico-científico do assunto. Aliás, este é um dos atributos da força de suas ideias, a vivência interior naquilo que comunicou.

Certa vez, em entrevista à McGuire e Hull (1982) sobre o tema "O Homem e Seu Meio Ambiente", Jung trouxe uma fala simples e fundamental àqueles que desejam compreender sua visão a respeito da relação humano-natureza:

Todos nós precisamos de alimento para a psique, é impossível encontrar esse alimento nas habitações urbanas, sem uma única mancha de verde ou árvore em flor; necessitamos de um relacionamento com a natureza; precisamos projetar-nos nas coisas que nos cercam; o meu eu não está confinado no corpo; estende-se a todas as coisas que fiz e a todas as coisas à minha volta, sem estas coisas não seria eu mesmo, não seria um ser humano. Tudo que me rodeia é parte de mim (p. 189).

Considerando tudo o que foi dito até aqui, a partir da teoria de Jung, podemos afirmar que a visão de Davi Kopenawa diverge ao longe da compreensão antropocêntrica unilateral, na qual o ser humano é o centro do universo. Podemos dizer em síntese que ambos indicam o despertar de um novo sentido existencial, por uma percepção sensível sobre a natureza, pelo encantamento que percebe a interligação da psique com a Terra e o Cosmo, fazendo nascer "este sentimento [que] suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência. Se alguém não conhece este sentimento ou não pode experimentar o espanto ou a surpresa, já é um morto-vivo e seus olhos se cegaram" (EINSTEIN, 1981, p. 12).

Assim, fica a mensagem: a necessária construção de uma nova linguagem, uma percepção menos racional e exclusivamente analítica, no sentido cartesiano do termo, que isola a parte do todo. Se esquecendo que a dinâmica da vida faz-se pela soma das partes em funcionamento. São os sistemas integrados e não suas partes isoladas que nos fazem compreender o sentido e o para que da existência.

Além disso, como consequência e condição sine qua non de seus princípios, esta visão integradora da vida, tanto proposta pela visão indígena, quanto pela interpretação junguiana da mesma, nos chama a atenção, por fim, para o compromisso coletivo de renovação ético-política, bem como, para o renascimento do valor simbólico da sacralidade da Terra e da vida, desde a sua mais ínfima manifestação aos grandes fenômenos universais.

A humanidade atravessa no momento atual conflitos sem precedentes na história da civilização. Tal desordem tem demonstrado que as sociedades percebem-se mais interdependentes e frágeis. O colapso global enfrentado hoje, em caráter lancinante, tem sua raiz na complexidade em conciliar a antítese natureza e cultura. Põe em cheque o lugar e o sentido da vida humana na Terra. Questiona sobre como dialogamos com cada fenômeno, com cada espécie e conosco. Aliás, de tempos em tempos, apura se estamos de fato dialogando ou impondo à natureza que ela satisfaça nossos desejos egóicos.

É justamente nesse ponto de crise que reside um perigo inevitável: a ilusão de que se possa controlar os fenômenos naturais a fim de que sejam sanados os problemas, tais como a fome, a escassez de alimentos, a superpopulação, as epidemias, pois não se deve esquecer que, "por mais que joguemos fora a natureza por meio da força, ela sempre retorna" (JUNG, 1993, par. 514). Evidências disso podem ser percebidas nos fenômenos naturais coletivos, seja por meio das catástrofes ambientais ou por via de surtos pandêmicos.

Contudo, como Thomas Berry, historiador cultural e eco-teólogo, citado em "O Tao da Libertação" comenta, "não nos faltam energias dinâmicas que possam criar um futuro. Vivemos num mar de energias que vai além de nossa compreensão. Hoje nós nos apoderamos delas pela dominação, mas é necessário aprender que devemos invocá-las" (BERRY apud BOFF, HATHAWAY, 2012, p. 11). Tanto interna, quanto externamente, a propulsão das forças ctônicas (originais, criadoras) da vida é indomável e, por isso, a única maneira de evitar a queda do céu é prosseguir com o trabalho xamânico, ou seja, colocar-se a serviço do Si-mesmo.

No entanto, o trabalho reside no âmbito pessoal, por meio do relacionamento pessoal com a Sombra, por meio de acessar os conteúdos afetivos de grande carga emocional, ligados à história individual. Integrando esse Outro estranho em nós para que possamos receber e reconhecer a integridade do outro do mundo. Ampliar assim a personalidade e facilitar com que a consciência possa comunicar-se com as energias profundas da psique objetiva, da qual manifestam-se os símbolos universais. No caso dos xamãs, estes estão em contato direto com essas energias plasmadas na natureza. Um exemplo dessas é o que Davi Kopenawa denomina, "xapiris - espíritos da floresta" (ALBERT, KOPENAWA, 2010).

Já é tempo de nos reconhecermos como unidades intrínsecas de um todo maior, do planeta Terra, do Sistema Solar, do universo. Reverenciarmos a majestade do céu estrelado, a imensa complexidade e biodiversidade da natureza. Está no presente a oportunidade de seguirmos o fio de Ariadne que nos faz sair da escuridão do labirinto, individualista, da razão petrificada, quando unilateral e encontrar um sentido para viver mais completos, em comunidade.

A natureza, sempre apta a ensinar, por meio da lição de respeito e harmonia com sua biodiversidade, une e reúne todas as coisas em arranjos criativos de modo que não estejam desconectadas, mas interligadas entre si, formando uma imensa teia dinâmica, de harmônica sinfonia. Nós fazemos parte desta natureza. Que possamos despertar-nos para desejar aprender com ela.

Este testemunho de Davi Kopenawa, bem como as ideias de Jung a respeito da relação dos sujeitos com a natureza dizem respeito à dimensão profunda e integral da Ecologia Humana, que convida ao novo paradigma civilizacional, complexo e interdependente, integrador, impermanente. Promove a reconexão com a comunidade de vida da qual a visão antropocêntrica exilou-nos. Desperta a reverência e devoção diante do mistério de todas as coisas. Sinaliza que, "se adquiríssemos uma consciência igualmente planetária de que toda separação repousa sobre a cisão psíquica entre os opostos, então teríamos descoberto um ponto de apoio" (JUNG, 1993, par. 575).

Essa tal atitude religiosa que torna possível a experiência de unidade, "de comunhão de sentido" (JUNG, 2003, p. 227). O despontar de uma unidade universal, na qual as polaridades se conciliam. Amansando o conflito inexorável entre humano e natureza, sujeito e objeto, individual e coletivo, pessoal e suprapessoal.

Porque, "Segundo opinião antiga, a palavra religio provém de religere [...] significa 'considerar ou observar cuidadosamente'. Esta derivação dá a religio a correta base empírica, isto é, a condução religiosa da vida" (JUNG, 2003, p. 227). Que torna possível reconhecer a si mesmo, reconectar-se consigo ao olhar para a psique, ao mesmo tempo em que contempla o lumen naturae que há dentro de todas as coisas vivas. Compreende, por meio da observação que, o que o lhe acontece interna e externamente faz parte do mesmo tecido simbólico.

Assim, diante do que foi visto, refletimos que é preciso desenvolver o imaginar da comensalidade, da inclusão, da comunhão e da interdependência. Tal qual o xamã que "come com o jaguar", tornarmo-nos companheiros dos próprios instintos. É preciso nos deixar tocar pela própria dor e pela dor do mundo. Seja no cuidado com a própria alma ou quando olhamos para o mundo. Reimaginar a coniunctio e o sentido do encontro com a alteridade, redespertar a dimensão curadora para que, enfim, possamos nos perguntar: de que maneira eu posso contribuir para que o xamã sustente o céu?

 

Referências

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Recebido em: 13/09/2020
Revisão em: 05/12/2020

 

 

1 De Roy Wagner, citado por Viveiros de Castro (2010, p. 25), no prefácio do livro "A Queda do Céu". "Que se aplicaria bastante bem ao 'ecologismo xamânico' de Kopenawa" (CASTRO, 2009, p. 61). Está ligada à ideia sobre o "reconhecimento etnográfico dos procedimentos que institui um tratamento simétrico, na acepção de Bruno Latour (1994), e, por isso, trabalha para superar o grande divisor "nós/eles" de forma ousada. Sua ousadia refere-se ao fato de propor não que "todos somos nativos", mas que "todos somos antropólogos" e, portanto, a etnografia que praticamos deve estar aberta à criatividade daqueles que estudamos" (BENITES, 2007, p.123).
2 "Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes em troca de todas as árvores, frutos, animais e peixes. As árvores queimadas, de seu solo ressequido e de suas águas emporcalhadas. Nada disso jamais poderá ressarcir o valor dos jacarés mortos e dos queixadas desaparecidos [...] Nada é forte o bastante para restituir o valor da floresta doente. Nenhuma mercadoria poderá comprar todos os Yanomami devorados pelas fumaças da epidemia. Nenhum dinheiro poderá devolver aos espíritos o valor de seus pais mortos" (p. 355).
3 Próximo à fronteira com a Venezuela, no norte do Estado do Amazonas, na floresta tropical de Piemonte do alto Rio Toototobi, em Marakana.
4 A esse respeito, vale citar algumas considerações de Jung: "Não podemos admitir que todo animal recém-nascido adquira e desenvolva individualmente seus instintos, da mesma forma que não podemos acreditar que as pessoas inventem ou produzam, a cada novo nascimento, seus comportamentos e reações tipicamente humanos. Exatamente como os instintos, também os modelos coletivos de pensar da mente humana, são inatos e herdados e, dependendo das circunstâncias, funcionam em toda parte mais ou menos de modo igual" (JUNG, 2013, par. 539).
5 "Fraternidade: fraternidades [...] Comunidades, thiasos. Laços de sangue, pactos de sangue [...] No dicionário, fraternidade, substantivo feminino, tem os sentidos de 1. parentesco de irmãos, irmandade; 2. amor ao próximo, fraternização; 3. união ou convivência como de irmãos (grifo meu). Fraterno, ou fraternal, o adjetivo, traz o sentido de afetuoso, ou seja, cheio de afetos. Fraterno: irmão, amigo, sócio, associado, 'mano', camarada, colega, semelhante." (BARCELLOS, 2006, p. 137).
6 Grifos do autor.
7 Tribo Wari', localizada no norte do Estado de Rondônia.
8 Grifos do autor.

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