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Junguiana

On-line version ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.1 São Paulo Jan./June 2021

 

Nise da Silveira, a leve brisa de vento que remove montanhas

 

 

Maddi Damião Junior

Psicólogo, Doutor em Psicologia pela UFRJ, Pós-Doutor em Psicologia Médica e Psiquiatria pela Unicamp, Pós-Doutor em Ciências das Religiões pela UFJF, Professor Associado da UFF/CURO, Membro Analista SBPA - RJ email: <maddidamiao@gmail.com>

 

 

Elias foge de Jezabel

Elias, a mando de Deus, "matara à espada todos os profetas" de Baal. A rainha furiosa avisara a ele que da mesma forma ele teria o mesmo destino que seus profetas.

Com receio de perder sua vida, "... comeu e bebeu. Com a força daquela comida caminhou quarenta dias e quarenta noites até o monte Horebe, o monte de Deus".

9 Ali entrou numa caverna, onde passou a noite. E lhe veio a palavra do Senhor, dizendo: Que fazes aqui, Elias?

10 Respondeu ele: Tenho sido muito zeloso pelo Senhor Deus dos Exércitos.

Os filhos de Israel deixaram sua aliança, derrubaram os teus altares, e mataram os teus profetas à espada. Só eu fiquei, e agora estão tentando matar-me também.

11 Disse-lhe Deus: Vem para fora, e põe-te neste monte perante a face do Senhor, pois ele vai passar. Então um forte vento fendeu os montes e despedaçou as penhas diante do Senhor, porém o Senhor não estava no vento. Depois do vento um terremoto, porém o Senhor não estava no terremoto. 12 Depois do terremoto um fogo, porém o Senhor não estava no fogo.

Depois do fogo, uma voz calma e suave (THOMPSON, 1992. p. 328).

Tão logo comecei a faculdade de psicologia iniciei, também, a frequentar a Casa das Palmeiras, fundada pela Dra. Nise da Silveira, e o grupo de estudos do psicólogo junguiano Geraldo Mourthe, considerado por ela "o melhor psicólogo clínico do Rio de Janeiro", assim como o seu grupo de estudos, que era realizado no escritório no andar acima de seu apartamento, onde morava, no bairro do Flamengo no Rio de Janeiro. Desta forma, tive a oportunidade de não somente estudar com ela, mas de frequentar sua casa e partilhar de seu cotidiano durante diversos anos, até às vésperas de sua morte. Pode-se dizer que, através dela, pelo menos três gerações de junguianos foram formados no Rio de Janeiro, assim como que ela influenciou muitos outros por todo o Brasil. Mesmo com idade avançada, ela mantinha presença no grupo de estudos C. G. Jung todas as quartas-feiras à noite, dando mostra de sua imensa generosidade e cuidado na transmissão do conhecimento e na importância dos estudos. Por ela fui acolhido e tive a possibilidade de ter um encaminhamento na clínica e no pensamento junguiano, tendo acesso à sua biblioteca e acompanhando suas pesquisas.

Este depoimento é uma versão revista e atualizada do que se encontra compilado junto a outros em uma publicação organizada pelo Grupo de Estudos C. G. Jung e pela Casa das Palmeiras. O que apresento aqui é uma versão modificada, porém considero importante lembrar características pessoais e intelectuais da Dra. Nise que passam invisíveis quando olhamos para sua obra "de fora". O título do depoimento tem origem nas leituras que fazíamos quando ela estava doente, em seu quarto, da Bíblia na versão do rei James, em francês. Sentado ao lado de sua cama, eu lia para ela trechos que me pedia. Desta forma, chegamos a Elias, tão caro a ela e a Jung.

Ao sentar-me para escrever algo a respeito da minha experiência ao longo de alguns anos junto à Dra. Nise, me deparei com alguns problemas. O primeiro, sobre o que escreveria ou o que teria valor em ser dito que pudesse ser interessante para quem lesse? Neste momento, em vez de fazer uma apologia ou narrar algum acontecimento durante meu contato com ela, me vem ao pensamento algumas coisas que aprendi por intermédio dela. Nada de grandioso ou fabuloso, isto é, nenhum acontecimento espetacular, porém, pequenas coisas que ela me passou e que considero fundamentais para minha vida profissional e pessoal. Heidegger (1981) certa vez discriminou entre aquilo que possui importância e o que não possui importância em nossa cultura. Normalmente damos importância a tudo aquilo que é escandaloso, espetacular, grandioso e nos leva para fora de nós mesmos. O que possui valor em nossa cultura, segundo esse filósofo, é tudo aquilo que nos distrai de nós mesmos e ao que não damos importância; não damos valor ao que diz respeito à nossa própria vida, ou seja, tudo aquilo que diz respeito à vida e à questão do próprio ser. O que teria mais valor é o que passa despercebido pelas nossas mãos

Quero falar de algumas dessas pequenas coisas que recebi da Dra. Nise, importantes para todos que trabalham com a alma humana e seus destinos. A primeira delas é sempre ver antes a saúde ao invés da doença, valorizar as vias e possibilidades criativas da vida. Geralmente estamos focados em etiologias ou tentativas de explicar os fenômenos, reduzindo-os a causas específicas, olhando para trás como se a origem determinasse o que virá. Porém, resgatar a via da saúde em primeiro lugar é recuperar a dimensão do simbólico, da poesia e da cura capaz de regenerar a vida, ao dispô-la dentro de seu horizonte de mistério e gratuidade. Regenerar a vida é nos redimensionarmos como aqueles que recebem um presente, um Dom. Ao valorizar a saúde e o símbolo em seu processo criador, estamos nos abrindo para a possibilidade do futuro e não mais para o passado, orientar o que será. Precisamos saber escutar, ter delicadeza e suavidade no dizer, olhar e se encantar com as surpresas e mistérios que a vida nos dá.

A qualidade da Dra. Nise de olhar as pequenas coisas estava sempre presente ao chamar a atenção para o que passa despercebido, seja o inconsciente ou algum detalhe de um livro ou poema. Procurar pelo simples e pelo que se esconde sob a luz do desinteressante pode nos mostrar ser um modo de reconhecer tesouros. Um exemplo foi seu olhar voltado àqueles considerados "marginais" da sociedade ou, como diria Walter Benjamin (KONDER, 1989), os bárbaros (a criança, o artista e o louco). Esses que trazem a possibilidade de renovação e transformação da cultura instituída, portam em seus delírios, dores e fantasias, imagens capazes de transformar a vida. Outro caso que me lembro até hoje, aparentemente simplório, foi aprender a reconhecer um bom livro através de pequenos detalhes, porém aí se insere um olhar que perscruta através daquilo que é desvalorizado, as raízes do que possui valor. Saber olhar, reeducar nossos olhos, talvez seja esse um dos ensinamentos fundamentais da psicologia analítica que, ao trabalhar com imagens e símbolos, traz a primazia do ver em vez do escutar.

Delicadeza que se traduzia em paciência. Conforme dizia, "é preciso peneirar sete vezes ou mais, garimpar" para encontrar os tesouros. Muitas vezes a ouvi repetir essas palavras paciência e perseverança, como poderíamos dizer conforme o dístico alquimista "Ora, ora et labora" (reze, reze e trabalhe). Possuía diversas metáforas para o trabalho árduo e minucioso que fazemos, para todos aqueles que trabalham com o "misterioso" da vida e seus processos de transformação.

Vivemos cotidianamente como células isoladas, somos educados e aprendemos a pensar como sendo o centro daquilo que nos cerca. É necessário curiosidade, ou melhor, abertura para o novo, para fazer novos encontros por meio dos quais a vida pode se dar a nós. Disponibilidade para novas trocas e aprender que a vida se dá como uma grande rede, na qual o outro nos traz o novo, o diverso e porta a possibilidade de nos descobrirmos. A psicologia analítica amplia um modelo de pensamento que ao falar em projeção, transferência ou contratransferência pressupõe um homem, em última instância, fechado em si mesmo, dissociado do mundo e dos outros. Essa forma de entendimento nos coloca como seres dispersos e faltosos, que procuram algo nos outros ou em si mesmos. Porém, ao nos compreendermos como não separados do mundo nem daqueles que nos cercam e pertencentes a uma grande rede da qual somos uma parte, talvez possamos ver com mais clareza que o mundo, o inconsciente e a vida se dá através do outro, daquilo que chamamos "o que está fora de mim". Ao nos situarmos como um ponto nessa rede, veremos que não nos falta algo, e aquilo que chamo de meu, a projeção que "retiro", é a vida se dando a mim como novidade. Disponibilidade nesse sentido, seria estar aberto ao que este outro que me traz, que na diferença radical de sua individualidade me traz a mim a minha vida, que é minha e é dele.

Foram alguns anos que passei próximo à Dra. Nise, que sempre tinha sua casa aberta e sua biblioteca à disposição1. Sempre se podia encontrar bons livros em sua casa, principalmente de literatura e arte e, assim, aprendi a importância da literatura para o estudo da alma. Nos romances e contos podemos ver como a vida é exposta e desvelada de maneira mais contundente e fascinante do que em livros técnicos ou especializados. Seja Machado de Assis, - um dos autores preferidos dela - ou Ítalo Calvino, talvez o romance tenha a tarefa de fazer o papel do mito em nosso tempo moderno, conforme diz Mircea Eliade (1987). Eles contam como as coisas são, foram e deverão ser, de forma direta, abrindo-nos uma dimensão da experiência de maneira imediata, sem a colonização do pensamento ou da razão. Possuem assim, a capacidade sintética do mito de nos apresentar por imagens, cenas, quadros e dramas a vida em seu rigor. Um exemplo disso pode-se encontrar em Dom Casmurro (ASSIS, 1992), quando sua mãe estava doente, ele pensa que, se ela morresse, ele não precisaria ir para o seminário e poderia se casar com Capitu, porém, no mesmo instante sente a dor do arrependimento, pois amava profundamente sua mãe. Machado de Assis nos dá nesse trecho, em filigranas, a diversidade e complexidade da alma humana com toda sua contradição e angústias.

Delicadeza e firmeza, duas características que creio seriam a síntese da Dra. Nise. Não que queira reduzi-la a apenas isso, mas eram qualidades que se encontravam reunidas de forma indelével em seus atos. Qualidades que creio serem vitais para todos que lidam com a dimensão humana, em todas as suas dificuldades e mistério. Creio serem essas qualidades de suma importância para aqueles que estejam tentando lidar com o inconsciente e a vida. A todo momento nos deparamos com decisões a serem tomadas, caminhos a serem seguidos e dificuldades a serem suplantadas, seja em nossas relações com os outros ou em nossa própria vida. Se queremos estar abertos a tudo aquilo que a Dra. Nise representa, torna-se importante sabermos lidar com a vida de tal forma que possamos, em nosso próprio horizonte de existência, realizar nossa tarefa da mesma forma que ela realizou a sua.

Certa vez falei que para se tornar junguiano, é necessário abandonar Jung. Isto quer dizer que seguir seus passos não é repeti-los ou não questionar suas ideias, mas abandonarmos a atitude de repetição infantil, lembrando que ele foi um homem através do qual o inconsciente se deu. Conforme o próprio Jung (1978) diz, o que importa é se a verdade de cada um é a sua própria verdade e por isso é que a devemos procurar. Creio que se quisermos preservar a memória da Dra. Nise, devemos olhar em direção ao horizonte para o qual ela apontava, o que ela nos trouxe ao longo de sua vida e obra. Isso corresponderia a procurar valorizá-la não apenas no sentido pessoal como a grande mulher que ela foi, mas para a abertura da vida que ela nos mostrou e que se acha marcada em todos aqueles que com ela conviveram. Não devemos esquecer que ela era uma mulher que sofria e se alegrava em extremos, possuía defeitos e virtudes, ódios e amores e torná-la apenas em uma "grande mulher" é desprovê-la da dimensão humana, dos afetos e da imaginação que a tornavam capaz de entrar em contato com o mais íntimo daqueles que a cercavam, e torná-la apenas um mito. Isso quer dizer que se a despojássemos de sua história, estaríamos cometendo dois erros: primeiro, vê-la como um mito que nos levaria a projetar nela tudo de bom ou de ruim e não a respeitar em sua complexidade, perdendo a riqueza da vida que se deu como Dra. Nise da Silveira. O segundo é que ao projetá-la como mito, desvalorizaríamos nossas próprias vidas, sendo infiéis conosco e com ela, na medida em que assim não estaríamos perseverando em realizar nosso próprio destino.

A herança mais importante que ela me deixou, mais importante que algum livro ou presente que tenha me dado, foi tudo que vi e aprendi com ela, coisas que talvez eu não saiba nomear em sua totalidade e que devemos procurar em cada um de nós, como ela nos marcou, o seu legado, procurar nas pequenas coisas. Pequenos gestos e pequenas palavras que partiam de uma mulher frágil fisicamente mas potente em alma. Que através de uma voz doce e suave" fazia manifestar a força da vida que está em todos nós.

 

Referências

THOMPSON, F. C. (Ed.). Bíblia de referência Thompson. São Paulo, SP: Vida, 1992.         [ Links ]

HEIDEGGER, M. Concepts fondamentaux. Paris: Gallimard, 1981.         [ Links ]

KONDER, L. W. B. O marxismo da melancolia. Rio de Janeiro, RJ: Campus, 1989.         [ Links ]

ELIADE, M. A provação do labirinto: diálogos com Claude-Henri Rocquet. Lisboa, Dom Quixote, 1987.         [ Links ]

ASSIS, M. Obra completa volume 1. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 1992.         [ Links ]

JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1978.         [ Links ]

 

 

Recebido em 22/03/2021
Revisão 02/06/2021

 

 

1 Ela deu à sua biblioteca o nome de Benedito, e costumava exclamar em uma de suas expressões características: "Será o Benedito que ninguém se interessa por ler estes livros?".

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