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Junguiana

On-line version ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.1 São Paulo Jan./June 2021

 

Nise e o Tao

 

 

Franklin Chang

Engenheiro de Minas pela Politécnica da USP. Analista junguiano pelo Instituto C.G. Jung de Zurique. Psicólogo clínico. Professor de Fundamentos da Psicologia Analítica na Universidade Paulista (UNIP).Trabalhou na Casa das Palmeiras. Foi professor de Pós-graduação em Psicologia Analítica na Universidade Veiga de Almeida (UVA), Universidade Santa Úrsula (USU) e Faculdade Maria Thereza (FAMATH). email: <fchangrj@hotmail.com>

 

 

Quando conheci Dra. Nise da Silveira, eu era estudante no Instituto C. G. Jung de Zurique. Lembro-me de ela ter-me perguntado sobre alguns analistas, particularmente sobre a Dra. Marie Louise Von Franz, que havia sido sua terapeuta. Na ocasião, ela me contou que publicara seu "Imagens do inconsciente" (SILVEIRA, 2017) em 1981 graças ao incentivo da Dra. Von Franz. Da minha parte, contei a ela que me aproximei da psicologia analítica por causa de seu livro "Jung: vida e obra" (SILVEIRA, 1997), de 1972, quando ainda era aluno de engenharia na Universidade de São Paulo (USP). A partir dessa leitura, passei a comprar livros de Jung - todos importados na época - à espera de uma oportunidade para estudá-los em profundidade, o que só veio a acontecer em 1985, quando fui a Zurique.

Em 1994, já no Brasil, fui convidado pela Dra. Nise para ministrar um curso sobre Jung na Casa das Palmeiras, no Rio de Janeiro. Embora eu morasse e clinicasse em São Paulo, não pude declinar de tal convite. Propus montarmos um curso com aulas quinzenais baseado no livro dela, "Jung: vida e obra" (SILVEIRA, 1997). Ela aceitou a sugestão, agradeceu e me disse que, se pudesse, só daria aulas sobre fundamentos da psicologia analítica.

Comecei a trabalhar regularmente na Casa das Palmeiras no ano seguinte, também a convite dela. Lembro-me de que o que me levou a aceitar esse convite foi ter visto o acervo de trabalhos dos pacientes da Casa. Fiquei impressionado com a força criativa daquelas imagens feitas por pessoas simples, às vezes sem qualquer educação formal. Desde então a criatividade tornou-se um tema constante em nossas conversas - de onde ela vem, como se forma, quais os efeitos que provoca na psique humana etc. Embora pareça uma questão simples, é bastante complexa e remete aos fundamentos da existência humana. Dra. Nise sempre olhou para a criatividade mais pelo ponto de vista terapêutico do que como crítica ou historiadora da arte, afinal, ela era médica e analista junguiana, e via criatividade em tudo o que a cercava - e na vida como um todo.

Dra. Nise amava gatos e os chamava de "mestres", pois eles lhe forneciam valiosas informações sobre as pessoas que a visitavam. Ela prestava muita atenção a tudo o que ocorria ao seu redor, fosse em relação às pessoas ou ao meio ambiente cultural e político do país. No campo dos estudos e das pesquisas, gostava muito de ler e sempre se mantinha atualizada em relação a seus assuntos favoritos: literatura, arte, mitologia, religião, história, antropologia, medicina, entre outros. Sua biblioteca era farta e de alta qualidade.

Comigo, além das conversas quase que diárias sobre psicologia, psiquiatria e sobre a produção dos clientes da Casa, lembro-me de termos discorrido, em diversas ocasiões, sobre o Tao e a visão de mundo taoista. Dra. Nise admirava o "Tao-Te King", livro de Lao-Tzu (2013) que descreve o Tao e os grandes opostos yin e yang presentes em toda a Natureza e também na natureza humana. Mas era na produção zen budista e na arte zen que ela via o espírito criativo manifestar-se de forma ainda mais espontânea.

O zen-budismo surgiu na China por volta do século VI d.C. como síntese do taoísmo de Chuang-Tzu e do budismo de Bodhidharma. Bodhidharma defendia o cuidado com o corpo por meio de práticas de autodefesa e de meditação que, combinadas ao trabalho no campo, garantiriam o sustento dos monges e sua independência em relação à política.

Lembro-me de ter visto algumas pinturas zen com a Dra. Nise. Naquela ocasião, ficamos a admirar a simplicidade das composições e, ao mesmo tempo, a profundidade com que eram traçados um círculo, uma montanha, uma planta, árvores e animais. Um dia, por ocasião de meu aniversário, ela me presenteou com um livro sobre arte zen e escreveu-me uma linda dedicatória, o que muito me emocionou.

A espontaneidade é um aspecto muito valorizado pela filosofia zen e pelos taoistas. Os taoistas buscam resgatar um estado de espírito que é geralmente encontrado entre as crianças pequenas, que agem sem pensar, movidas por um impulso interior. Para eles, esse estado de espírito é a base da criatividade, e acaba refreado pela educação e pela vida adulta em sociedade.

A seguir, pretendo relatar a relação única e especial entre dois mestres de origem, formação e cultura completamente diferentes e que, no entanto, tornaram-se grandes amigos por compartilharem uma mesma conexão com a totalidade, para além de toda a diferença: Dra. Nise da Silveira, médica psiquiatra e analista junguiana brasileira, e o médico taoista e antigo general chinês Liu Pai Lin. Nas ocasiões em que estiveram juntos, suas conversas foram viabilizadas pela intermediação de minha irmã, Jerusha Chang, que atuou como tradutora. Jerusha é arquiteta de profissão e, em sua monografia de conclusão de curso, desenvolveu um projeto para um hospital psiquiátrico baseado na teoria junguiana das mandalas e das cores, orientada pela Dra. Nise.

Mestre Liu chegou ao Brasil em 1975. Estava com 70 anos na época e tinha um filho que já morava em São Paulo. Quando veio visitá-lo, Mestre Liu encantou-se pelo país e resolveu tentar a vida por aqui. Começou atendendo pacientes que desejavam ser tratados com medicina chinesa, além de dar aulas de Tai Chi Chuan e de filosofia taoista para pequenos grupos de interessados. Em cinco anos, sua escola chegou a reunir cerca de 400 alunos.

Conheci Mestre Liu no início dos anos 1980 e logo simpatizei com ele. Seus métodos de ensino e sua personalidade cativante eram únicos. Antes de ir a Zurique, pratiquei com ele todos os dias, como se soubesse intuitivamente que isso seria importante para a minha estadia naquela cidade. De fato, nos mais de cinco anos em que lá morei, contraí uma única vez uma gripe leve. Além disso, ministrei aulas de Tai Chi para os suíços, o que me ajudou a sobreviver financeiramente durante aquele período.

Pouco antes disso, em 1978, Jerusha havia apresentado o Mestre Liu à Dra. Nise, que viera a São Paulo para uma exposição no Museu de Imagens do Inconsciente (SILVEIRA, 2017). Segundo Jerusha, eles se olharam fixamente por algum tempo e nada disseram, como se quisessem conhecer a essência um do outro, algo não apreensível por meio de palavras.

Na literatura taoista e, principalmente, na zen budista, há inúmeros relatos de encontros sem palavras entre mestres que se comunicavam por meio da transmissão "mente a mente". O filósofo alexandrino Apolônio de Tiana, por exemplo, ao contar sobre sua iniciação por um mestre indiano durante uma viagem que fez àquele país, escreveu que, ao fim de sua estadia, sentindo-se triste por nunca mais poder falar com seu mestre, teria ouvido dele que havia uma solução: o mestre ensinara como poderiam se comunicar por telepatia.

Em 1997, enquanto eu trabalhava na Casa das Palmeiras, soube que Mestre Liu viria ao Rio de Janeiro para ministrar um curso na Universidade Holística Internacional da Paz (Unipaz). Então, combinei com minha irmã uma palestra conjunta entre ele e Dra. Nise, para que falassem sobre psicologia e taoismo. O salão da Casa das Palmeiras ficou lotado e a duração do encontro ultrapassou em muito o tempo que havia sido combinado. Infelizmente, o evento não foi gravado, mas restaram algumas anotações que apresentarei aqui de forma resumida:

1.Mestre Liu se disse contrário ao confinamento de portadores de doenças mentais. Para ele, a sociedade como um todo sofre de um desequilíbrio nervoso, em maior ou menor grau.

2.Ele levantou a necessidade de tratar as pessoas preventivamente e disse que deveríamos olhar para os problemas psicológicos com a mesma atenção com que recebem os problemas físicos corporais.

3.Segundo ele, a origem das doenças está no desequilíbrio entre as energias yin e yang (energias primordiais feminina e masculina) e que seu tratamento deve buscar um novo equilíbrio dentro do corpo e na vida do indivíduo. Várias técnicas podem auxiliar nesse processo, como fitoterapia, dieta, exercícios físicos, meditação, acupuntura, massagem e, às vezes, uma boa conversa. Tudo depende da avaliação física, emocional e até espiritual do paciente.

4.Para a medicina chinesa existem, tanto na natureza quanto no homem, cinco energias fundamentais: a do fogo, a da água, a do metal, a da madeira e a da terra. No corpo humano, essas energias se situam em órgãos específicos: o fogo está localizado no coração e é associado à energia da alegria e do amor; a água localiza-se nos rins e associa-se ao medo; o metal liga-se aos pulmões e se refere à tristeza; a madeira conecta-se ao fígado e à raiva e, por fim, a terra se liga ao baço e à energia dos pensamentos.

5.Mestre Liu apresentou alguns exemplos de como podemos lidar com os desequilíbrios físicos e emocionais, e lembrou-se do caso de um rapaz com euforia em demasia, o que, na medicina chinesa, é entendido como excesso de energia yang no coração. O mestre disse ter contado diversas histórias tristes a esse rapaz, até fazê-lo chorar. Dessa maneira, buscou ativar a energia yin dos rins do paciente para, com essa água, apagar o excesso de fogo de seu coração, reestabelecendo assim o equilíbrio entre as energias yin e yang no corpo dele.

6.Por fim, Mestre Liu apontou para a necessidade de se praticar atividades físicas regularmente e recomendou, principalmente, o exercício do Tai Chi Chuan e da meditação taoista para que o indivíduo mantenha um equilíbrio interior e previna-se contra futuras doenças. Ele afirmou que o Rio de Janeiro é um local privilegiado para essas atividades energéticas e que isso poderia atrair muita gente àquela cidade, em busca de saúde e de energia.

7.Dra. Nise agradeceu a presença do mestre e disse ter sido muito o pouco que ele havia dito. A doutora também afirmou que ele havia tocado em questões fundamentais e que a forma como a medicina chinesa costuma lidar com a questão das energias parecia ser o caminho.

8.Em seguida, Dra. Nise estabeleceu um paralelo entre as energias yin e yang - em contínua interação - e a ideia junguiana de que a psique é constituída por consciente e inconsciente interligados e mutuamente influenciados, da mesma forma como acontece no símbolo do Tai Chi, em que dois peixes - um branco e um preto - interagem dentro de um círculo: o Tao.

No fim da palestra, uma atmosfera de entusiasmo envolvia a todos, como se os que estavam ali presentes tivessem participado de algo muito raro, profundo e valioso. Hoje penso que o silêncio inicial entre Dra. Nise e Mestre Liu frutificou em palavras, experiências e, sobretudo, conhecimento essencial do ser humano, para além de sua origem, cultura e modo de pensar.

Aconteceu ainda um terceiro encontro entre eles no ano seguinte. Foi uma ocasião muito especial: um chá informal na casa da Dra. Nise. Naquela tarde de domingo havia alegria no ar e muitas risadas foram ouvidas. O mestre contou, então, que desejava chegar aos cem anos e perguntou se a doutora compartilhava desse seu desejo. Frente à resposta afirmativa, Mestre Liu entusiasmou-se e contou sobre diversas técnicas taoistas voltadas ao prolongamento da vida. Ele sugeriu uma dessas técnicas à Dra. Nise: ser massageada na barriga, com frequência, por uma criança com idade entre cinco e sete anos. Mestre Liu explicou que a energia das crianças é inexaurível porque, ao ser consumida, é imediatamente reposta pelo Céu. Dra. Nise riu, aceitou a sugestão e contou que havia sofrido com algumas crises respiratórias que só passaram depois que ela pôs uma tartaruga embaixo de sua cama. O mestre também riu e disse que a tartaruga é um símbolo de vida longa para os taoistas, porque ela é lenta e respira profundamente.

Foi nesse clima que ambos se despediram, em meio a promessas de reverem-se em breve, o que não voltou a acontecer. Um ano depois, em outubro de 1999, Dra. Nise da Silveira faleceu e, em dezembro de 2000, também Mestre Liu nos deixou.

Considero ambos meus mestres, no sentido chinês da palavra: "os pais nos dão a vida, mas só os mestres sabem explicar o significado dela". Com eles aprendi a importância de uma vida plena, significativa e que inclua o amor ao próximo, a busca de um ideal, o trabalho criativo e o companheirismo com todos aqueles que nos cercam.

Dra. Nise foi uma verdadeira taoista, pela sua busca do conhecimento da totalidade (Tao), por seu trabalho apaixonado em defesa dos doentes mentais e dos animais, pelo ideal de construir um mundo melhor e mais justo (aspectos yang do Tao), pelo amor profundo que sentia pelo ser humano - às vezes um ser criativo, às vezes estúpido - e pela enorme empatia que nutria por seus pacientes (aspectos yin do Tao).

Para concluir, compartilho uma última história sobre ela. Ao nos despedirmos, no fim da exaustiva noite de lançamento de seu derradeiro livro "Gatos, a emoção de lidar" (SILVEIRA, 2016), Dra. Nise pediu-me que fosse à sua casa na manhã seguinte. Quando lá cheguei, ela me falou: "Agora quero escrever um livro sobre a minha história com a Dra. Von Franz", a quem Nise chamava de mestra. Dra. Nise contava com a minha ajuda para realizar esse seu projeto, eu me coloquei à disposição, espantado com tamanha determinação por parte dela. O destino, porém, não permitiu que esse trabalho viesse a ser concretizado: ele permaneceu como sua "Inacabada".

 

Referências

LAO-TZU. Tao-te king. São Paulo, SP: Pensamento, 2013.         [ Links ]

SILVEIRA, N. Gatos, a emoção de lidar. Rio de Janeiro, RJ: Léo Christiano, 2016.         [ Links ]

_____. Imagens do inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.         [ Links ]

_____. Jung: vida e obra. São Paulo, SP: Paz e Terra, 1997.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 10/03/2021
Revisão em: 12 /06/2021

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