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Junguiana

versión On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.1 São Paulo ene./jun. 2021

 

A atrevida e o abismo

 

 

Paulo V. Bloise

Médico psiquiatra. Analista Junguiano SBPA/IAAP Mestre em Psiquiatria pela Unifesp. Autor de vários livros, como “O Tao e a Psicologia” e “Saúde integral: A medicina do corpo, da mente e o papel da espiritualidade”.
email: <pvbloise@terra.com.br>

 

 

"Eu sou uma pessoa curiosa do abismo"! Com essas palavras, Nise da Silveira descreve-se no documentário "Posfácio: Imagens do inconsciente" de Leon Hirszman (1986). Logo no início do filme, a psiquiatra afirma: "do mesmo modo que uma encadernação ou um trabalho de agulha permite que você conheça certas coisas das pessoas [...] minha gesticulação deve estar dizendo muito aqui. Talvez mais do que eu estou conseguindo falar...". Esse trecho me remeteu diretamente à entrevista publicada no Psicopombo, realizada por Roberto Fernandes (1998), quando o fotógrafo Jonhnny Neto registrou detalhes tão expressivos das mãos de Nise - nodosas, ancestrais como raízes do abismo por ela transitado. Acredito que tanto o comentário de Nise a Leon Hirzman quanto a fotografia de Jonhnny, não são detalhes fortuitos, pois apontam para um conceito importante na obra da psiquiatra denominado "Emoção de lidar". Para desvendar a alma de seus pacientes (ou de uma entrevista?), Nise sugere observarmos não só o produto de um trabalho expressivo, mas também o entusiasmo e a emoção envolvida na criação. Esse insight, que ela teve ao observar pacientes nas oficinas de Terapia Ocupacional, foi um grande marco no trabalho que desenvolveu em seu Museu de Imagens do Inconsciente.

 

 

"Quem sabe por que a gente acha uma pessoa simpática ou antipática?", pergunccrante a entrevista à SBPA e avalia que para muitos, ela era vista como áspera ou até antipática. Bem, conhecendo Roberto Fernandes, é possível sentir a simpatia presente no encontro dos dois rebeldes, regado a chá, bolachas e admiração mútua a Espinosa. Em alguns momentos da conversa com Roberto, sua aspereza vem à tona, por exemplo em relação à psiquiatria e aos colegas. Para entendê-la melhor, devemos lembrar que os tratamentos aos transtornos mentais em meados do século vinte eram cruéis e pouco eficazes. Ninguém sustentaria, atualmente, tratar um esquizofrênico somente com pinturas, deixando os medicamentos de lado. Mas, se a abordagem farmacológica evoluiu muito nas últimas décadas, o aspecto trazido pela genialidade de Nise da Silveira, sua leitura psicodinâmica e humanizada, continua bem ausente nos confins do Brasil.

Assisti ao documentário "Posfácio..." e, em seguida, reli a entrevista. Coisa curiosa. Foi como se as palavras impressas chegassem a mim através da sua voz, tão marcante nas filmagens. Roberto indaga sobre a possibilidade de continuarmos no mundo após a morte e eu escutei nesse ouvido psíquico, uma voz grave, derramando palavras, uma a uma, lentamente: - Uma parte pode acabar, a outra, conforme a pessoa, pode se prolongar!

Não sei em que Nise se baseou para afirmar isso. Mas, no que toca a ela, sinto que segue entre nós, mais viva do que nunca, influenciando nossa cultura e inspirando novas gerações.

 

Referências

FERNANDES, R. Entrevista com uma psiquiatra rebelde. Psicopombo, abr./maio 1998.         [ Links ]

HIRSZMAN, L. (Dir.). Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Embrafilme, 1986.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 16/05/2021
Revisão em: 18/06/2021

 

 

Entrevista com uma psiquiatra rebelde

Roberto Fernandes e Jonhnny Neto entrevistam Drª Nise da Silveira para o Psicopombo

Drª Nise da Silveira é a pioneira na compreensão da psicodinâmica das psicoses e inovadora no tratamento através da pintura e de outros recursos expressivos.

Incansável defensora da cidadania e dos cuidados humanitários aos portadores de doenças mentais, fundou em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente. Autora de vários livros que são clássicos da psicologia profunda, formou o grupo de estudos C. G. Jung do qual é presidente desde 1968 até hoje.

Alagoana, nascida sob o signo de aquário no ano de 1905, formou-se na Faculdade de Medicina da Bahia. Ingressou no serviço de Assistência a Psicopatias, onde dirigiu de 1946 a 1974, segundo suas palavras, 'a modesta seção terapêutica ocupacional' do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro.

A psiquiatra foi entrevistada em seu apartamento no Rio de Janeiro, no verão de 1996, pelo psicólogo Roberto Fernandes e pelo fotógrafo Jonhnny Neto. Num clima de afeto e descontração, com direito a chá e bolachas, os entrevistadores presentearam a nossa célebre junguiana com o livro "Arquétipos" do fotógrafo Jonhnny.

No começo da entrevista, a Dra Nise folheava o livro de Jonhnny...

JONHNNY - Quem fez a introdução do meu livro foi o Inácio de Loyola Brandão.

DRª NISE - Eu conheço um santo muito pouco simpático com esse nome, o Santo Inácio de Loyola.

ROBERTO - Por que pouco simpático?

DRª NISE - Quem sabe por que a gente acha uma pessoa simpática ou antipática? São João da Cruz, simpático. São Francisco de Assis, simpático. Santo Inácio Loyola, antipático (risos). Simpatia é uma coisa única, a antipatia também tem seu direito. Se a simpatia também tem uma grande força expressiva a antipatia também tem importância, pois se expressa antipaticamente... Não sei se vocês me põem no rol dos simpáticos ou dos antipáticos... Muita gente me põe no rol dos antipáticos... Eu sou áspera.

JONHNNY - Realista, né?

DRª NISE - Não creio que tanto.

ROBERTO - Por falar em livro, o seu livro "Imagens do Inconsciente" é maravilhoso!

DRª NISE - Todo escrito a partir de casos clínicos. É curioso porque depois eu escrevi o "Mundo das Imagens". Entretanto, o primeiro livro, "Imagens do Inconsciente", tocou mais as pessoas. Recentemente, lancei um pequenino que eu gosto muito, chamado "As Cartas a Espinosa", filósofo que viveu no final do século XVII. São cartas ora de afeto, ora de briga.

ROBERTO - Sou encantado com Espinosa.

DRª NISE - Eu também sou encantada pelo Espinosa.

ROBERTO - É bom sentir a vida através da lente do Espinosa, onde o homem, a natureza e Deus são uma coisa só.

DRª NISE - Talvez o Senhor goste do meu Espinosa, da minha visão do Espinosa, ele não separa nem a vida da morte.

ROBERTO - Como? Seria a visão de que o ser continua no mundo depois da morte individual?

DRª NISE - Uma parte pode se acabar, a outra, conforme a pessoa, pode se prolongar.

O ENCONTRO COM A PSIQUIATRIA

ROBERTO - Como foi seu início na psiquiatria?

DRª NISE - Na época de Getúlio, quando voltei do exílio, reintegrei-me como assistente de um psiquiatra. Ele queria que eu fosse aprender a aplicar eletrochoque. Na minha ausência eles "inventaram" essas torturas... Ele aplicou um eletrochoque e depois falou: "Agora você!" e eu disse não. Neguei-me absolutamente. Foi assim, com essa pequena história, que eu comecei o livro que estou escrevendo atualmente: "A Psiquiatra Rebelde".

ROBERTO - Os psiquiatras geralmente falam que surtos psicóticos frequentes fragilizam progressivamente o ego. Qual a sua opinião?

DRª NISE - Os psiquiatras são uns idiotas e habitualmente muito fracos.

ROBERTO - A senhora acha que eles querem controlar?

DRª NISE - Tanto quanto podem! Eu solto tanto quanto posso.

JONHNNY - Ah, que coisa linda!

ROBERTO - A senhora se interessa pela antipsiquiatria do Franco Baságlia?

DRª NISE - Chamam isto de antipsiquiatria, mas, pra mim, antipsiquiatria é esta que está por aí, com esses remédios horrorosos, isto é que é a antipsiquiatria.

ROBERTO - A senhora é a favor de medicar os surtos psicóticos?

DRª NISE - Não!!!

ROBERTO - O que a senhora aconselha em uma crise psicótica aguda?

DRª NISE - Que pinte o que está sentindo no seu surto. As imagens são expressões dos conteúdos internos, portanto, a pintura pode ser um escafandro na viagem pelo inconsciente.

ROBERTO - A senhora está falando dos conteúdos arquetípicos!

DRª NISE - Os arquétipos estão lá, no fundo do inconsciente. Geralmente são reativados pelas pressões, pelas emoções, e vêm ao indivíduo em formas míticas.

ROBERTO - Qual a melhor forma para se aprender Jung?

DRª NISE - A melhor forma para se aprender Jung é no Museu de Imagens do Inconsciente.

ROBERTO - E aquele famoso conselho dado por Jung, durante sua visita a ele, para que estudasse mitologia? Foi um bom conselho?

DRª NISE - A visita que ele me concedeu foi vivida com muita intensidade. Estávamos sentados, um em frente ao outro, sozinhos. Eu dizia da minha insatisfação com a psiquiatria, e ele fumando cachimbo calado... Eu comecei a ficar meio encabulada, não sei se vocês paulistas conhecem esta palavra, encabulada... Ele me perguntou: "Você estuda mitologia?". "Não, professor", eu respondi. "A mitologia que eu conheço é através de episódios da literatura, mas estudos propriamente de mitologia eu nunca fiz". Então ele me perguntou: "Como é que você pode pensar e entender os delírios dos seus doentes ou as imagens que eles produzem?". Eu havia feito uma exposição belíssima, em Zurique, mas muita coisa me faltava aprender... Como eu poderia entender aquelas imagens? Então, comecei a estudar mitologia para trabalhar mais profundamente.

ROBERTO - Foi emocionante esse seu encontro com ele?

DRª NISE - Naturalmente! Ele próprio, a figura de Jung emocionava pela simplicidade. Mas, como ele percebeu que eu estava emocionada, me perguntou para a minha maior surpresa: "Que fantasias você fez a meu respeito?" (risos).

ROBERTO - Ele perguntou assim? E o que você respondeu? Ou esse assunto é do tipo "só às paredes confesso"?

DRª NISE - Eu fiquei calada, e continuei fazendo fantasias. Deus me livre de parar de fazer fantasias...

Nesse momento, nossa estimada entrevistada nos perguntou: "E vocês quando voltam para São Paulo"?

ROBERTO - Hoje. Viemos ao Rio para bater esse papo com você.

DRª NISE - Vocês são malucos, uma qualidade simpática (risos).

Para finalizar, Drª Nise nos comunicou que estava com uma exposição no Paço Imperial do Rio, denominada: "Os múltiplos estados do Ser" e nos convidou a participar do seu grupo de estudos semanal que, além de gratuito, conta, até, com participantes de outros estados.

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