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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.1 São Paulo jan./jun. 2021

 

Pinturas de um paciente psiquiátrico: os inumeráveis estados do ser

 

Pinturas de un paciente psiquiátrico: los innumerables estados del ser

 

 

Sergio Luiz Alécio FilhoI; Regina Helena Lima CaldanaII

IPsicólogo pela Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). Candidato a analista pelo Instituto de Psicologia Analítica de Campinas (IPAC), ligado à Associação Junguiana do Brasil (AJB) e ao Instituto C.G. Jung International Association for Analytical Psychology (IAAP). Foi estagiário do Museu de Imagens do Inconsciente do Rio de Janeiro. email: <sergio_aleciofilho@yahoo.com.br>
IIPsicóloga pela Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). Mestre e doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto (FFCLRP/USP). email: <rhlcalda@ffclrp.usp.br>

 

 


RESUMO

A arte é uma maneira de comunicação e expressão simbólica e um instrumento para a compreensão do ser humano. O objetivo deste artigo consiste em analisar a produção plástica de um paciente psiquiátrico, buscando entender esse material como expressão de sua dinâmica psíquica. Foi realizado um estudo de caso com um frequentador de um centro de convivência de um hospital psiquiátrico do interior paulista. Algumas telas foram escolhidas para o estudo após a observação participante no ateliê. Para auxiliar na análise das pinturas, foi realizada entrevista com o participante, focalizando sua história de vida e comentários a respeito das telas. Percebeu-se que através da pintura houve a despotencialização de conteúdos ameaçadores da psique do cliente. Pode-se observar também que a pintura proporcionou um espaço expressivo para o participante lidar com fantasias do seu mundo interno.

Palavras-chave: arte, pintura, dinâmica psíquica, despotencialização.


RESUMEN

El arte es una forma de comunicación y expresión simbólica y un instrumento para la comprensión del ser humano. El objetivo de este artículo es analizar la producción plástica de un paciente psiquiátrico, buscando entender este material como expresión de su dinámica psíquica. Se realizó un estudio de caso con un visitante de un centro comunitario en un hospital psiquiátrico del interior de São Paulo. Se eligieron algunas pantallas para el estudio después de la observación participante en el estudio. Para ayudar en el análisis de las pinturas, se realizó una entrevista con el participante, enfocándose en su historia de vida y comentarios sobre los lienzos. Se notó que a través de la pintura había una pérdida de potencial del contenido amenazante de la psique del cliente. También se puede observar que la pintura brindó un espacio expresivo para que el participante afrontara fantasías de su mundo interno.

Palabras clave: arte, pintura, dinámica psíquica, despotencialización.


 

 

Introdução

"Nós podemos dizer: a pintura como método de pesquisa, a pintura como método de tratamento" (Nise da Silveira, informação verbal)1.

A arte é uma maneira de comunicação e expressão simbólica e um importante instrumento para a compreensão do ser humano e para o entendimento de seus conflitos e potenciais.

A expressão livre, através do desenho, da pintura, da modelagem, na área da Psiquiatria e da Psicologia, tornou-se de interesse científico, entre outros, pelo seu potencial como meio de acesso menos difícil ao mundo interno do paciente psiquiátrico (SILVEIRA, 1982).

Atualmente, o uso dos recursos expressivos é utilizado de forma terapêutica nos centros psiquiátricos. Em um passado recente, a Psiquiatria Clássica pouco se interessava pela riqueza do mundo interno dos pacientes com transtornos mentais. O tratamento incorporava métodos violentos, como o eletrochoque de maneira punitiva, que afetava cada vez mais a autoimagem do paciente, além de piorar o transtorno e danificar sua criatividade. Utilizava-se ainda um excesso de psicotrópicos, que deixava os pacientes amortecidos emocionalmente, com a consequente redução da capacidade criativa.

Esta era a visão da Psiquiatria Clássica centrada apenas na doença dos indivíduos e que considerava as causas orgânicas como a origem de qualquer disfunção do organismo. Tal abordagem começou a ser criticada como sendo reducionista, pois deixa de lado os fatores emocionais que poderiam estar envolvidos nos transtornos mentais. Esta concepção se encontra bem definida na seguinte afirmação de Capra (1988), que defende uma visão integrada do ser humano: "Os psiquiatras em vez de tentarem compreender as dimensões psicológicas da doença mental, concentram seus esforços na descoberta de causas orgânicas para todas as perturbações mentais" (p. 123).

Deste modo, o paciente era rotulado e internado sem a busca das causas que o levaram a desenvolver seu quadro, como, por exemplo, problemas afetivos, familiares, econômicos, que são fatores interpessoais e socioculturais envolvidos no desenvolvimento da doença. Além disso, a doença era tratada como sintoma, e não como passível de uma revelação de significado na linha de vida da pessoa, algo cuja possibilidade Jung, particularmente, mostrou com clareza em se tratando de quadros psicóticos.

Esta visão foi se transformando paulatinamente e, no Brasil, especialmente no final do século XX, com a luta antimanicomial, tomou novo impulso. Este movimento propõe um tratamento humanizado, eficaz e preferencialmente sem internação integral, pois, quando internado, o paciente perde sua autonomia e seus direitos como cidadão. Entretanto, a internação é recomendada em casos de absoluta necessidade e com consentimento do paciente e sua família. O principal lema da luta antimanicomial é tratar e não excluir socialmente o indivíduo, buscando sempre uma possível ressocialização.

O psiquiatra Paulo Amarante (1999) afirma que o objetivo da reforma psiquiátrica "[...] não é somente a humanização das relações entre os sujeitos, a sociedade e as instituições [...] o objetivo que pretendemos é o de construir um novo lugar social para a loucura, para a diferença, a diversidade, a divergência" (p. 49). Segundo Bastos (1993), esse novo lugar social pode ser encontrado se a loucura for ressignificada socialmente, sendo vista por outros ângulos. Nesse sentido, é importante a consideração de que, no mundo dos ditos "loucos", impera a imaginação e seu espírito move-se no meio de contradições e incoerências, que só surgem como tal ao homem comum. Assim, o conhecimento sobre a loucura tende a se ampliar através do estudo dessas divagações, já que as alucinações e as ilusões são materiais ricos simbolicamente e podem ser aproveitados, criando possibilidades de ampliação para o psiquismo humano (BASTOS, 1993).

Em contraposição à Psiquiatria Clássica, o método terapêutico desenvolvido pela Dra. Nise da Silveira (Maceió, 15 de fevereiro de 1905 - Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1999), psiquiatra alagoana e pioneira das ideias de Jung no Brasil, utilizando pintura, desenho, colagem, modelagem, música, trabalhos artesanais, mostra-se uma alternativa extremamente útil, com possibilidades afinadas às propostas da reforma psiquiátrica.

Paul Klee, pintor contemporâneo, afirma que "a pintura permite que o invisível se torne visível" (KLEE apud SILVEIRA, 1982, p. 39). Tal frase faz referência à presença do inconsciente nas telas, o que é de importância para um pesquisador e um terapeuta que, na análise de pinturas, pode observar o conteúdo do inconsciente presente, o que revela o estado da psique e o funcionamento da dinâmica psíquica de quem pinta. Além disso, deve-se estar atento para fatores sociais e fenômenos intrapsíquicos interligados, formadores do contexto das vivências experienciadas pelos pacientes e tornados visíveis através das imagens pintadas.

Nise da Silveira trabalhou no sentido das expressões livres como meio de instrumentalizar o desenvolvimento humano. Através de sua prática com os pacientes psiquiátricos, ela verificou uma melhora nas condições gerais, inclusive nos relacionamentos interpessoais de seus clientes (SILVEIRA, 1992). A partir dessas ideias, ela foi uma das pioneiras a desenvolver o método de utilizar recursos expressivos como função terapêutica no Brasil, nas suas atividades no hospital psiquiátrico D. Pedro I, no Engenho de Dentro. Fundou a Casa das Palmeiras e o Museu Imagens do Inconsciente, onde se preservam as produções artísticas dos clientes e se abriga o maior acervo mundial de obras de pacientes psiquiátricos.

Diferentemente da prática psiquiátrica tradicional, Nise via os clientes como seres em desenvolvimento e criticava denominações dadas ao esquizofrênico, como embotamento afetivo, que até hoje se encontra nos manuais de psiquiatria. Ela se contrapunha até mesmo à palavra "paciente" para se referir aos internos dos hospitais, e preferia o termo "cliente" para evitar o sentido de passividade. Empiricamente, ela observou nos ateliês de pintura que os esquizofrênicos demonstravam afeto nas atividades propostas e nos relacionamentos com os monitores das oficinas. Percebeu que é no nível afetivo que pode ocorrer a transformação do indivíduo e recorreu a um termo da química, dizendo que o "afeto é catalizador do desenvolvimento humano". Durante sua prática, referiu-se ao seu método de trabalho como "a emoção de lidar" e preferiu trocar a denominação "esquizofrenia" por "inumeráveis estados do ser". Nise afirmava que "o melhor remédio é o contato humano, o afeto nas relações, o que cura é a alegria, a falta de preconceito" (SILVEIRA,1992).

Segundo Nise (SILVEIRA, 1992), "a arte virá retirar as coisas desse redemoinho perturbador" da psique do paciente. Este expressa, nas diversas formas de arte, fragmentos do drama que está vivendo desordenadamente, assim dá forma às suas emoções e despotencializa figuras ameaçadoras que o atormentam. Por meio desse processo de abstração, o homem procura um ponto de tranquilidade e refúgio.

Nise, como pioneira da Psicologia Analítica no Brasil, seguiu as orientações de Jung e passou a observar nas obras de seus clientes não apenas conteúdos da história pessoal, carregada de densidade, desejos, decepções e esperanças, mas também mitologemas referentes ao inconsciente coletivo. Ela identificou a presença de temas míticos e um substrato coletivo comum a todos os homens que, nas palavras de Jung, é fruto de

frequente reversão, na esquizofrenia, a formas arcaicas de representação, que me fez primeiro pensar na existência de um inconsciente não apenas constituído de elementos originariamente conscientes, que tivessem sido perdidos, porém possuindo um estrato mais profundo, de caráter universal, estruturado por conteúdos tais como os motivos mitológicos da imaginação de todos os homens (JUNG apud SILVEIRA, 1982, p. 97).

Jung considerou que os delírios, alucinações, neologismos e gestos na esquizofrenia não são vazios de sentido. Intensas cargas afetivas ligadas às pulsões do inconsciente desestruturariam o ego, tomando posse do consciente (JUNG, 1964). Neste sentido, percebe-se a contraposição das ideias de Jung às da Psiquiatria Tradicional.

Portanto, de acordo com seu ponto de vista, as pinturas dos pacientes psiquiátricos mostram-se como ferramentas com fins terapêutico, científico e estético também, pois esses indivíduos se mostram como artistas em potencial. Além disso, suas atividades expressivas e criadoras, do mesmo modo que mostram o funcionamento da dinâmica psíquica do paciente, poderão também lhes abrir novas perspectivas de aceitação social.

A respeito dos clientes que pintam nos hospitais psiquiátricos, Jung formulou uma ideia que é um convite à reflexão sobre o paciente com transtorno mental, quando diz que não importa que seus autores morem em uma instituição psiquiátrica, pois, mergulhados na profundidade do inconsciente, na porção da psique coletiva, eles participam também, mesmo que inconscientemente, da vida psíquica de todos os seres humanos (JUNG, 1964).

 

Objetivo e método

O objetivo deste trabalho foi analisar, nas produções plásticas de um paciente psiquiátrico, a manifestação de aspectos de sua personalidade através de conteúdos pessoais e/ou universais, partilhados por todos os homens, como os mitos e os arquétipos trazidos pelo inconsciente coletivo, considerando-se que tais aspectos puderam auxiliar na clarificação da dinâmica psíquica do cliente.

Esta pesquisa de caráter qualitativo foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e consistiu na análise de um conjunto de telas de um frequentador das oficinas do Centro de Convivência de um hospital psiquiátrico do interior paulista.

O procedimento incluiu uma fase inicial de observação participante das oficinas do Centro de Convivência, a partir da qual foi selecionado o participante do estudo, de acordo com sua assiduidade e disponibilidade. As observações foram registradas em um diário de campo e a pesquisa inicial teve uma duração de três anos. Entretanto, outros encontros esporádicos para acompanhar a produção de novas pinturas e visitas à casa de João continuaram acontecendo ao longo de quinze anos.

Como fonte de dados complementares, foram realizadas entrevistas com o participante: a inicial, de acordo com o modelo denominado Histórico de Vida Temático (CALDANA, 1998), segundo o qual, em um primeiro momento, solicita-se o relato livre da história de vida do entrevistado e, numa segunda etapa, investigam-se questões específicas do interesse do pesquisador através de tópicos semiestruturados, que incluíram um pedido de descrição e comentários a respeito das telas.

Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, tanto na fase de observação participante no centro de convivência como durante as entrevistas em que se falava sobre as telas, foi dada atenção à relação estabelecida entre o pesquisador e o participante. Foram seguidos os ensinamentos da Dra. Nise da Silveira de se manter uma postura acolhedora, de aceitação incondicional e de não julgamento das produções. Não foi feita nenhuma avaliação estética e nenhuma interpretação psicológica foi transmitida ao autor, como aprendido em estágio no Museu de Imagem do Inconsciente, o que auxiliou no desenvolvimento dessa pesquisa.

Um modo de análise das telas é o estudo de uma série de imagens. As pinturas de um mesmo autor, tal como os sonhos, se examinadas em série, revelam a repetição de motivos e a existência de uma continuidade no fluxo de imagens do inconsciente (SILVEIRA, 1992). Particularmente na esquizofrenia há a emergência de conteúdos arcaicos que, segundo Erich Fromm, traduzem uma linguagem que não é morta, mas "possuidora de sua própria gramática e sintaxe" (FROMM apud SILVEIRA, 1992, p. 94).

O participante pintou mais de 50 obras ao longo de sua vida, tanto no hospital quanto em sua casa. Para este estudo foram selecionadas quatro telas apresentadas na ordem cronológica de sua produção: 1) Desabafo, 2) Casal e a marinha, 3) Joana D'Arc e 4) O céu verde. As duas primeiras foram pintadas na oficina do centro de convivência do hospital em meados de 2003 e as últimas João pintou em casa, sendo que "Joana D'Arc" foi pintada em 2003 e "O céu verde" no ano de 2017. Elas foram escolhidas por conter maior representação de conteúdos simbólicos e arquetípicos.

O enfoque de análise das obras foi o aspecto simbólico. Assim, buscou-se os sentidos e os significados dos símbolos presentes nas telas. Seguindo os passos de Nise da Silveira de análise das telas através de uma série de imagens produzidas pelo participante, buscou-se identificar a repetição de motivos e a existência de uma continuidade no fluxo de imagens do inconsciente (SILVEIRA, 1992).

As análises qualitativas da entrevista e das observações tinham como objetivo a identificação de elementos que auxiliaram a busca do sentido ao universo simbólico expresso nas pinturas, considerando-se que a identificação de conflitos enfrentados ao longo da história de vida seria importante para a análise das expressões do cliente.

 

O autor das telas

João (nome fictício), solteiro, tem 58 anos e é natural do interior do estado de São Paulo. Ele é o caçula de uma família de quatro filhos, sua mãe era dona de casa e seu pai, pedreiro. Relata que nasceu de um parto prematuro aos sete meses, "dentro de uma bola, uma esfera, que não era a placenta, e que lhe conferia uma inteligência superior aos outros e seria um mandado de Deus (sic)".

De origem humilde, considera que sua infância foi boa, descreve-se como extrovertido e alegre: brincava com os amigos, aprontava travessuras na escola e "mexia" com as meninas.

Segundo o participante, na sua trajetória escolar, teria repetido três vezes a primeira série "porque era muito bagunceiro"; a professora o reprovou "apesar de possuir notas para passar de ano". A inteligência é uma referência constante: sempre teria sido visto como inteligente pelos professores (principalmente pela professora de artes, que o considerava criativo, um artista); para familiares e amigos, seus trabalhos indicariam sua inteligência. João conta que já fazia pinturas e esculturas que eram admiradas pelos professores e familiares, inclusive a diretora da escola, que possuía uma escultura dele em sua sala.

João afirmou que na adolescência seus relacionamentos amorosos eram apenas platônicos e idealizados. Iniciou sua vida sexual com uma prostituta e, segundo ele, só se relacionava com "mulheres da vida".

Começou a trabalhar aos 17 anos como auxiliar administrativo em um hospital geral e permaneceu no emprego até os 24 anos quando teve seu primeiro surto psicótico. Devido a seu transtorno psiquiátrico foi aposentado por invalidez. Consta em seu prontuário o diagnóstico de esquizofrenia paranoide, com delírios religiosos, de grandeza e alucinações auditivas.

É interessante perceber que o primeiro surto ocorreu logo após dois eventos importantes na vida de João: uma desilusão amorosa e um abuso sexual. O primeiro ocorreu no trabalho, quando ele relatou que estava apaixonado pela sua chefe e supervisora que não correspondia às suas investidas amorosas. Apesar de todos os flertes, a relação "não deu certo porque ela era mais velha e mais rica que ele, era a chefe do trabalho". Ele ficou muito triste com esta situação e, quando isso aconteceu, ele "dormia pouco e sentia um vazio na cabeça".

Desiludido, relacionava-se apenas com prostitutas e relata que em uma ocasião foi abusado sexualmente por um travesti, quando imaginava que estava se relacionando intimamente com uma mulher. Tal fato deixou João confuso sobre sua sexualidade e abalado emocionalmente. Desde então, as internações foram frequentes e o participante afirma que já esteve internado mais de dez vezes.

No período em que houve a desilusão amorosa e o abuso, ele tentou suicídio por envenenamento e se autoagrediu com uma tesoura no peito: queria "enfiá-la no coração". Nessa ocasião, ficou internado por cerca de um mês no hospital psiquiátrico.

Aos 38 anos sofreu outro surto psiquiátrico quando teve pensamentos persecutórios de que o pai queria estuprá-lo, de que este estava com o demônio no corpo e que queria envenenar sua comida. Nesse episódio, chegou a ficar em torno de 20 dias sem se alimentar corretamente. A respeito de sua mãe, o participante afirmava que ela era uma pessoa muito boa, a reencarnação de Nossa Senhora de Fátima na Terra.

Aos 40 anos, João foi novamente internado devido a um surto de agressividade quando tentou esfaquear seu irmão, que é seu cuidador e curador, pois o teria confundido com um homem que estaria invadindo a casa. Nesse período, João tinha a crença de que era Deus e de que salvaria o mundo. Durante a internação chegou a afirmar que era mulher e que Deus o queria assim, estava arredio e acabou por agredir outro paciente dizendo que estava agredindo a Deus. O participante teve alta um mês depois de sua entrada no hospital.

Sua chegada ao centro de convivência do hospital psiquiátrico ocorreu em uma de suas internações: o médico descobriu sua relação com as artes, em especial a pintura, e o encaminhou para lá, onde se dedicou principalmente às oficinas de pintura. É importante ressaltar que este é o único local que João frequenta sozinho (ele não precisa do irmão para ir junto com ele). Para ele, a pintura é "um refúgio, um descanso, um lazer, uma ocupação" e até fonte de uma pequena renda. Atualmente ele tem pintado com mais frequência em sua própria casa.

Nas conversas com João, dois temas emergiram com força. O primeiro deles gira em torno da figura de Joana D'Arc, indicando uma relação peculiar com ela. Pintou Joana D'Arc em uma tela que ele mesmo fez e manteve em sua casa bem à frente de sua cama, em cima de um cavalete, denotando sua importância para ele.

Ele contou que se apaixonou por Joana quando assistiu a um filme sobre ela e percebeu que a história de ambos é parecida. Ele conta que os dois foram estuprados e ouvem vozes de Deus. A partir de então, João alimenta uma paixão platônica e idealizada com Joana D'Arc. Ela seria o grande amor de sua vida e estaria no céu à sua espera. Depois de sua morte, pretende se casar com ela, cuja mão pedirá a Deus. O participante diz que ela é uma santa, uma donzela, que consegue conversar com ela e receber suas mensagens através de sua mente, por telepatia. Além disso, ela o protegeria, como, por exemplo, num episódio em que quebrou o nariz numa briga e foi para o hospital. Ele não foi atendido, mas, após a noite passada em sua casa, levantou-se com o nariz curado, dizendo: "tenho certeza que foi ela que curou".

Nas entrevistas, João constantemente comentava algum feito seu, alguma invenção grandiosa ou poder excepcional. Ao fazer isso, retoma sempre o tema da sua inteligência: todas suas invenções ocorreram através de sua mente, muito inteligente, que recebe por telepatia mensagens de Deus.

Suas invenções incluiriam os discos voadores, "mais velozes que a velocidade da luz", com uma receita própria envolvendo plástico, borracha, madeira e eletricidade; uma máquina do rejuvenescimento, que teria o objetivo de fazê-lo voltar a ter 11 anos de idade para poder desposar Joana D'Arc com 8 anos. Também uma máquina para fazer alimentos transgênicos e outra que transforma negros em brancos. Além disso, ele afirma que através, de seu poder mental, consegue fazer uma distribuição de renda pela televisão.

 

Análise das telas

"Se houver alto grau de crispação do consciente, muitas vezes só as mãos são capazes de fantasia" (C. G. Jung)2.

De modo geral, as telas são representadas em tons fortes, vivos e coloridos. O próprio participante classifica sua obra como pertencente do estilo impressionista. Autodidata, aprendeu a pintar e desenhar através de livros de Monet, Renoir e Van Gogh. Essas características marcam também as quatro telas selecionadas (Desabafo, Casal e a Marinha, Joana D`Arc e O Céu Verde), cujas análises serão apresentadas a seguir.

 

Desabafo

De acordo com o participante, a tela representada na Figura 1 tem como tema o desabafo de uma angústia que "precisava por prá fora pintando gente". Neste sentido, pode-se entender a figura representada plasticamente da altura do peito para cima e em primeiro plano como representação do próprio pintor e, atrás, uma cena que pode representar o que está acontecendo no mundo intrapsíquico do autor.

 

 

Segundo João, ao fundo, há um teatro na Inglaterra, onde ocorre a apresentação da peça "Romeu e Julieta", de Shakespeare, e as pessoas à frente acabaram de assisti-la. Todas foram sozinhas e não há nenhum casal.

A respeito do teatro, juntamente com o título Desabafo, pode-se fazer uma associação com o fenômeno da catarse, expressa desde o teatro grego. De acordo com a descrição do quadro e o restante de imagens presentes, faz pensar no significado dos aspectos femininos e masculinos para o participante, especificamente, na relação entre o homem e a mulher e os obstáculos para que esse encontro ocorra.

Há um destaque para as figuras femininas, que estão em maior número e são retratadas com maior riqueza de detalhes. Há dois homens, sendo que um não possui braços visíveis e um outro está com uma mão estendida, como se estivesse à espera de algo. O primeiro, sem braços, pode representar a dificuldade de contato com o outro, a passividade, a impossibilidade de ação e de realização de tarefas. O segundo homem tem tamanho menor, o que pode indicar uma fragilidade em relação às mulheres, que são maiores e retratadas com mais detalhes. Além disso, pode-se pensar em um homem rejeitado, já que está com uma mão estendida à espera e a mulher de verde à sua frente está de costas, de modo a não atender seu gesto.

Dentre as mulheres, destaca-se a presença de uma morena, uma loira e uma ruiva, um motivo recorrente na pintura de João. Nesta tela, das três imagens do feminino, a que se destaca é a figura central, morena, de vestido roxo, segurando um leque e com uma expressão bravia. Essa imagem pode representar aspectos primitivos e sombrios de um feminino agressivo e violento, que envolvem um sentido não acolhedor, uma atitude desafiadora e autoritária, e pode significar uma ameaça ao participante.

Há também uma mulher loira, de vestido verde e longo, segurando uma bolsa, e que, como já foi dito, está de costas para um homem que espera um contato com uma mão estendida: segue-se assim o aspecto de um feminino que rejeita e não acolhe o masculino.

Uma outra figura feminina parece estar chegando da direita com o braço estendido (em oposição ao homem do outro lado da imagem) como uma possível aceitação que poderia estar por surgir ou até mesmo um potencial para o possível encontro entre eles.

A última figura feminina é a ruiva, que aparece representada como uma adolescente, com um laço na cabeça, uma saia rodada na altura dos joelhos e um xale encobrindo seu tronco e braços. Pode-se pensar nessa figura em seu aspecto feminino passivo e não acolhedor, pois não possui braços aparentes.

De acordo com Furth (2004), durante a análise de uma produção plástica, deve-se estar atento aos "obstáculos" que podem existir para o encontro de imagens representadas. Nesta tela, percebe-se que há um homem com uma mão estendida no canto esquerdo e uma mulher oferecendo um chapéu, na porção direita da tela. Entre eles, há um certo distanciamento e algumas figuras, já citadas, que podem estar impossibilitando o encontro do masculino com o feminino. Paralelamente à peça Romeu e Julieta, em que as duas famílias são obstáculos, nesta pintura, pode-se perceber que os "obstáculos" seriam, principalmente, a figura de uma mulher brava e a falta de recursos de contato e ação por parte do homem, expressa na ausência de braços aparentes. É válido lembrar que o participante já tentou suicídio por envenenamento após uma desilusão amorosa, justamente o desfecho da peça de Shakespeare.

Neste sentido, vê-se a representação da figura masculina de modo passivo e frágil e a da figura feminina no aspecto negativo da anima do participante, através de uma imagem autoritária, arredia e não acolhedora.

Fazendo um paralelo com a história de vida de João, ele se identificaria com o homem "sem braço", impossibilitado de um encontro com uma mulher: em seus relacionamentos não acontecia de fato um encontro, pois as mulheres com quem se relacionou, segundo ele, ou não correspondiam a seu amor ou o traíram. Exemplo disso é uma antiga chefe por quem João era apaixonado, a quem via de forma idealizada, platônica e com quem não se sentia capaz de se relacionar, pois ela era "rica e ele apenas um funcionário pobre". Por fim, percebe-se o quanto esse tema é atual para o pintor na sua frase: "O teatro é antigo, mas as pessoas não, é dessa época (sic)". A referência à antiguidade do teatro pode remeter às estruturas psicológicas de João, no sentido de que a representação arquitetônica possa ter um paralelo com sua estrutura de personalidade. Já as pessoas dessa época, por serem figuras humanas, podem estar relacionadas aos seus complexos de tonalidade afetiva.

 

O Casal e a Marinha

A obra (Figura 2) é organizada em perspectiva. Um casal aparece em primeiro plano e ao fundo barcos, um pescador e prédios. Os detalhes dessa tela estão principalmente na vestimenta do casal, nos chapéus, no terno e no vestido longo.

 

 

João afirmou que criou este quadro pois gosta muito do mar. Retratou um casal que aparece em destaque no canto esquerdo e que foi passear na praia. Novamente o tema do masculino e feminino é central e, desta vez, surge como um casal cujo encontro ocorre de fato.

Esta imagem do casal que passeia na areia da praia transmite a ideia da realização de um desejo e de uma fantasia do participante. Como se este casal, que, segundo ele, está na França, fosse a personificação do casal formado por ele e Joana D'Arc.

Sobre a representação do feminino e masculino, percebe-se que a base dos dois não aparece, ou seja, os pés. Os pés do homem parecem que estão escondidos na areia e os da mulher pelo vestido. Neste sentido, principalmente em relação à mulher, percebe-se que sua localização e apoio não são satisfatórios, dando uma impressão de estar "torta". Assim, simbolicamente, pode-se pensar em uma falta de sustentação psíquica ou de estruturação egoica.

O amarelo presente no teatro da tela Desabafo está também aqui nas manchas disformes da água e denotam a mesma estrutura inconsciente, só que mais diluída. A mulher de cabelo preto lembra a morena com o chapéu estendido na mão da pintura anterior. Agora o encontro já está acontecendo, há correspondência, ainda que rudimentar, não mais a rejeição.

Outro aspecto interessante que surge é o formato do mar: de acordo com a perspectiva com que se olha a tela, pode-se perceber um peixe grande com barbatanas (barcos) emergindo da água. O recuo da água na areia faz um formato similar a uma boca que está prestes a engolir o pescador. O ponto negro, um barco longínquo, pode representar o olho do grande peixe e uma vela vermelha de um barco assemelha-se a uma língua.

A representação inconsciente na pintura de um grande peixe do mar em movimento de abocanhar um pescador simboliza a invasão do inconsciente ameaçando o ego consciente. Aqui há um paralelo com o tema mítico do dragão-baleia, que a Dra. Nise da Silveira (1982) também observou no cliente Olívio Fidélis, que fez uma tela com o mesmo motivo. Segundo ela, em momentos que o sujeito está sob impacto de afetos intensos, o inconsciente ativa forças arquetípicas que podem tragar o ego, constelando monstros devoradores que ameaçam o indivíduo (SILVEIRA, 1992).

Jung, em seu livro "A energia psíquica" (JUNG, 1987), explora o tema do dragão-baleia que, segundo ele, retrata o princípio da progressão e regressão da libido. Se o herói é engolido no ventre do monstro marinho, isto significa o alheamento do indivíduo em relação ao mundo exterior, em movimento regressivo de sua libido. Pode-se fazer um paralelo com um surto psicótico de João, quando seus delírios e alucinações ficam mais evidentes e seu ego fica cindido da realidade.

Porém, Jung relata que esta travessia noturna no mar também pode significar um mergulho no mundo interior da psique. O ato de dominar o monstro a partir de dentro pode representar um esforço do indivíduo em se adaptar ao seu mundo interior (JUNG, 1987). O desafio está em realizar esse mergulho com um escafandro de mergulhador, como Nise sugeria para que o sujeito não seja tragado pelo inconsciente.

 

Joana D'Arc

A tela retratada na Figura 3 é reconhecida pelo participante como sua preferida e mais importante. Esta obra se encontrava em um cavalete ao pé da cama de João que dizia que ela estava ali para protegê-lo. A obra é muito significativa pois foi o próprio autor que confeccionou o quadro: pregou um lençol em uma madeira e passou várias mãos de cola até chegar em uma textura próxima de uma lona branca de tela e depois pintou a imagem3. Quando João fala desse quadro, em especial em relação à figura de Joana D'Arc, percebe-se o afeto que ele tem por esta imagem.

 

 

João afirma que Joana D'Arc é seu grande amor e que, assim que morrer, pedirá a mão dela para Deus e se casarão. Ele até pintou a face da amada em sua calça como forma de demonstrar todo seu amor.

No quadro, o participante diz que pintou uma aura em torno da cabeça de Joana criança para indicar sua elevação e iluminação. Este sentido de iluminação também está expresso na cor branca de sua vestimenta que, simbolicamente, significa pureza e candura.

De modo geral, a pintura é bem estruturada e organizada. Possui um assoalho detalhado, dando sustentação e base para a figura humana central. O assoalho tem flores como detalhe. Há também um vaso de flor vermelhas na mesa em primeiro plano. As flores representam a presença do elemento feminino. O vermelho das pétalas é símbolo da paixão e expressa o sentimento do participante por Joana D'Arc. O quadro ao fundo em amarelo, remete ao teatro (Desabafo) e tem também um sol, representação da consciência.

O pintor descreve que quis representar Joana D'Arc descendo uma escada diretamente da sua morada no céu, como uma figura imaculada, que chega ao seu encontro para salvá-lo e protegê-lo. Afirma que será feliz quando se casar com Joana e estiver longe da Terra, palco de seus sofrimentos. A cor da escada é roxa, símbolo da espiritualidade, indicando que o contato do participante com Joana é sagrado. Joana desce as escadas do céu e se humaniza ao fazê-lo. Traz, assim, a possibilidade do encontro entre masculino e feminino na terra, na vida real.

Deste modo, Joana D'Arc assume o papel de heroína na vida de João, assim como historicamente ela salvou e libertou a França do inimigo inglês. O teatro da pintura Desabafo era inglês e, provavelmente, representa sua estrutura psicótica. Livrá-lo dos ingleses seria livrá-lo de seu aprisionamento psicótico. Esta personificação do arquétipo do herói e do mártir foi constelada como uma tentativa de resgatá-lo do turbilhão de imagens ameaçadoras do inconsciente que assola quem tem uma estrutura psicótica.

A figura de Joana D'Arc é um outro polo das imagens do feminino surgidas nas pinturas de João. Enquanto havia em outras telas mulheres provenientes "da rua", com vestes sedutoras, aparência bravia e autoritária, nesta surge a heroína em um aspecto de iluminação, proteção e pureza. A impressão é que esta imagem arquetípica representa um aspecto do Self e do arquétipo da criança divina, já que para João a imagem de Joana D´Arc auxilia em sua organização e tem um efeito de renovação em sua energia psíquica, promovendo mais motivação e criatividade. Na perspectiva junguiana, é por meio da constelação do arquétipo da criança divina que há a possibilidade para a mudança futura na personalidade do indivíduo, sendo a "criança" um símbolo que traz a experiência do novo e funciona como um mediador, portador de cura, isto é, um reparador que traz maior integração (JUNG, 1976).

 

O Céu Verde

Esta obra (Figura 4) foi pintada 14 anos após o quadro "O casal e a marinha" (Figura 2) e é nítida a semelhança entre as duas. João não teve a intenção de reeditar a antiga pintura e não tinha percebido a semelhança. Dessa vez ele diz que pintou uma mãe e um filho na praia, diferentemente do casal da pintura anterior. Há um barco verde abandonado ao centro da imagem e ainda é possível perceber a presença de um monstro marinho submerso que também não foi notado pelo pintor, o que revela que houve uma manifestação pictórica arquetípica sem influência do ego.

 

 

Uma pergunta que poderia ser feita é se, novamente, a constelação do tema mítico do dragão-baleia significaria um prenúncio de um novo surto e alheamento da consciência. Entretanto, após visitas realizadas em sua casa, percebeu-se que João não estava em um pré-surto, já que estava pintando em casa e conseguindo seguir com sua vida. Apesar do risco, é notável que houve uma despotencialização na psique do autor dessa figura ameaçadora em relação à pintura anterior com o mesmo motivo. Aqui o monstro marinho não está prestes a devorar alguém.

Outro aspecto que chama atenção é a presença de uma mãe com seu filho na praia. Segundo o autor, ela está cuidando do garoto e o levou para passear. Percebe-se uma relação afetuosa e de maternagem, talvez significando recursos internos do sujeito exercendo o papel de autocuidado.

Essa pintura é das mais recentes da série completa e, neste sentido, observa-se uma transformação da dinâmica psíquica. Ele tem conseguido morar sozinho, vai às suas consultas médicas, faz sua comida e conseguiu construir uma casa de alvenaria com o seu dinheiro, diferentemente de quando o pesquisador o conheceu. Ele vivia em uma moradia precária, com goteiras, sem porta, uma espécie de barraco. Assim, pode-se pensar o quanto João está mais organizado e não tão "engolido" por forças do inconsciente que seriam representadas pelo monstro marinho.

 

Considerações finais

Um primeiro comentário que se propõe é o de que o pintar foi, para o participante, o único meio terapêutico disponível, além da medicação. Segundo João, "a pintura traz paz. Você pinta e vê o que construiu e vai se alegrando". Percebe-se, através de sua fala e de sua participação nas oficinas de pintura, o quanto essa atividade é valorizada por ele. E esse recurso pode auxiliá-lo inclusive como meio de desenvolvimento de sua autonomia e inserção social, já que João saía de sua casa para ir até o centro de convivência e lá se relacionava com outros integrantes de diversas oficinas.

A relação entre João e o pesquisador também merece destaque. Ao longo de 15 anos de contato, um vínculo especial foi sendo estabelecido. Ele chegou a dizer que o pesquisador seria o seu marchand, já que este o incentivava nas oficinas e realizou exposições de suas obras. Uma das exposições foi realizada em conjunto com outros clientes do Museu de Imagens do Inconsciente quando uma obra de João foi enviada para o Rio de Janeiro e passou a fazer parte daquele museu. Todos esses aspectos, com certeza, trouxeram a João a valorização de sua atividade artística expressiva.

O pesquisador buscou pôr em prática os ensinamentos que foram adquiridos durante seu estágio no Museu de Imagens do Inconsciente, como a empatia, a aceitação incondicional dos conteúdos pintados por João e principalmente o estabelecimento de um vínculo afetivo. Foi muito significativo acompanhar o desenvolvimento de João e perceber que houve uma diminuição de seus surtos psicóticos. Uma representação simbólica do seu fortalecimento foi a conquista da casa de alvenaria que ele conseguiu construir e melhorar sua qualidade de vida, diferentemente do casebre precário com goteiras encontrado na primeira visita à sua moradia.

Focalizando as reflexões referentes às imagens pintadas por João, na tentativa de clarificação da sua psicodinâmica a partir do simbolismo presente na sua produção plástica, podemos destacar alguns pontos.

Diante da observação dos conteúdos pictóricos e em conjunto com a escuta biográfica do autor, percebeu-se uma regressão profunda de sua libido, através da invasão do inconsciente, em que o ego frágil sucumbiu diante de forças ameaçadoras representadas pelo tema mítico do dragão-baleia. No momento em que João pintou a tela "O Casal e a Marinha", ele estava passando por um período de instabilidade emocional que culminou com um surto psicótico aproximadamente um ano depois e resultou em mais uma internação com duração de um mês.

O tema central do desencontro e da desilusão amorosa foi um dos fatores que contribuiu para o seu adoecimento, e percebeu-se uma correlação com alguns clientes do Museu de Imagens do Inconsciente tão bem acompanhados pela Dra. Nise, que também adoeceram por amor, como é o caso de Adelina Gomes e Isaac Liberato, que foram impossibilitados de viverem suas paixões e conseguiram retratar essas angústias em suas obras. Segundo Lopez-Pedraza (2010), apaixonar-se por outra pessoa pode também causar uma enfermidade, um páthos, que aos poucos será integrado ao longo da relação. Neste sentido, Eros agiria, nas palavras de Hillman (1984), como "sintetizador, aglutinador e intermediário que reconcilia dois domínios; forma símbolos" (p. 80). Entretanto, tais aspectos podem ficar prejudicados nos estados psicóticos devido a um ego fragilizado por um sofrimento do amor impossível.

Assim como na música "A deusa da minha rua", cantada por Nelson Gonçalves4, que narra uma impossibilidade de relacionamento entre duas pessoas no verso que diz "ela é tão rica, eu tão pobre, eu sou plebeu, ela é nobre, não vale a pena sonhar", João também afirmou como causa do seu desencontro amoroso o fato de ser pobre e sua amada rica.

Sobre o elemento feminino na produção do pintor, surgiu a presença de dois tipos de mulheres, um é o de autoritária, arredia e não acolhedora; já o outro é personificado na figura de Joana D'Arc, com características de pureza e proteção, relacionado a aspectos positivos de sua anima. Neste sentido, percebe-se que o pintar se configura como um lugar para dar forma aos seus dramas internos, na tentativa de retirar conteúdos ameaçadores de sua psique, despotencializando-os (SILVEIRA, 1992).

A figura de Joana D'Arc também possui um caráter arquetípico e, de acordo com sua importância dada pelo participante e pelo seu simbolismo, considera-se essa imagem como um potencial regulador e organizador na psique do participante. Assim, mesmo que o indivíduo esteja em sofrimento psíquico, ao pintar ele pode acessar forças curativas internas e autorreguladoras.

Por fim, parece-nos particularmente interessante um paralelo com o momento atual: o tema mítico do dragão-baleia, que foi constelado nas pinturas, pode refletir também aspectos coletivos que a humanidade está vivenciando com a pandemia do coronavírus, em que todos foram atravessados por essa crise, como se a própria humanidade fosse engolida direto para o ventre escuro do monstro marinho.

 

REFERÊNCIAS

AMARANTE, P. Manicômio e loucura no final do século e do milênio. In: FERNANDES, M. I. A. (Org.). Fim de século: ainda manicômios? São Paulo, SP: Cabral, 1999. p. 47-56.         [ Links ]

BASTOS, J. F. Cícero Dias/Ismael Nery: a poética do surreal. 1993. Tese (Doutorado em Artes Plásticas) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 1993.         [ Links ]

CALDANA, R. H. L. Ser criança no início do século: alguns retratos e suas lições. 1998. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, 1998.         [ Links ]

CAPRA, F. O ponto de mutação. São Paulo, SP: Cultrix, 1988.         [ Links ]

FURTH, G. M. O mundo secreto dos desenhos: uma abordagem junguiana da cura pela arte. São Paulo, SP: Paulus, 2004.         [ Links ]

HILLMAN, J. O mito da análise. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1984.         [ Links ]

HIRSZMAN, L. (Dir.). Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Embrafilme, 1986. (Canal do YouTube Victor Farjado). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9-uN1lsWFjM&t=68s>. Acesso em: 22 mar. 2021.         [ Links ]

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______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1976.         [ Links ]

LOPEZ-PEDRAZA, R. Sobre eros e psiquê. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.         [ Links ]

SILVEIRA, N. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Alhambra, 1982.         [ Links ]

______. Mundo das imagens. São Paulo, SP: Ática, 1992.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 22/03/2021
Revisão em 16/06/2021

 

 

1 Frase dita por Nise da Silveira no documentário trilogia "Imagens do Inconsciente" (HIRSZMAN, 1986).
2 Disponível em: http://www.ccms.saude.gov.br/nisedasilveira/encontro-com-jung.php. Acesso em: 21 de mar. de 2021.
3 Infelizmente a tela se decompôs, após ter sido atingida por uma goteira de água de chuva e mofado.
4 Disponível em: https://www.letras.mus.br/nelson-goncalves/47649/ . Acesso em: 15 de mar. 2021.

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