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Junguiana

On-line version ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.1 São Paulo Jan./June 2021

 

Fundamentos do método de Nise da Silveira: clínica, sociedade e criatividade

 

Fundamentos del método Nise da Silveira: clínica, sociedad y creativida

 

 

Maddi Damião Junior

Psicólogo, Doutor em Psicologia pela UFRJ, Pós-Doutor em Psicologia Médica e Psiquiatria pela Unicamp, Pós-Doutor em Ciências das Religiões pela UFJF, Professor Associado da UFF/CURO, Membro Analista SBPA - RJ. email: <maddidamiao@gmail.com>

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar as bases do método da psiquiatra brasileira Nise da Silveira, a partir de sua orientação para a leitura de imagens. Em uma perspectiva inter e transdisciplinar, Nise da Silveira reformulou os moldes da psiquiatria e as práticas terapêuticas no Brasil, sendo precursora da reforma psiquiátrica. Além disso, foi uma importante difusora da teoria junguiana e da produção de uma clínica politicamente engajada. A apresentação baseia-se em três dimensões que consideramos fundamentais para embasar os fundamentos epistemológicos e a práxis de seu trabalho, afeto catalizador, forças autocurativas do inconsciente e emoção de lidar. Através destes três princípios norteadores de seu trabalho, é possível ver como a produção teórica e sua clínica se dão através da construção de um saber que atravessa todos os saberes, que corresponde à complexidade do fenômeno estudado e da realidade psíquica.

Palavras-chave: Métodos terapêuticos, Nise da Silveira, Psiquiatria.


RESUMEN

El presente trabajo tiene como objetivo presentar las bases del método de la psiquiatra brasileña Nise da Silveira, a partir de su orientación a la lectura de imágenes. En una perspectiva inter y transdisciplinaria, Nise da Silveira reformuló los moldes de la psiquiatría y las prácticas terapéuticas en Brasil, siendo precursora de la reforma psiquiátrica. Además, fue una importante divulgadora de la teoría de Jung y la producción de una clínica comprometida políticamente. La presentación se basa en tres dimensiones que consideramos fundamentales para sustentar los fundamentos epistemológicos y la praxis de su obra, el afecto catalizador, las fuerzas autocurativas del inconsciente y la emoción del trato. A través de estos tres principios rectores de su trabajo, es posible ver cómo la producción teórica y su clínica se da a través de la construcción de un conocimiento que atraviesa todo conocimiento, que corresponde a la complejidad del fenómeno estudiado y la realidad psíquica.

Palabras clave: Métodos terapêuticos, Nise da Silveira, Psiquiatría.


 

 

1. Introdução

Este trabalho visa ser um testemunho do trabalho de Nise da Silveira como precursora no Brasil da "Reforma Psiquiátrica", problematizando seus fundamentos metodológicos e epistemológicos. Esse novo modelo permitiu que a psiquiatra fosse, efetivamente, a pioneira no Brasil em quebrar o paradigma manicomial.

O encontro de Nise da Silveira e Jung surgiu quando Nise teve coragem de escrever para Jung, mandando fotos e mostrando trabalhos de seus pacientes que, apesar de fazerem pinturas espontâneas com "disjunção" e "fragmentação", demonstravam junto uma tendência ordenadora. Desenhos com desmembramentos de corpos humanos e de animais, corpos sem cabeça, sem braços ou pernas, ou de árvores cortadas em pedaços, significando o desmembramento da personalidade, os imponderáveis fenômenos de dissociação psíquica, fenômenos que são traduzidos através da linguagem da matéria, na expressão plástica (SILVEIRA, 1981).

Nise identifica que a realidade psíquica e seus conteúdos são fenômenos de intensa complexidade e intensidade, que necessitam de uma gama variada de recursos e formas de abordagem para sua materialização e compreensão. Longe de serem sintomas, são entendidos por ela como "inumeráveis estados do ser", forças criativas de organização de uma realidade que demandam outros recursos, para sua comunicação e expressão, que vão além da linguagem proposicional.

Como se sabe, foi através da teoria de Carl Gustav Jung que a psiquiatra fundamentaria sua perspectiva, pensando os processos da loucura e da saúde. Assim, como a partir da inclusão deste totalmente outro - o louco -, dar voz a ele, consequentemente, construir uma prática e um saber baseado na diferença, na tolerância e na inclusão. Pode-se dizer que, com o seu trabalho e a teoria junguiana, a qual servirá de fundamento para a construção do seu saber, dá origem a uma "nova Psiquiatria", baseada na liberdade, nas forças criativas do inconsciente e na abertura para a via da saúde. Compreendendo, deste modo, sintomas como a tentativa de reorganização do psiquismo, que irá precisar de meios adequados para sua realização.

Os princípios que a nortearam em seu trabalho podem ser sintetizados como o "afeto catalizador" e "as força autocurativas do inconsciente", além da "emoção de lidar". Assim, caso fossem proporcionados liberdade e acolhimento ao dito "louco", ele teria condições de se recuperar, não como a sociedade poderia esperar, de forma reprodutiva, mas singularmente. Isto significa que seria uma recuperação a partir de suas experiências mais específicas, se afastando da desordem psíquica e construindo narrativas, através das imagens que o tornassem autores de suas histórias (narradores). Neste sentido, Nise da Silveira chamou esse cenário de "inumeráveis estados do ser", buscando em Artaud (2006) a compreensão de diferentes - e legítimos - modos de estar no mundo.

Assim, seu trabalho possuiu um cunho clínico, pois visava à terapêutica e a um novo olhar científico, como uma nova produção de saber, cujos fundamentos o presente trabalho visa trazer. Estes são os livros publicados por ela em vida, dentre entrevistas e filmes realizados:

Jung, vida e obra. José Álvaro Editor, 1968: síntese precisa e muito clara da Psicologia Analítica de Jung, excelente para quem quiser começar a tomar conhecimento das suas teorias;

Terapêutica ocupacional - teoria e prática. Edição Casa das Palmeiras, 1979: o nome inicial que foi adotado pelo hospital;

A emoção de lidar. Coordenação e prefácio de uma experiência em psiquiatria na Casa das Palmeiras. Ed. Alhambra, 1987: termo que passou a adotar em seu trabalho;

Imagens do inconsciente. Editora Alhambra, 1987: foi reeditado pela Vozes em 2015;

A farra do boi. Ed. Numen, 1989;

Artaud, a nostalgia do mais. Ed. Numen, 1989;

Cartas a Spinoza. Ed. Numen, 1990. Ed. Francisco Alves, 2ª edição, 1995;

O mundo das imagens. Ed. Ática, 1992;

Gatos, a emoção de lidar. Léo Christiano Editorial, 1998.

Também escreveu um pequeno manual de orientação ao estudo das imagens, o "Benedito", que deverá ser publicado em breve. Esse livro é uma orientação da Dra. Nise sobre o que se ler, buscando o entendimento dos casos clínicos e imagens produzidas pelos frequentadores do Museu de Imagens do Inconsciente e Casa das Palmeiras, um verdadeiro tratado de transdisciplinaridade.

 

2. Vida e Obra

Nise foi presa durante o governo de Getúlio Vargas, assim como foi "marginal" sua vida inteira. Criou o STOR (Setor de Terapia Ocupacional), no Hospital Psiquiátrico Pedro II, em 1946, e, em 1956, a "Casa das Palmeiras", visando evitar o ciclo do contínuo processo de reinternação, que eram submetidos os pacientes dos hospitais psiquiátricos, se orgulhando de que na "Casa das Palmeiras as portas nunca se encontrarem fechadas", ou seja, os "clientes", como ela os chamava, gozavam de plena liberdade de ir e vir (CASTRO; LIMA, 2007).

Da mesma maneira que prezava esta liberdade entre os pacientes, proibia também aos técnicos, psicólogos, estagiários e médicos, o uso de jalecos ou qualquer sinal que os distinguissem dos "clientes". Isto visando minimizar ao máximo qualquer restrição à liberdade criadora, ou criar qualquer vínculo que, ao invés de baseado no afeto, fosse determinado pelo poder, afastando o caráter institucionalizante.

Esta dimensão política de seu trabalho sustentava-se, assim, pela dimensão clínica e pela percepção de que a saúde é um processo que, longe de se restringir a um psiquismo ou ao indivíduo, é fruto de uma rede de relações e significações sociais (FRAYZE-PEREIRA, 2003).

Esta perspectiva de saúde, não desvinculada de uma dimensão ética e social, encontra-se presente em todo o trabalho de Nise da Silveira. Para desenvolver tal perspectiva, ela sustentará seu saber e sua prática na perspectiva junguiana, ou seja, na teoria do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung.

Nise pode ser considerada como a grande divulgadora do pensamento de C. G. Jung no Brasil. Em 1956, ela funda o grupo de estudos C. G. Jung, o qual era realizado em seu consultório, no andar de cima de sua casa. Este grupo, no melhor espírito democrático, era aberto e frequentado por todos aqueles que ali quisessem ir: psicólogos, estudantes, médicos, leigos, artistas e principalmente pacientes psiquiátricos. Gratuito e frequentado por seus gatos e humanos, esse era um grupo em que todos aqueles que dele participavam eram afetados de alguma forma.

Pelo fato de ser uma escolha voluntária e estarem sujeitos a estes encontros, pela coexistência da diversidade e diferença em um espaço, em princípio, voltado para o estudo, tornava-se terapêutico, por não impor restrições ou censuras aos presentes. Afirmava-se, assim, como uma psiquiatra rebelde, não apenas por quebrar paradigmas, ao propor a construção de um saber interdisciplinar e transdisciplinar, mas também por quebrar com as condições de mercado ou sociais, ao criar um grupo em que todos podiam participar, sem pagar absolutamente nada.

Carl Gustav Jung pode ser considerado o primeiro psiquiatra a "dar voz ao louco". A partir de estudos realizados no hospital psiquiátrico de Burghoelzli, na Suíça, defende o princípio, até então não usual, de que, nos delírios e alucinações dos pacientes psiquiátricos, deveria haver algum sentido. Para tal, necessitava-se entender apenas sua linguagem, ou seja, adentrar nestas realidades com o olhar atento, ao invés de atribuir certezas e verdades construídas apenas pela razão. Assim, ele parava e tentava seguir aqueles caminhos que lhe eram mostrados pelos "loucos" ou "insanos", sendo levado a perceber que a dificuldade era da razão que não conseguia acompanhar aqueles indivíduos em seus "inumeráveis estados do ser", ou seja, além dos limites da própria razão (CARVALHO; AMPARO, 2006).

Com o objetivo de seguir estes caminhos, percebeu a necessidade da construção de um saber interdisciplinar e transdisciplinar, ou seja, através do estudo de múltiplas linguagens e saberes, religião, mitologia, ciência natural, história, sociologia, buscar formas de integração do sentido que era produzido pelos seus pacientes. De tal modo, ele inclui não somente aqueles seres considerados doentes, mas culturas e saberes considerados "primitivos" e "inferiores" diante da racionalidade ocidental e europeia. Promove uma teoria que irá enraizar o homem historicamente para além de sua cultura na história da própria humanidade, mostrando, assim, como para entender o indivíduo, assim como a sociedade, não se pode olhar de apenas uma perspectiva, ou seja, a sociedade e o indivíduo são vistos como um sistema complexo e histórico (MOTTA, 2004).

Com estes princípios e o conceito de "Forças Autocurativas do Inconsciente", Nise da Silveira irá sustentar uma prática clínica, institucional e política, em que cada um destes termos se encontram indissociavelmente vinculados. Ou seja, ela mostrará, através de sua vida e de sua obra, como a saúde, a ética e a política são termos de uma mesma experiência. Vale ressaltar que a política é entendida como dimensão social do indivíduo e do psiquismo, sem limitações pela subjetividade, mas sim se tornando uma psique plural e coletiva. Já no ano de 1946, Nise lançou a base de uma "revolução psiquiátrica", fundada nos princípios de liberdade, afeto, inclusão e transdisciplinaridade.

Em 1952, Nise da Silveira fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, contando com um acervo precioso de pinturas, desenhos e esculturas dos frequentadores da STOR e, em 1956, criou, junto com alguns colaboradores, a Casa das Palmeiras. Esta última foi criada com o objetivo de dar suporte aos pacientes egressos do hospital. Havia, na época, uma alta porcentagem de reinternações (cerca de 70%). Nise sabia que as recaídas eram provocadas pelas barreiras de reintegração dos ex-pacientes à vida na comunidade. Vale ressaltar que depois de surtos psicóticos, quem os sofre fica muito fragilizado, necessitando de apoio para a reestruturação do "eu".

Nise transitou por diversas disciplinas e áreas de saber, indo do que havia de mais convencional na psiquiatria à história das religiões e da arte. Ao longo de sua produção intelectual, é possível ver como estes estudos se dirigem para a compreensão das imagens, produto elaborado por internos e frequentadores do Museu de Imagens do Inconsciente e da Casa das Palmeiras. Essa especificidade demanda um saber inter e transdisciplinar, como, por exemplo, em relação à esquizofrenia e à relação de cuidado que a psiquiatra buscou estabelecer com os indivíduos que chegavam - demandavam não só uma metodologia terapêutica, mas também uma ação política e pedagógica, concretizada no posicionamento em prol da autonomia e da liberdade individual, bem como na criação de um espaço regido pelo acolhimento e cuidado aos atendidos.

A transdisciplinaridade é uma abordagem que passa entre, além e através das disciplinas, buscando a compreensão da complexidade, que vai além de cada uma das disciplinas, mas se forma no atravessamento entre elas, na dialética, nas aproximações, convergências e interseções (SOMMERMAN, 2006). Os três pilares da transdisciplinaridade, os níveis de realidade, a lógica do terceiro incluído e a complexidade, determinam a metodologia da pesquisa transdisciplinar (NICOLESCU, 1999).

Deste modo, a transdisciplinaridade visa articular uma nova compreensão da realidade entre e para além das especializações. Essa perspectiva transdisciplinar encontra seus fundamentos na necessidade de compreender os símbolos e do processo criativo, ou seja, para que se entenda a experiência imediata das imagens do inconsciente, ou dos símbolos, formadoras da estrutura da psique, faz-se necessário um saber que ultrapasse as disciplinas particulares.

Os fundamentos da clínica de Nise da Silveira podem ser situados, como já mencionado, em uma perspectiva transdisciplinar, e, assim, são percebidos nas descrições das bases de sua prática e de seu saber, a partir do afeto catalisador, das forças autocurativas e criativas do inconsciente, e da emoção de lidar.

Estes três alicerces, da clínica estabelecida por Nise, descrevem e indicam atitude e compreensão da ação de cuidado e da clínica, que vão além de qualquer conceito ou definição categorial. Ou seja, afeto, criatividade e emoção superam os limites da racionalidade, apontando para a experiência imediata e para o que está estabelecido na dimensão do "não eu" - que se trata de uma dimensão da realidade que permite o despertar de qualquer categoria ou saber restrito, sobrepujando a possibilidade. Pode-se afirmar que a clínica, desta forma, está mais próxima da arte e da filosofia dos pensadores originários, do que da psiquiatria e da psicologia acadêmica e contemporânea. O exposto é afirmado por ela em frases como "se querem aprender sobre a alma humana, leiam Machado de Assis" (comunicação privada de Nise da Silveira). Ou ainda, "A arte ensina mais do que os tratados de psiquiatria" (ibid).

O psiquismo é visto como um sistema autorregulador. Para Jung, isso significa que um sistema que se autorregula é capaz de lidar com os desvios e as adaptações diante da vida, tantas vezes não favorecedora. O mundo interior tem também suas potencialidades, que não tiveram energia para surgirem, logo, que ainda não foram desenvolvidas, dificuldades e tendências para certas polarizações e desequilíbrios particulares (MELO, 2009).

Como citado, dentro da perspectiva junguiana e de Nise, a psique é vista como um sistema autorregulador, que se relaciona com a consciência e o inconsciente de uma forma compensatória. Para Jung, a transformação da energia psíquica pode ser descrita como um conflito entre opostos, porque ela é sempre resultado do contínuo unir e separar de elementos antagônicos.

Isso se manifesta como síntese e antítese, isto é, do material consciente e inconsciente. A psique, envolvendo esses dois aspectos, parte de uma totalidade múltipla. Jung deixa implícita, em seu arcabouço teórico, a ideia de movimento e de intencionalidade do próprio sistema como algo vivo e que é, a um só tempo, parcialmente fechado, um sistema complexo e em constante transformação.

Reajustes permanentes são característicos de sistemas vivos; abertos e interconectados com o mundo, consigo próprio. A aceitação do paradigma da complexidade viabiliza o rompimento definitivo com a divisão cartesiana e força a pensar a partir de uma perspectiva transdisciplinar. Unir matéria e energia, reintegrar o ser humano no orgânico, são os primeiros passos para trazer à tona pensadores que se ocuparam da natureza e dos corpos, como Jung, Reich e Groddeck. Em função disso, vale a escolha, para discussão do sistema psicológico proposto por Jung, dos exemplos corporais e da psicossomática.

Há que se levar em consideração que, se o indivíduo reage de forma adoecida, com dificuldades de se cuidar, pode ser entendido, equivocadamente, que não há essa busca de equilíbrio. Jung, em sua vasta obra, mostra as tentativas de auto-organização do sujeito e a produção de expressões, como o mandala, que mostram esse movimento. Nise da Silveira (1981), em seu livro Imagens do Inconsciente, também desenvolve esse aspecto. Às vezes, o momento vivido e a situação em volta, bem como, como Nise denuncia, o tratamento nos hospitais mais agravam a situação do que são lugares propícios.

Um aspecto fundamental é lembrar que o sistema psíquico humano trabalha e vive de forma "econômica", da melhor forma possível e, assim, todos os sintomas e angústias são tentativas de reestruturação psíquica, para sobreviver em um meio interno e externo em crise. Enfatiza-se o respeito ao momento vivido pelo cliente e a aceitação das dificuldades em cada um, além do movimento rumo à mudança, que precisa ser respeitado em termos de tempo. Uma das formas de viabilizar e acelerar uma melhora é seguir junto, mobilizar em cada pessoa o afeto catalisador, sempre perguntando: Sou terapeuta suficiente? Quanta paciência diante de minhas limitações eu tenho? O quanto de aceitação da forma de ser e estar do Outro em mim, dos outros em nós e nos conhecidos, eu sou capaz de suportar? Como está minha terapia? Como os meus estudos caminham? Consigo fazer supervisão e elaborar essa experiência em mim?

Nise da Silveira (1981, p. 80) enfatizava que o afeto era fator fundamental. Foi, na verdade, um "fator constante na nossa seção de terapêutica ocupacional, não só na pintura, mas também na encadernação, marcenaria, jardinagem, costura, tapeçaria, etc.". Porém, ressalta que, "nessa apologia do afeto, não há a ingenuidade excessiva de considerar fácil satisfazer as grandes necessidades afetivas de seres que foram tão machucados, e socialmente rejeitados" (SILVEIRA, 1981, p. 80).

Em qualquer oficina de terapêutica, este ponto de referência é o monitor. No ateliê ou oficina, o monitor funciona como um dispositivo de afeto catalisador, assim como o material com o qual o cliente lida e o próprio espaço em que se encontra. A reintegração do eu e o estabelecimento dos vínculos com o mundo externo dependem destes dispositivos afetivos através dos quais o cliente ou frequentador da oficina irá gradualmente reconstruindo os laços com um mundo cada vez mais extenso e se reorganizando, podendo lidar com este mundo.

Nise da Silveira foi pioneira também na percepção e nos estudos sobre a relação do homem e do animal, no sentido terapêutico. Lembra, inclusive, que não é nenhuma novidade, que uma ligação profunda pode se estabelecer entre o louco e o cão. Machado de Assis, por exemplo, narra em Quincas Borba, a história de um cão que amou dois loucos. Quincas Borba, o homem, deu o próprio nome a seu cão, de tanto que o amava. O último livro escrito por Nise trata do tema: Gatos, emoção de lidar.

Quanto à emoção de lidar com a experiência, essa emoção é vivência, a ação, o acontecimento carregado de sentido e força ordenadora sensível, a estética em si. Realiza uma ponte sintetizante entre a personalidade consciente e inconsciente, integrando opostos e simbolizando essa união dicotômica.

O exercício da imaginação ativa e da criatividade são atividades similares aos processos vivenciados em um hospital psiquiátrico. Porém, como ressalta Nise, um artista pode partir para "a pesquisa de novas dimensões imaginárias, graças ao seu ego intacto, traz sempre consigo a passagem de volta ao espaço comum, onde cumpre como todo mundo as rotinas da vida diária" (SILVEIRA, 1981, p. 42). Mas, mesmo para um artista, as "aventuras não deixam de ter seus perigos e despertar temores" (ibid.). Por fim, ela traz a citação de Lèger, que diz "ser livre e apesar disso, não perder contato com a realidade. Eis o drama desta figura épica, quer seja chamado inventor, artista ou poeta" (ibid.).

 

3. Conclusão

O método Nise da Silveira possui uma genuína inovação que se apresenta como revolucionária, não apenas na psiquiatria, mas no olhar tanto para o saber, quanto para a razão e para o outro. Isso se dá a partir do afeto, da expressão das emoções e da compreensão de que indivíduos que fogem ao que é mediano e ao padrão de normalidade terão mais facilidade em compreender as vivências complexas e singulares do psiquismo, assim como destes considerados como "anormais".

A alteridade, para ser vista por si e em si, demanda, de acordo com o método estabelecido por Nise, uma transdisciplinaridade, que abrange inúmeros conhecimentos correlatos, cria uma interação entre eles, e transcende o que cada um deles propõe.

A perspectiva Junguiana é fundamental e condicionante para a prática dialética do trabalho de Nise da Silveira. Também é elemento estruturante para a criação, fundamentação e desenvolvimento do método estabelecido pela psiquiatra, uma vez que a leitura do inconsciente a partir da expressão livre dos "clientes" se tornou uma ferramenta que perpassa não somente todo o trabalho, mas também a forma e o legado de vida.

 

Referências

ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2006.         [ Links ]

CARVALHO, S. M.; AMPARO, P. H. M. Nise da Silveira: a mãe da humana-idade. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 126-37, jan./mar. 2006. https://doi.org/10.1590/1415-47142006001010        [ Links ]

CASTRO, E. D.; LIMA, E. M. Resistência, inovação e clínica no pensar e no agir de Nise da Silveira. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 11, n. 22, p. 365-76, maio/ago. 2007. https://doi.org/10.1590/S1414-32832007000200017        [ Links ]

FRAYZE-PEREIRA, J. A. Nise da Silveira: imagens do inconsciente entre psicologia, arte e política. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 197-208, set./dez. 2003. https://doi.org/10.1590/S0103-40142003000300012        [ Links ]

MELO, W. Nise da Silveira e o campo da saúde mental (1944-1952). Mnemosine, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 30-52, 2009.         [ Links ]

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NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinariedade. São Paulo, SP: Triom, 1999.         [ Links ]

SILVEIRA, N. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Alhambra, 1981.         [ Links ]

SOMMERMAN, A. Inter ou transdisciplinariedade? São Paulo, SP: Método, 2006.         [ Links ]

 

 

Recebido em 27/03/2021
Revisão dia 07/06/2021

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