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Junguiana

versión On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.1 São Paulo ene./jun. 2021

 

Diálogos entre Nise e Jung: a obra expressiva de Nise da Silveira e suas contribuições para a psicologia analítica

 

Diálogos entre Nise y Jung: la obra expresiva de Nise da Silveira y sus contribuciones a la psicología analítica

 

 

Marisa V. Catta-Preta

Psicóloga na abordagem junguiana, mestre e doutoranda em psicologia clínica pela PUC/SP - Núcleo de estudos junguianos. Professora na disciplina de psicologia analítica pela PUC-SP e UNIMES. Supervisora do Aprimoramento em psicoterapia de adultos na perspectiva da psicologia analítica -(PUC/COGEAE) Coordenadora do curso de pós-graduação em Psicologia Junguiana (UNIMES).Autora do livro : A noite da alma -sonhos e insônia e co-autora de Sonhos e Arte, Sonhos na psicologia junguiana, Jung e Saúde, 95 anos de Paulo Freire. Email <mvcpreta@pucsp.br e marisa.martins@unimes.br>

 

 


RESUMO

Nise da Silveira foi uma referência na psicologia analítica por pautar seu trabalho nos referenciais de Jung que a apoiou e a convidou para expor trabalhos realizados na saúde mental no Brasil, numa exposição em Zurique. O objetivo deste artigo é analisar aspectos do trabalho de Nise da Silveira e suas contribuições para a psicologia analítica. A metodologia é o uso de pesquisa bibliográfica com alguns estudos de Jung, Nise da Silveira e outros autores que se dedicaram a compreender o tema. Considera-se que o trabalho com esquizofrênicos e a leitura de imagens empregadas no Museu de Imagens do Inconsciente permanecem como um legado que ainda está em movimento na psicologia analítica como fonte de pesquisa e estudo.

Palavras-chave: psicologia analítica, doença mental, arte, museu de imagens do inconsciente.


RESUMEN

Nise da Silveira fue una referencia en psicología analítica para guiar su trabajo sobre las referencias de Jung que la apoyaron en su trabajo y la invitaron a exponer obras realizadas en salud mental en Brasil, en una exposición en Zúrich. El objetivo de este artículo es analizar aspectos del trabajo de Nise da Silveira y sus contribuciones a la psicología analítica. La metodología es el uso de la investigación bibliográfica con algunos estudios de Jung, Nise da Silveira y otros autores que se dedicaron a comprender el tema tratado que sustenta este análisis. Se considera que el trabajo con esquizofrénicos y la lectura de imágenes utilizadas en el Museo de Imágenes del Inconsciente, quedan como un legado que todavía está en movimiento en la psicología analítica como fuente de investigación y estudio.

Palabras clave: psicología analítica, enfermedad mental, arte, museo de imágenes del inconsciente.


 

 

1. Introdução

Discorrer sobre o trabalho de Nise da Silveira é convidar o leitor a conhecer uma das diretrizes mestras de construção da minha formação e de muitos colegas no trabalho com a abordagem junguiana. Suas profundas reflexões sobre a realidade do doente mental e seus atravessamentos sociais no Brasil, em diferentes momentos políticos e seu engajamento nas lutas por uma saúde pública melhor foram determinantes para uma geração de psicólogos que a têm como referência. Mas foi sobretudo o respeito atribuído à singularidade humana e à pesquisa em saúde mental, não só através de métodos mais humanizados, mas por caminhos que buscam dar forma concreta à expressão simbólica das imagens inconscientes de seus pacientes, numa proposta de análise do que Jung trouxe teoricamente para todos nós, o que me encantou quando ouvi pela primeira vez sobre seu trabalho. Como estudante, li sua produção mais conhecida, seu livro "Imagens do Inconsciente", na voz de Alice Marques - médica que fez parte da sua equipe por anos e foi sua amiga íntima - em um congresso brasileiro, o que despertou meu interesse em estudar o trabalho de Nise. O refinamento das particularidades do seu trabalho e a forma como o relacionou com a prática da psicologia analítica, trabalho aprovado por Jung, e ter Von Franz para fazer análise e orientação, trouxeram-me grande impacto. Compreendi que, se eu quisesse trilhar o caminho da psicologia junguiana, teria que ir ao Rio de Janeiro conhecer o Museu de Imagens do Inconsciente. Quando estive lá alguns anos depois, Nise já estava afastada do serviço público e não consegui vê-la. Mas deixou-me como lembrança: em troca de um pequeno presente que eu lhe dei, mandou-me algumas erratas de uma exposição de Carlos, Adelina e Emygdio, entregues por Luiz Carlos Mello, as quais guardo com muito carinho.

O impacto de quem conhece o museu é grande, porque nele tudo é verdadeiro. Há de fato um acervo cuidado e alimentado de obras em séries que possibilitam ver o processo da evolução dos pacientes. São muitas obras catalogadas e, quando andamos pelos ateliês, vemos de fato a arte se construindo no espaço cotidiano do museu. A afetividade, a criação e a dedicação da equipe do museu, bem como a forma como compreendem de fato o trabalho de Nise da Silveira, são espetaculares. Deixei o museu fascinada em minha primeira visita e desde então não apenas estudei ainda mais o que Nise deixou, mas travei com a equipe do museu uma amizade de confiança e admiração: Gladys Schincariol, psicóloga que cuida da direção do museu e que está com Nise desde que ainda era uma estudante; Eurípedes Junior, que sempre cuidou do trato das imagens e hoje está na direção da Sociedade Amigos do Museu, concluindo seu doutorado em 2015 sobre as coleções de arte e loucura; e Luiz Carlos Mello que está na direção e organização das exposições nacionais e internacionais das obras. A força dessa equipe formada por Nise e que conduz esse legado com tanto respeito é muito grande, hoje associada a vários colaboradores e redes que se formam em torno do museu. É com coragem e determinação, passando por várias políticas públicas, preconceitos da psiquiatria tradicional e falta de apoio de governos omissos à causa da saúde mental que essa equipe atravessa as décadas de trabalho no Museu de Imagens do Inconsciente, um museu que ainda está vivo e presente em discussões em psicologia analítica.

Nise da Silveira é um desses nomes que marcaram não só a saúde mental, a psicologia junguiana, mas também o cenário nacional de sua época. São conhecidos seus posicionamentos políticos, afinal foi presa política na sala 4, famosa sala de personalidades como Olga Benário Prestes e Maria Werneck, entre outras mulheres importantes do cenário político brasileiro. Foi personagem de Graciliano Ramos em seu livro Memórias do Cárcere, pintada pelo artista Di Cavalcanti, amiga de Manoel Bandeira e amiga de críticos de arte como Mario Pedrosa que intitulou de Arte Virgem aquela que Jean Dubuffet chamava de Arte Bruta e incluía as expressões de indivíduos que se encontravam à margem de nossa sociedade.

Única mulher em sua época na Faculdade de Medicina na Bahia, ela veio para o Rio de Janeiro onde trabalhou como médica a vida inteira. Uma nordestina, mulher, numa época em que esses atributos bastavam para gerar fortes preconceitos sociais e culturais, Nise era firme e se engajou sempre na grande batalha em defesa dos menos favorecidos, os doentes mentais, em sua época em grande parte abandonados por suas famílias e pela sociedade em hospitais psiquiátricos com métodos abusivos, intervenções medicamentosas excessivas e o uso indiscriminado de eletrochoque (MELLO, 2014).

Para a psicologia junguiana, o método de Nise da Silveira que teve como base a psicologia analítica, estudos de autores da antipsiquiatria como Ronald Laing, além de um profundo estudo da arte e da saúde mental, trouxe contribuições importantes pelo fato de se originar nas mãos da única psiquiatra no Brasil, com uma leitura na abordagem junguiana capaz de sistematizar imagens de pacientes esquizofrênicos e criar um museu com essas imagens. O museu foi uma ideia criativa e de extrema importância para a pesquisa daqueles que se interessam pela expressão simbólica de pacientes esquizofrênicos e psicóticos em sua maioria. O Museu de Imagens do Inconsciente, que atualmente conta com mais de 350 mil obras, é um acervo de grande importância também para o estudo da psicologia analítica de Jung, pois lá vemos sua teoria viva e expressa em símbolos de origem pessoal e arquetípicos (CRUZ JUNIOR, 2015).

O fato de Jung, ao receber as fotos das mandalas brasileiras enviadas por Nise, abrir a exposição brasileira num Congresso Internacional e convidá-la para estudar no Instituto C.G. Jung em Zurique, além de lhe indicar para uma de suas discípulas mais importantes para que a orientasse em seus trabalhos, nos traz a ideia do interesse do próprio criador da psicologia analítica por seus trabalhos. Isso aconteceu após uma correspondência trocada na qual Nise enviou os trabalhos brasileiros para Jung confirmar se eram mandalas e ele respondeu confirmando que eram mesmo mandalas. Nise voltou posteriormente mais duas vezes para a Suíça levando um estudo de caso e aprofundou nessas ocasiões ainda mais seus estudos na psicologia junguiana, além de adquirir com esse trabalho um profundo respeito e interesse de Jung às expressões do inconsciente retratadas no Brasil (MELLO, 2014). O trabalho de Nise da Silveira ilustra o que Jung postulou em sua obra através de seus conceitos teóricos.

Neste artigo, dou início a uma breve introdução ao trabalho do próprio Jung com pacientes psicóticos, esquizofrênicos e sua experiência com eles. Para Jung (2019b):

Para minha satisfação, pude provar que a doença, embora numa escala reduzida, pode ser tratada por meio da psicoterapia. Tão logo se aceite o tratamento psicológico, porém, surge a questão acerca do conteúdo psicótico e sua significação. Já sabemos que, em muitos casos, lidamos com um material psicológico comparável a certos materiais das neuroses e dos sonhos, que são compreendidos a partir do ponto de vista da pessoa. No entanto, em contraste com o conteúdo de uma neurose, explicável de modo satisfatório pelos dados biográficos, os conteúdos psicóticos mostram particularidades que fogem às circunstâncias individuais da vida, que também observamos em relação aos sonhos cujo simbolismo não pode ser corretamente esclarecido com base apenas nos dados pessoais (p. 285).

Em seguida retrato, neste artigo, a importância do trabalho com arte como expressão simbólica para Jung, nas suas próprias experiências e com seus pacientes. Considero as experiências pessoais de Jung e sua expressão simbólica através de pinturas e esculturas na pedra, presentes especialmente em suas memórias e no Livro Vermelho (JUNG, 2010), além dos trabalhos ilustrados presentes em sua obra com imagens pintadas por pacientes e nos Seminários Sonhos e Visões.

Prossigo no artigo ressaltando a trajetória de Nise na construção de seu trabalho atravessado por questões político-sociais no Brasil e a dificuldade de manter vivo o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente como um trabalho sério de pesquisa com base nos conceitos da psicologia analítica. Silveira (1981) escreve:

Certamente a linguagem abstrata presta-se a dar forma a segredos pessoais, satisfazendo uma necessidade de expressão sem que outros os devassem. Mas no hospital é raro acontecer essa tradução de linhas para palavras. Não se tenha a ilusão de acreditar que onde forem vistas linhas imbricadas isso signifique ambição. Cedo me convenci da impossibilidade do estabelecimento de códigos. A linguagem abstrata cria-se a si própria a cada instante, ao impulso das forças em movimento no inconsciente. Era uma constatação empírica (p. 19).

Finalmente relaciono o trabalho de Nise com os conceitos de Jung, presentes em documentários e livros da autoria nos quais estudos de casos são descritos e analisados pela autora sob a perspectiva da psicologia analítica. Seu encontro com Jung instaura uma série de lacunas a serem preenchidas sobre a doença mental pela autora que, ao voltar de Zurique, cria um grupo de estudo e impulsiona o trabalho do museu com informações obtidas sobre o acervo do próprio Instituto C. G. Jung de Zurique (MELLO, 2014).

Concluo demonstrando a particularidade do trabalho de Nise da Silveira, que segue a metodologia de leitura de imagens postulada por Jung e que, a conselho do mestre, como ela o chamava, encontra na mitologia uma forma de compreensão e estudo sistemático das imagens que com o tempo passa a ter sua marca indelével. A ideia da fundação de um Museu de Imagens do Inconsciente com as produções dos doentes para pesquisa em esquizofrenia que, segundo Cruz Junior (2015), resultou num acervo de mais de 350 mil obras, grande parte tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, foi uma de suas criações mais geniais. O acervo do museu é o maior dessa natureza no mundo. Para obter esses dados, o autor pesquisou várias iniciativas de trabalho com doentes mentais envolvendo expressão artística, mas nenhuma delas compara-se ao número de obras que compõem o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente (CRUZ JUNIOR, 2015).

Além disso, ressalto a importância para a pesquisa em psicologia das obras do museu e do "museu vivo", que tem mais produções catalogadas e inseridas no acervo mesmo após a morte de Nise, e a importância da continuidade desse projeto e de seu trabalho no Brasil com a equipe que trilhou seus passos e segue com seu trabalho diário na pesquisa das imagens inconscientes. Atualmente a equipe do museu tem na direção os mesmos membros que acompanharam Nise da Silveira. Eles dirigem os principais trabalhos do Museu e suas exposições no Brasil e no exterior, em uma luta pela manutenção dos trabalhos do museu nos moldes de sua criadora.

O objetivo deste artigo é analisar aspectos do trabalho de Nise da Silveira e suas contribuições para a psicologia analítica. A metodologia é a pesquisa bibliográfica de publicações de Jung, Nise da Silveira e dos autores contemporâneos que se dedicaram à pesquisa através da leitura de seus livros e artigos publicados.

 

2. A história do percurso de Jung com pacientes esquizofrênicos

Jung (1990) trabalhou na clínica psiquiátrica Burgholzli ligada à Universidade de Zurique, onde tornou-se professor de psiquiatria e, em 1905, e após passar por estudos com Pierre Janet, deu prosseguimento aos seus experimentos com o teste de associação de palavras. Segundo Jung (1990), o teste de associação popularizou seu trabalho nos EUA, vindo um número grande de pacientes para consultar-se com ele, na Suíça. Jung (2019c) só abandonou o uso do teste, quando iniciou o trabalho de análise de sonhos. Afinal, nos sonhos era possível detectar os complexos do paciente com material espontâneo, enviado diariamente pelo inconsciente.

Os casos de psicoses merecem destaque nesse artigo e vêm relatados em suas memórias. Um deles trata de uma paciente que fazia gestos com as mãos sem parar. Jung (1990) acreditava que, para compreender a doença, era necessário conhecer a história do paciente. Quando a paciente morreu, seu irmão contou a Jung que ela quisera se casar com um sapateiro, mas foi recusada por ele, o que desencadeou o seu processo de enlouquecimento. Nesse momento, Jung compreende o gesto das mãos da paciente, expressão simbólica de seu sofrimento pela perda do passado. Na época em que Jung (1990, p. 114) trabalhava no Burgholzli, quando foi médico chefe da clínica psiquiátrica por quatro anos, e descreve como era vista a doença mental já no início de sua atuação como psiquiatra, como médico assistente:

O ensino psiquiátrico procurava, por assim dizer, abstrair-se da personalidade do doente e se contentava com diagnósticos, com a descrição dos sintomas e dados estatísticos. Do ponto de vista clínico que então predominava, os médicos não se ocupavam com o doente mental enquanto ser humano, enquanto individualidade; tratava-se do doente número x, munido de uma longa lista de diagnósticos e sintomas (p. 114).

Em suas memórias, Jung (1990) relata o aprendizado com seus pacientes como no caso de Babette. Era uma paciente que tinha uma irmã prostituta e o pai alcoólatra e, aos 39 anos, surtou e apresentava delírios de grandeza. Jung via no discurso de Babette a compensação simbólica de um profundo sentimento de inferioridade.

Outra paciente ouvia vozes, sendo que uma delas era a de Deus. Jung a visitou para ler a Bíblia quinzenalmente, por seis anos, fazendo-a lembrar da leitura anterior. A paciente melhorou, concentrando suas vozes que antes falavam pelo corpo inteiro, apenas no lado esquerdo. A paciente, para Jung (1990), teve uma cura unilateral, mas, de qualquer forma, o levou a compreender que o ato intuitivo de ler com ela a Bíblia como ordenava a voz, de alguma forma a trouxe do mundo das imagens.

Jung chama a atenção para o conteúdo da expressão simbólica do paciente, que não é compreensível para a consciência de forma imediata, mas que o fato de não compreendermos não significa que seja destituída de sentido. Jung (1990) considera que a psicoterapia para tais casos já fora utilizada por ele no começo de sua carreira e não compreende por que esse método não é aplicável para muitos que tratam de doença mental. Para Jung, a cura é possível, e quando acontecia muitas vezes, diziam que era um erro de diagnóstico e não aceitavam a possibilidade de o indivíduo voltar para sua realidade consciente (JUNG, 1990).

São muitos os casos que Jung relata em sua obra, e sua visão de cada indivíduo é única, portanto, o método deve ser de uma construção a partir do que traz o paciente e exige do psicoterapeuta um preparo individual com análise pessoal além do preparo técnico. Jung (2019b) percebeu que não poderia trabalhar a simbologia por trás de uma psicose sem o estudo da mitologia, pois não raro a presença de imagens arquetípicas trazia significados importantes para a compreensão das narrativas expressas pela alma do paciente.

Interessante notar que, para Campbell, segundo entrevista retratada no livro "A jornada do herói", a mitologia também tem uma função pedagógica, trazendo para o homem uma orientação em momentos de crises nos quais aspectos racionais não dão conta de abarcar toda a experiência. Assim, ele vê na mitologia a ligação do indivíduo à sociedade, sua integração e seu significado.

Jung (2019b) considera que em grande parte dos casos de esquizofrenia já estaria comprovado que os indivíduos não apresentariam alterações no cérebro, embora essa fosse uma doença com manifestações físicas e psíquicas. Considera também como na clínica de Zurique o seu método foi tratar a investigação psicológica da doença mental. Para Jung (2019b), o conhecimento da história do indivíduo é primordial para qualquer análise do caso.

Portanto, a ideia de Silveira (1981) de observar o paciente e compreender que ali há uma expressão simbólica vem de encontro ao trabalho que Jung desenvolveu com esquizofrênicos e que, posteriormente, estendeu à sua clínica particular para todos os tipos de pacientes e não apenas aos psicóticos e esquizofrênicos. O trabalho com leitura de imagens que nascem no inconsciente e emergem na consciência foi criado por Jung, porém a amplitude que Nise deu a essa prática, com a criação de um arquivo gigantesco que é o acervo do museu, foi uma enorme contribuição à psicologia analítica no mundo.

 

3. O uso da arte para trabalhar com a esquizofrenia por Nise da Silveira

Quando Nise da Silveira criou o setor de terapêutica ocupacional com oficinas e um atelier de pintura, precisamos considerar que se tratava de uma iniciativa corajosa, pois sua ação foi anterior ao movimento da antipsiquiatria que foi iniciado com Cooper e Laing, na Inglaterra, Basaglia, na Itália, além de outros que questionaram a loucura revisitando sua história como Foucault.

Nise (SILVEIRA, 1992) destaca a atuação de Laing pelo fato dele privilegiar a experiência do psicótico procurando compreender o que está por trás da doença. Laing esteve no Brasil em 1978 e, ao conhecer o Museu de Imagens do Inconsciente, emocionado beijou as mãos de Nise, tocado com o que viu e que tinha forte relação com aquilo que havia vivido em suas experiências com pacientes esquizofrênicos (MELLO, 2014).

Nise não só negou a apertar o eletrochoque como foi firmemente contra a lobotomia. Em seu trabalho sobre Lúcio, um interno com esquizofrenia do hospital de Engenho de Dentro, Silveira (1992) revela as lindas esculturas que ele produzia sempre na forma de guerreiros expressam a luta entre o bem e o mal e a deformação que teve em suas expressões artísticas após a cirurgia. Apesar dos apelos de Nise, sua família permitiu que ele passasse por uma cirurgia de lobotomia perdendo toda a capacidade criativa, tornando-se passivo e sem nenhum estímulo para a criação de imagens (SILVEIRA, 1992).

 

4. Diálogos entre Nise e Jung - A arte como expressão simbólica

Nise iniciou seu trabalho com os pacientes, que costumava chamar de clientes, com uma oficina de costura num espaço sem mesas e cadeiras, no chão. Para aqueles que não queriam participar das oficinas, certa vez tirou suas meias e fez uma bola para que pudessem jogar futebol e ter um espaço lúdico. Isso mostra que, mesmo em situações onde não há material, é preciso ser criativo e propiciar um espaço para a criação do paciente. Assim, Nise fazia das dificuldades oportunidades de práticas criativas, usando sua sensibilidade e praticidade. Em um dos relatos em sua biografia escrita por Mello (2014), ela diria: "Tenho Lampião debaixo da pele... Também se não tivesse, já tinha sido esmagada há muito tempo" (p. 294).

Os monitores, além de serem orientados para trabalharem no atelier de pintura, participavam dos estudos em grupo de estudo conhecido e frequentado por muitos médicos, psicólogos e profissionais de outras áreas, além de internos do hospital. Sua grande amiga e médica Alice Marques consegue como diretora do hospital abrir mais espaços para a terapêutica ocupacional. O serviço se amplia em oficinas de sapataria, cestaria, teatro, jardinagem, música, carpintaria, encadernação e recreação. Também desde 1946, havia as oficinas de xilogravura, pintura e atividades expressivas, e os trabalhos eram tão importantes que Nise se inspira em criar em 1952 o Museu de Imagens do Inconsciente. Em dezembro de 1946, foi feita a primeira mostra dentro do hospital psiquiátrico (MELLO, 2014).

Criticada pela psiquiatria tradicional, Nise tem o apoio de artistas e intelectuais que compreendiam a grandeza de seu trabalho, como Carlos Drummond de Andrade que escreve um lindo texto em sua homenagem onde diz:

Nise interroga o inconsciente e consegue que dele aflorem as representações artísticas espontâneas, prova de que nem tudo em seus autores é caos e aniquilamento: perduram condições geradoras de uma atividade bela, a serem devidamente estudadas visando ao benefício do homem futuro, tornando-o mais transparente em suas grutas interiores (MELLO, 2014, p. 263).

Na arte, onde compreendia o lugar de mais forte expressão simbólica, explorou várias possibilidades. Quando os internos começam a desenhar mandalas, Nise escreve para Jung para que o "mestre" pudesse validar e confirmar se eram mandalas. Em uma carta ele confirma e, anos depois, Nise se inscreve no II Congresso Internacional de Psiquiatria e o próprio Jung envia para Nise um convite formal para sua participação. Ele abre a exposição brasileira e destaca o fato de que nas pinturas há temas comuns retratados por esquizofrênicos, mas apresenta cores vivas num segundo plano da pintura, o que lhe parece mostrar que esses pacientes pintavam envoltos numa atmosfera afetiva de aceitação por parte dos que os acompanhavam. Nise esteve com Jung por duas vezes em entrevistas e, em sua biografia, Mello (2014) relata a emoção de um primeiro encontro e o conselho de Jung que dizia que ela deveria estudar mitologia para a melhor compreensão das imagens. Além disso, Jung ainda a convida a frequentar o instituto suíço, onde ela completa sua formação.

O grande encontro de Jung e Nise se dá, portanto, pelas imagens. Sabemos que, para Jung, o trabalho com imagens era algo que permeou empiricamente sua vida e sua prática com seus pacientes.

No livro recém-lançado "A arte de Jung", Hoerni et al. (2019) comentam que a obra artística de Jung, antes do lançamento de "O Livro Vermelho" que veio a público por Sonu Shandasani (JUNG, 2010) nunca havia sido publicada e organizada. Assim, o autor traz uma classificação da mesma com desenhos e pinturas de Jung de fantasias e imagens suas internas, paisagens e aquarelas, o esboço de suas casas em Kusnacht e Bollingen, objetos em sua casa com vários tipos de materiais, o desenho do brasão de sua família que é por ele reformulado, esculturas na pedra em sua casa em Bollingen, além de desenhos em cartões, pedra esculpida no memorial de Toni Wolf e Emma Jung. No "Livro Vermelho" (JUNG, 2010), inúmeras imagens esteticamente tratadas e belas revelam não apenas os aspectos inconscientes de Jung traduzidos em imagens e diálogos, mas o lado artístico do autor que amplifica seus símbolos com riqueza de detalhes e traços precisos de quem está familiarizado com a expressão artística.

Seus pacientes eram sempre encorajados a trabalhar seus símbolos e ampliarem seus significados, mesmo longe de sua presença e da sessão terapêutica. Assim, temos registros de imagens de visões espontâneas de uma paciente nas suas conferências dos Seminários e Visões, que inicia explicando que as palestras e esse estudos tinham como objetivo falar sobre a função transcendente por meio dos sonhos e das imagens expressas pelo desenho e pintura, promovendo a síntese de sua paciente. A ideia era mostrar por esse material como era possível estabelecer uma conciliação interna, através da superação dos opostos presentes nas possibilidades simbólicas (JUNG, 1983).

Para Jung (2019c), o símbolo define-se de forma diferenciada, e a esse respeito ele escreve: "Chamamos de símbolo um conceito, uma figura ou um nome que nos podem ser conhecidos em si, mas cujo conteúdo, emprego ou serventia são específicos ou estranhos, indicando um sentido oculto, obscuro e desconhecido" (p. 201).

Assim, para Jung (2019c, p. 201), a base do símbolo é a função transcendente que permite que possamos efetuar a ligação entre conteúdos conscientes e inconscientes. Essa reunião de conteúdos pode promover uma síntese, uma outra possibilidade que resulta dessa união de conteúdos opostos.

Assim, a vida simbólica não se expressa apenas em imagens oníricas ou espontâneas que se refletem na arte, mas pode estar contida em outras formas de representação do símbolo. A própria palavra pode ter um significado simbólico ou, segundo Ramos (2006), os sintomas que surgem no corpo, como revela a psicossomática na psicologia analítica. Porém, na arte, é possível observarmos uma possibilidade de expressão simbólica através da pintura, da escultura, da música, da poesia, entre outras possibilidades.

Considerando que o paciente esquizofrênico tem uma dificuldade na comunicação clara e objetiva, especialmente para falar de suas emoções e do que se passa dentro de si, Nise da Silveira encontra na arte uma forte aliada como proposta de expressão simbólica do paciente. Além disso, possibilidades dessa expressão vindas de relatos escritos de paciente, como, por exemplo, o de Beta, paciente que se expressava em seu caderno enquanto internada como psicótica, também são muito relevantes. Em seu livro, Beta D'Rocha (2003) relata que através de estudos no Museu e quando começou a frequentar o ateliê de artes que passou a compreender o quanto era importantes anotações que fizera num caderno que ganhara de sua irmã para fazer seus registros dentro do hospital: "A partir daí, fui percebendo as ligações entre uma crise e outra e sentindo que poderiam ser traduzidas quando vistas sob a forma de símbolos. [...] A primeira observação foi que a maioria dos símbolos trazia no seu todo uma ligação do mundo interno com o mundo externo" (p. 29).

Os trabalhos de pintura de Adelina, Carlos Pertuis e Fernando Diniz tornaram-se documentários e estudos de caso de uma importância ímpar. Esses documentários foram feitos por Leon Hirszman, famoso cineasta brasileiro, que retrata as imagens pintadas, bem como os autores, com o texto de Silveira (1981). Esses documentários trouxeram enorme repercussão para o trabalho desses artistas, doentes mentais em tratamento e que tinham sua história narrada pelas suas próprias imagens e analisadas por Nise. Silveira (1981) descreve esses casos clínicos, analisa suas imagens e segue o conselho de Jung de usar seus conhecimentos de mitologia e pesquisas com material comparativo para interpretar símbolos que expressavam imagens arquetípicas. Esses conteúdos eram originários do inconsciente, de suas camadas mais profundas e se mesclavam com questões pessoais de forte teor afetivo, reprimidas, esquecidas e que passam a ser retratadas nas imagens pintadas (MELLO, 2014).

Ao tratar cada caso, Silveira (1981) utilizava a mesma metodologia que Jung aplicava aos sonhos, a análise em série. Colocava diante de si as inúmeras imagens dos pacientes, catalogadas, datadas e seguia o percurso das imagens a partir da sequência que revelava a narrativa mítica. Quando identificava o mito correspondente às imagens verificava a relação do conteúdo do mesmo com a história de vida do paciente. Silveira (1981) observava claramente na série de imagens que recolhia em anos de trabalho com os pacientes, a transformação dos símbolos e o retorno do paciente para camadas mais próximas à consciência. Constatava, assim como Jung o fizera anteriormente, que a psique inconsciente tinha uma função de auto-regulação que levava naturalmente o paciente a uma tentativa de reorganização psíquica e autocura. Jung considera que: "Assim como o organismo reage de maneira adequada a um ferimento, a uma infecção ou a uma situação anormal da vida, assim também as funções psíquicas reagem a perturbações não naturais ou perigosas, com mecanismos de defesas apropriados" (2019c, p. 203).

Para Jung (2019e) o princípio de autorregulação pode ser visto nos sonhos e imagens espontâneas que são produzidas, e pode ser integrada parte de seu significado pela consciência, na medida que o ego for capaz de estabelecer um diálogo com esses aspectos inconscientes. Mas, no caso da esquizofrenia, esse ego está fragmentado e, portanto, o caminho de volta para esse diálogo é mais difícil e sinuoso.

Para Jung (2019e), a presença de imagens arquetípicas requer uma outra forma de ampliação em torno da imagem por parte do terapeuta, a qual ele chamou de amplificação. Assim escreve quando estamos diante de um conteúdo arquetípico:

A partir daí percebe-se claramente que se trata de uma emoção coletiva, isto é, de uma situação típica fortemente afetiva, que não é, em primeiro lugar, uma expressão pessoal, mas só se torna de tal natureza em fase posterior. Trata-se, primeiramente, de um problema humano geral que, por não ter chamado a atenção subjetiva, procura abrir caminho, de maneira objetiva, até a consciência do sonhador (p. 247).

Silveira (1981) observou, por exemplo, em sua paciente Adelina Gomes, cuja temática era a repressão materna e um desenlace ruim de uma relação amorosa fortemente reprimida pela mãe, a descrição do mito de Dafne. Nele, a ninfa em fuga do Deus Apolo é transformada em flor. A metamorfose vegetal aparece fortemente nas imagens de Adelina bem como imagens da mãe terrível e repressora. Esculturas também retratam essas características da mãe terrível, algumas comparadas com esculturas do neolítico onde essas mães tinham inclusive garras de crustáceos. As imagens evoluem para temas mais recentes e mães mais amorosas. Surge uma versão de Demeter e Perséfone, deusas representantes dessa díade mãe e filha inseparáveis. Até que Adelina chega na imagem da Virgem Maria. Também em suas pinturas, depois de uma série de mães, aparece o gato, representante de seus instintos tão fortemente reprimidos. Interessante notar que no seu primeiro surto, Adelina estrangula a gata de sua casa. Portanto, percebemos que as imagens e as temáticas vão formando uma trama que aos poucos pode ser revisitada de uma forma mais clara. A paciente esquizofrênica pinta suas imagens enquanto Nise a observa de longe, mas ela não fala sobre suas imagens, apenas a retrata e diz poucas coisas a respeito. Porém, o fato de essas imagens serem compartilhadas e virem à consciência possibilitam uma grande melhora para paciente que muda em sua atitude e comportamento com os outros internos e com a equipe do museu e monitores. Aos poucos, Adelina encontrou uma possibilidade de viver um pouco mais próxima da realidade. Na realidade, namorou um interno e sua relação com o masculino ficou mais saudável, bem como sua agressividade excessiva desapareceu.

O caso de Adelina é um estudo no qual vemos uma psique viva, dinâmica, capaz de expressar um drama interno através de imagens pintadas numa narrativa imagética que precisa ser traduzida para que haja a compreensão de seu conteúdo (SILVEIRA, 1981).

O fato de Nise ter colocado essa dinâmica psíquica viva de vários pacientes em imagens, como prontuários de suas vidas inconscientes, valida empiricamente a teoria de Jung e possibilita uma abertura para pesquisas importantes sobre a esquizofrenia, ainda vista de forma preconceituosa em nossa cultura.

Silveira (1981) abriu vários campos para pesquisa. Criou um museu de imagens, manteve os ateliês de pintura e arte, treinou sua equipe técnica em termos de atitude terapêutica, fez documentários preciosos de seus trabalho, inaugurou um grupo de estudos de Jung com participação de sua equipe e de outros profissionais de saúde, bem como pacientes. Escreveu livros relatando seu trabalho, deu entrevistas discutindo as questões de saúde mental, realizou exposições nacionais e internacionais mostrando que esquizofrênicos eram capazes de expressar suas emoções, que eles também tinham uma voz que ao ser silenciada, passava a ser representada por imagens. Realizou peças de teatro, com homenagens a Dionísio, personagem muito vivo nas pinturas dos internos, tema frequente que se intercalava com de outros deuses e deusas pagãos, que retratavam a dificuldade de suprimirmos os instintos da vida humana pregadas pela vida cristã (MELLO, 2014).

O caso de Adelina foi apresentado em Zurique e relacionado com outros estudos de casos europeus. Segundo Mello (2014), Nise conta que Marie Louise von Franz a ajudou na organização das imagens e o próprio Jung também incluiu algumas das imagens brasileiras no arquivo do Instituto C. G. Jung, em Zurique.

Para Jung (2019d), o amor só poderia existir com a presença dos instintos e a espiritualidade juntos. A negação de uma dessas instâncias pode levar o indivíduo a uma cisão enorme tão presente ainda na contemporaneidade. Assim, vemos que a história de Adelina, embora com atravessamentos socioculturais, ainda é presente na história de muitas mulheres que sofrem por decepções amorosas e apresentam um ego frágil para dar conta dessa dor e sofrimento.

Quanto às mandalas, na medida que começaram a surgir no setor de terapêutica ocupacional, Nise enviou fotos para Jung e ele reconhece esse símbolo que surge em várias pinturas de seus pacientes e que aparecem nas religiões (MELLO, 2014).

Jung (2019f) comenta que "[...] as mandalas aparecem de preferência depois de estados de desorientação, pânico ou caos psíquico" (p. 356). Seu objetivo é, segundo Jung, transformar o caos e trazer uma certa ordem numa atitude compensatória da psique, cuja função autorreguladora já tratamos anteriormente.

Na pauta das análises de casos realizadas por Silveira (1981) e divulgados como estudos e fontes de pesquisa, estão incluídas em seu segundo livro as histórias de Lucio e suas esculturas de guerreiros que culminaram em seu triste fim após a cirurgia de lobotomia. Após a cirurgia, descreve como a alma criativa de Lucio foi capturada e destruída. Incapaz de estabelecer contato com a arte novamente, quando o fez, algumas vezes, tinha apenas uma expressão sem vontade e todo seu talento nem parecia ter existido um dia. Também as pinturas de Emygdio, retratos da desordem da psique inconsciente onde o mundo interno coincide com o externo e se cruzam desordenadamente, aos poucos, através de sua pintura foi delimitando esses espaços, o que se refletiu em sua melhora também (SILVEIRA, 1992). O crítico de arte Mario Pedrosa, segundo Mello (2014), elogiava sua pintura e o considerava um gênio da arte.

Silveira (1981) cunhou alguns conceitos que expressam simbolicamente e de forma imagética o seu "fazer terapêutico". Uma dessas expressões é a de "afeto catalizador" que representa a possibilidade de um espaço terapêutico que propicie a expressão criativa do paciente através de um vínculo afetivo e encorajador. Silveira (1981) apresentava uma enorme preocupação com a capacitação e formação dos monitores que eram os que estariam mais próximos dos pacientes. Para isso não deveriam intervir no que eles estavam pintando, mas propiciar, como na química, uma velocidade nas reações a partir de uma postura encorajadora e terapêutica.

Von Franz (1999) irá falar da importância de um campo afetivo no vínculo com o paciente podendo propiciar um espaço transformador. Gambini (2008, p. 138) vai usar a ideia do que ele chama do "solo" do trabalho terapêutico, ou seja, do espaço capaz de fazer surgir e nascer transformações com a presença do paciente e do psicoterapeuta. Vemos, portanto, que Silveira (1981) compreendia a importância terapêutica dos monitores que, mesmo não sendo psicólogos, deveriam assumir uma postura de investimento no próprio processo interno e de conhecimento, para que pudessem estar junto ao paciente sem intervenções particulares, pois sabia que tal qual no processo analítico, ao observarem as pinturas e o convívio com os pacientes, eles sairiam também transformados. Por essa razão, participavam com frequência dos eventos e grupos de estudo do Museu de Imagens do Inconsciente. O afeto catalizador era de uma atitude encorajadora, porém não diretiva, quanto ao que o paciente iria pintar.

Uma outra expressão de Nise é a que ela chama de "Emoção de lidar", que trata-se do fazer ou se expressar com as mãos, com o fazer terapêutico. Ou ainda "os inumeráveis estados do ser", expressão que foi inspirada na leitura de Antonin Artaud, poeta francês que foi internado em hospital psiquiátrico, capaz de, mesmo como paciente, fazer uma severa crítica à psiquiatria tradicional e o uso de técnicas como o eletrochoque. Silveira (1981) dizia que essa expressão seria mais adequada do que a palavra esquizofrenia, que rotulava e diagnosticava o doente tirando dele sua humanidade. Ora, se pensarmos nos complexos, nomeados por Jung de subpersonalidades, presentes na psique de todos nós, cujo núcleo sempre está ligado a um arquétipo, podemos visualizar essa pluralidade de formas de ser que podem vir a tona na consciência, especialmente se o ego, o grande maestro da consciência, apresentar fissuras profundas, como no caso da esquizofrenia.

Para Jung (2019c, p. 87), o complexo é formado por um aglomerado de associações com uma tonalidade afetiva acentuada ou traumática. A visão de Artaud desses inúmeros estados que podem ser vividos revela na verdade a natureza múltipla de nossa psique, já que os complexos para Jung são dotados de energia própria e comportam-se como personalidades que ele chama de "parciais", possuindo inclusive uma "fisiologia própria" e na esquizofrenia vão se manifestar deliberadamente como personalidades parciais (JUNG, 2019e).

Portanto, são muitas as contribuições de Nise da Silveira com seu trabalho, que não se resumem a uma série de pinturas guardadas e expressas por pacientes, mas fazem parte de uma pesquisa de grande sofisticação, apresentando uma série de imagens que revelam o caráter arquetípico das histórias humanas com as quais encontram-se relacionadas.

Além disso, muitos pacientes apresentavam melhora em seu quadro clínico e se relacionavam melhor com seus familiares, com outros internos e com a equipe. Foi quando Nise criou a Casa das Palmeiras, uma clínica onde o paciente fazia uma transição do hospital para sua vida familiar e em comunidade. Era uma casa para o paciente passar parte do dia e ainda ter referência do tratamento anteriormente recebido e o trabalho com a arte como expressão de suas emoções. Nesse sentido, podemos dizer que Silveira foi precursora dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), na medida que A Casa das Palmeiras era um lugar apenas para o paciente passar o dia, acompanhado de familiares ou sozinho. Nise se preocupava muito com a questão do egresso e queria conseguir que o paciente pudesse de fato ser reintegrado à sociedade. Portanto, a Casa das Palmeiras servia como uma ponte entre a institucionalização e a volta para a vida social (MELLO, 2014).

Para Nise, a psiquiatria foi algo que integrou em sua trajetória assim como Jung que trouxe sua experiência psiquiátrica como importante passagem de aprendizado fundamental em sua vida. Em 1950, escreve ao filho de Bleuler uma carta, visto que ele continua com o trabalho do pai na clínica psiquiátrica do Burgholzli:

Devo muito à psiquiatria e sempre me conservei interiormente próximo a ela, pois desde o início me preocupou um problema geral: de que estrato procedem as ideias tão impressionantes da esquizofrenia? As questões daí resultantes levaram-me aparentemente para bem longe da psiquiatria clínica e fizeram-me perambular pelo mundo todo. Nessas viagens aventureiras descobri tantas coisas que nunca sonhei em Burgholzli; mas a maneira rigorosa de observar, que lá aprendi, acompanhou-me por toda a parte e ajudou-me a entender objetivamente a estranha psique (JUNG, 2019a, p. 171).

Silveira (1981) também tinha uma outra característica interessante: ela costumava observar os pacientes, sobretudo quando estavam pintando ou realizando alguma atividade. Segundo a autora, gostava de ver as expressões e a força que os impulsionava às imagens. Isso diferenciava seu olhar para as imagens, pois participava da sua criação de uma forma silenciosa, mas afetiva. A observação e a pesquisa eram constantes, bem como os estudos que iam desde Jung à Bachelard, Machado de Assis, Freud, entre outros tantos nomes que deixou em sua biblioteca particular. Essa lista de leituras foi deixada por ela para serem discutidas nos grupos de estudo, cumprida até hoje pelo projeto BENEDITO, um grupo de interessados em debater conteúdos de textos propostos por Nise.

Em sua velhice, assim como Jung, aproximou-se mais da vida instintual e da natureza, especialmente dos animais que amava. Tinha vários gatos e escreveu sobre o simbolismo dos gatos. Considerava os animais coterapeutas, pois, devido ao seu afeto incondicional, eram capazes de trazer o paciente de suas imagens internas para um pouco da realidade consciente. No final da vida costumava ir a um retiro budista em Santa Teresa, bairro do Rio de Janeiro. Morreu dizendo que ia para "outras galáxias" e escreveu num poema que o poeta do espaço "não carrega nem cajado nem sacola" porque possui a liberdade (MELLO, 2014).

 

5. Considerações finais

Sempre que se trata de Nise da Silveira, tem-se a impressão de ter esquecido algo das inumeráveis possibilidades e contribuições que trouxe para a psicologia. Sempre parece pouco retratar o que fez essa grande mulher e profissional pela saúde mental e psicologia analítica, especialmente no Brasil.

Nise da Silveira foi a primeira brasileira a estudar no Instituto C. G. Jung de Zurique, a conhecer Jung e a ter o reconhecimento dele para seu trabalho. Se não bastasse isso, deu continuidade ao trabalho com esquizofrênicos e pesquisou as manifestações das imagens arquetípicas presentes na expressão simbólica desses pacientes seguindo a mesma perspectiva que Jung criou em seu método de leitura de imagens, com base em amplificações e estudos de material comparado na mitologia e alquimia.

Atualmente passamos por um momento político no qual ainda ouvimos a respeito de técnicas e intervenções agressivas para a cura de pacientes. A discussão da medicalização e de uma possível volta de hospitais psiquiátricos nos lembraram tempos sombrios pelos quais Nise passou em sua prática como médica psiquiatra. Como profissionais que escutam a alma humana, precisamos estar atentos aos ruídos que se anunciam para destruir a liberdade conquistada e os avanços da saúde mental. Temos muito ainda a aprender com Nise e com Jung e temos mais junguianos e niseanos buscando ampliar essas ideias no fomento à estudos e pesquisas.

O extenso trabalho de Nise da Silveira, vivo até hoje e expandido para vários grupos em todo o Brasil, precisa ser constantemente revisitado e ainda mais aprofundado. Não aproveitamos com profundidade o imenso legado que ela nos deixou para a pesquisa, sobretudo de pacientes psicóticos e esquizofrênicos. Esse legado que Nise nos deixou demonstra didaticamente a estrutura da psique proposta por Jung, composta de camadas mais profundas do inconsciente coletivo que se manifestam pelas imagens arquetípicas. Ela retrata em sua relação construída com o paciente respeitando seu potencial interno, o que Jung compreendeu como um método construtivo na relação terapêutica.

Em seu trabalho, vemos o mito vivo e compreendemos o que disse Campbell por toda sua vida, sobre o poder transformador e educativo das narrativas míticas, da origem sagrada dessas narrativas que retratam o humano e estão presentes nas imagens mais arcaicas manifestadas por nossa psique, atravessando nossos complexos culturais e pessoais.

Em seu livro "Cartas a Spinoza", vemos seu olhar para o transpessoal e visitamos as fronteiras da espiritualidade construída e não fragmentada. Em seu amor por Artaud, vemos a empatia com suas ideias e com sua linguagem poética.

Nise tem uma fala imagética presente na narrativa dos casos clínicos de seus pacientes, onde transforma suas biografias em vidas carregadas de símbolos e emoção. Devolve para essas pessoas, que foram tão maltratadas e coisificadas pela psiquiatria tradicional e por uma sociedade de preconceitos, uma vida simbólica. Ao devolver isso a seus pacientes ou clientes, é capaz de reestruturar certo equilíbrio psíquico e afetivo, tornando todos menos invisíveis socialmente.

Nise trata as expressões simbólicas como sua segunda língua, dedicando-se sempre ao estudo da arte, da música e do teatro. Teve grandes amigos artistas e o apoio de todos, porque eles compreendiam essa sua segunda língua, a linguagem simbólica. Afinal o artista também passa por muitas metamorfoses parecidas com o chamado "louco", mas é capaz de voltar do mundo das imagens sem ser consumido por elas. Eles têm um ego que suporta esse contato e conseguem compartilhar e transformar suas emoções em arte, sem serem inundados pelos conteúdos inconscientes. Afinal, sabemos que o símbolo é um transformador de energia que pode nos levar de um nível psíquico para outro.

Jung também obteve na imagem sua outra língua, expressando-se através das imagens e dando imensa importância à sua vida simbólica. Vemos isso em toda sua vida relatada em suas memórias e da qual seus livros são testemunhos de suas formas de pensar o ser humano em sua dimensão psíquica. Em seu último ensaio, dedicado ao livro "O homem e seus símbolos", concluído poucos dias antes de sua morte, deixa sua última mensagem para leigos. Ressalta a importância dos sonhos com acesso ao inconsciente e a importância de termos uma vida simbólica que nos traga significado.

Assim, Nise e Jung viveram o mundo das imagens e aprenderam a olhar além da expressão verbal. Ambos perceberam que, além das palavras, há uma mensagem expressa por outras formas simbólicas, e que até nas palavras podemos ver os símbolos se expressarem. Para traduzir os símbolos, Jung nos lembra que o intelecto só não dará conta e que, por isso, faz-se necessário recorrer a outras formas de ler a linguagem simbólica e as mensagens da alma. Compreender essas imagens foi a tarefa de Jung e Nise. Ampliar esse legado é um trabalho de todos nós!

 

Referências

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Recebido em: 24/03/2021
Revisão em: 25/06/2021

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