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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.1 São Paulo jan./jun. 2021

 

Processo teatral - Uma jornada da psique

 

Proceso teatral: una travesía de la psique

 

 

Patrícia Teixeira

Psicóloga. Mestre em Psicologia Clínica - Núcleos Junguianos (PUC-SP). Especialista em Psicologia Analítica (PUC-SP). Professora e diretora de teatro (UNI-RIO). Especialista em Método Stanislavski (GITS-Moscou). Especialista em Direção Teatral (Escola Célia Helena-SP). Diretora da Cia. Coexistir de Teatro que propõe a encenação de jornadas arquetípicas por meio do mito. Coordenadora do eixo temático Formação, técnicas e prática do artista teatral e da coleção Diálogos com a Psicologia Analítica, ambos da editora Paco. Professora da PUC-RJ, CAL-RJ e UNIP-SP. Autora das técnicas expressivas: Narrativas Psico-históricas e Performance do Mito com o objetivo de ampliação simbólica de conteúdos da psique. email: <psicofabulas@hotmail.com>

 

 


RESUMO

Este artigo procura ampliar o fenômeno teatral, no qual busca, por meio da leitura da psicologia analítica, investigar a compreensão psíquica na elaboração da subjetividade desenvolvida pelo processo teatral para além do mise-en-scène. Assim, compreende o espaço teatral enquanto espaço de coexistência do indivíduo com partes desconhecidas da sua história pessoal em consonância com uma visão maior da história de seu tempo. Dentre tantas perspectivas entre teatro e psique discutidas outrora por outros estudiosos, direciona-se um olhar próprio da psicologia analítica para o fazer teatral, que, para além de suas coxias, proscênios ou quaisquer delimitações, pode oferecer ao indivíduo o contato criativo com uma nova forma de sentir-se atuante e pertencente a seu espaço na sociedade e no mundo, apropriando-se de sua própria história num recontar-se simbólico por meio das personas que veste na linha contínua das dramaturgias que atravessam o passado, o presente e se dirigem para o futuro em uma espiral de si mesmo.

Palavras-chave: Teatro, Processo Criativo, Subjetividade, Psicologia Analítica, Individuação.


RESUMEN

Este artículo busca ampliar el fenómeno teatral, en el que, a través de la lectura de la psicología analítica, se busca indagar en la comprensión psíquica en la elaboración de la subjetividad desarrollada por el proceso teatral más allá de la puesta en escena. Así, entiende el espacio teatral como un espacio de convivencia del individuo con partes desconocidas de su historia personal, en línea con una visión más amplia de la historia de su tiempo. Entre tantas perspectivas entre el teatro y la psique discutidas por otros estudiosos en el pasado, una mirada de la psicología analítica se dirige a hacer teatro, que, además de sus axiomas, proscenios o cualquier delimitación, puede ofrecer al individuo el contacto creativo con una nueva forma de hacerlo sentirse activo y perteneciente a su espacio en la sociedad y en el mundo, apropiándose de su propia historia en un recuento simbólico a través de los personajes que porta en la línea continua de dramaturgias que atraviesan el pasado, el presente y se dirigen hacia el futuro en una espiral de sí mismo.

Palabras clave: Teatro, Proceso Creativo, Subjetividad, Psicología analítica, Individuación.


 

 

1. Introdução

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
(PESSOA, 1972, p. 164).

O poema de Pessoa ilustra as relações entre teatro e vida, ou teatro e homem. Inúmeros estudos e artigos abordam a relação do teatro com outras áreas do conhecimento, como Política, Educação, Sociologia, Antropologia, Filosofia, Religião e Psicologia, mais especificamente o Psicodrama1. Mesmo distintas em seus objetivos e metodologias, têm como ator principal o homem em ação; ação permeada por um sentido estético do si mesmo e do meio e, com isso, o homem vai se descobrindo, inventando e reinventando razões para ser, estar e atuar.

Na relação entre teatro e psicologia, metaforicamente, podemos relacionar o verbo "atuar" a dois sentidos: o teatral e o psicológico. No teatro, atuar significa estar em ação. Na Psicanálise, esse verbo é utilizado quando o paciente reage frequentemente de maneira defensiva a alguma situação com a qual é difícil entrar em contato. A experiência teatral pode refletir um processo em que o atuar no palco possa integrar partes desconhecidas do indivíduo, favorecendo um atuar2 na vida mais criativo. O teatro pode ser pensado como um ensaio para a reestreia da psique na vida por meio de um processo de atuação teatral da alteridade, que pode revelar a psique.

A palavra "teatro" vem do grego "theastai", que significa "lugar de onde se vê", "miradouro". Primeiramente, a palavra "teatro" designava o local onde aconteciam os espetáculos e, posteriormente, passou a nomear uma das linguagens da arte: o teatro per se, ou seja, uma arte específica que é transmitida ao público por meio da figura do ator. "Teatro é por essência presença e potência de visão - espetáculo - e enquanto público, somos, antes de tudo, espectadores, e a palavra grega, teatro, não significa senão isso: miradouro, mirador" (ORTEGA Y GASSET, 1991, p. 32).

Na antiguidade, o local onde se representava era chamado de "odeion", auditório. Segundo Magaldi (2002), na terminologia dos logradouros cênicos da Grécia, "teatron" corresponderia à plateia, que era anteposta a uma espécie de orquestra e a envolvia como três lados de um trapézio ou um semicírculo, oferecendo uma dimensão estética privilegiada para contemplação e percepção crítica.

Ao abordar, de forma metafórica, essa acepção primitiva da palavra "teatro" - miradouro - é possível estabelecer pontos de identificação com a leitura Junguiana de forma a se vislumbrar a mesma proposta, ainda que com objetivos diferentes: a psicologia analítica ofereceria ao analisando um novo lugar de onde se vê, ou seja, uma nova estética da vida a partir de uma confrontação mais crítica do ego. Apesar do ego, muitas vezes, acreditar-se conhecedor e consciente de si mesmo, no processo terapêutico, ele é confrontado com o inédito espetáculo panorâmico de sua vida e toma consciência de partes suas até então desconhecidas.

A partir de minha experiência como professora e diretora de teatro, meu olhar de psicóloga tem procurado compreender mais profundamente, sob o prisma da Psicologia Analítica, as possibilidades da criatividade no fazer teatral. É importante referir meu trabalho como diretora da Cia. Coexistir de teatro, na qual desenvolvo parte de um processo criativo que vai sendo construído por meio da atualização da linguagem simbólica da mitologia na criação da dramaturgia, destacando-se pela experiência de mitos em cena, na qual, a partir desses mesmos mitos, o grupo teatral e o púbico estabelecem um diálogo com temas existenciais e sociais.

Este artigo tem por objetivo apresentar o fenômeno teatral, sua história e a leitura do teatro como possibilidade de ampliação de conteúdos da psique dos envolvidos no processo artístico, e, também, sua recepção pelo público, que se torna coautor da obra. O processo teatral, a partir da perspectiva da psicologia analítica, pode possibilitar o contato consciente com uma experiência arquetípica que facilita a integração de aspetos desconhecidos, facilitando o processo de individuação. Nas seções abaixo serão apresentadas algumas relações do teatro enquanto fenômeno mítico, político e social; a visão Carl Gustav Jung sobre o processo criativo; e considerações sobre o processo do grupo teatral a partir de uma leitura da psicologia analítica.

 

2. Teatro - Um fenômeno mítico, político e social

Para compreender a experiência cênica do teatro na vida, deparamo-nos com a genuinidade do ato teatral no contexto de cerimoniais religiosos, primeiramente, nas mais antigas civilizações do oriente. Na Índia, desde o século XVI a.C., atribuía-se ao deus Brama a paternidade do teatro litúrgico. Na China antiga, o budismo apresentava-se por meio de um teatro religioso. No Egito, os temas centrais ritualizados eram a ressurreição de Osíris e a morte de Hórus (MICHELET, 2018).

Posteriormente, na Grécia, berço da civilização ocidental (século V a.C.), a ligação entre teatro e religião também estava presente nas celebrações de Dionísio, quando se atualizava o mito por meio do rito, o que deu origem ao nascimento da tragédia no teatro grego. A tragédia, primeiro gênero dramático, tem sua origem em ritos dedicados a Dionísio, nos quais o povo, de forma profana e descontraída, embriagava-se como forma de entrar em contato como o deus homenageado.

De acordo com Pavis (2007):

Em O Nascimento da Tragédia (1872), Nietzsche [...] visa destacar as forças impulsivas e moldantes da criação artística segundo as quais toda arte evolui. [...] O dionisíaco não é a anarquia das festas e orgias pagãs; ele é consagrado à embriaguez, às forças incontroladas do homem que renascem quando da primavera, à natureza e ao indivíduo reconciliados (p. 22).

Em seus caminhos, o homem depara-se com Deus e com a representação deste e, por meio do rito, atualiza a força dentro de si. Ao encarnar Dionísio, o homem encontrava a revelação de sua própria fonte criadora. Segundo Hillman (1997), Dionísio é a imagem arquetípica da vida que sempre se renova. Essa vida é renovada pelo ator/atriz em cada momento que compartilha o seu processo criativo com o público. O fato de o homem encarnar o homem representa um dado básico da antropologia, outra área ligada ao teatro que busca compreender o elenco social no qual o homem está inserido.

Na Grécia, podemos apontar duas áreas que se utilizaram do teatro para atingir seus interesses: política e educação. O teatro teve sua origem nos vinhedos gregos dentro de um contexto ritualístico e passou a ser utilizado pela polis grega de forma espetacular. Daí a denominação "espetáculo", cujo objetivo era educar o povo grego (GAZOLLA, 2003).

Na área da Filosofia, o teatro foi analisado por dois dos mais importantes pensadores gregos que chegaram até nós: Platão (428/27 a.C. - 347 a.C.) e Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.). Platão, discípulo de Sócrates, fundador da academia e mestre de Aristóteles, ocupou-se de temas como ética, política, metafísica e teoria do conhecimento. Platão criticava a arte de representar, segundo Bolognesi (1999):

No segundo livro da República, Platão conclui que as narrativas épicas não são boas (não devem ser) para a educação das crianças. Há, pode-se dizer uma "razão de Estado" em Platão. [...] A verdade, a moral e o útil devem imperar sobre a narrativa épica. Não há, em Platão, espaço para o prazer artístico. [...] Para Platão, poesia e retórica se equivalem. Ambas operam com falsos valores. Elas dominam a técnica particular e não o saber universal. Ao contrário do conhecimento autêntico, elas não geram ações. Nisso consiste, precisamente, a "razão de Estado" que fundamenta a reprovação da poesia. Os poetas não estão preocupados com o pensamento. Neles imperam as paixões. A ação trágica deve provir de um valor ético superior, assim como a ação dos homens provém das formas imutáveis, pela razão que a traduz, que a interpreta. Nesse itinerário, os homens e suas almas são apenas intermediários. Mas, antes de tudo, a tragédia é hostilizada porque ela está no terreno oposto ao da verdade (p. 1).

Pavis (2007, p. 404), em sua leitura de Aristóteles, afirma que o artista provoca no espectador "[...] a piedade e o terror que a tragédia cumpre a purgação (catarse) das paixões. Há compaixão e, portanto, identificação quando presumimos que também poderíamos ser vítimas dela, ou alguém dos nossos, e que o perigo parece próximo".

É importante pensarmos que o teatro surgiu no momento em que o governo grego criava suas leis e passou a ser a arena de discussões sobre a construção do cidadão grego, sendo utilizado pelos governantes como ferramenta de manipulação do povo que, confinado em uma arena como espectador ou em um palco como ator, não podia infringir as medidas propostas pelos deuses e governantes.

No Brasil colônia, o Teatro de José de Anchieta propôs uma forma de educação política e religiosa por meio do processo de aculturação do povo indígena, ou seja, uma forma de domesticá-lo conforme preceitos da Coroa Portuguesa e da Igreja Católica (VASCONCELLOS, 2009).

Segundo Rosenfeld (1976, p. 31), "o ator apenas executa de forma exemplar e radical o que é característica fundamental do homem: desempenhar papéis no palco do mundo, na vida social. [...] O homem - disse [George] Mead - tem de sair de si para chegar a si mesmo, para adquirir um Eu próprio". Em busca de desempenhar personas para, assim, encontrar sua essência, o ator executaria a função primordial do homem. O termo persona refere-se às máscaras que os gregos usavam no teatro grego. Por meio delas, o ator se tornava o porta-voz da psique coletiva. Jung (1875-1961) utilizou-se do conceito persona3 na Psicologia Analítica como um compromisso entre o homem e a sociedade no qual está inserido.

Na Grécia, mais especificamente na cidade de Epidauros, no qual encontramos o maior centro de busca de cura, que visava à totalidade do ser humano, havia: um pequeno teatro - o Odeon, um estádio para competições esportivas, um ginásio para exercícios físicos, uma biblioteca, uma sala para dormir e outra sala para escutar música e poemas. O conglomerado tinha como objetivo a elevação espiritual e a melhora dos que procuravam se cuidar (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005).

 

 

Segundo Solié (1985), o caminho para a cura seria atingido por meio do autoconhecimento, alcançando a consciência de si mesmo, o ponto de partida para a transformação dos sentimentos e ações reativas em atitudes saudáveis. Buscava-se uma profunda sintonia, não apenas do indivíduo consigo mesmo, a partir de pensamentos, sentimentos e ações saudáveis e construtivos, puros e originais, mas também como o chamado divino - um divino que é também humano - ao qual deveríamos nos religar.

Podemos, então, aferir que a palavra "teatro" é cercada por inúmeros caminhos, tão maiores ou iguais às suas possibilidades, em cujo epicentro, a figura de Dioniso, o deus-máscara dança a impermanência da vida na cena efêmera do teatro e que nos ensina o tão passageiro que somos. Um miradouro localizado em um centro de cura, um lugar de contemplação. Um espaço fértil de ligações do indivíduo com a potencialidade arquetípica que se é. De forma análoga, tanto na área da psicologia com a abordagem psicodramática de Moreno, como na própria área do teatro, com Augusto Boal4, propõe-se a redescoberta do Centro de Epidauros, utilizando-se da linguagem teatral como possibilidade não apenas vivencial, mas também reflexiva. Encontraremos na cidade de Epidauros, a possibilidade de um "lugar de onde o homem passa a se rever" em que a maior preocupação seria a integração do físico, emocional, espiritual e psicológico do homem. Podemos vislumbrar o processo teatral como um caminho em que a subjetividade pode ser compreendida. O indivíduo, enquanto narrador e personagem de inúmeras dramaturgias arquetípicas, reconta-se, dramatizando assim seu possível processo de cura, além de canalizar todo o material criativo do inconsciente coletivo. O espaço teatral poderia ser visto como um dos grandes intercessores do consciente e do inconsciente, do encontro entre atores/atrizes e público que, de forma atemporal, se reconhecem como possuidores da mesma essência divina e humana. Dionísio está presente e com ele "os artistas são as antenas da raça" (POUND, 1990, p. 77), aqueles que fazem a interlocução entre nossos aspetos dissonantes por meio de seus processos artísticos.

O teatro possibilita à nossa psique saber o fim das histórias. Sendo espelho de nosso psiquismo interno, o teatro sintetiza a vida em miniatura. A psique dá ao teatro a matéria e o teatro devolve à psique a forma para vida. É como se nas histórias representadas pudéssemos ser avisados pelo teatro: "Acordem para aquilo que estão fazendo, isso vai dar em sangue, em guerra, em morte, em perda, em separação" (GAMBINI; STIRNIMAN, 2005, p. 3).

Por isso, o ator, que é considerado o revelador de verdades ocultas, está sob a inspiração de Dionísio. E assim, arrebatado de sua vida cotidiana e recolocado em outras realidades, com os pés na zona limítrofe entre a normalidade convencional e a loucura, é o ator quem vai tocar no ponto sensível do homem.

 

3. Jung, o processo criativo e o teatro

O processo criativo pressupõe o contato com símbolos, os quais, expressam uma totalidade psíquica que é simultaneamente pessoal, cultural e arquetípica. Os símbolos são representados por imagens, experiências e vivências que abarcam aspetos conscientes e inconscientes, sendo a melhor expressão possível de algo relativamente desconhecido. Eles fazem parte de nossa existência e se apresentam sob a forma vivencial e experiencial, sendo impossível esgotar seu significado, o que permite estabelecer múltiplas relações e analogias (JUNG, 1991).

O teatro, como um intercessor entre o homem e seu processo de vida, trabalha necessariamente com a psique e o corpo por meio de seus símbolos. A psicologia analítica transcende a dicotomia entre psique e corpo na compreensão das manifestações físicas como um símbolo, que surge na urgência de que algo inconsciente seja integrado. Nessa perspectiva, o símbolo não é reduzido à visão do modelo reducionista que compreende uma questão causal; ao contrário, ele reflete uma gama de relações entre o consciente e o inconsciente que formam a totalidade do indivíduo.

Segundo Jung, as atividades vitais do ser humano são expressas psiquicamente através de imagens, sendo a psique formada por um conjunto de imagens que constituem uma estrutura rica de sentido (JUNG, 1986).

Podemos pensar no processo teatral como um espaço de fomentação de símbolos em torno de um tema arquetípico a ser desenvolvido - o tema do espetáculo. A experiência arquetípica do processo teatral pode possibilitar um caminho inédito na construção do espetáculo, um "devir criativo" em que o encenador oferece espaço para que os atores expressem suas fantasias, imagens e desejos. Dessa forma, a linguagem simbólica permeia o processo de criação e, principalmente, a prática que o ator constrói na mediação das oposições e que é materializada na relação entre o consciente e inconsciente.

O símbolo é a própria essência do processo criativo que atravessa o ator, podendo unificar partes suas desconhecidas e potencializar sua atuação e libertação de seus próprios paradigmas na vida, refletidos sincronicamente na cena. Entretanto, a mediação do símbolo entre consciente e inconsciente para ocorrer é necessária uma atitude participativa e receptiva por parte do ator que, desse modo, permite a atuação da "função transcendente"5 do símbolo, ou seja, da apreensão do mesmo.

Os arquétipos podem representar a totalidade da matriz de todas as personagens e abrir os múltiplos universos psíquicos e corporais do ator, promovendo, assim, uma maior amplitude psíquica e ofertando novas possibilidades de expressão do corpo, contribuindo, portanto, para dinamizar a potência que o atravessa.

O teatro possibilita o diálogo com o inconsciente e, de forma sincrônica, pode acessar o contato com imagens, fantasias e símbolos do ator acerca do tema do espetáculo, colaborando na elaboração de seus processos internos e ampliando, assim, a sua forma de atuação na construção do trabalho cênico. A partir dessa perspectiva, na prática, o encenador pode propor que os atores tragam imagens acerca das sensações propiciadas pelo tema do espetáculo, buscando explorar as fantasias como dispositivo simbólico entre o material teatral e o substrato inconsciente.

A encenação teatral se estrutura a partir de um caos criativo e intuitivo que vai se configurando nas experimentações que o inconsciente do grupo de atores acaba por constelar. No entanto, a transparência do processo carrega também a sua obscuridade: aquilo ou aquele que é rejeitado pelo grupo, por ser desconhecido, temeroso ou inaceitável. Estamos falando do arquétipo da sombra. Favorecer a integração de aspetos da sombra, possibilitar uma experiência menos rígida com a persona, é poder elaborar caminhos criativos tanto para o indivíduo quanto para o coletivo. Quanto mais a encenação investir no estabelecimento de uma relação de alteridade com o grupo, menor o risco de rejeição. A escuta é imprescindível para que os símbolos, as imagens e as experiências de cada ator que são ligadas ao tema encontrem espaço para se constelarem, pois, só assim, poderão ser devolvidas para os atores por meio das próprias personas criativas - imbuídas de suas respectivas sombras - que eles construirão no processo teatral. O processo teatral pode favorecer a integração de aspetos da sombra no desenvolvimento do processo de individuação.

Em uma palestra ocorrida em 1922, os conceitos referentes aos processos psicocriativos ganharam nome e adquiriram maior clareza mental na conferência de 1930, quando Jung apresentou os conceitos de criação psicológica e criação visionária, como dois modos de criar que determinam a produção de uma obra criativa. Na criação psicológica para Jung (2009a, par. 139), o indivíduo é idêntico ao processo criativo e se percebe verdadeiramente como autor daquilo que cria porque se alimenta das experiências pessoais, daquilo que se encontra dentro dos limites do que é apreensível e assimilável, o que torna a criação condicionada ao seu tempo e sua época. A criatividade é um material subordinado à vontade de seu criador, um produto de sua determinação.

Na criação visionária, Jung (2009b, par. 141) aponta que a obra criativa se impõe trazendo sua própria forma e conteúdo. Nela, o sujeito não se identifica com a atividade criadora e tem consciência de que está subjugado a um impulso que lhe é estrangeiro, a uma vontade que não é sua. Dessa forma, o impulso criativo é compreendido por Jung como uma essência viva presente na alma do homem.

Ele atua como um complexo autônomo, ou seja, ele brota do inconsciente de maneira involuntária, pois leva uma vida psíquica independente do controle arbitrário da consciência e aparece de acordo com seu valor energético e sua força. Portanto, o poeta que se identifica com o processo criativo é aquele que diz sim, logo que ameaçado por um "imperativo" inconsciente (JUNG, 1971, p. 64).

Segundo Whitmont (2000), o complexo apresenta-se como um padrão autônomo de comportamento e emoção, ele é um centro energético preenchido com questões pessoais que o tornam por vezes desagradável e perturbador, mas ele não é necessariamente negativo, pois isso depende da capacidade de assimilação que o ego possui. O complexo tem um núcleo arquetípico de onde provém sua energia e que, enquanto imagem impessoal e coletiva, apresenta características benéficas e renovadoras.

Nesse sentido, a criatividade, entendida como um complexo autônomo, diz respeito a uma energia psíquica forte e autêntica do indivíduo, que tem o poder de trazer para a consciência aspectos da sombra, sejam eles suas dificuldades ou suas potencialidades não reconhecidas.

Segundo Jung (1971), um complexo autônomo é aquele que abrange em primeiro lugar os conteúdos psíquicos que se desenvolvem no inconsciente e que irrompem na consciência quando sua força atinge um limiar. Isso significa que esses conteúdos não estão sob o controle da consciência, nem para inibição e nem para reprodução arbitrária. O complexo autônomo aparece e desaparece de acordo com uma tendência que lhe é inerente, sendo independente da consciência.

O processo criativo enquanto um processo autônomo apresenta essa característica de ser algo que não pode ser totalmente controlado pela via da consciência:

Este é o segredo da ação da arte. O processo criativo consiste (até onde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada. De certo modo a formação da imagem primordial é uma transcrição para a linguagem do presente pelo artista, dando novamente a cada um a possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo, lhe seria negado (JUNG, 1971, p. 71).

No processo artístico com os atores na Cia. Coexistir de Teatro, busca-se adentrar no Caos, sem intenção, simplesmente deixar-se alimentar das imagens inconscientes e traduzi-las numa linguagem, reconhecida de forma universal, sem reduzi-las à sua realidade pessoal e sua forma singular de compreensão. Apesar de o impulso criativo ser um complexo autônomo, considera-se que de alguma forma ele pode ser desencadeado também pelo trabalho corporal. Acessando o potencial criativo do inconsciente, é possível que a encenação consiga experimentar uma obra que não tenha apenas uma apreciação estética, mas que também provoque o espectador em seu processo de autoconhecimento. O ator, por sua vez, também pode transformar as imagens primordiais de seu impulso criativo dentro da linguagem teatral de modo a tocar o espectador em áreas mais profundas do seu ser. Para Jung (2009a), o artista enquanto criador tem acesso a algo além de sua vivência pessoal, uma realidade impessoal, arquetípica.

Todo homem criador sabe que o elemento involuntário é a qualidade essencial do pensamento criador. E porque o inconsciente não é apenas um espelhar reativo, mas atividade produtiva e autônoma, seu campo de experiência constitui uma realidade, um mundo próprio (JUNG, 2008, p. 71).

Considerando que o pensamento criativo surge de forma autônoma, vindo de uma grande base inconsciente que contém toda a potencialidade do que somos, é importante também que o processo teatral encontre gatilhos que possam ativar o processo de cada artista, nutrindo sua criatividade e propiciando a continência para que a inspiração possa ampliar os conteúdos da psique, alimentando as demandas da alma em busca da experiência de totalidade.

 

4. Considerações finais

Embora tenha sido apresentada uma reflexão sobre o processo teatral como um processo também psíquico, é fato que são inesgotáveis a investigação e a exploração neste universo tão misterioso do processo criativo.

A representação de signos e símbolos por meio da arte, desde o começo dos tempos, traduz o próprio homem na busca insaciável de contar-se para o mundo e recontar-se para si mesmo. Na relação de contar algo para outro que observa, instaura-se o fenômeno teatral. O teatro surge, então, do encontro entre o que faz e o que observa. O ato teatral, igualmente, configura encontros em outras áreas em que o homem protagoniza o espetáculo humano do atuante-criador, no qual explora as fontes orgânicas de sua existência, recriando, assim, outros palcos para o fazer teatral. É nesse fazer teatral que nos tornamos os fazedores de novas possibilidades de experienciar o encontro proporcionado pelo teatro, quando o homem revisita sua vida por meio de inúmeras personagens (re)conhecidas.

O teatro é um recurso que possibilita a ampliação do olhar sobre o indivíduo e a compreensão de sua subjetividade, revelando questões íntimas e ampliando a consciência, a partir da leitura propiciada pela psicologia analítica. Neste sentido, este artigo introduz a ideia do experimento teatral não só para atores e encenadores de teatro interessados em dar mais profundidade ao seu trabalho artístico, mas também para psicólogos que desejem conhecer e trabalhar com técnicas teatrais dentro da perspectiva junguiana.

O teatro é uma experiência que pode instigar o homem, muitas vezes, ao encontro de pensamentos e emoções inéditas no âmbito da consciência. O mise-en-scène do processo teatral pode tornar-se, também, um facilitador para o processo de individuação, no qual leva o homem ao contato com tantos "outros eus" no palco possibilitando uma atuação de vida mais criativa. Parece-nos que, para além de suas coxias, bastidores, proscênios e plateia, o fazer teatral coloca o homem em sintonia com seu Self6, com a experiência que toca sua vida enquanto potencialidade latente.

 

Referências

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Recebido em: 01/04/2021
Revisão em: 25/06/2021

 

 

1 Teoria e técnica psicoterápica proposta por Moreno (1889-1974) que se vale do teatro como forma de elaboração de questões psíquicas pelo indivíduo.
2 Segundo Freud (1856-1939), ato por meio do qual o sujeito, sob o domínio dos seus desejos e fantasias inconscientes, vive esses desejos e fantasias no presente com um sentimento de atualidade que é muito vivo na medida em que desconhece a sua origem e o seu caráter repetitivo (LAPLANCHE; PONTALIS, 1991).
3 Segundo Jung (2008, p.143), persona é uma simples máscara da psique coletiva, máscara que aparenta uma individualidade, procurando convencer aos outros e a si mesma que é individual quando, na realidade, não passa de um papel ou desempenho através do qual fala a psique coletiva. [...] Ela é um compromisso entre o indivíduo e a sociedade acerca daquilo que "alguém parece ser": nome, título, função e isto ou aquilo.
4 Augusto Boal (1931-2009): praticante de teatro, teórico do drama e ativista político. Fundador do Teatro do Oprimido, uma forma teatral originalmente usada em movimentos radicais de educação popular de esquerda. Vereador no Rio de Janeiro de 1993 a 1997, onde desenvolveu o teatro legislativo.
5 Jung (2013) define, em Natureza da Psique, a função transcendente como "união de conteúdos conscientes e inconscientes".
6 Self ou Si-Mesmo refere-se ao centro, à fonte, de todas as imagens arquetípicas e de todas as tendências psíquicas inatas para a aquisição de estrutura, ordem e integração (STEIN, 2000, p. 206).

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