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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.2 São Paulo jul./dez. 2021

 

Editorial

 

 

Embora a chegada da primavera pareça também trazer o anúncio do fim da pandemia, continuamos na busca da elaboração do símbolo da morte constelado em função de tantas perdas. A avalanche de ansiedade que perturbou milhões de pessoas na eclosão da COVID-19 deu lugar à depressão, descida aos ínferos, operação alquímica da mortificatio, para o resgate e a reflexão sobre o que foi perdido ou abandonado e a consequente transformação da consciência. Ainda estamos nesse processo reflexivo. A simbologia constelada está vinculada à derrota, à tortura, ao apodrecimento, mas também conduz às imagens de crescimento, da ressurreição, do renascimento. Esta é uma jornada heroica, requer coragem e determinação para se alcançar o potencial transformador inerente à morte e efetivar as mudanças necessárias ao novo começo, à retomada da vida. O símbolo da morte está associado ao plantio e à germinação de sementes que, posteriormente, crescerão, atingindo a luz.

Nossa homenageada na 39ª edição da Junguiana é a Dra. Nise da Silveira, psiquiatra nordestina, que reúne características heroicas e que tanto lutou pela transformação do tratamento das pessoas com transtornos mentais pela medicina no século passado e, para isso, valeu-se de armas poderosas: o afeto e a arte. Toda sua história de vida e luta em defesa de uma atitude ética na relação com os doentes foi permeada pelo respeito ao outro, pelo tratamento humano. Sua afinidade pelo profundo, sua prática e o legado que deixou nos servem como inspiração para crermos na possibilidade de transformação através da semeadura do amor e do respeito. Dra. Nise dizia: "Após minha morte, quero ser lembrada com emoção"1. Como já cantou Gilberto Gil, outro nordestino: "[...] é como um grão, uma semente de ilusão, tem que morrer pra germinar". É com arte e emoção que a homenageamos, cientes de que sua jornada fez nascer luz onde antes só havia escuridão.

Começamos a segunda parte do Dossiê Nise da Silveira com três depoimentos. No primeiro, "Nise da Silveira: primeira e única", o autor enaltece a alma visionária, aquariana, aberta a flagrar e a decodificar o significado de qualquer fenômeno que se apresentasse aos seus olhos atentos e a seus ouvidos antenados. Em "Da mandala terapêutica à mandala dramatúrgica: epístola à Dra. Nise", são feitas aproximações entre as práticas das mandalas terapêuticas, inauguradas pela psiquiatra alagoana e as mandalas dramatúrgicas, procedimento da Mitodologia em Arte. "A importante contribuição da obra de Nise da Silveira para a Psicologia Analítica de Jung" traça uma retrospectiva histórica nos ajudando a compreender a paixão de Nise por seu trabalho e compartilhando a experiência da autora na Casa das Palmeiras.

Após esta seção de depoimentos, apresentamos os artigos que compõem o dossiê. "Por um método niseano na saúde mental: a construção de um ateliê de arte na emergência psiquiátrica" relata a experiência da intervenção artística proposta pelo Programa de Residência de Psicologia em Saúde Mental do Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano e da Universidade de Pernambuco, buscando atualizar o método de Nise da Silveira na atenção à saúde mental. O artigo "Do chão do pátio a um encontro possível: argila no tratamento de um paciente psiquiátrico" descreve o atendimento psicológico realizado com um paciente residente em um hospital especializado em saúde mental, usando a argila como recurso expressivo e inspirado nos ensinamentos que a Dra. Nise defendia.

Em seguida, apresentamos os artigos que completam esta edição. São trabalhos sobre temas que abordam, de um modo ou de outro, a diversidade, a diferença: nas sexualidades, nas teorias, na comunicação, na interface entre a literatura e a psicologia. "O complexo heteropatriarcal: uma contribuição para o estudo da sexualidade na Psicologia Analítica a partir da Teoria Social" apresenta uma articulação teórica entre a Psicologia Analítica de C. G. Jung e referências contemporâneas na teoria social, tendo o objetivo de aprimorar a escuta clínica de psicólogos e outros profissionais que prestem atendimento à população, em relação a questões de gênero e sexualidade. "Os instintos nas Neurociências Afetivas e na Psicologia Analítica" estabelece relações entre a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung e as Neurociências Afetivas de Jaak Panksepp, comparando os sistemas instintivos básicos propostos por ambas as teorias. Em "Chamado de eco: a expressão de vozes silenciadas", é realizado um levantamento de estudos em Psicologia Analítica sobre a figura mitológica de Eco e de estudos literários que correlacionam silenciamento e psicologia, buscando compreender o que leva ao silenciamento imposto, seu contexto e consequências. "O áporo de Drummond: um olhar junguiano" tem como objetivo descrever e analisar os aspectos simbólicos do poema "Áporo", de Carlos Drummond de Andrade, partindo de um sonho e concluindo que sua progressão sugere um processo de individuação.

Mesmo em um país ferido por tantas perdas, desolado e repartido, esperamos fortalecer a cultura, a democracia e os ideais de uma sociedade mais justa, menos polarizada e sem tantas discriminações e desigualdades. Buscamos, como nossa homenageada, crer e apostar na possibilidade de transformação através do interesse genuíno e afetivo no diferente, no outro, na alteridade.

Outubro, 2021

Editoras

 

 

1 Cf. MACEDO, V. (2021) A importante contribuição da obra de Nise da Silveira para a Psicologia Analítica de Jung, Junguiana, São Paulo, n.39/2.

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