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Junguiana

versión On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.2 São Paulo jul./dic. 2021

 

Do chão do pátio a um encontro possível: argila no tratamento de um paciente psiquiátrico

 

Desde el piso del patio a un posible encuentro: la arcilla en el tratamiento de un paciente psiquiátrico

 

 

Sergio Luiz Alécio Filho

Psicólogo pela Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). Candidato a analista pelo Instituto de Psicologia Analítica de Campinas (IPAC), ligado à Associação Junguiana do Brasil (AJB) e ao Instituto C.G. Jung International Association for Analytical Psychology (IAAP). Foi estagiário do Museu de Imagens do Inconsciente do Rio de Janeiro. E-mail: sergio_aleciofilho@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O presente texto tem como objetivo fazer um relato da experiência do atendimento psicológico realizado com um paciente residente em um hospital especializado em saúde mental. Ele apresentava sintomas de auto e heteroagressões, além de realizar um ritual de passar as próprias fezes nas paredes do hospital. Foi proposta uma intervenção com o uso da argila como recurso expressivo. Esse material foi apresentado ao paciente durante as sessões que ocorriam três vezes por semana durante o período de um ano. Ao longo do trabalho foi possível perceber a melhora dos sintomas agressivos e a remissão dos rituais com as fezes. A argila proporcionou uma despotencialização dos conteúdos agressivos da psiquê do cliente e serviu como objeto intermediário entre paciente e psicoterapeuta.

Palavras-chave: saúde mental, argila, recurso expressivo, despotencialização.


RESUMEN

Este texto tiene como objetivo relatar la experiencia de la atención psicológica brindada a un paciente que reside en un hospital especializado en salud mental. Mostró síntomas de autoagresión y hetero agresión, además de realizar un ritual de pasar sus propias heces por las paredes del hospital. Se propuso una intervención con arcilla como recurso expresivo. Este material fue presentado al paciente durante las sesiones que se realizaron tres veces por semana durante el período de un año. A lo largo del trabajo se pudo notar la mejoría de los síntomas agresivos y la remisión de los rituales con las heces. La arcilla proporcionó un desempoderamiento de los contenidos agresivos de la psique del cliente y sirvió como un objeto intermediario entre el paciente y el psicoterapeuta.

Palabras clave: salud mental, arcilla, recurso expresivo, desempoderamiento.


 

 

Desumanizado1

Me botaram neste hospital Amarrado no meu corpo, mente e espaço Sufocado nesta ala Multiplicada por mil alas iguais Me fizeram tudo isso para meu bem Na Saúde que querem pra mim Tomando apenas remédio em cima de remédio Me sinto, triste e dilacerado, Desumanizado.

Atualmente, um dos desafios na área de Saúde Mental e da Reforma Psiquiátrica consiste em como tratar o paciente de forma mais humanizada, de modo que o tratamento não fique apenas focado no tradicional modelo biomédico. Além disso, segundo o psiquiatra Paulo Amarante (1999), o desafio é "o de construir um novo lugar social para a loucura, para a diferença, a diversidade, a divergência" (p. 49).

A Psiquiatria Clássica está centrada na doença dos indivíduos e no uso de medicamentos. Os pacientes muitas vezes são rotulados e reduzidos a um número dos manuais de Psiquiatria. Esquece-se de observá-los integralmente e compreender seus sintomas como uma trama de significados internos, simbólicos e relacionais. Segundo Hillman (1993), há "problemas que não são meramente atos comportamentais classificáveis ou categorias médicas, são acima de tudo experiências e sofrimentos".

No Brasil, a psiquiatra Nise da Silveira foi pioneira nas ideias de Jung e na busca por um tratamento humanizado para os pacientes dos manicômios. Certa vez, Nise relatou que estava no hospital acompanhando um paciente que iria receber mais uma sessão de eletrochoque. Seu colega médico solicitou a ela: "Aperta o botão", em referência ao aparelho de eletroconvulsoterapia e "Nise recusou-se firmemente a acionar o aparelho; sua saudável rebeldia já se manifestava" (MELLO, 2014). Segundo ela, nesse momento, nasceu a psiquiatra rebelde, como ficou conhecida pelo seu modo de trabalhar. Com esse espírito transgressor e contrário à Psiquiatria Clássica, ela fundou o Museu Imagens do Inconsciente, que hoje tem o maior acervo mundial de obras de pacientes psiquiátricos, e a Casa das Palmeiras, considerada um dos primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Brasil, onde o atendimento é realizado fora do contexto hospitalar. Além disso, Nise criou o serviço de terapêutica ocupacional, em que os clientes participavam de oficinas artísticas para desenvolverem a livre expressão de seus conteúdos internos.

A expressão livre, por meio do desenho, da pintura e da modelagem, na área da Psiquiatria e Psicologia, tornou-se de interesse científico, entre outros, pelo seu potencial como meio de acesso menos difícil ao mundo interno do paciente psiquiátrico (SILVEIRA, 1992). Nem sempre a linguagem verbal consegue abarcar a totalidade da psiquê e pode ocorrer uma cristalização de aspectos verbais. Nesse sentido, a utilização de técnicas não verbais pode auxiliar no surgimento de conteúdos simbólicos que aparecem nas produções plásticas e pode "recolocar os verbos em movimento" (GOUVÊA, 1990).

Segundo Nise da Silveira, a arte pode diminuir a força dos conteúdos internos ameaçadores que formam um redemoinho perturbador na psiquê do paciente. Assim, nos diversos modos de expressão, o paciente pode dar forma aos fragmentos do seu drama interno e às emoções, além de despotencializar figuras internas perturbadoras (SILVEIRA, 1982).

Nise priorizava também o afeto catalizador, que ressalta a importância do vínculo afetivo como propiciador de desenvolvimento e surge com o contato humano de qualidade. Em seu trabalho inovador no Museu Imagens do Inconsciente, na cidade do Rio de Janeiro, ela desenvolvia oficinas terapêuticas com seus clientes e destacava a importância da presença de um monitor acompanhando cada paciente. A função do monitor era de incentivar o paciente e aceitar incondicionalmente sua produção plástica sem um julgamento estético. Essa função foi denominada de afeto catalizador. Por exemplo, um cliente das oficinas expressivas, chamado Fernando Diniz, vinha pintando motivos relacionados à sua história de vida e sendo acompanhado por uma monitora do ateliê. Quando esta monitora saiu de férias, Fernando começou a pintar uma série de garatujas e rabiscos representando o caos de seu mundo interno. Houve provavelmente uma regressão de sua energia psíquica2. A temática do abandono, já conhecida por Fernando, era atualizada com as férias da funcionária do hospital.

Dentre as diversas formas de expressão livre está a modelagem e, nela, o uso da argila pode funcionar como um objeto intermediário (PAIN, JARREAU, 1996). Esse material pode propiciar "uma forma mais sutil de abordagem, ajuda na liberação de emoções através da expressão das sensações táteis, facilitando o estabelecimento do vínculo terapêutico" (CARRANO, 2002).

Segundo Dias (1996), o ato de manusear e de tocar a argila pode auxiliar no emergir de um novo enfoque, em que o sujeito revive ao recriar imagens com esse material considerado primordial.

Para Gouvêa (1990), estabelece-se uma relação dialética entre o objeto e o sujeito, no caso, argila e paciente, e com essa fusão, há a possibilidade do surgimento de um processo criativo.

Violet Oaklander (1974) acrescenta que esse material tem propriedades flexíveis e maleáveis que se adaptam a diversas necessidades. A argila tem como qualidade a capacidade de promover a manifestação ativa de processos internos primários, proporcionando fluidez entre o material e o manipulador.

A partir dos referenciais acima citados, pretendo relatar uma experiência de intervenção psicológica com o uso da argila junto a um paciente psiquiátrico, acometido por transtorno mental grave de longa evolução, classificado conforme categoria proposta por Furtado (2001). O intuito foi de minimizar o sofrimento psíquico do indivíduo, oferecendo um espaço de escuta, acolhimento e ajuda.

 

O encontro

Pessoas são pessoas através de outras pessoas3 (Ditado Xhosa).

O atendimento deste caso foi realizado em um hospital especializado em saúde mental, localizado no interior paulista. Eu fazia parte do programa de aprimoramento clínico-institucional administrado pela Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), órgão do governo do estado de São Paulo, que objetiva formar profissionais para trabalhar no Sistema Único de Saúde (SUS). Eu tinha um contrato de um ano de vigência e recebia uma bolsa para desenvolver atividades que consistiam em atender pacientes em sessões individuais e em grupo nas diversas alas do hospital, tais como a ala de pacientes agudos (com pessoas que ficam internadas temporariamente em períodos de crise) e a ala de pacientes crônicos (com portadores de doenças de longa evolução e que moram no hospital). Nesse setor, muitos dos pacientes não têm histórias conhecidas ou familiares localizados. Moram há muitos anos no hospital e muitos foram batizados pelos próprios funcionários. O objetivo dos profissionais que trabalham com esses pacientes é promover sua reabilitação psicossocial e uma posterior mudança para as residências terapêuticas, que são casas mantidas fora do hospital. Apesar disso, é comum ouvir frases de pacientes como: "Vou morrer aqui, né?" (sic). Um paciente sempre dizia: "Cheguei hoje, cheguei hoje", entretanto já residia no hospital havia muito tempo. Foi nesse setor que conheci o paciente cujo caso será descrito a seguir. Os encontros aconteceram em torno de três vezes por semana no próprio pátio do hospital e eventualmente na sala de atividades do setor de reabilitação, ao longo de um ano.

 

A história de José

Ninguém é doido. Ou, então, todos4 (Guimarães Rosa, 1969).

José (nome fictício), 44 anos, foi diagnosticado com retardo mental grave, transtorno mental não especificado devido a uma lesão e sintomas psicóticos, tais como alucinações. De acordo com seu prontuário, que continha informações incompletas, ele apresentava um histórico de várias transferências entre hospitais psiquiátricos.

Ele havia sido transferido de um hospital psiquiátrico que fora fechado após o movimento da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica. No prontuário, seu nome estava escrito: José de Tal (literalmente), sendo que, após um tempo, ele recebeu um sobrenome criado pela equipe hospitalar. Outras informações eram de que ele não tinha história nem família conhecida. Além disso, a equipe do hospital de origem havia relatado no momento da transferência que José era um paciente violento.

José era conhecido na ala da reabilitação por ser um paciente agressivo e arredio. Alguns funcionários da ala diziam: "Parece bicho" (sic). Ele batia em outros pacientes, quebrava vidros e janelas do hospital e arrancava galhos das árvores. Quando saía para a atividade de caminhada pelo hospital, arrancava retrovisores de carros estacionados. Na cozinha, arremessava copos, pratos e xícaras. No quarto e na sala, rasgava estofados. Foi relatado também que José ficava de espreita no pátio tentando capturar pombos e quando conseguia, arrancava suas cabeças. Além disso, ele era autoagressivo e arrancava suas próprias unhas. No momento do banho apresentava um ritual: defecava e passava as próprias fezes no vaso sanitário, nas paredes do banheiro e, às vezes, arremessava-as nos funcionários. José tinha dificuldade de usar o banheiro, era comum fazer suas necessidades pelo pátio. Observa-se que ficava a maior parte do tempo isolado no pátio e não tinha contatos sociais com a equipe ou com outros pacientes. Por vezes, rasgava sua roupa e permanecia nu por muito tempo deitado no solo.

Diante de tantos fatos, ele era um paciente que mobilizava impotência na equipe e que deixava todos apreensivos a respeito de uma possível intervenção. Assim, o desafio era pensar um modo de se aproximar do paciente.

Diante dos relatos da equipe, propus trabalhar com José com o uso da argila, um material que pudesse auxiliar a despotencializar sua agressividade e que também permitisse uma equivalência simbólica com as fezes por meio do manuseio desse objeto sensorial, uma vez que o paciente tinha um ritual com seus próprios dejetos. A princípio, a equipe mostrou-se receosa e preocupada com uma possível piora na regressão com o uso da argila. Entretanto, após algumas conversas, os funcionários decidiram aceitar a intervenção proposta.

A intervenção se iniciou em conjunto com a introdução da medicação clozapina pela psiquiatra da ala. Esse medicamento é chamado pelo apelido de "Nossa Senhora da Clozapina" ou "Santa Clô" por alguns médicos devido à sua eficácia. Entretanto, esse medicamento é um dos últimos recursos usados por psiquiatras, pois necessita de um acompanhamento mais rigoroso, com exames de sangue regulares para que o nível da substância não se torne tóxico.

 

O primeiro encontro

Cheguei ao pátio para conversar com José, encontrando-o deitado no chão (como permanecia a maior parte do tempo). Eu havia levado um pacote de argila nas mãos e apresentei o material a ele, que, a princípio, relatou desconhecê-lo, perguntando se era para comer. Em seguida, comecei a amassar a argila ao lado de José, mostrando como utilizá-la. Ficamos sentados no chão e em vários momentos José se levantou e foi para o lado oposto do pátio. Nos momentos de afastamento, procurei entrar em contato novamente com ele, sempre perguntando se podia me aproximar. A ideia inicial foi de apresentar a argila para o paciente e perceber as possíveis repercussões.

Em um determinado momento, José pediu para que eu jogasse fora a argila e então perguntei se ele mesmo gostaria de fazê-lo. José, então, pegou o barro e arremessou em cima do telhado da ala. Depois de alguns instantes, comecei a manusear outro pedaço de argila e convidei José para ir até a sala de atividades, dizendo que lá poderia colocar água no barro para amassá-lo com as mãos. O paciente aceitou e, já na sala, sentou-se à mesa de atividades, onde havia uma vasilha com água e também argila. Ele começou a manusear a argila usando água. Em seguida afirmou: "Isso aqui é bosta" (sic), e levantou-se angustiado para sair da sala. Tentei conversar com ele, mas ele decidiu sair da sala após aceitar continuar a sessão em outro dia. Diante desse fato, pôde-se perceber que houve uma dificuldade de metaforização do paciente, em que a argila concretamente era igual a fezes, como uma equação simbólica. Optou-se em respeitar o limite de José, sem forçá-lo a continuar a sessão, uma vez que ele quis sair imediatamente da sala.

 

Outros encontros

Já no segundo encontro, José aceitou amassar a argila no gramado do pátio do hospital, não querendo ir à sala de atividades. Em seguida, jogou o barro ao chão. Eu, como um ego auxiliar, continuei modelando um pedaço de argila. José observava e falou: "É um pardal". Minha atitude, então, era de tentar representar plasticamente um pássaro depois que o paciente o nomeou assim. Em seguida, José afirmou: "É um pássaro na gaiola" e depois: "pássaros cagam na gente" (sic).

Percebe-se que se iniciou um contato com o mundo interno do paciente e ele começou a projetar suas imagens internas. Na tríade paciente-acompanhante-argila começou a surgir uma interação. Ao final do encontro, perguntei a José sobre o que deveria fazer com aquele objeto e, mais uma vez, José preferiu se livrar do material produzido e jogá-lo em cima do telhado do hospital.

Na semana seguinte, José começou a contar-me sobre sua origem, onde havia nascido, cidades e bairros em que já havia morado. Em alguns momentos afastava-se para o outro lado do pátio e em outros momentos retornava para continuar a conversa. Nesse dia, não quis mexer com a argila, o que não o impediu de interagir comigo, que estava com argila na mão tentando reproduzir o que surgia da conversa. Emergiram imagens de cobra, pato e pássaro. Ao final, José pediu para guardar esses objetos e, então, ajudou a levá-los para a sala de atividades. Esta foi a primeira vez em que não se desfez dos objetos modelados, e uma caixa com seu nome foi colocada à disposição na sala de atividades para seus trabalhos serem guardados.

Aos poucos, outras sessões aconteciam e mais dados de sua história eram relembrados, como o nome de sua mãe, de seu pai, lugares onde trabalhara, o dia em que havia chegado ao hospital e relatos de sua infância. José trouxe uma memória de quando era criança: havia caído em um rio, quase morrendo afogado, mas foi resgatado por um homem que o salvou.

Eu continuava modelando junto com José conteúdos que surgiam de nossos encontros. Surgiam "bichos que atacam a gente", "bicho bravo", "puma", "presa de jacaré", "jacaré", "vaca", "boi", "urubu", "pilão de socar milho" etc. Um dia, o paciente disse que tinha feito um pardal que me deu dizendo: "É um pardal, guarda, leva pra sua casa". Em outro momento interessante surgiu a primeira figura humana: enquanto eu manipulava a argila, José me disse: "é um menino que trabalha na roça".

Muitas vezes, o "não" era presente nas sessões. José relatava não saber fazer nada com a argila, dizia que não queria ir para a sala de atividades e se afastava do contato. Entretanto, ao final das sessões, sempre dizia "até amanhã", concordando com um próximo encontro.

Houve encontros em que José também aceitou ir até a sala de atividades e utilizou outros recursos expressivos, como tintas em cartolina.

Um fato relevante foi quando saí de férias. Essa informação foi notificada para José com antecedência, cerca de um mês antes. Após o comunicado, o paciente mostrou-se mais arredio ao contato e relatou que "a casa vai ficar sozinha", um reflexo sobre seus sentimentos de se sentir abandonado. Com essa "separação", o cliente apresentou uma reincidência de seus sintomas de heteroagressão, que até então estavam em menor intensidade. Nesse momento, parece que o paciente vivenciou aspectos de um complexo de abandono/rejeição que pode ter sido ativado em sua psiquê. Infelizmente, não temos dados precisos de sua história, porém o fato de ter vivido grande parte da vida em uma instituição psiquiátrica e sem família localizada faz pensar o quanto esse tema do abandono pode ser uma ferida psíquica para ele.

Esse episódio trouxe o reconhecimento sobre a importância do vínculo terapêutico para o tratamento, contrariando alguns profissionais representantes da medicina tradicional que associavam a melhora de José apenas ao uso do medicamento clozapina.

Com a retomada das sessões após as minhas férias, José mostrava-se bravo, quase não conversava, evitava contato, fugia para o lado oposto do pátio e não olhava em meus olhos. Em um gesto espontâneo, pedi desculpas a José, que estava deitado no chão com seus braços tampando o rosto. Imediatamente, estendeu a mão e disse "eu te desculpo". Retribuí o gesto e, após um aperto de mãos, José não mais evitou o contato.

Na medida em que o trabalho se desenvolvia, foi interessante perceber que a argila começou a mobilizar mais angústias em José que facilitar o encontro comigo. O paciente mostrava-se resistente, relatava não querer mexer com o barro. Assim, optou-se por não utilizar mais a argila, que, anteriormente, já havia auxiliado o trabalho, funcionando inicialmente como uma "ponte" que ligava paciente-acompanhante. A presença desse material como objeto intermediário já não era mais necessária, pois José continuou interagindo e mantendo contato verbal espontaneamente.

Por fim, após um ano de trabalho como aprimorando, meu contrato profissional iria terminar e eu deveria encerrar as atividades, incluindo o atendimento com José, que novamente foi avisado com antecedência, mas, dessa vez, não se mostrou arredio pela interrupção das sessões. Segue abaixo um trecho da última sessão com José que aconteceu no chão do pátio debaixo de uma mangueira:

José, faz quase um ano que nos encontramos aqui. Não! Faz um par de anos que a gente tá nesse hospital!... Já acabou até as mangas do pé... (José).

É verdade. Mas o que acontece depois disso?

Vai florescer de novo, né? (José).

 

Reflexões

O essencial é o que existe entre as pessoas5 (Ronald Laing).

Após o início do trabalho, José começou a apresentar algumas melhoras no seu quadro geral, principalmente nos episódios de agressividade. Entretanto, em um primeiro momento, tal fato ficou associado apenas à medicação clozapina. Somente houve reconhecimento do trabalho psicoterapêutico quando saí de férias e houve uma piora significativa dos sintomas do paciente. Nesse momento, a psiquiatra me perguntou quando eu iria retornar de férias e continuar o trabalho com o paciente. Percebeu-se assim uma descentralização da intervenção em saúde mental, até então focada no médico, e um início de integração da equipe multidisciplinar. Ainda sobre esse episódio, analiticamente, pode-se pensar no vínculo estabelecido entre paciente e psicólogo e na questão da transferência-contratransferência no processo analítico. No retorno das sessões, o paciente estava triste, sentindo-se abandonado e em outro momento demonstrou raiva e até mesmo chegou a jogar fezes em mim. Diante dessas projeções do paciente, contratransferencialmente, um sentimento de culpa foi despertado em mim durante esse período.

Além da redução da hetero e da autoagressão, com um espaçamento maior entre um episódio e outro, José passou a ficar mais tempo vestido e calçado. Ele também passava mais tempo sentado nos sofás da ala do que deitado no chão do pátio. Nesse sentido, seu comportamento ficou menos instintivo e impulsivo e mais "humanizado" (lembrando que alguns funcionários se referiam a ele como "um bicho"). Uma reflexão possível seria que, por meio do surgimento de símbolos de animais (puma, onça etc.) na modelagem em argila, ele pôde despotencializar essa energia ameaçadora dentro de si. Segundo Jung et al. (1964), "a profusão de símbolos animais [...] mostra o quanto é vital para o homem integrar em sua vida o conteúdo psíquico do símbolo, isto é, o instinto. Mas no homem, o ser animal [que é a sua psiquê instintual] pode tornar-se perigoso se não for reconhecido e integrado na vida do indivíduo".

Pensando na energia psíquica, termo usado por Jung, que se refere aos movimentos de todos os fenômenos da psiquê (JUNG, 2007), pode-se afirmar que o paciente, antes da intervenção, estava passando por um período de regressão da libido, quando a energia psíquica se volta para o inconsciente. Observa-se que com a melhora de sua sintomatologia, há uma diminuição do seu isolamento, sugerindo uma possível progressão de sua energia psíquica, que se volta para o mundo externo.

Percebeu-se um novo olhar da equipe para o paciente (não apenas como aquele que agride outros pacientes); e para o trabalho do psicólogo na ala (não apenas como aquele profissional que atende e conversa com o paciente em uma sala fechada com um setting demarcado). A equipe pôde perceber que há possibilidades de intervenções com os pacientes não medicamentosas, mas embasadas em contato humano e no vínculo entre as pessoas. Como exemplo, cito uma fala do gerente do setor de reabilitação dirigindo-se a mim: "você agacha, senta perto dele e olha no olho do José".

O uso da argila nesse caso me remete a um mito grego sobre a criação do mundo, em que Prometeu, responsável pela criação do homem, esculpiu e modelou o homem a partir do barro tendo os deuses como espelho e, assim, povoou a terra. Com o trabalho de amassar o barro, aos poucos, o paciente, foi se "humanizando" e houve a desconstrução do rótulo "parece bicho" que o estigmatizava. Nos primeiros atendimentos, José fazia uma equação simbólica de que a argila era fezes e a descartava, metaforicamente, assim como ele, um ser humano descartável em um hospital. Com o tempo, começou criativamente a perceber que outros objetos poderiam aparecer da argila e assim surgiu um pardal, por exemplo. O pássaro pode ser um símbolo de liberdade, palavra esta que era a favorita de Nise da Silveira. Ela dizia: "A palavra que mais gosto é liberdade. Gosto do som dessa palavra. O que cura é a liberdade"6.

Ressalta-se também a importância da argila como uma "ponte" fundamental, que facilitou o acesso e a aproximação com o paciente, tanto no mundo externo, quanto o interno. Este material possibilitou o estabelecimento do vínculo terapêutico, a despotencialização da agressividade do paciente e o resgate de sua história e vivência interna. Oaklander (1974) acrescenta que "a qualidade sensual da argila muitas vezes oferece a essas pessoas uma ponte entre seus sentidos e seus sentimentos".

Sugere-se pensar que, na intervenção em saúde mental, o enfoque principal seja o indivíduo em desenvolvimento e procurar entender seus sintomas como aspectos de sua singularidade e reveladores de seus complexos autônomos e inerentes ao psiquismo. Assim, se busca uma tentativa de "romper com a crônica de psicopatologias anunciadas, mas valorizando o aqui-e-agora das interações, o momento presente, como o momento de transformações possíveis" (ROSSETTI-FERREIRA, COSTA, 2012).

Além disso, nota-se o questionamento sobre a mudança de posição da ideia do curar, dando lugar à ideia do cuidar, numa tentativa de escapar do enfoque exclusivo das teorias organicistas sempre "preocupadas com o futuro e com a cura" (LEWIS, 1999, in ROSSETTI-FERREIRA, COSTA, 2012).

Há também o convite para se pensar nas intervenções em Saúde Mental, por uma busca de romper com padrões cristalizados e seus estereótipos. Segundo a ideia de Lewis (1999), deve-se superar a tendência de se ficar preso no passado, "sem acreditar na força transformadora dos eventos significativos do presente" (ROSSETTI-FERREIRA, COSTA, 2012).

Por fim, o tema da árvore surgiu no trecho acima transcrito da última sessão. Por vezes, a mangueira era uma companhia nos atendimentos, pois José permanecia bastante tempo deitado em suas raízes. A árvore pode ser símbolo do desenvolvimento humano e do indivíduo que cresce em direção à consciência. Pode-se pensar na fertilidade do encontro analítico que foi vista no caso relatado. As mangueiras irão florescer, como disse José; e foi por meio do afeto entre nós que ocorreu a polinização desse encontro analítico. Assim, como diz Bachelard (2019): "A esse sonhador imobilizado no chão, a árvore devolve a mobilidade dos pássaros e do céu".

 

Referências

AMARANTE, P. Manicômio e loucura no final do século e do milênio. In: FERNANDES, M. I. A. (Org.). Fim de século: ainda manicômios? São Paulo, SP: Universidade de São Paulo, 1999. p. 47-53.         [ Links ]

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ROSSETTI-FERREIRA, M. C; AMORIN, K. S.; SILVA, A. P. S. Uma perspectiva teórico-metodológica para análise do desenvolvimento humano e do processo de investigação. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 1-20, 2000. https://doi.org/10.1590/S0102-79722000000200008        [ Links ]

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Recebido em: 18/08/2021
Revisão em: 02/11/2021

 

 

1 Parodia feita por mim do poema "Desfavelado" de Carlos Drummond de Andrade (1985).
2 Entende-se a regressão como um movimento retrógrado ou retroativo da libido para uma atitude anterior de adaptação e que pode ser acompanhada de fantasias infantis (JUNG, 2007).
3 Língua materna de Nelson Mandela (apud ROSSETTI-FERREIRA, 2000).
4 Frase retirada do conto "A terceira margem do rio" do livro "Primeiras Estórias".
5 Frase retirada do livro Saúde mental e atenção psicossocial de Paulo Amarante (2007).
6 Disponível em: http://www.ccms.saude.gov.br/nisedasilveira/frases.php. Acesso em: 21 de jul. de 2021.

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