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Junguiana

versión On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.2 São Paulo jul./dic. 2021

 

Chamado de Eco: a escuta de vozes silenciadas

 

Llamada del Eco: la escuta de voces silenciadas

 

 

Cássia Frankenthal Quinlan

Psicóloga clínica graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), formada em Experiência Somática pela Associação Brasileira de Trauma (ABT). E-mail: cassiafq@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo dar atenção a vozes silenciadas. Pelo levantamento de estudos em Psicologia Analítica sobre a figura mitológica de Eco e de Estudos Literários que correlacionam silenciamento e psicologia, buscou-se compreender o que leva ao silenciamento imposto. Foi possível compreender que o olhar hegemônico para Eco e para o Outro os coloca numa posição de pouco valor, algo também encontrado em discursos de resistência e narrativas testemunhais na área da Literatura, especialmente quando o encontro com o Outro parece ser ameaçador.

Palavras-chave: Eco, vozes silenciadas, psicologia, literatura.


RESUMEN

Este artículo tiene com objetivo prestar atención a las voces silenciadas. Al relevar estudios en Psicología Analítica sobre la figura mitológica de Eco y Estudios Literarios que correlacionan el silenciamiento y la psicología, buscamos comprender qué lleva al silenciamiento impuesto. Se pudo entender que la mirada hegemónica a Eco y al Otro los coloca en una posición de poco valor, algo que también se encuentra en los discursos de resistencia y las narrativas testimoniales en el campo de la literatura, especialmente cuando el encuentro con el Otro parece amenazador.

Palabras clave: Eco, voces silenciadas, psicología, literatura


 

 

O mito de Eco revela que a pior prisão é aquela em que o ser humano não pode expressar o que pensa ou o que sente; é a tortura de conviver com seus pensamentos e sentimentos presos pelo medo ou pelas convenções ameaçadoras (autor não identificado, apud PRADO, 2015, p. 19).

Virginia Woolf (2019) cria a personagem fictícia Judith, irmã do dramaturgo inglês William Shakespeare, como representante do que imagina que aconteceria caso uma mulher tivesse a mesma genialidade dele. Impedida de ir à escola e embargada por demandas de cuidado doméstico, ficaria constantemente afastada da possibilidade da leitura e escrita. Antes de completar 17 anos seria noivada e, opondo-se ao casamento, o pai ora a espancaria, ora lhe imploraria que não manchasse o nome da família. Decidida a perseguir seu sonho de trabalhar com teatro, fugiria de casa e tentaria adentrar um teatro sendo repelida por um homem. Sem possibilidades para si na cidade, se veria envolvida com um empresário que a engravidaria e, desesperançosa, tiraria a própria vida, sendo sepultada numa encruzilhada que depois viraria um ponto de ônibus na cidade.

A leitura de Um Teto Todo Seu (WOOLF, 2019) foi uma das recomendações extras que surgiu no grupo de estudos sobre gênero e Psicologia Analítica organizado por Gimenez (2018) e Tancetti (2018). Iniciado em 2019, o grupo foi pensado a partir do entendimento da necessidade de aprofundar e expandir a revisão de temáticas ligadas a gênero dentro da Psicologia Analítica, em especial após o tumultuado período das eleições presidenciais de 2018 no Brasil e diante de falas compreendidas como misóginas, racistas e fascistas do candidato eleito. As discussões sobre os textos selecionados e recomendados no grupo de estudos mobilizaram diversos incômodos compartilhados, orientadas pelo prisma da questão de gênero e por vivências pessoais.

Ler sobre Judith levantou questões sobre como o silenciamento imposto pelo externo atravessa o desenvolvimento humano. A partir desse questionamento, buscou-se referências mitológicas de silenciamento e, dada a origem literária da questão, buscou-se referências em estudos literários que estabelecessem uma relação com psicologia e silenciamento. Desta forma, o presente trabalho procura, via figura mitológica de Eco e estudos literários de Magnabosco (1999) e de Saçço (2016), melhor entender o contexto de vozes silenciadas, algumas de suas consequências, possíveis quebras do silenciamento imposto e transformações daí decorrentes.

Eco é uma referência mitológica de silenciamento imposto ao ter sua capacidade de fala reduzida à repetição das últimas palavras que ouve quando enfurece a deusa Hera ao enganá-la. Berry (2014) parece ser a primeira referência específica sobre Eco de forma não secundária a Narciso, mas como foco por si só. A autora enfatiza um aspecto criativo da ninfa que, embora mencionado em diversos outros trabalhos (CAVALCANTI, 2003; PRADO, 2015; ALVARENGA, 2011; MONTELLANO, 1996; 2006; RUBINI, 2020), parece perder força diante da perspectiva ecoica como repetição vazia de significado e da ninfa como estritamente focada no outro e não em si.

Aqui apresentamos Eco dividida em seis temas: sua identidade, sua relação com Pã, a punição sofrida por Hera, o encontro com Narciso, sua morte e sua aparição na morte de Narciso. Foram encontrados dois trabalhos em Estudos Literários que convergem para a questão do silenciamento e abordam, de formas diferentes, aspectos relacionados à psicologia, o que parece favorecer um diálogo interdisciplinar sobre o tema. O trabalho de Magnabosco (1999) faz um levantamento sobre pressupostos que sustentam o silenciamento de discursos de resistência ao falar sobre a inserção da mulher nos campos da Literatura e da Psicologia, e o de Saçço (2016, p. 130) investiga como narrativas testemunhais podem resgatar "vozes e histórias silenciadas" para reconstruir a verdade durante o período da ditadura militar no Brasil (1964 a 1985).

Entende-se o tema como relevante pelo aumento de movimentos sociais que clamam por serem ouvidos, como - sem implicar aqui a redução da pluralidade destes diversos movimentos - os feminismos, o antirracismo, o combate à LGBTfobia1, a questão indígena brasileira e outros. Embora grupos divergentes do hegemônico sempre tenham existido, parece que nos últimos anos suas vozes têm sido mais altas (ou passaram a ser ouvidas) e, com isso, nossa atenção tem se voltado mais para realidades diferentes daquela dada como "padrão". Isso parece ainda mais intenso a partir da eleição presidencial no Brasil em 2018, com a ascensão de um governo de extrema direita com uma perspectiva conservadora em aspectos morais e bastante ameaçadora de liberdades que, quando muito, foram recém- conquistadas - se for possível realmente falar de "conquista de liberdade" diante da violência sofrida cotidianamente por mulheres, negros, pessoas LGBTQIA+, indígenas e outros grupos. Aliado a isso, entende-se que há a possibilidade de ampliação de consciência, individual e coletiva que a escuta de vozes silenciadas pode trazer.

A leitura do material encontrado sobre Eco na Psicologia Analítica traz um entendimento da ninfa como figura com características importantes na relação com o outro, mas sempre em função deste, de forma a denotar uma tendência a percebê-la como figura com pouca identidade e grande necessidade de reflexo positivo (MONTELLANO, 1996; 2006; ALVARENGA, 2011; RUBINI, 2020). Mesmo quando apontada em sua individuação (CAVALCANTI, 2003), ou quando usada no entendimento de histórias de sofrimento (PRADO, 2015), por exemplo, o foco em Eco ainda está preso a um entendimento que parece esquecer ou ignorar sua capacidade criativa, intensificando a separação que Prado (2015, p. 14) faz em seu levantamento bibliográfico, apontando uma "figura de Eco petrificada". A história de Eco também costuma ser relacionada a paixões frustradas, masoquismo e restrição ao repetir sem possibilidade criativa, apontando para o que parece se configurar como uma forma unilateral de compreendê-la (BERRY, 2014).

Ao buscar referências sobre Eco fora da Psicologia, Prado (2015) encontra tanto referências condizentes com o entendimento hegemônico de Eco na Psicologia Analítica quanto referências dissonantes, que enfatizam um aspecto mais complexo da ninfa como representante mítica da figura de mulher. Destacamos aqui o trabalho de Santos e Zocratto (apud PRADO, 2015, p. 20) para quem Eco "exemplifica a trajetória feminina que adquire voz e presença ao marcar seu espaço e ao construir sua história" e que se expressa usando recursos linguísticos em sua totalidade. A perspectiva na área do Direito levantada por Prado (2015) também reforça a importância do diálogo da Psicologia com outras áreas de conhecimento na busca por uma perspectiva ampliada de temas diversos.

Eco é uma ninfa, filha da terra e do ar, que serve em ritos e cerimônias ligadas à conjugalidade e à fertilidade. A etimologia da palavra ninfa, do grego "nymphe", que significa "noiva", parece sublinhar seu potencial de envolvimento absoluto com tudo, que, associada à capacidade de participação mística que Cavalcanti (2003) lhe incute por ser uma ninfa, a ligam à criatividade. Parte do séquito de Hera, Eco era quem distraía a deusa enquanto Zeus se relacionava sexualmente com outras ninfas e mortais. Isso traz tanto sua busca pela conjunção criativa, a serviço do que Eco se coloca, quanto sua relação com origem e criação, já que fomenta a contribuição de Zeus em povoar o panteão grego (BERRY, 2014). Sua ligação com criação também se relaciona com seu passado pré-helênico, no qual a ninfa teria sido a deusa Acco, conhecida como "voz da criação" (CAVALCANTI, 2003, p. 139).

Enquanto identidade de Eco, o que Cavalcanti (2003, p. 145) nos traz é uma figura com necessidade de ser vista e reconhecida, que demanda espaço para construção de autoestima positiva e que tem, na repetição, o meio de buscar reconhecimento. Sua carência por reflexo positivo a deixaria excessivamente disponível para refletir o outro e não a si mesma, o que também lhe traz um aspecto de empatia. Desta forma, Eco se veria "destituída de valor e de recursos" e daí decorreria uma postura dependente e simbiótica na busca por senso de valor. Já Berry (2014, p. 140) nos apresenta Eco não como uma entidade em si mesma ou mesmo como separada do meio que a circunda, pois ela seria dependente deste para se comunicar e afirma que, uma vez que Eco se apresenta no vazio inocupado, "aquilo que falta numa manifestação [...] é o que dá forma a Eco".

Berry (2014, p. 138) menciona a relação amorosa de Eco e Pã, figura mitológica também ligada a Tudo, que teria sido rompida por Eco. A rejeição de Eco a Pã é entendida pela autora como uma recusa ao desejo de Tudo de ter ressonância, de forma que Eco coloca limite àquilo que pode ser ecoado: "parte desse envolvimento [com tudo, o potencial dado a Eco] é também resistência, escapar de responder a tudo e a todos". Cavalcanti (2003) entende essa rejeição como um indicativo de maior desenvolvimento de escolha objetal de Eco, que recusa um semelhante, embora ainda busque Narciso como figura que lhe complementa.

Percebendo-se enganada pela tagarelice de Eco, Hera lhe restringe a falar tão somente as últimas palavras que ouve, o que parece ser a característica mais conhecida de Eco: repetir aquilo que ouve, como uma repetição vazia ou a serviço do outro. A punição de Hera parece, portanto, ser o marco identitário de Eco para o outro. Hera pune Eco ao lhe retirar aquilo que lhe dá identidade e possibilidade de existência autônoma e independente (CAVALCANTI, 2003; MONTELLANO, 1996; ALVARENGA, 2011; PRADO, 2015).

Contudo, Cavalcanti (2003) afirma que a punição de Hera é ambígua: ao mesmo tempo em que acentua a suposta falta de identidade de Eco, aponta para o caminho do desenvolvimento, caso a ninfa consiga se desvencilhar do serviço indiscriminado ao outro, encontrando outra forma de realizar a própria criatividade. Assim, a falta da possibilidade de autoexpressão espontânea de Eco a levaria à busca por outros caminhos de autoexpressão, sendo a repetição o seu caminho para cura. Aqui, então, repetição pode ter uma característica positiva pois permite elaboração, dá senso de continuidade e pertinência; permite o desenvolvimento identitário a partir da repetição criativa quando Eco dá novos significados àquilo que ecoa, em sua "fertilidade encoberta", associada ao acobertamento que dava a Zeus e possibilita o destaque daquilo que é repetido, permitindo elaboração e resolução da necessidade de repetição (BERRY, 2014, p.141; CAVALCANTI, 2003).

Segundo Berry (2014, p. 140), Hera é, no mito, a regente do aspecto da consciência, sendo uma "literalizadora" que se ocupa do e serve ao estabelecido e ao estabelecer das coisas, especialmente em seu aspecto externo e social. Dessa forma, a relação que Hera e Eco estabelecem com palavras parece ser oposto: enquanto a primeira relaciona palavras a fatos, a segunda as relaciona ao potencial criador. Ela ressalta ainda a importância do não saber de Hera como relacionado à tensão com a chegada do novo: "Talvez seja importante que o estabelecido não compreenda o informe e o não estabelecido. Dessa maneira, a tensão se mantém - a tensão entre [ ...] a tradição de um lado, e [...] o novo de outro" (ibid, p. 141, grifo da autora). A tensão, segundo ela, é importante pois dá ao novo um caráter estranho e original, que também precisaria negociar seu lugar no que já está estabelecido. Assim, o ecoar do vazio, do oco, na tagarelice de Eco parece ameaçador a Hera por mostrar o seu próprio oco, que acaba sendo trapaceado em sua realidade mais estabelecida e definida.

A partir do encontro de Eco e Narciso, Berry (2014, p. 145) aponta a capacidade reorganizadora de sentido e significado que Eco pode dar às palavras, modelando "as palavras no seu eco", de forma que o "significado literal foi transformado por seu eco". Ao afirmar, nesse sentido, que o eco também é uma forma de resposta que expressa a si mesma, a autora parece compreender que Eco se expressa a partir da fala do outro, reorganizando o sentido das palavras ouvidas para que lhe sirvam como forma de expressão. Isso já estava presente em Ovídio (1983, p. 90, grifo nosso), quando nos conta o seguinte sobre Eco, diante do desejo de se declarar a Narciso: "Sua natureza a impede de falar em primeiro lugar. Permite-lhe, porém, e ela se dispõe a isso, esperar os sons e devolver-lhe as próprias palavras". Ao ecoar as falas de Narciso, Eco também parece criar a possibilidade de autoescuta em si e no outro. Ela ecoa o convite que Narciso lhe faz, tornando-o a sua forma de se expressar. Por esta perspectiva, a punição de Hera parece cumprir a função de cura citada por Cavalcanti (2003), pois ela parece encontrar formas de se expressar de forma não espontânea, mas criativa, usando o eco das palavras que escuta para falar de si. Isso parece possibilitar a identidade de Eco, uma que é "realmente mais específica e articulada como os cantos e fendas de uma caverna, as ondulações de um vale, os recortes precisos onde a pedra emerge e retrocede. Esses detalhes, essas precisões, referem-se a Eco" (BERRY, 2014, p.146), de forma que sua identidade está estabelecida, mas não a partir do que a consciência representada por Hera, ligada ao estabelecido, assume como forma, mas sim como algo mais sutil.

Rejeitada por Narciso, Eco é alimentada pela dor da rejeição; seu corpo seca e sobram apenas seus ossos, que viram pedra, e sua voz. Para Berry (2014), a beleza de Eco está em seu pathos, seu sofrimento-paixão, uma vez que parece adquirir corpo por meio da dor, apesar da perda de seu corpo concreto; é pela corporificação da dor que Cavalcanti (2003) entende que Eco teria passado por seu processo de individuação, de forma que teria atingido o reconhecimento de si mesma e entendido onde e como pode atuar tanto enquanto ninfa (aquela que anima, que dá alma), quanto enquanto noiva (que busca a criatividade a partir da conjunção) e sendo sempre reconhecida quando estamos em sua presença, já que o eco é facilmente reconhecido. Eco teria adquirido tal apropriação de si que estaria livre para escolher comportamentos intencionais, desenvolvendo o que Tannen (2007, p. 6, tradução nossa) chama de "autonomia corporal".

Narciso, diante de sua própria imagem, percebe que esta lhe responde sem som: "e, tanto quanto posso adivinhar pelos movimentos de tua linda boca, dizes-me palavras que não chegam aos meus ouvidos" (OVÍDIO, 1983, p. 60), parecendo ele mesmo ecoar o silêncio de Eco em suas palavras ao se declarar para si mesmo. Segundo Ovídio (1983, p. 61), Eco ecoava lamentos de dor. Narciso lamenta, pouco antes de morrer: "Ah, querido em vão", e tem suas palavras ecoadas. Ao falar "Adeus!", Eco lhe responde "Adeus!".

Chama atenção que nenhum material encontrado sobre Eco na Psicologia Analítica traga luz a esta cena final, exceto Prado (2015) que associa o eco de Eco à sua empatia frente à dor de Narciso. De certo, Ovídio (1983, p. 61) afirma estar ela presente e "ainda ressentida com o agravo, apiedou-se". Embora na versão aqui utilizada seja pontuada a piedade de Eco por Narciso, na versão usada por Prado (2015, p. 93), ela estaria "ainda irada e pouco disposta a perdoá-lo", uma diferença bastante grande no entendimento quanto à postura de Eco e que pode interferir na forma como a entendemos.

No levantamento bibliográfico sobre estudos literários, psicologia e silenciamento, encontramos dois trabalhos relevantes. O de Magnabosco (1999, p. 51) questiona os pressupostos que sustentam o desapreço pelo discurso de mulheres nos âmbitos literário e psicológico. A autora questiona o que torna a mulher uma figura sem discurso, identificando que a mulher teria seu discurso representado por uma figura masculina que fala por ela. Magnabosco (1999) questiona ainda se a mulher não teria palavras ou se seria a desautorização do discurso masculino que a teria feito desenvolver outra forma de se expressar. Por fim, a autora questiona: "Teriam (e têm) as teorias canônicas literárias e psicológicas suportes estruturais, linguísticos, lexicais, que conotassem (e conotam) outros sentidos ao discurso desenvolvido pela mulher?". Saçço (2016, p.10), por sua vez, tem como foco de trabalho "escutar as histórias silenciadas" e investigar as consequências da violência sofrida por militantes opositores à ditadura militar no Brasil. Segundo a autora, "Ficção e narrativas orais complementam-se na busca pela verdade, no resgate de vozes e histórias silenciadas", sendo a literatura uma representação possível de catástrofes "uma vez que ela age no imaginário social", já que seu papel é "exprimir o inexprimível, sem perda da função testemunhal dos textos" (ibid, p. 11).

Magnabosco (1999, p. 52) compreende a diferença na tratativa da figura de mulher a partir da definição de gênero pelo viés de diferenças fisiológicas e biológicas, de forma que identidade é atrelada à individualidade em oposição às noções de diferenças e convivência com as mesmas; esta definição de indivíduo "afirma a impossibilidade de ser-se Outro, de identificar-se com outros papéis sociais, de transformar espaços, tempos e memórias e partir de diferentes modos de organizar e conceber o mundo". Seria esta, então, uma das razões para o desapreço da participação e reconhecimento da mulher na Literatura e na Psicologia.

A partir desse entendimento de supremacia do homem sobre a mulher com base na diferença corporal como identidade, Magnabosco (1999, p. 53) afirma que cabe à mulher ser "eco das vozes que diziam-lhe o que era o mundo, quais seus permitidos e proibidos, quais suas obrigações e deveres, enfim, com que corpo literário e psicológico ela podia se identificar". A autora insiste que "Identificada, nomeada e inscrita através do discurso masculino e da mentalidade masculina, a mulher emudeceu sua palavra, no sentido de só saber dizer-se como um reflexo do masculino". Ela pontua como exemplo dessa dinâmica na Psicologia a busca por palavras e estruturas que não as ditadas pelo homem em termos como histeria e inveja do homem ou do pênis. Na Literatura, a autora afirma que toda forma de expressão escrita da mulher era considerada literatura marginal, pois versa sobre "tolices, desejos impuros, insatisfações incompreendidas, sobre ideias transgressoras da ordem imposta ao mundo feminino" (ibid, p.53).

A partir deste contexto, a autora denomina o testemunho narrativo da mulher como discurso de resistência, pois representa uma " denúncia política de opressões, marginalizações e discriminações praticadas em relação aos subalternos da linguagem, isto é, aqueles que não enunciam-se sob a possibilidade da língua oficial de uma cultura" (ibid, p. 54, grifos da autora).

Saçço (2016, p. 38) incute às forças armadas brasileiras, além dos crimes de tortura e perseguição, o crime de silenciamento dos sobreviventes, impedindo que fizessem parte da escrita da história do Brasil no que se refere aos 21 anos violentos da ditadura militar: "As marcas da repressão ainda estão coladas nos seus corpos e mentes porque sofreram, logo após a anistia, o momento do silêncio imposto". Dessa forma, a narrativa testemunhal2, ficcional ou real, é apontada pela autora como uma forma de elaborar o trauma vivido, individual e coletivamente, apoiando-se em Kehl (apud SAÇÇO, 2016), que afirma que a não nomeação da violência traumática pode ser uma dor maior do que sofrê-la. O testemunho como "narrativa [que] dá voz a essas histórias silenciadas" (ibid, p. 36) seria fundamental para elaborar este período histórico, especialmente dado o valor que Seligmann (apud SAÇÇO, 2016, p.15) dá ao testemunho, que pode "servir como caminho para a construção de uma nova identidade pós-catástrofe".

Kehl (apud SAÇÇO, 2016) aproxima a tentativa de silenciar o sofrimento decorrente da ditadura ao silenciamento imposto aos crimes do regime escravocrata, e Saçço (2016) o aproxima também do silenciamento diante da violência sofrida nas diversas periferias brasileiras. O silenciamento, aliado à falta de acolhimento social para o testemunho, contribui para a intensa dor sofrida. O testemunho, enquanto potencial de trabalhar com e no imaginário social, quando ausente, corrobora para repetição do trauma.

O testemunho, segundo Saçço (2016), é uma tentativa de reunir fragmentos do passado. A autora aponta duas vertentes de teoria crítica do testemunho: o prisma europeu e norte-americano, cujos exemplos são a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto causado pelo regime nazista, e o prisma Latino-Americano, representado por ditaduras e opressões a minorias. No caso do Holocausto causado pelo regime nazista, entende-se o testemunho como busca por justiça, documentação histórica e, assim, tem relevância. Porém, o testemunho na América Latina vem como denúncia em que a testemunha deve provar ser vítima.

Magnabosco (1999, p. 54, grifo da autora) destaca, entre os recortes críticos à Literatura, o que critica a hegemonia do cânone literário ocidental, marcado pela noção de que linguagem e identidade são criadas em seus contextos sociopolíticos . Este modelo se opõe à crítica canônica baseada na objetividade e na universalidade, que se pauta na "literalização de sentido, ou seja, a resistência a novos sentidos da palavra", fazendo com que os discursos de resistência sejam compreendidos como "afronta e desvalorização da obra e linguagem culta ocidental". Assim, explica a autora, haveria na literalização de palavras uma expressão máxima de valor literário. Essa necessidade de literalizar e de dar valor ao literalizado se aproxima do que Berry (2014) apresenta sobre Hera enquanto representante da consciência do estabelecido.

A crítica aos discursos de resistência, como forma de oposição ao novo, é outro apontamento feito por Magnabosco (1999, p.54), que entende que "Opor significa não submeter-se, não aceitar passivamente uma definição única [...] como 'a' verdade". Para ela, opor-se traz possibilidade de outros sentidos e significados e dá abertura para conhecer e apreender formas diferentes de organização de pensamentos e linguagens. A autora explica também o mecanismo de expropriação de significados no discurso de resistência para tentar adequá-lo ao discurso hegemônico; caso não se enquadre, torna-se marginalizado, termo de denominação discriminatória, como "um dos movimentos esperados por aqueles que sentem-se ameaçados e desacomodados de seus hábitos mentais, psicológicos e literários" (ibid, p. 55). A autora faz ainda alusão ao termo marginalizado, aquele da margem, como "representação do Outro a partir de uma visão de mundo e de linguagem que não lhe corresponde" (ibid, p. 55), indicando um subjugamento da alteridade.

Ao falar sobre o processo de redemocratização no Brasil, Saçço (2016, p. 50) aponta para a marginalização do testemunho da militância contrária à ditadura, sendo substituído por um discurso hegemônico, ficando o testemunho entregue à "política do esquecimento". A justificativa para esse silenciamento, segundo a autora, seria reduzir a possibilidade de desejo de vingança por sobreviventes e familiares daqueles que não sobreviveram, como se a busca pela justiça fosse revanchismo.

Magnabosco (1999, p. 55, grifo da autora) relaciona a crítica ao discurso de resistência a um desequilíbrio na "economia narcísica, ou seja, o investimento afetivo sobre o sujeito-objeto escolhido e valorizado"; desequilíbrio esse que causa incômodo por mostrar a "fragilidade das regras e significados da linguagem e da identidade (por não serem ontológicos, mas produções humanas e socioculturais )", o que coloca em xeque seus modelos identificatórios, isto é, questiona a unicidade hegemônica de identidade. "Em outras palavras, pela palavra denunciadora dos testemunhos, o leitor depara-se com vivências e percepções de intenso sofrimento e miserabilidade humana, as quais é preferível negar ou reprimir" (ibid, p. 56). Esta reação pode ser justificada pela dificuldade de identificação a partir das vivências narradas como um problema humano e político, e não como questão identitária. Desta forma, diminuir o valor do discurso diferente do hegemônico é isentar-se de olhar para os problemas expostos pelas vozes silenciadas e de "responder-lhes através da colocação de novas consciências da ressignificação do valor democrático da palavra" (ibid, p. 56).

Assim, explica a autora, pela redução da relevância e consequente exclusão a partir do olhar hegemônico, impossibilita-se o novo, de forma que "repassa e reafirma apenas aquelas estruturas e significados da linguagem e do comportamento que são consentidos e reafirmados por um discurso dominante, em face a determinados interesses políticos e sociais" (MAGNABOSCO, 1999, p. 56), o que acaba por impossibilitar a ideia e a convivência com diferença e alteridade. Cabe questionar se este apontamento serviria também à pouca atenção dada a Eco, que Berry (2014), Cavalcanti (2003) e Prado (2015) apontam.

Parece possível estabelecer uma relação entre os silenciamentos de Eco, enquanto representante do Outro (CAVALCANTI, 2003), de mulheres na literatura e de vítimas e opositores à ditadura militar brasileira, uma vez que Magnabosco (1999) aponta a figura da mulher (e de qualquer identidade que não a hegemônica3) como o Outro e Saçço (2016) traz ao longo de sua dissertação falas que marginalizam opositores, costumeiramente apontados como "terroristas". Nos três casos, essa negação do outro se assemelha ao que Cavalcanti (2003, p. 208) define como "negação defensiva da autonomia do objeto" do indivíduo narcisista. Segundo a autora, há percepção da independência do outro, mas o narcisista nega esta percepção devido a sentimentos de insegurança, que aparecem como dificuldade de lidar com percepções mais complexas do outro e com o medo de ser abandonado e/ou rejeitado e de seus sentimentos de fragilidade, inferioridade e vulnerabilidade. Desta forma, a "relação com o outro fica dificultada pelos sentimentos persecutórios em relação à invalidação e à autonomia do eu" (Ibid, p. 209), algo que também aparece em Magnabosco (1999 ), ao falar da impossibilidade de existência do Outro frente ao que é hegemonicamente dado como identidade e discurso, ponto também reforçado por Rubini (2020). Saçço (2016), por sua vez, aponta o silenciamento como negação da perseguição e da tortura como forma de opressão e repressão daqueles que se opunham à ditadura militar no Brasil. A recusa narcísica do Outro não parece encontrar espaço para que exista a recusa de Eco frente a Pã, como se não pudesse haver resistência.

Eco usa a palavra ouvida para se expressar (BERRY, 2014; OVÍDIO, 1983). Ao ignorarmos a transformação de Eco pela sua dor, ainda a vemos como mantenedora da grandiosidade e da onipotência narcísica (CAVALCANTI, 2003). O eco vazio de significado parece ser eco do vazio do discurso hegemônico, literalizador, opressor, que silencia vozes que lhe são opositoras, que não se submetem passivamente.

Eco, a partir da relação que estabelece com Narciso, é entendida como a possibilidade de vínculo e de relação consigo e com outro; ela representa o Outro no processo de desenvolvimento de relações, na formação da identidade e na construção do senso de eu (CAVALCANTI, 2003). Mas Narciso a recusa. Esta recusa de Narciso está associada à recusa do narcisista em perceber a autonomia e independência do outro (KOHUT apud CAVALCANTI, 2003), o que também é coerente com o apontado por Magnabosco (1999) quando discorre sobre a dificuldade de representação do Outro, enquanto identidade e discurso, que é, então, marginalizado. "Para a personalidade narcísica, a existência de sua individualidade é possível pela negação da individualidade do outro. Sua força e valor só podem se afirmar pela invalidação da força e valor do outro" (CAVALCANTI, 2003, p. 210). Há desvalorização do objeto para afirmar sua própria superioridade, pois a existência do outro é sentida como ameaça à própria existência, conforme explica Cavalcanti (2003, p. 210): "A desvalorização do outro é também usada como um meio para ter o objeto sob o seu controle e posse e, assim, garantir a satisfação exclusiva de suas necessidades". Nesse sentido, é possível aproximar a postura daqueles que silenciam, seja o discurso hegemônico apontado por Magnabosco (1999), seja a perseguição, e em especial a tortura, da ditadura militar apontados por Saçço (2016), à postura narcísica.

Cavalcanti (2003, p. 211) explica a posição dada a Eco de servir a Narciso como forma de buscar autoestima por ser desvalorizada em prol da autoestima de Narciso: "Eco só é importante para Narciso na medida em que funciona dentro de suas expectativas. Para Narciso, Eco não pode ter identidade porque ameaça destruir a estrutura que ele construiu para manutenção da sua autonomia", de forma que "Narciso percebe em Eco a sua própria falta, que é negada". A explicação dada pela autora se relaciona de forma bastante direta com as afirmações de Magnabosco (1999) sobre a necessidade de silenciar aquele que é diferente. Uma aproximação dessa mesma dinâmica com o funcionamento da ditadura militar requer um estudo mais aprofundado, embora num primeiro olhar também pareça possível identificar aspectos da dinâmica narcísica no discurso de seus apoiadores.

Eco enquanto Outro, como figura que tem identidade, independência e autonomia corporal, parece impossível para o olhar narcísico, pois então ela sairia do lugar de servidão e submissão no qual foi posta pela dinâmica narcísica. A identidade e o discurso de Eco, expressos a partir da reorganização de significado em seu eco, são recusados pelo olhar narcísico pois ela precisa ser mantida submissa e passiva em função da necessidade narcísica e do desejo narcísico de eco e espelhamento positivos; porém, Cavalcanti (2003) afirma que Eco deve ser mantida a certa distância pois, caso contrário, atua como lembrança da vulnerabilidade e identidade frágil de Narciso, que demonstra a impossibilidade da independência dele em relação a Eco, uma vez que ele mesmo precisa se sentir amado para se sentir valorizado, o que culmina numa postura de intolerância à crítica; algo também apontado por Rubini (2020). Uma relação real entre Narciso e Eco só pode existir quando "esta adquirir para ele a função de um objeto independente e autônomo. O desenvolvimento da autonomia do ego está vinculado ao desenvolvimento da percepção da autonomia do outro" (CAVALCANTI, 2003, p. 214).

A mesma dificuldade em lidar com a existência do Outro é apontada por Magnabosco (1999) ao falar sobre o discurso de resistência e parece também estabelecer correlação com o que Saçço (2016) aponta sobre a intensidade da violência sofrida por militantes opositores à ditadura militar brasileira: a força feita para manter o silêncio imposto a vozes não ecoantes com o discurso hegemônico, seja ele o discurso patriarcal/androcêntrico (MAGNABOSCO, 1999), o discurso da ditadura militar (SAÇÇO) ou o discurso narcisista (CAVALCANTI, 2003) é medida pela necessidade de sobrepujar, oprimir e marginalizar o diferente, a alteridade, o Outro.

Narciso foi condenado a se ver (CAVALCANTI, 2003), mas não parece poder ouvir, a si mesmo ou ao Outro. Ele percebe que sua imagem lhe fala, mas não ouve sua voz pois Eco não a ecoa. É interessante notar o apontamento de Ovídio (1983) sobre a afetação de Eco quando volta a encontrar Narciso em seu fim: ela está brava, ressentida. Cavalcanti (2003, p. 146) aponta que Eco teria medo de sua raiva e que, por isso, tenderia a colocá-la como impulso reparador. Eco nega a raiva que sente e "mobiliza Eros contra a dor da frustração e da depressão". Nesse sentido, a impossibilidade de contato com a raiva parece próximo do que aponta Saçço (2016) sobre a resistência em falarmos aberta e socialmente sobre os danos que a violência da ditadura militar nos relegou, sob justificativa de busca por vingança. A raiva daqueles que são silenciados deve permanecer silenciada.

Porém, ao estar com raiva, parece ser possível que Eco saia da posição de submissão à voz de Narciso, de forma que cabe questionar se Eros não a mobilizaria a partir de sua frustração e raiva, uma leitura mais próxima da de Berry (2014) sobre a vivência e importância do sofrimento de Eco.

Aqui, parece importante fazer uma ressalva sobre a raiva. Rubini (2020) aponta Eros como o potencial de vínculo, de ligação, para que uma consumação seja possível. Num primeiro olhar, parece possível aproximar a afetação pelo medo e pela raiva de uma "ameaça comunista" na década de 1960 - reavivada nas eleições presidenciais de 2018 no Brasil - ao silenciamento daqueles associados a esta ameaça, promovendo o vínculo de uma grande parcela da sociedade brasileira à ditadura militar e ao governo brasileiro atual, em especial no momento de sua eleição, para evitar que tal ameaça fosse consumada. Isso também parece ter sido - e ainda ser - a justificativa de muitos apoiadores, tanto da ditadura militar entre 1964 e 1985 quanto do atual governo brasileiro, que reforçou, durante a ditadura militar brasileira, e parece buscar reforçar, atualmente, o silenciamento de militantes opositores. Por outro lado, a afetação pelo medo e pela raiva do atual governo brasileiro, muitas vezes compartilhada no grupo de estudos organizado por Gimenez (2018) e Tancetti (2018), tem possibilitado a criação de vínculos criativos, de amizades e de construção conjunta de revisão de mundo, buscando ampliação e expansão de perspectivas aprendidas e reforçadas socialmente. Exemplo disso é o trabalho de Tancetti e Esteves (2020) sobre a importância do feminismo negro decolonialista para a perspectiva da Psicologia Analítica. O artigo, escrito por duas integrantes do grupo, busca criar espaço para que as vozes do pensamento decolonial e do pensamento feminista negro sejam ouvidas e incorporadas ao pensamento junguiano tradicional.

O que Eco ecoa nos lamentos finais de Narciso pode tanto ser a dor dele como sua própria dor, que vê nele um ser "querido em vão", do qual também se despede, despedindo-se ainda da servidão que lhe prestou e da identidade que lhe foi incutida, cumprindo a possibilidade transformadora da punição que recebeu de Hera, ao desenvolver uma identidade própria que incorpora a identidade anterior, a da deusa Acco, a voz da criação, e a ninfa Eco, a voz da repetição, que se torna expressiva de si mesma. Essa noção parece bastante relevante ao se considerar a importância da criação da Comissão Nacional da Verdade e da oitiva de vítimas sobreviventes da ditadura. Dentre os diversos trechos que Saçço (2016) traz, destacamos o seguinte:

Me dispus a estar falando? [ ...] Eu dei aula durante anos, eu falava sobre esse período. Eu sempre fui extremamente crítica, conscientemente crítica, formei alunos críticos, eu fiz todas as críticas, ainda faço, mas eu era um sujeito que pairava no ar, né?! Então eu acho que isso tem que ser dito (p. 120 ).

O que se pode notar pelo levantamento bibliográfico feito neste artigo é que há pouco reflexo positivo de Eco enquanto si mesma, por si mesma e para si mesma, como apontado por Soares (apud PRADO, 2015, p. 25), que afirma que "jamais haverá uma representação de Eco por ela mesma", o que parece reforçar o aprisionamento ao silenciamento e a repetição vazia do olhar narcísico que a vê. O esvaziamento característico de Eco (CAVALCANTI, 2003) parece se dar tanto pela relação que Narciso estabelece com Eco como pela falta de reflexo positivo que lhe damos, parecendo que uma alimenta a outra, mantendo um moto-contínuo de submissão e passividade no entendimento de identidade e escuta narrativa do Outro. Essa noção se aproxima do entendimento de Magnabosco (1999) sobre a marginalização dos discursos de resistência, que não ficam restritos à mulher, mas a qualquer grupo que seja identificado como Outro pela cultura hegemônica, de forma que também parece abarcar o silenciamento vivido desde o período da ditadura militar no Brasil e o silêncio imposto pela lei de anistia, como aponta Saçço (2016).

O que é dado a Eco como identidade limítrofe, sem autonomia, dependente da renúncia de si em busca de si parece ter sido superada por ela, mas não ainda por nós que, em nosso próprio posicionamento narcisista, não lhe damos a possibilidade de autonomia pois isso nos fere, ao mesmo tempo em que a mantemos aprisionada numa posição de eco sem valor para que não sejamos tocados em nossas próprias feridas narcísicas. Isso parece ser reforçado por Berry (2014 ), que afirma que focar em Narciso parece mais fácil, pois a paixão de Eco é mais complexa, tal qual sua precisão é como a forma de cavernas e vales:

Como todos nós, Narciso gostaria de manter as coisas simples. E é muito mais simples pensar em si mesmo, identidade e subjetividade como separados de um mundo de ecos - nossa forma e nossas experiências como diferentes da forma do que nos cerca (p.148).

Para Berry (2014, p. 150), a paixão de Eco é complexa por não ser realizável, sendo seu sofrimento algo a ser preservado: "Esse cultivo sensível do sofrimento é uma arte que tem mais a ver com os tons e humores que ecoam dentro da psique do que com regras grandiosas ou prescrições analíticas".

Neste trabalho pudemos perceber que a figura de Eco pode ajudar a ouvir vozes silenciadas com uma conotação de valor diferente daquela dada pela cultura hegemônica, supostamente universal e objetiva, que estabelece o que tem ou não tem valor. Com o auxílio de outras áreas de conhecimento parece possível irmos mais além do que apenas com a lente da psicologia, que tem suas próprias amarras, limites e feridas narcísicas. Eco, com um valor redescoberto em si mesma, mesmo sem o reconhecimento do outro, encontra sua forma de autoexpressão e parece estabelecer uma relação importante com outras tantas vozes silenciadas. Conforme indica Ovídio (1983), Eco usa a palavra do outro e as faz suas, ela está a serviço da conjunção criativa (CAVALCANTI, 2003), mas é colocada a serviço do olhar narcísico para sustentar o narcisismo dos chamados "dominantes". Porém, Eco parece se relacionar mais à reinauguração do "valor da palavra pela audição de outros discursos" (MAGNABOSCO, 1999, p. 56), de forma a transformar "vozes silenciadas por um discurso hegemônico em outros discursos" (ibid, p. 57).

Berry (2014) afirma que a beleza de Eco está em seu pathos inflamado e também em sua frustração, em seu sofrimento e tristeza, que talvez ecoe nossos próprios sentimentos afins. Talvez também por isso tenha parecido necessário silenciar Eco. Talvez por isso ainda pareça necessário silenciar vozes que ecoam tristeza e sofrimento em suas experiências de opressão e marginalização.

O fim de Judith, a irmã de Shakespeare criada por Woolf (2019), não é feliz, assim como tantos outros fins que sua história pode representar; assim como o fim de Eco não é visto como feliz. Por nossa necessidade de evitar o sofrimento identificado em Eco nos furtamos a ver e ecoar sua alteridade, criatividade e expressão. A necessidade da concretização e da fisicalidade de nossos desejos parece se relacionar mais à formalidade de Hera do que à sutileza de Eco, que mesmo sem seu corpo físico consegue existir, ocupar espaços e criar. Berry (2014) nos lembra que no mito não há qualquer tipo de consumação que não a autoconsumação , a transformação da vida em morte; mas por se tratar de mortes simbólicas, fala-se de transformação. Eco se transforma pela rejeição e pela sua afetação diante da rejeição; enquanto a rejeitarmos em seu potencial criativo é isso que ela nos ecoará: o vazio do nosso entendimento. Ao ter espaço para ser ouvida, ela pode ecoar criatividade, transformação e alteridade. E por isso parece ser tão necessário ouvirmos vozes silenciadas.

Contudo, é de extrema importância salientar que Eco sozinha não parece dar conta do sofrimento que a leitura de depoimentos à Comissão Nacional da Verdade (apud SAÇÇO, 2016) suscita. Precisamos ir muito mais além dos referenciais culturais hegemônicos para compreender vozes silenciadas; é necessário ouvir as referências daqueles que foram silenciados, cujos ecos ainda não são ouvidos (BREWSTER, 2020). Na história de Eco, muitas são as lacunas não preenchidas de sua história, em especial seu passado pré-helênico. O apagamento dessa referência parece também se relacionar com o silenciamento de pessoas, de culturas, de povos, de diferenças.

A identidade dada a Eco não lhe pertence; isso é algo que ela parece ainda guardar para si enquanto brinca conosco quando a chamamos num espaço vazio e ela nos responde ecoando nossa própria voz. Esconder-se talvez tenha sido a sua forma de resistência e enfrentamento, mas talvez seja um momento importante no nosso país para que as vozes silenciadas não mais se escondam, mas se apresentem para que possamos conhecer o Outro e entrar num funcionamento de alteridade onde a diferença tem espaço e não precisa ser combatida como uma ameaça a um senso de integridade frágil e narcísico. Resgatar e ouvir a história, o discurso e a identidade daqueles que foram e são silenciados parece primordial se pretendemos ter alteridade e autonomia real.

 

Referências

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Recebido em: 21/8/2021
Revisão em: 02/11/2021

 

 

1 A sigla LGBTQIA+ refere-se ao grupo de lésbicas, gays, bi e panssexuais, travestis e transgêneros, queer, interessexos, assexuais e outros grupos de sexualidade não normativos. A LGBTfobia é o nome dado ao preconceito que indivíduos, partes do grupo ou o grupo todo sofrem.
2 A autora compreende "testemunho" como ouvir a narração da vítima até o fim, em especial no que se refere ao relato de sobreviventes e familiares de pessoas mortas e "desaparecidas" durante esse período, e não apenas como o presenciamento de uma experiência.
3 Tiburi (2018, p. 37) traz como representação de identidade hegemônica a de "homem branco", foco de favorecimento social, como representante do poder. Para ela, o "homem branco" é "uma metáfora do poder, do sujeito do privilégio, da figura autoritária alicerçada no acobertamento de relações que envolvem os aspectos de gênero e raça, sexo e classe, idade e corporiedade".

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