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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.39 no.2 São Paulo jul./dez. 2021

 

O Áporo de Drummond: um olhar junguiano

 

Drummond's Áporo: a jungian look

 

 

Marco Antônio Vasconcelos Rêgo

Médico, epidemiologista, psicoterapeuta junguiano, doutor em saúde pública, professor titular aposentado do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia. E-mail: mrego@ufba.br

 

 


RESUMO

Jung deu muita atenção à produção artística, incluindo a literária, enfatizando o seu potencial para revelar conteúdos do inconsciente. A motivação para este trabalho surgiu a partir do sonho de um homem de meia idade, no qual a palavra áporo, desconhecida para ele, apareceu claramente. A busca pelo significado dessa palavra o levou ao poema Áporo de Carlos Drummond de Andrade, um dos mais analisados por críticos da literatura brasileira. O poema contém elementos simbólicos que remetem a um paralelismo com os arquétipos descritos por Jung no âmbito da psicologia analítica, como ego/persona, sombra, anima/animus e o si-mesmo. Portanto, o objetivo deste trabalho foi descrever e analisar os aspectos simbólicos do poema, e concluiu-se que sua progressão sugere um processo de individuação.

Palavras-chave: poesia, áporo, literatura, individuação, Carlos Drummond de Andrade.


RESUMEN

Jung prestó mucha atención a la producción artística, incluida la literaria, enfatizando su potencial para revelar contenidos del inconsciente. La motivación de este trabajo surgió del sueño de un hombre de mediana edad, en el que aparecía claramente la palabra áporo, desconocida para él. La búsqueda del significado de esta palabra lo llevó al poema Áporo de Carlos Drummond de Andrade, uno de los más analizados por los críticos de la literatura brasileña. El poema contiene elementos simbólicos que hacen referencia a un paralelo con los arquetipos descritos por Jung en el ámbito de la psicología analítica, como ego/persona, sombra, ánima/animus y el sí-mismo. Por tanto, el objetivo de este trabajo fue describir y analizar los aspectos simbólicos del poema y se concluyó que su progresión sugiere un proceso de individuación.

Palabras clave: poesia, áporo, literatura, individuación, Carlos Drummond de Andrade.


ABSTRACT

Jung paid a lot of attention to artistic production, including the literary, emphasizing its potential to reveal contents of the unconscious. The motivation for this work arose from a middle-aged man's dream, in which the word áporo, unknown to him, clearly appeared. The search for the meaning of this word led him to the poem Áporo by Carlos Drummond de Andrade, one of the most analyzed by critics of Brazilian literature. The poem contains symbolic elements which refer to a parallel with the archetypes described by Jung in the scope of analytical psychology, such as ego/persona, shadow, anima/animus and Self. Therefore, the objective of this work was to describe and to analyze the symbolic aspects of the poem, and it was concluded that its progression suggests an individuation process.

Keywords: poetry, áporo, literature, individuation, Carlos Drummond de Andrade.


 

 

Introdução

Na obra de Jung há diversas referências à criação artística como fenômeno psicológico, nela incluída a produção literária. O poema "Áporo" de Carlos Drummond de Andrade é paradoxalmente simples e complexo e, em função de sua profundidade, existem muitas análises sobre o seu conteúdo, mas nenhuma delas enfoca aspectos de caráter psicológico. Entretanto, um olhar atento ao poema pode revelar alguns dos conceitos postulados por Jung, em especial os de sombra, anima, animus, função transcendente e individuação.

O ponto de partida da análise de "Áporo" foi um sonho de um homem de meia-idade, com vida familiar, profissional e social consolidadas. Na visão de Jung, os sonhos são uma manifestação natural que simbolizam a psique e falam por si, sem pretender significar outra coisa. Não podem ser tomados ao pé da letra e devem ser interpretados de modo simbólico, sendo necessário procurar neles um sentido oculto. São criações psíquicas espontâneas e arbitrárias provindas do inconsciente, aparentemente casuais, independentes da vontade do indivíduo e que contrastam com os conteúdos habituais da consciência, apesar de não totalmente desvinculadas desta. Existe nos sonhos uma função compensatória, e eles contribuem para o equilíbrio psíquico total. Admitindo que nos sonhos haja indícios de causalidade, Jung estabelece que neles há tendências objetivas, ou seja, há uma função prospectiva (JUNG, 2002a; 2002b; 2007b). "Os sonhos são poesia emergente. São criações que, partindo das profundidades da psique, vão condensar e expressar em metáforas a vida inconsciente do sonhador" (HIMIOB, 2005, p. 137).

Portanto, o objetivo deste trabalho é analisar o poema "Áporo", observando a possibilidade da representação de alguns dos conceitos que norteiam a psicologia analítica (PA). Não há pretensão, nem se justificaria, de aprofundamento sobre esses conceitos tão vastamente abordados na literatura especializada, mas unicamente discuti-los com brevidade, fazendo um paralelismo com os elementos do poema.

 

O sonho

O sonhador, durante o seu processo psicoterapêutico, trabalhou diversos sonhos, mas um em especial chamou a sua atenção pela clareza e simplicidade. Eis o sonho:

Estava em uma rua tranquila, quando vi uma faixa amarrada de um poste a outro atravessando a rua, como se fosse uma propaganda, um aviso ou um chamado para algo. A faixa era branca, tinha mais ou menos 80 cm de altura e nela podia-se ler com clareza sua única palavra, "ÁPORO", escrita em letras maiúsculas de cor preta.

Ao acordar, o sonhador ficou intrigado com a tal palavra, desconhecida para ele até então, mas que parecia ser real, dada a clareza com que estava grafada. Na internet, encontrou diversas páginas que faziam referência ao seu significado. Em especial, chamou-lhe a atenção a menção ao poema Áporo. Sua leitura o remeteu ao seu trabalho psicoterapêutico, o que lhe trouxe um misto de alegria e emoção. O sonhador percebeu a presença de elementos que poderiam simbolizar alguns dos conceitos da PA, com os quais tinha alguma familiaridade. Ou seja, o sonho, sincronisticamente, fazia pleno sentido para o seu processo particular, em especial por estar, no momento, em seu árduo caminho de autotransformação.

 

Drummond, Áporo e seus significados

Eis o poema (ANDRADE, 2000):

Um inseto cava cava sem alarme perfurando a terra sem achar escape. Que fazer, exausto, em país bloqueado, enlace de noite raiz e minério? Eis que o labirinto (oh razão, mistério) presto se desata: em verde, sozinha, antieuclidiana, uma orquídea forma-se (p. 56)

Reverberou no sonhador algo que já havia sido dito sobre esse poema: "A primeira impressão vem de fato do fascínio do desconhecido que emana dessa palavra rara e estranha, despertando a curiosidade para o que desde logo se oculta" (ARRIGUCCI JR., 2002, p. 78). Portanto, a questão que se colocava era: o que significa áporo?

Surpreendentemente, há três significados que dispostos aleatoriamente não se conectam: gênero de insetos himenópteros da família dos cavadores; problema difícil ou impossível de resolver, sem saída, labirinto; e gênero de planta da família das orquídeas (AULETE, 1958). Além dessas definições, existem os conceitos de aporia e de aporismo. Aporia em Filosofia significa a dificuldade de escolher entre duas opiniões igualmente racionais, mas contrárias. Aporismo significa problema de resolução difícil ou impossível na área da Matemática (AULETE, 1958). Em campos diversos, esses termos evocam a imagem de uma situação sem saída, de um labirinto.

 

O que diz a análise literária?

Essa é uma das "peças de poesia mais perfeitas e mais criativas, em âmbito internacional e dentro da tradição do verso pós-Mallarmé"1 (PIGNATARI, 2004, p. 144). Trata-se do 13o poema de A Rosa do Povo e, segundo Secchin (2018), esse é o livro máximo da fase mais politizada do autor e é celebrado com uma de suas obras-primas mais importantes. Esse autor refere ainda que vê o poema como anômalo, no sentido de que pode não apresentar uma sintonia imediata com o leitor. "Existe no poema uma barreira lançada ao leitor que, diante da estranheza e da complexidade dos signos no poema, descobre-se de certo modo impossibilitado de interpretá-lo diretamente" (SAID, 2005 apud SOUZA, 2014, p. 7). Esse pequeno poema "é um perfeito enigma cuja complexidade desafia a leitura crítica" (ARRIGUCCI JR., 2002, p. 76). Como será visto mais adiante, trata-se de uma obra visionária, como classificaria Jung.

A análise desse poema levou a muitas interpretações que o relacionam com o momento histórico e político em que foi escrito nos anos 1940 (Estado Novo, censura, espionagem, cerco às liberdades, incluindo as literárias) (ARRIGUCCI JR., 2002; SOUZA, 2014), especialmente quando se observa a segunda estrofe: "em país bloqueado", sendo a orquídea verde uma imagem de esperança pelas transformações que já se anunciavam. Áporo surge no "ano da agonia do nazifascismo e do Estado Novo ('em país bloqueado'), ano da soltura de Luís Carlos Prestes (presto se desata...), ano de todas as auroras" (PIGNATARI, 2004, p. 143).

Segundo Arrigucci Jr. (2002, p. 81), a transformação do inseto em flor, impossível de se observar na natureza, é certamente "o resultado de um esforço humano de mudança", e refere-se ao trabalho do poeta em encadear as palavras encontradas no dicionário. Drummond foi capaz de dar sentido lógico à sequência de significados díspares da palavra áporo; "[...] se estabelece uma continuidade coesa entre termos que em princípio eram não apenas completamente heterogêneos e divergentes, mas também descontínuos" (ARRIGUCCI JR., 2002, p. 83). Segundo Talarico (2006, p. 97), em Áporo "existem diversos planos de significação a concorrer para a construção de significados. O recorte descontextualizado de um desses planos compromete a percepção da dinâmica processual entre significantes e significados".

Gonçalves (2002, p. 84), ao se voltar para a poesia de Drummond, olha para dentro, buscando a imagem, renunciando ao que seria convencional na crítica literária. Refere-se ao poeta como um "alquimista do espírito" e como "arquiteto do silêncio", que consegue "congregar os elementos das sensações e do pensamento de modo a encontrar a harmonia necessária para realização do pensamento por imagem". Falta extrair do poema o que não é poesia. Nesse caminho, o poema Áporo "parece realizar, no seu próprio corpo, um exercício de profundo 'descarnamento' da linguagem em busca do essencial" (GONÇALVES, 2002, p. 88).

Essa metamorfose de inseto em flor, com passagem pelo labirinto sombrio, será retomada adiante quando da reflexão sobre a evolução de um indivíduo quanto aos aspectos psicológicos, considerando a dimensão metapoética, e áporo como a representação do próprio homem, como considerou Sousa (2017, p. 60) ao se referir ao poeta como o próprio áporo, "uma vez que Drummond insiste em escrever poesia em um país em que não se acredita mais na poesia: é um 'país bloqueado'". Santos (2006) diagnostica que Drummond é deslocado de seus pares contemporâneos, e por conta disso usa disfarces, máscaras heterônimas, em seus poemas, sendo Áporo uma de suas personas.

 

Jung e a obra de arte

Considerando que a obra de arte em si e o seu valor pertencem aos críticos de arte, como visto acima em breve, e antes de iniciar a análise do poema à luz dos conceitos junguianos, é importante comentar a respeito da observação ou avaliação de obras de arte sob o ponto de vista da PA, lembrando que "a crítica literária junguiana procura explorar as possíveis implicações psicológicas de um texto literário" (DAWSON, 2002, p. 240). No contexto da PA, a crítica contribui na decifração das imagens simbólicas que estão presentes na obra de arte, oferecendo significações não facilmente compreendidas (SILVEIRA, 1994).

Jung considerava controvertida a relação entre a obra de arte e a PA, mas "[...] apesar de sua incomensurabilidade, existe uma estreita conexão entre esses dois campos que pede uma análise direta" (JUNG, 2007a, par. 97). Especificamente sobre a obra de arte literária, Jung falava "[...] sobre a força imagística da poesia, embora ela pertença ao domínio da literatura e da estética [...] a força imagística é também um fenômeno psíquico" (prefácio, p. 74).

Dawson (2002) chama a atenção para o fato de que a análise da obra de arte, assim como o processo psicoterapêutico, é guiada pela teoria, mas que há uma tendência dos críticos de projetarem suas próprias visões sobre o texto, perdendo a possibilidade do surgimento de algo inesperado. "Um texto é um produto autônomo e deve ser respeitado como tal" (DAWSON, 2002, p. 240).

Avaliando a relação entre sentido e significação, pode parecer paradoxal a pergunta de Jung: "Será que a arte realmente 'significa'"? E prossegue oferecendo sua visão:

Talvez a arte nada 'signifique' e não tenha nenhum 'sentido' [...] Talvez ela seja como a natureza que simplesmente é e não 'significa'. Será que 'significação' é necessariamente mais do que simples interpretação que 'imagina mais do que nela existe' por causa da necessidade de um intelecto faminto de sentido? Poder-se-ia dizer que arte é beleza e nisso ela se realiza e se basta a si mesma. Ela não precisa ter sentido (JUNG, 2007a, par. 121).

Jung lembra que "a pergunta sobre o sentido nada tem a ver com a arte. Quando se fala da relação da psicologia com a obra de arte, já estamos fora da arte e nada mais nos resta senão especular e interpretar para que as coisas adquiram sentido" (JUNG, 2007a, par. 121). Admitindo-se esse conceito, a abordagem do poema Áporo é, antes de tudo, uma especulação.

Jung define os processos psicológico e visionário quando da criação de obras literárias. Os primeiros são facilmente compreendidos, sentidos pelo leitor, visto que abordam temas que foram captados pela alma do autor e que cativam o leitor, em função de suas experiências de vida relacionadas às comoções e vivências passionais. Esse modo psicológico de criar se coaduna com temas mais afeitos à consciência e geram obras que soam familiares, e comportam os romances policiais, familiares, sociais, os poemas líricos, as tragédias e as comédias (JUNG, 2007a). "É enfim, um destino humano que a consciência genérica conhece ou pelo menos pode pressentir" (par. 139). Entretanto, apesar de o leitor poder aprofundar-se nos aspectos da alma, "[...] os estudos psicológicos dessas obras nunca trazem contribuições importantes, pois o artista já esgotou seu tema e decerto melhor do que faria o psicólogo" (SILVEIRA, 1994, p. 168). Nas obras visionárias há uma inversão; tema e vivências não são conhecidos ou não facilmente apreendidos. "Sua essência, estranha, de natureza profunda, parece provir de abismos de uma época arcaica, ou de mundos de sombra e de luz sobre-humanos" (JUNG, 2007a, par. 141). Nesse sentido, não parece ser precipitado aceitar o pequeno poema Áporo como uma obra visionária, em função de sua profundidade.

Colonnese (2018) faz uma avaliação detalhada sobre a relação de Jung com a obra de arte e aborda com profundidade a presença da arte na elaboração da teoria junguiana. Essa autora refere que a articulação entre a obra de arte e a PA abre a possibilidade de contato com o mistério, com o que não é óbvio nem conhecido. No mesmo caminho, Rodrigues e Moreira (2017) ressaltam o papel da literatura na elaboração das vivências psíquicas, tanto para o escritor quanto para o leitor, mesmo que este não tenha pretensões analíticas ou interpretativas. As autoras observam como a arte se mistura com o mundo interior, e pode contribuir para o processo de individuação. Barcellos (2004) refere que o artista se abre ao novo, ao anticonvencional e enfatiza a importância do esforço para a apreciação simbólica e imagética.

 

O poema e os conteúdos da psicologia analítica

A obra de arte no seu vasto leque, o que inclui as obras literárias e sua linguagem poética, é uma das formas de comunicação do inconsciente com a consciência. Segundo Coelho (2020, p. 164), "A literatura certamente é um espaço privilegiado de imaginação, de reflexão, de revelação da complexidade humana [...]". O poema Áporo reúne no seu desenvolvimento uma sequência de eventos e situações que remetem a um processo de transformação, de metamorfose, como se observa no percurso do inseto à orquídea. No início do percurso, o inseto cava a terra; na sua ação instintiva, trabalha silenciosamente, constrói. Como bons representantes dos insetos himenópteros, formigas e abelhas simbolizam o trabalho profícuo e laboram diligentemente na construção de seus respectivos habitats e na manutenção da vida de quem delas depende; são insetos provedores (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1986).

Aqui cabe uma analogia com o que se espera que ocorra na primeira metade da vida, quando o indivíduo dá vazão às exigências do ego no sentido de prover a vida. Seguindo um caminho necessário à sua independência em todos os seus aspectos, o indivíduo estuda, alcança uma profissão, atinge sua estabilidade profissional, material, financeira, constitui família etc. Em suma, é guiado por um ego capaz de promover essa etapa da vida. Naturalmente é um olhar para fora, o objeto está no exterior, o que define genericamente uma etapa extrovertida da vida.

Nessa etapa, "período que vai do nascimento ao meio da vida, o indivíduo estaria às voltas com o que Jung denominou objetivo natural" (GRINBERG, 1997, p. 175). O êxito do seu empreendimento lhe confere reconhecimento; ao mundo exterior, sua persona encontra-se bem adaptada, ajustada ao coletivo, uma condição necessária ao crescimento psicológico. Entretanto, ele continua cavando, ao que parece, na busca do que poderá vir a ser o mais importante numa segunda etapa da vida, ou seja, os aspectos voltados para a interioridade, para o "objetivo cultural que diz respeito mais às questões inconscientes que conscientes". (GRINBERG, 1997, p. 175). Considerando que o processo de individuação ocorre durante toda a vida do indivíduo, mesmo que dele não se dê conta, nessa etapa da vida, por vezes, há uma tendência a atitude mais introvertida, o que em algum grau deve colaborar com o processo de busca do significado da vida. Necessário pois, olhar para dentro, para as raízes!

"Para crescer, a planta necessita primeiramente enraizar-se no solo" (GRINBERG, 1987, p. 175). Hillman (1987) usou a metáfora das raízes: "E era, como ainda é, chegar às raízes do sofrimento, do sofrimento inconsciente, do sofrimento do inconsciente, das raízes" (p. 4-5), e definiu Jung como um "radical, no real sentido da palavra [...] porque vai de volta aos radices, as raízes, os archai [...]" (HILLMAN, 1987, p. 4). Nesse labirinto subterrâneo, na escuridão do escavado, encontram-se as raízes.

Esses archai revertem adaptações híbridas e convenções coletivas a algo mais velho, profundo e mais essencial. Essas raízes não se conformam; protestam contra acomodações. As raízes atravessam qualquer camada de enxerto, qualquer expectativa, insistindo em torcer o seu jeito pelos caminhos abertos para elas. Para estarem certas têm que desviar (p. 4).

Seguir cavando significa descer às profundezas, tomar contato com a situação asfixiante do subterrâneo, com as raízes, com a dureza dos minérios, com a escuridão, com a nigredo alquímica, com o Arcanum, ou seja, com o mistério, que é escuro (JUNG, 2016). "[...] sem achar escape. Que fazer, exausto, em país bloqueado, enlace de noite raiz e minério? Eis que o labirinto (oh razão, mistério) [...]". Em sua profunda análise literária, Arrigucci Jr. (2002) faz breve incursão no campo da psicologia e sugere um labirinto simbólico, alcançado pelo inseto com o seu cavar diminuto. Pinto (2015) comenta que o homem se sente atraído inconscientemente pelo desafio imposto pelo labirinto, e nele se perder expõe a oportunidade de se encontrar de novo, uma espécie de renascimento pessoal. Dessa forma, encontrar-se-ia posteriormente numa forma mais plena e duradoura. Para esse autor, não há nada mais eficaz para esse fim do que o labirinto.

"A descida a uma caverna, gruta ou labirinto simboliza a morte ritual, do tipo iniciático [...], que pode levar o indivíduo às suas origens e, portanto, a uma transformação [...]. O iniciado torna-se outro" (BRANDÃO, 1986, p. 56). O labirinto abriga o monstro minotauro, que pode representar, sob o ponto de vista psicológico, os aspectos sombrios da psique, os aspectos inconscientes, os complexos. Santos e Ribeiro (2019) analisaram conceitos junguianos no poema Noche Oscura, escrito pelo espanhol São João da Cruz, e destacaram a presença do labirinto e que em seu centro "mítico/simbólico há sempre algo secreto, poderoso, precioso e sagrado [...]". Chevalier e Gheerbrant (1986, p. 621, tradução nossa) assinala que "O labirinto conduz também ao interior de si mesmo, a uma espécie de santuário interior e oculto, onde reside o mais misterioso da pessoa humana".

Assim, é possível especular um pouco mais sobre esse labirinto sombrio. "O que é essa escuridão lá embaixo, essa metáfora tenebrosa [...] que pode engolir o ego?" (HOLLIS, 2005, p. 85). Nesse subterrâneo é necessário despender grande monta de energia para garimpar conteúdos do inconsciente tão intocadamente guardados. Jung (2000) refere-se à sombra como um problema de ordem moral, o lado obscuro da personalidade desafiada "[...] é um desfiladeiro, um portal estreito, cuja dolorosa exiguidade não poupa quem quer que desça ao poço profundo" (JUNG, 2008, par. 45). É como se fosse a segunda personalidade no dizer de Sanford (2004), composta por qualidades rejeitadas, complexos, que contradizem os ideais do ego, muitas vezes só vista pelos outros. Tomar consciência da sombra, isto é, reconhecer esses aspectos obscuros da personalidade é fundamental para a tarefa do autoconhecimento, apesar das resistências, em geral, ligadas às projeções, "[...] não reconhecidas como tais e cujo conhecimento implica um esforço moral que ultrapassa os limites habituais do indivíduo" (JUNG, 2000, par. 16). Apesar disso, "[...] não é difícil, com um certo grau de autocrítica, perceber a própria sombra, pois ela é de natureza pessoal" (par. 19), e que gravita próximo à consciência. Segundo Withmont (2010), quando a vida se torna estéril e nela há um impasse, a solução está no lado escuro, onde vive a fonte de renovação.

Entretanto, o cenário da falta de saída é inevitável; não há "poros". O labirinto é intrincado, com muitos percalços, que parecem estabelecer o final de linha, a estagnação motivada pelo medo dessa escuridão e pela dúvida quanto ao percurso a seguir. Porém, é preciso lutar firmemente contra essa estagnação e superar os aspectos assustadores da sombra, da escuridão interior, não revelados, invisíveis à consciência.

O invisível carrega a possibilidade do vir a ser do indivíduo, o que equivale também a dizer que ela, a sombra, não é exclusivamente a encarnação do mal; não é nem má nem boa e pode guardar tesouros, habilidades ou quaisquer aspectos positivos que foram de alguma forma reprimidos, nunca expressados, e não teve oportunidade de brilhar (ROBERTSON, 1997). O potencial positivo foi desvalorizado em excesso ou reprimido e o indivíduo se identifica com o lado negativo; seu potencial positivo torna-se sombra e precisa ser integrado (WITHMONT, 2010). Além dos "muitos monstros, às vezes há tesouros, e sempre algo útil" (HOLLIS, 2005, p. 85). Assim como outros arquétipos, a sombra é uma estrutura bipolar que apresenta "[...] aspectos criativos e estruturantes e não só os aspectos negativos e destruidores" (GRINBERG, 1997, p. 141).

Com o diálogo direto e honesto com esses aspectos, "[...] o labirinto presto se desata [...]" e a vida pode tomar outro significado, emergindo para o mundo exterior, agora lastreada nos processos internos, em alicerçada sobre outros valores, que não mais a construção, a produção, a acumulação, necessários e presentes na primeira etapa da vida, como fazem os insetos cavadores! O desenrolar e a conclusão do poema remetem a uma abordagem que reconhece a possibilidade de integração de conteúdos do inconsciente à consciência. Esse é, na verdade, um processo contínuo, interminável, de progressão e regressão da energia psíquica, no qual se espera que o saldo seja positivo.

Do encontro necessário entre consciência e inconsciente, entre inseto e labirinto, "[...] em verde, sozinha, anti-euclidiana, uma orquídea forma-se [...]", e aí reside grande possibilidade de significados. Inicialmente vale destacar a cor verde que mesmo que de forma inconsciente está presente simbolicamente como a cor da esperança (JUNG, 2000), o "verde como cor da vida [...] a cor do Creator Spiritus" (JUNG, 1986, par. 678). "Antieuclidiana" diz respeito a Euclides, matemático sírio-grego considerado o pai da geometria, e essa expressão remete às formas não exatas, não rígidas e, por conseguinte, mais flexíveis, mais maleáveis, algo necessário para o caminho da autotransformação.

Se, por um lado, cultural e tradicionalmente, as flores são mais vinculadas ao feminino, por outro lado, a orquídea aqui simboliza uma flor masculina. Orquídea deriva do grego όρχις (órkhis) que significa testículo, e ειδος (eidos), aspecto, forma, em referência ao formato dos dois pequenos tubérculos que as espécies do gênero Orchis possuem (ORQUÍDEA, 2021). A família das orquídeas é a maior das angiospermas, do grego angeos - bolsa e sperma - semente, ou seja, são plantas espermatófitas, cujas sementes são protegidas por uma estrutura denominada fruto (ANGIOSPERMA, 2020). Essa orquídea verde de Drummond pode ser a Aporostylis Bifolia (2019), "uma espécie de orquídea recoberta de pilosidades glandulares, com pequenos tubérculos ovóides, que originam caules curtos, eretos [...] com marcas avermelhadas e inflorescência terminal", parecendo realmente uma flor masculina!

Necessária se faz a integração das qualidades femininas do homem (presentes no arquétipo da anima) por essa flor-homem e das qualidades masculinas da mulher-flor (presentes no arquétipo do animus), feminina por natureza. Masculino e feminino que se unem; um masculino que permite a presença do feminino, e vice-versa; um masculino flexível anti-euclidiano e um feminino firme, apesar de flexível. A orquídea simboliza ainda a fecundação, a perfeição e a pureza espiritual (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1986). Apesar do apontado acima, seguir-se-ão alguns comentários relativos exclusivamente à anima, já que esse trabalho foi motivado pelo sonho e pelo processo de autoconhecimento de um homem, além do fato de que o poema foi escrito também por um homem.

A anima, assim como outros arquétipos, é uma estrutura bipolar, que se opõe à persona (JUNG, 2008). Não é tarefa fácil ao homem a integração dos aspectos do seu inconsciente feminino à consciência, dada inclusive a maior profundidade no inconsciente, quando comparados com os aspectos sombrios. Suas realidades psíquicas presentes apenas nas projeções, até dado momento nunca foram acessadas; por essa razão, a tarefa do encontro com a anima é tão desafiadora que Jung diz que "Se o confronto com a sombra é obra do aprendiz, o confronto com a anima é a obra-prima. A relação com a anima é outro teste de coragem, uma prova de fogo para as forças espirituais e morais do homem" (par. 61). Como a anima também pertenceria à função inferior, muitas vezes se manifesta de forma sombria, e "possui não raro, um caráter moral duvidoso" (JUNG, 1991, par. 192).

Desse modo, vale um alerta inicial de Jung (2000) de que, apesar de os conteúdos integrados da anima poderem se tornar conscientes, podem dela escapar e esta se tornar autônoma. Importante "[...] prestar continuamente uma certa atenção à sintomatologia dos conteúdos e processos inconscientes, uma vez que a consciência está sempre exposta ao risco da unilateralidade [...], e parar num beco sem saída" (par. 40), ou seja, permanecer ou retornar ao labirinto.

Os aspectos da anima são de fundamental importância para o processo de individuação, para o autoconhecimento, e, em geral, essas transformações na vida do indivíduo ocorrem de forma mais produtiva na segunda metade da vida. A anima ocasiona "uma suavização e um enfraquecimento fisiológico e social em direção ao feminino" (HILLMAN, 1985, p. 25). Entretanto, a anima pode se apresentar de forma distinta, ou mesmo reduzir gradativamente sua participação, e isso pode levar o indivíduo ao desânimo, com perda de sua vitalidade e flexibilidade. O resultado é o aparecimento de formas rígidas, unilateralidade e até mesmo o pedantismo, ou ainda o desleixo consigo próprio (JUNG, 2008). Portanto, nessa etapa da vida, é imperioso que se redobre a atenção aos aspectos do inconsciente e que o indivíduo tente se reconectar "[...] com a esfera da vivência arquetípica" (par. 147).

Antes de prosseguir com a tradicional visão sobre a anima, vale destacar algumas considerações que revisam seu conceito e função, para além do mero aspecto contrassexual. Existe uma "dificuldade com os conceitos indiferenciados da anima maior que a sua própria natureza" (HILLMAN, 1985, p. 15), e que "dificilmente podemos atribuir anima apenas ao sexo masculino. O feminino é tão importante para as mulheres quanto para os homens, posto que a anima é vivida como uma interioridade pessoal, voltada para dentro, e carrega nosso vir-a-ser individualizado" (p. 29). A anima, como imagem da alma, seria melhor vista como projetor e não como projeção, tornando-se, portanto, "o condutor primordial da psique, ou o arquétipo da própria psique" (p. 83), do chamado psicológico.

Em sua digressão sobre o devaneio, Bachelard (1996) também se mostra reticente quanto à divisão da psique, "ante o emprego da dialética animus-anima na psicologia corrente [e que] o devaneio é, tanto no homem como na mulher, uma manifestação da anima" (BACHELARD, 1996, p. 60), a necessária presença da feminilidade na psique humana. Esse autor, entretanto, reconhece a eficácia da visão contrassexual de Jung quando dos seus estudos alquímicos, e também conforme Jung, "em si mesmos, anima e animus podem não representar nenhum gênero sexual específico" (HILLMAN, 1985, p. 189).

Para Bachelard (1996), o repouso e o refúgio da vida simples e serena encontram-se na profundidade da anima de todo o ser humano, homem ou mulher. "Os melhores dos nossos devaneios procedem, em cada um de nós, homens ou mulheres, de nosso ser feminino. Se não abrigássemos em nós um ser feminino, como haveríamos de repousar?" (BACHELARD, 1996, p. 88).

Feitas essas considerações, e observando-se, como dito acima, esse processo nos homens, pode-se afirmar que a presença de aspectos femininos no homem é uma necessidade psicológica para o processo de individuação. Entretanto, uma questão de fundamental importância é que "[...] seria enganador fazer referência ao 'lado feminino' de um homem, pois a anima é na verdade uma parte necessária do que significa ser homem" (HOLLIS, 2008, p. 137), e sendo feminina, produz a compensação da consciência masculina. "O homem em que o princípio feminino estivesse completamente ausente seria um ser abstrato [...]" (SANFORD, 2004, p. 12).

Como complexo autônomo, inconsciente, a anima precisa ser visitada e transformada numa função de relação com a consciência e perder seu poder demoníaco, seu poder de possessão (JUNG, 2007b). "Não há homem algum tão exclusivamente masculino que não possua em si algo de feminino" (par. 297). Essa sizígia é o casamento sagrado (hieros gamos) que cria o andrógino em nível psicológico (ANTHONY, 1998).

Isso significa antes de tudo que o animus funciona também nos homens (HILLMAN, 1985, p. 189), e que essa sizígia animus-anima conforma a imagem arquetípica do divino par unido (p. 183). Para além da relação interpessoal, "essa sizígia anima-animus interna de qualquer mulher ou qualquer homem significa uma relação intrapsíquica" (p. 189). Retomando Bachelard (1996), a conjunção animus-anima reside "no fundo de toda alma" (p. 79), o que concretiza o ser andrógino, psicologicamente, com suas potencialidades de realização do superfeminino e do supermasculino (BACHELARD, 1996).

Especula-se e explora-se aqui a conjunção que essa orquídea-símbolo pode representar. Talvez sem se dar conta, inconscientemente, Drummond tenha trazido explicitamente em sua flor, esse mistério da conjunção (oh razão, mistério), o mysterium coniunctionis que Jung compreensivamente buscou dos postulados da alquimia para a sua psicologia. Essa união de substâncias desiguais (inseto e labirinto) é fundamental para a formação do ser uno (orquídea), e dar-se-ia em três etapas. Inicialmente a união mental (unio mentalis) intrapsíquica do espírito com a alma, da razão [oh razão!] com Eros, representante do sentimento (JUNG, 2016). Vale atentar para a correspondência dessa etapa com a "[...] confrontação da consciência (isto é, da personalidade do eu) com o que se acha no fundo da cena, a chamada sombra [...]" (par. 366), para a partir daí, se iniciar a individuação consciente. Na segunda etapa, essa união se vincula ao corpo, fusão necessária ao caminho da individuação, para a real vivência da união do espírito com a alma.

Essa etapa "[...] consiste na realização do homem, que esteja aproximadamente informado sobre a sua totalidade paradoxal" (par. 341). Na sequência, para consumar o mistério da conjunção, esse triunvirato deve se vincular ao mundo uno (unus mundus), tarefa de maior iluminação, de difícil consecução para o homem comum. Edinger (2008, p. 22) considera "[...] que a coniunctio, e o processo que a cria, representa a criação da consciência, que é uma substância psíquica duradoura".

Aqui alguns aspectos são fundamentais. A orquídea forma-se sozinha, e este fato remete à questão da responsabilidade que cada indivíduo deve ter quanto às suas escolhas, à percepção do chamado e dos caminhos a seguir; é uma responsabilidade do próprio indivíduo e não do outro. Não cabem o papel de vítima nem os processos de culpa, de si próprio ou de outrem. O processo de autotransformação se constitui num caminho individual, no qual o inconsciente vai dando lugar à consciência, e a partir disso esse processo se transforma numa meta.

A orquídea, apesar do inóspito, ou talvez por conta dele, está integrada com ela própria, unindo conteúdos conscientes e inconscientes, nela própria, a sizígia animus-anima. Esse novo "[...] produto corporifica o anseio de luz, por parte do inconsciente, e de substância, por parte da consciência" (JUNG, 2002a, par. 168), necessário ao diálogo interior. Nessa circunstância, a orquídea abriga a fusão necessária, sugerindo o papel da função psicológica transcendente, como um processo formador de símbolos. "É chamada transcendente porque torna possível organicamente a passagem de uma atitude para outra, sem perda do inconsciente" (JUNG, 2002a, par. 145). Pode-se evocar aqui a figura do uróboro da alquimia grega, "[...] o símbolo por excelência da união dos opostos e a representação alquímica palpável da expressão proverbial: os extremos se tocam" (JUNG, 2016, par. 375).

A confrontação entre posições contrárias gera uma tensão carregada de energia que produz algo de vivo, um terceiro elemento que não é um aborto lógico [...] não há um terceiro integrante, mas um deslocamento a partir da suspensão entre os opostos, e que leva a um novo nível de ser, a uma nova situação. A função transcendente aparece como uma das propriedades características dos opostos aproximados. Enquanto estes são mantidos afastados um do outro - evidentemente para se evitar conflitos - eles não funcionam e continuam inertes. Neste estágio, a condução do processo já não está mais com o inconsciente, mas com o ego (JUNG, 2002a, par. 189).

Portanto, saída da terra para a luz, essa orchis faz (re)nascer o himenóptero, metamorfoseado, não mais cavando, mas apontando para o alto. A partir dessa confrontação, o processo passa a ser conduzido pelo ego estruturado, capaz de manter o equilíbrio energético com o inconsciente, sem tentar driblá-lo ou subjugá-lo. Entretanto, alerta-se que a obediência cega ao eu faz o indivíduo se esquivar da tarefa da autotransformação. Segundo Jung (2016) sempre ocorrerão justificativas de ordem moral e racional, mas como o si mesmo se estende para todos os lados, o indivíduo pode se tornar vítima de uma decisão independente de sua razão ou de seu sentimento. Isso significa que a vivência do si-mesmo prevaleceu sobre o eu, o derrotou.

Na conformação do si-mesmo, "[...] o eu não se opõe nem se submete, mas simplesmente se liga, girando por assim dizer em torno dele como a terra em torno do sol - chegamos à meta da individuação" (JUNG, 2007b, par. 405). Trata-se do processo consciente de transformação da personalidade, cuja "meta não é outra senão a de despojar o si-mesmo dos invólucros falsos da persona" (par. 269). A individuação, portanto, significa "[...] tornar-se um ser único, na medida em que por 'individualidade' entendermos a singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo [...] ou o realizar-se do si-mesmo" (par. 266). Notar que os conteúdos inconscientes integrados são uma parte do si-mesmo, e sua "[...] assimilação alarga não somente as fronteiras do campo da consciência como também o significado do eu [...]" (JUNG, 2000, par. 43). "É por este motivo que a individuação é um 'mysterium coniunctionis' [mistério de unificação], dado que o si-mesmo é percebido como uma união nupcial de duas metades antagônicas [...]" (par. 117).

Por vezes, se confunde individuação com individualismo, no sentido de egoísmo. Vale ressaltar que uma vez que o indivíduo não é um ser único, mas pressupõe também um relacionamento coletivo para a sua existência, seu objetivo não é se isolar, mas ao contrário, reconhecendo e respeitando sua individualidade, espera-se que interaja e contribua com o coletivo (JUNG, 2007b). "A individuação não exclui o mundo; pelo contrário, o engloba" (JUNG, 2002a, par. 432). Para compreender o outro, é necessário conhecer-se, ter um relacionamento consigo próprio, o que é fundamental para se distinguir do outro, do coletivo, mesmo que tenha uma imagem deformada de si mesmo (JUNG, 2016).

Jung (2000) alerta para a importância de não se recusar esse chamado, por conta do perigo que representa uma individuação reprimida. O processo é doloroso, mas é melhor que aconteça conscientemente, e entregar-se à descida ao poço fundo, "[...] adotando todas as medidas de precaução necessárias, do que arriscar-se a cair de costas pelo buraco abaixo" (par. 125). Nesse caminho haverá erros e acertos, e "[...] é preciso também aceitar o erro, sem o qual a vida não será completa". Não há caminho seguro, "[...] esse seria o caminho dos mortos. Quem segue o caminho seguro está como que morto" (JUNG, 2006, p. 345).

O processo é contínuo, e é necessário sempre olhar para a escuridão, para a pedra bruta rejeitada que lá se esconde, observá-la dia após dia:

[...] até que seus olhos se abram ou, como dizem os alquimistas, lhe apareçam os oculi piscium (olhos de peixe) ou as scintillae, as faíscas luminosas, na solução escura. Os olhos de peixe estão sempre abertos, e por isso devem enxergar sempre, razão pela qual os alquimistas os empregam como símbolo para a atenção permanente (par. 406).

No confronto com a realidade haverá recuos; necessário pois, sempre verificar as falhas, que são "os pontos cegos no seu campo visual psíquico" (par. 413) e recomeçar. Jung alerta que a vida segue seu fluxo continuamente, e "[...] requer sempre e cada vez mais nova adaptação, pois nenhuma adaptação é definitiva" (JUNG, 2002a, par. 143). A tarefa não é fácil e jamais o homem conseguirá a totalidade psíquica empírica, pois "[...] a consciência é muito acanhada e unilateral para abranger o inventário completo da psique" (JUNG, 2016, par. 413). Jung clama que o homem moderno deve aprender com a experiência, com a maior simplicidade possível. O problema, segundo ele, é que o simples é o mais difícil, mas que o mundo uno é simples (JUNG, 2016).

Para finalizar, vale assinalar a interessante observação de Rodrigues e Moreira (2017) sobre o processo de autotransformação de Drummond ao analisarem as duas fases de sua produção:

[...] Drummond passa gradativamente a se abrir para o mundo e a perceber o sofrimento deste. Passa a se perceber menor que o mundo, talvez por vislumbrar a conexão com a totalidade, talvez desfazendo uma superidentificação com o ego. Ao desfazer a inflação de ego, o poeta sai da posição de impotência gerada pela idealização do que deveria ser. Na sua fase social, marcada pela vontade do poeta de participar e tentar transformar o mundo, Drummond mostra maior percepção de potência: 'Ó vida futura! nós te criaremos' (p. 68).

 

Considerações finais

Esse trabalho apresenta de forma resumida alguns dos conceitos da PA simbolizados nos elementos presentes no poema Áporo de Drummond. Um inseto se metamorfoseia em orquídea após uma passagem pelo labirinto. Assim, tem-se um áporo (inseto) que está em um áporo (labirinto), mas que finalmente se transforma em um(a) áporo (orquídea). Esse percurso, evidentemente impossível na vida biológica, tem paralelismo com a vida psicológica de um indivíduo que caminha conscientemente no sentido da autotransformação, da individuação, especialmente quando se observa a solução final do poema, qual seja, a formação da orquídea, que nessa análise representou as possibilidades de unificação de opostos. Essa orchis antieuclidiana expressa um não às formas rígidas, autoritárias, e um sim à flexibilidade, à maleabilidade, ao caminho do meio.

O poema Áporo, uma obra literária visionária, na sua totalidade, para além de suas partes, é ele próprio um símbolo, e cada um desses três áporos é um símbolo único que permitiu a vinculação com elementos fundamentais da PA, a saber, o ego/persona (inseto), a sombra (labirinto), a anima e as integrações de opostos possíveis (orquídea). Isto permitiu contextualizar, os conceitos de função transcendente, do si-mesmo e da individuação. Além desses, pode-se inferir pelo contexto, o fenômeno da sincronicidade, em função da ocorrência não causal e simultânea do sonho e do momento do sonhador, que se revelou emocionalmente afetado.

Por fim, vale também relembrar a importância dos sonhos no processo de transformação de um indivíduo, evidentemente se atenção é dada aos fatos da vida diária, sejam eles os próprios sonhos, as imagens, a expressão artística e tantos outros. Se é muito importante saber o que se quer da vida, é talvez mais importante, como diz Jung, questionar sempre o que a vida quer de cada um. É responder o "para quê" e não o "por quê", quando se observam os acontecimentos cotidianos. Ao Áporo corresponde um "Póros". Dessa forma, a visão prospectiva, consciente, e não a redutiva, assume a direção.

 

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Recebido: 17/08/2021
Revisão: 01/11/2021

 

 

1 Referência a Stéphane Mallarmé, nome literário de Étienne Mallarmé, poeta francês integrante do movimento simbolista, e autor de Crise de Versos.

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