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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.1 São Paulo jan./jun. 2022

 

Gratidão e individuação: revisão e reflexões

 

Gratitud e individualización: revisión y reflexiones

 

 

Renata Ferraz Torres

Médica formada pela Faculdade de Medicina da USP em 1998. Residência em Psiquiatria no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP concluída em 2001. Membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica e da International Association for Analytical Psychology desde 2006. Membro da Comissão de Ensino da SBPA desde 2011. e-mail: <renata.ferraz.torres@gmail.com>

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo abordar diferentes leituras a respeito da gratidão, traço emocional que já foi estudado por psicanalistas, pesquisadores da psicologia positiva e da personalidade humana. A autora articula essa diversidade de abordagens e propõe uma leitura analítica a respeito da gratidão como fator de saúde emocional, observando também que este mesmo traço pode adotar características sombrias que merecem discriminação. Ressalta a importância do trabalho consciente acerca da gratidão no caminho de individuação.

Palavras-chave: gratidão, emoções positivas, individuação.


RESUMEN

Este artículo pretende abordar diferentes lecturas sobre la gratitud, un rasgo emocional que ya ha sido estudiado por psicoanalistas, investigadores de la psicología positiva y de la personalidad humana. La autora articula esta diversidad de enfoques y propone una lectura analítica sobre la gratitud como factor de salud emocional, advirtiendo también que este mismo rasgo puede adoptar características oscuras que merecen discriminación. Destaca la importancia del trabajo consciente sobre la gratitud en el camino de la individuación.

Palabras clave: gratitud, emociones positivas, individuación.


 

 

Introdução

O fenômeno da gratidão tem sido abordado através de diversos prismas e leituras. O presente artigo propõe-se a tecer reflexões a respeito deste traço emocional e de seu papel como um fator de proteção na saúde psíquica do indivíduo. Para isso, foi realizada uma revisão bibliográfica acerca do estudo das emoções humanas, fazendo uma distinção entre emoção e traço afetivo, na tentativa de classificar a gratidão dentro desse campo complexo. A autora passeia pelo texto clássico de Melanie Klein, "Inveja e gratidão", por Carlos Byington, pela psicologia positiva - corrente que existe desde os anos 2000 -, abordando também o que algumas tradições religiosas têm a dizer sobre a gratidão.

A discussão transita pelos gregos da antiguidade, debruça-se sobre a questão de a gratidão ser digna de exaltação ou de reserva.

 

Histórico

Para começar esta reflexão, é importante situarmos a gratidão num campo de estudo maior, que é o das emoções.

Paul Ekman, psicólogo norte-americano e pioneiro no estudo das emoções humanas, propõe que elas sejam divididas em dois grupos: básicas e complexas. As emoções básicas estariam relacionadas a um comportamento instintivo presente nos animais e a determinadas expressões faciais típicas, independente da cultura do indivíduo e, inclusive, havendo um paralelo dessas expressões faciais em primatas (EKMAN, 1992). Exemplos de emoções básicas são: raiva, medo, tristeza, nojo, surpresa, curiosidade, aceitação e alegria. Emoções complexas seriam compostas por uma combinação dessas básicas, assim como as cores primárias se mesclam resultando em inúmeras tonalidades que compõem a paleta de cores. Um exemplo: uma combinação de emoções básicas como raiva e nojo resultaria na emoção complexa de desprezo.

Robert Plutchik, também um psicólogo norte-americano, propôs que essas emoções básicas seriam biologicamente primitivas e teriam evoluído no ser humano de modo a resultar em comportamentos complexos e sofisticados. Tais comportamentos representariam um incremento na capacidade reprodutiva ou de sobrevivência. Como exemplo, podemos citar o medo, que incita a reação de luta ou fuga através da ativação adrenérgica, uma vantagem evolutiva numa situação de ameaça (PLUTCHIK, 2000).

Nesse sentido, Plutchik propôs um modelo que denomina roda das emoções, dispondo num eixo a intensidade da emoção, colocando-a numa gradação de ativação, como, por exemplo: serenidade - alegria - êxtase. Trata-se, aqui, de um afeto agradável que num nível de baixa ativação compõe a serenidade, ao passo que, associado à excitação, compõe o êxtase. O mesmo pode acontecer com uma emoção negativa, como, por exemplo, um estado de leve apreensão, quando mais ativado, se eleva ao estado de medo que, em seu pico emocional, atinge o terror. Plutchik constrói um polígono em três dimensões, em cujo vértice se encontra uma emoção de fraca intensidade, pouco diferenciada, como um estado de repouso emocional. No lado do polígono que se opõe ao vértice, numa figura tridimensional que é como um diamante, as emoções se destacam e se diferenciam uma das outras, de modo que podemos ver a expressão de cada uma com nitidez e especificidade: admiração, êxtase, angústia, ira, assim por diante.

É curioso observar que todo este interesse científico na classificação das respostas emocionais humanas é recente, teve início na década de 1960. Tais pesquisas se inserem num campo de trabalho que estuda a personalidade. Assim, se de um modo geral as emoções emergem num contexto que as elicitam e provocam, olhando-se com mais detalhe, fica claro que existem determinados padrões de temperamento específicos que facilitam ou dificultam o surgimento de algumas emoções. Por exemplo, pessoas com um temperamento inclinado à hostilidade têm um limiar menor para experimentar a raiva.

Desta forma, existe uma distinção entre emoção e traço afetivo (WATSON, 2000). Enquanto a emoção é uma resposta mais bruta e independente, o traço afetivo guarda uma relação longitudinal com o temperamento do indivíduo, que é a parcela da personalidade geneticamente herdada, que tende a ter uma estabilidade longitudinal. Assim, embora todos os indivíduos sejam capazes de experimentar todas as emoções ao longo da vida, a depender de um contexto, existem pessoas que, por temperamento, estão mais predispostas a experimentar uma maior frequência, duração e intensidade seja do medo, da tristeza, da aceitação etc.

Podemos nos perguntar: nessa mistura de emoções, onde se encontraria a gratidão? Trata-se de uma classificação difícil. Ela já foi caracterizada como uma emoção complexa, uma virtude moral, um hábito, um traço de personalidade, um comportamento ou um coping behaviour.

Podemos aproximá-la da apreciação, da aceitação, da serenidade, do contentamento. Além disso, podemos supor que a gratidão guarde uma relação com a capacidade de sentir empatia e solidariedade com o outro, engajando-se como um receptor numa relação de cooperatividade e altruísmo. Lazarus e Lazarus (1994) propõem que a gratidão seja uma das "emoções empáticas" cujas raízes repousam na capacidade de estabelecer empatia com os outros. No extremo oposto do espectro, sabemos que pessoas altamente competitivas, muitas vezes, têm dificuldade em sentir gratidão, engajando-se com maior frequência em relações nas quais a rivalidade, a inveja, o ressentimento e a comparação se tornam aspectos proeminentes.

 

Estudos sobre gratidão

A palavra gratidão vem do latim gratia, graça. Este vernáculo se aproxima tanto do termo graciosidade quanto de gratuidade. Gratidão guarda uma relação com aquilo que é engraçado (tem graça) e com aquilo que veio de graça, foi grátis, foi recebido como uma dádiva. Sentimos gratidão quando reconhecemos que recebemos algo de valor. O benefício recebido pode ser material ou imaterial, e a fonte pode ser atribuída a recursos humanos (pessoas) ou não humanos (deus, a vida, o cosmos, o acaso, a sorte).

Alguns pesquisadores têm-se dedicado especificamente ao estudo da gratidão. McCullough et al. (2001) descrevem um traço afetivo, que chamam de "disposição à gratidão" - uma tendência generalizada a reconhecer e responder com gratidão às atitudes de outras pessoas, nas experiências e desfechos que se obtêm. Tais pesquisadores notam que algumas pessoas se sentem gratas até em relação a experiências negativas, como uma doença grave, por julgarem que tal evento adverso as projetou em direção a transformações que, posteriormente, consideraram positivas. No extremo oposto, existem indivíduos que, por mais agraciados que sejam, estão sempre se considerando prejudicados, queixando-se quase que independentemente do contexto.

Os referidos autores desse trabalho descrevem a disposição à gratidão como dotada de algumas características, como: intensidade, frequência, spam, densidade. Isto é: indivíduos tipicamente gratos tendem a sentir gratidão numa maior intensidade e frequência do que a população geral. Além disso, tendem a estender esta gratidão a um grande número de eventos em relação aos quais se sentem gratos - família, saúde, emprego, à vida como um todo -, a isso denominam spam. A densidade refere-se a um grande número de pessoas em relação às quais o indivíduo se sente "grato a".

Um aspecto interessante que esses pesquisadores observaram é que o fato de pessoas gratas atribuírem seu sucesso a outros não significa que elas subestimem seu próprio esforço. Pelo contrário, é como se elas expandissem o crédito a um número grande de pessoas que contribuíram para seu bem-estar, inclusive a si próprias.

Uma pergunta da qual os pesquisadores partiram é: a gratidão pode ser estudada como uma variável independente? Ou trata-se de um conglomerado de emoções, atitudes e comportamentos misturados? Para responder a esta pergunta tentaram validar um questionário específico para pesquisa que isolasse a variável gratidão e, depois, compararam os dados obtidos através dele com dados oriundos de outros questionários que separavam outras variáveis como determinadas características de personalidade, tendência à esperança, à felicidade, ao otimismo, à vitalidade ou à satisfação com a vida. As características de personalidade estudadas foram maior e menor inclinação à afetividade positiva e negativa, além de cordialidade, afabilidade, abertura, neuroticismo e extraversão (que é diferente do que chamamos, na psicologia analítica, de extroversão). Os pesquisadores também testaram a população considerada mais inclinada à gratidão com questionários que pesquisavam sentimentos de inveja e inclinação ao materialismo. E também submeteram o mesmo questionário de gratidão a quatro pessoas que conheciam bem cada um dos sujeitos da pesquisa, a fim de testar se as pessoas que se consideravam gratas eram também assim consideradas pelos seus pares.

O resultado demonstrou que a gratidão pode ser estudada como uma variável independente de outros traços de personalidade e comportamento, e que existe uma boa correlação entre pessoas que se consideram gratas e a opinião de seus pares a este respeito. Além disso, através da referida pesquisa, foi possível observar que pessoas inclinadas à gratidão são menos predispostas à inveja e aos valores materialistas. Essas pessoas são menos inclinadas a considerar que sua felicidade guarda relação com bens materiais, tendendo a partilhar seus recursos com os outros. A pesquisa também apontou que é uma população que fica menos frustrada e ressentida quando outras pessoas ao seu redor conquistam coisas que ela não tem.

De fato, quando falamos em gratidão dentro do campo da psicologia, um trabalho fundamental e clássico é o de Melanie Klein (1882 - 1960), que opõe a inveja à gratidão. Eminente psicanalista, pioneira no estudo baseado em observação empírica de crianças e de bebês, Melanie Klein publicou, em 1957, o trabalho seminal "Inveja e gratidão" (KLEIN, 1991). Já numa fase bastante madura de sua trajetória, a autora postula que a inveja e a gratidão são sentimentos opostos que interagem entre si. Diz também que o primeiro objeto a que se referem é o seio nutridor. A psicanalista observa que o seio nutridor é percebido pelo bebê como uma fonte de criatividade e de pujança, e que a emoção da inveja, quando excessiva, prejudica a capacidade criativa desse indivíduo. Aponta que a inveja tem uma influência negativa não apenas em situações de privação emocional, como também em situações aparentemente normais, nas quais haveria um prejuízo da capacidade de sentir gratidão. Faz uma relação entre a psicopatologia do narcisismo e indivíduos que sentem as emoções de inveja acentuadamente. Descreve o que chama de formação anormal da posição esquizoparanóide, na qual acontece uma cisão acentuada entre o seio bom (através do qual o bebê se satisfaz e se sente atendido, alimentado) e o seio mau (pelo qual o bebê se sente perseguido, frustrado, abandonado, rejeitado). Outro aspecto interessante do texto é que Klein também faz considerações acerca da estruturação normal da psique do bebê, o que nos leva a refletir não só no sentido da patologia, mas também da fisiologia e da saúde psíquica.

Klein estende sua reflexão, ainda, para o campo transferencial, aplicando as observações sobre inveja e gratidão na relação terapêutica. A este respeito, a autora demarca um limite para a possibilidade de se analisar a inveja. Aponta que, às vezes, não é possível progredir muito porque estamos tratando de uma patologia muito arcaica e arraigada, capaz de criar cicatrizes psíquicas difíceis de serem superadas e cuidadas. A autora afirma que a inveja cria um "solapamento das raízes dos sentimentos de amor e de gratidão, pois ela afeta a relação mais antiga de todas, a relação com a mãe" (KLEIN, 1991, p. 207).

O trabalho de Klein aponta a questão de que a inveja guarda uma relação com a idealização do outro. Assim, derivamos que sentir gratidão pelo outro é, também, ser capaz de enxergá-lo em sua vulnerabilidade, com as complexidades e dificuldades próprias de qualquer ser humano. A autora postula que a idealização que o bebê faz da mãe tem a ver possivelmente com a ansiedade persecutória suscitada pelo próprio parto, imputando à mãe a capacidade de satisfazê-lo por completo. O bebê ainda não nascido começa a separar os sentimentos de satisfação na permanência no ambiente uterino dos sentimentos de opressão e insegurança originadas pelo trabalho de parto (assim, a posição esquizoparanóide de cindir entre "seio bom" e "seio mau" se inicia antes mesmo da amamentação). Tal texto influenciou toda uma geração de psicanalistas.

Em relação aos trabalhos de psicologia positiva - ramo recente da psicologia que estuda estados emocionais saudáveis como a felicidade, o otimismo, o contentamento, a resiliência, a qualidade de vida -, um artigo interessante é o de Emmons e McCullough (2003). Os pesquisadores realizaram um estudo caso-controle com um grupo de 65 portadores de doença neuromuscular. Com sintomas similares de doença, os sujeitos foram randomicamente separados em dois grupos. Num dos grupos, os sujeitos deviam listar a cada dia, por 21 dias, cinco coisas em relação às quais se sentiram gratos naquele dia, e também preencher um questionário diário avaliando suas condições de saúde física e emocional. O segundo grupo apenas preenchia o questionário diário sobre sua saúde.

Os resultados apontaram que a simples intervenção de se fazer uma lista acerca daquilo a que se é "grato", diariamente, levou a uma redução de afetos negativos e a um aumento de afetos positivos que foi estatisticamente significativa. Além disso, os sujeitos estimulados a fazer a "lista da gratidão" tiveram melhor qualidade e quantidade de sono, maior tendência ao otimismo e a um senso de conexão com os outros.

Ao lado das leituras psicológicas a respeito da gratidão, é importante observar que diversas correntes religiosas tradicionais valorizam este traço emocional. O judaísmo, o cristianismo, o islamismo e o budismo, para citar alguns exemplos, avaliam positivamente a gratidão, o que aparece em dados de pesquisas sociodemográficas como uma associação positiva entre populações religiosas e a inclinação à gratidão (McCULLOUGH et al., 2001). Este dado requer um cuidado ao ser interpretado, pois não é possível, através de estudos de associação, dizer o que é causa e o que é consequência. Será que pessoas inclinadas à gratidão se aproximam de ambientes religiosos por encontrarem ressonância num grupo que estimule este traço já presente? Ou será que pessoas religiosas passam a praticar o gesto da gratidão por serem estimuladas a fazê-lo? O dado observado, sem interpretações causais, é que as variáveis religiosidade e/ou espiritualidade costumam caminhar juntas com a variável inclinação à gratidão (BAETZ, TOEWS, 2009).

De fato, várias religiões têm datas comemorativas para celebrar coletivamente a gratidão. O festival judeu de Sukkot no outono, a colheita de ação de graças de correntes cristãs e a prática do Ramadan islâmico têm uma relação com o cultivo da gratidão.

 

Discussão

Podemos começar a discussão perguntando-nos: afinal, a gratidão merece admiração ou desprezo? Alguns autores célebres, como Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.), enalteciam o valor da gratidão, tanto para o bem-estar dos indivíduos como para o bem-estar social. De outro lado, Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) e Epicuro (341 a.C. - 271 a.C.) afirmavam que as manifestações da gratidão não passam de véus para encobrir o interesse comezinho de indivíduos ou amarras emocionais que fazem as pessoas sentirem-se desnecessariamente endividadas com seus supostos beneficiários.

Observamos clinicamente que as duas hipóteses podem ser verdadeiras. Existem indivíduos nos quais a gratidão emerge como uma benéfica capacidade de reconhecer o valor das pessoas e das situações que encontraram na vida. Em outros casos, vemos que a gratidão pode se expressar através de uma afetação, uma máscara atrás da qual podemos reconhecer sentimento de culpa, desejo de manipulação dos outros, além de inúmeros outros aspectos sombrios, como hipocrisia, falsidade, uma regressiva moralidade religiosa etc.

Analogamente ao que propõe Carlos Byington, em seu livro "Inveja criativa" (2002), podemos pensar em gratidão como uma função estruturante, a qual estrutura a consciência modulando a integração simbólica. Ela pode ser vivida como criativa ou defensiva.

Na gratidão defensiva, vemos traços destrutivos e mal trabalhados, em rota de colisão. Eu me recordo de uma história contada por uma paciente que dizia conhecer uma criança de cerca de dez anos de idade que tinha nascido com uma deformidade física, sem a presença de um dos braços. Tal criança costumava dizer, a respeito de si mesma: "quando eu ia nascer do meu lado tinha um anjinho sem braço e eu doei o meu para ele, fiquei muito grata pela oportunidade de fazer isto". Essa criança vivia num ambiente familiar altamente religioso, e certamente tinha aprendido com algum adulto a declaração, que inspirava admiração e apreço pelo grupo religioso. Ela reproduzia essa declaração como um papagaio, sem nenhuma integração de seu conteúdo. Nesta suposta atitude cooperativa e generosa existe a declaração de uma gratidão artificial, que não contribui para a elaboração genuína da deficiência física dessa criança.

Já na gratidão criativa, é fácil identificar comportamentos que contribuem com a saúde emocional do indivíduo. Muitas vezes, pude observar no consultório pacientes que sofreram muito, seja com um episódio depressivo ou até mesmo com uma neoplasia, e que, posteriormente - para sua própria surpresa -, sentem-se gratos por essa experiência amarga, que os acordou para um processo de autoconhecimento, de aprofundamento de consciência e de resiliência.

 

Conclusões

Sentir-se grato por um evento fugaz e hedônico é fácil e não tem relevância alguma a longo prazo, é efêmero. Proponho que aprofundemos a reflexão e consideremos o cultivo da gratidão como a possibilidade de sentir-se satisfeito num mundo cheio de limitações, desencontros e interações complexas. A gratidão como o desenvolvimento de uma serenidade que nos fortaleça em contextos adversos, na impermanência e no desconhecido. Como uma flexibilidade de acolher aquilo que venha, uma prontidão para reconhecer a graça do que recebemos, seja o que for. E a contornar as intempéries e vicissitudes inescapáveis à existência humana.

Nossa sociedade tende a colocar uma ênfase no que nos falta. Incorporamos o hábito de colocar um holofote no que não temos, no que não somos. Chamo a atenção para que reconheçamos as nossas bênçãos, para que coloquemos o feixe de luz também naquilo que temos, naquilo que somos.

É possível que o desenvolvimento da gratidão criativa exija um tempo. É um fato sabido que diferentes emoções têm tempos diversos de ocorrência. Enquanto a surpresa acontece num átimo de segundo, o amor pode demorar anos para se estabelecer e se arraigar. Para que se desenvolva a gratidão como a superação da competitividade e da inveja, o caminho proposto por Melanie Klein é o de desidealizar o outro, enxergá-lo como humano e passível de equívocos, sujeito a vulnerabilidades e pontos cegos. Desenvolver empatia pelo outro e por nós mesmos.

Diversas pesquisas têm apontado que gratidão pode ser um traço afetivo que é pró-social e que facilita a felicidade e o bem-estar subjetivo (EMMONS, McCULLOUGH, 2003; LARSEN, McKIBBAN, 2008; SANSONE, SANSONE, 2010).

Desenvolver uma inclinação à gratidão com profundidade e sabedoria pode ajudar-nos a trilhar uma jornada de individuação e realização. Uma pergunta relevante seria: "quanto é o suficiente para que uma pessoa se sinta grata e satisfeita pela vida?".

 

Referências

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Recebido em: 18/01/2022
Revisão: 12/06/2022

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