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Junguiana

On-line version ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.1 São Paulo Jan./June 2022

 

A concessão da outorga: O arquétipo do pai e os fundamentos simbólicos da depressão

 

The granting of the bestowal: The father archetype and the symbolic foundations of depression

 

 

Maria Zelia de Alvarenga

Médica (FMUSP-1966), psiquiatra (AMB), analista junguiana - SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica) e afiliada à IAAP (International Association for Analytical Psychology). Livros publicados: Mitologia Simbólica (em colaboração); O Graal: Arthur e seus Cavaleiros (em português e inglês - editora Karnac); Édipo, um herói sem proteção divina; Ulisses o herói da astucia (em colaboração com Sylvia Baptista); Por que os deuses castigam? (todos pela Casa do Psicólogo); Os deuses castigam? Anima/Animus de todos os tempos (em colaboração). e-mail: <mza@boitata.org>

 

 


RESUMO

O mito de Tântalo como referencial primordial da conferência da outorga. Concessão de Outorga como atributo do Arquétipo do Pai. Os sofrimentos do tutelado e comprometimentos severos da psique decorrentes da negação ou da perda da outorga. Reações psíquicas, em função da perda da outorga como: vergonha, sentimento de culpa. A vergonha de se saber incompetente. E a humilhação por ser ridículo. Os fundamentos simbólicos da emergência da depressão. Pai-Narciso, aquele que não outorga. Pais com estruturas patriarcais rigidamente defensivas. Os conflitos de filhos de casais cindidos, em que um confere a outorga e o outro a nega. A possibilidade de saída resiliente com a automobilização da outorga. Correlações simbólicas entre os castigos de Tântalo e a grandiosidade da outorga.

Palavras-chave: Tântalo, Outorga, Arquétipo do Pai, Pai Narciso, Vergonha, Culpa, Depressão, Cura.


ABSTRACT

The myth of Tantalus as a primary reference for the granting conference. Granting of Bestowal (the act of conferring an honor or presenting a gift) as an attribute of the Father Archetype. Sufferings of the ward and severe impairments of the psyche resulting from the denial or loss of the bestowal. Psychic reactions, due to the loss of the grant, such as: shame, feeling of guilt. The shame of being incompetent. And the humiliation for being ridiculous. The symbolic foundations of the emergence of depression. Father-Narcissus, the one who does not bestow. Parents with rigidly defensive patriarchal structures. The conflicts of children of split couples in which one grants and the other denies it. The possibility of a resilient exit with the automobilization of the grant. Symbolic correlations between Tantalus' punishments and the grandiosity of the bestowal.

Keywords: Tantalum, Granting, Father Archetype, Father Narcissus, Shame, Fault, Depression, Cure.


 

 

1. O mito de Tântalo e a concessão da outorga

Na mitologia grega (BRANDÃO, 1986, p. 67), Tântalo, rei da Frígia ou da Lídia, casado com Dione, era considerado filho de Zeus e da princesa Plota. Segundo outras versões, seria filho do Rei Tmolo da Lídia. Teve três filhos: Pélops, Dáscilo e Níobe. Na história de todos os malditos do Hades vamos encontrar, nos relatos sobre o mito de Tântalo, acintosas ofensas por ele cometidas contra os divinos, apesar de desfrutar, previamente, das benesses da intimidade com esses mesmos deuses. Assim, num momento de impetuosa inflação, resolveu testar a onisciência dos divinos e, para fazê-lo, cometeu a barbárie de matar o próprio filho Pélops e oferecê-lo, num banquete, como guisado a seus convidados olímpicos e divindades menores.

Tântalo já havia previamente ofendido os divinos, em situações outras como, num primeiro momento, fazer comentários chulos sobre o comportamento de alguns olímpicos, divulgando entre os amigos mexericos maledicentes sobre seus casos amorosos. Incontinente, foi advertido!

Num segundo momento, Tântalo roubou néctar e ambrosia, alimentos sagrados tidos como promotores ou mantenedores da imortalidade, usando-os para si mesmo e oferecendo aos amigos. Ocorre, porém, que a concessão da imortalidade só pode ser conferida por quem de direito, ou seja, por quem a possuir previamente. Esse pressuposto mítico permanece ainda presente em nossos tempos, seja no campo da religiosidade, nos ritos iniciáticos indígenas, nas concessões cerimoniais e nas atribuições de Méritos e Honrarias. Dos sete sacramentos da Igreja Católica (batismo, crisma, confissão, comunhão, extrema unção, ordem e matrimônio), a ordem, para ser conferida, implica que a outorga seja concedida somente por aqueles que, previamente, sejam detentores dessa consigna. Dessa mesma forma, somente poderiam sagrar cavaleiros aqueles que já fossem previamente consagrados com esse atributo. A realização dos ritos iniciáticos entre os índios Xavantes também demanda a presença de padrinhos previamente iniciados para outorgar o mérito aos que demandam iniciação (DELGADO, 2008). Desses relatos, podemos inferir a condição de caráter primordial, arquetípico, presente nesses rituais e que confere, ao outorgado, um caráter divino de aquisição de imortalidade, à imagem e semelhança da ingestão de "alimentos" conferentes de vida eterna.

 

2. O arquétipo do pai

Os atributos decorrentes da estruturação, atualização e implantação do arquétipo do Pai implicam o estabelecimento da ordem e o cumprimento de tarefas, a assimetria das relações e o consequente exercício do Poder, a obediência aos pressupostos estabelecidos que compõem o Código, a constatação das polaridades e de tantas outras atividades discriminatórias, configurando realidades fundamentais para a organização da vida pessoal e da coletividade.

O arquétipo do Pai encontra-se representado, simbolicamente, em primeira instância, pelas expressões míticas, das mais variadas culturas, traduzidas por figuras masculinas com diferentes performances como: Brahma, Vishnu, Shiva, Zeus, Posídon, Hades, Júpiter, Netuno, Plutão, Wotan, Odin, Osiris, Oxalá, Oxóssi, Ogum e muitos outros. Na religião católica, se faz representar pela figura do Deus-Pai e pela do Cristo.

O exercício de atividades representativas de expressões do arquétipo do Pai se faz presente, em sua maior pujança, na vida dos Homens; todavia, essa manifestação primordial, de caráter arquetípico, também se faz presente na vida das Mulheres.

O arquétipo do Pai, expresso pelos seus aspectos criativos, inseminadores, se faz representar, simbolicamente, pelo falus fecundante e/ou pelo raio penetrante.

As expressões arquetípicas, quando de suas manifestações, traduzem-se por seus efeitos ora criativos ou destrutivos, com tonalidade amorosa ou odiosa, com a qualidade continente ou abandonadora, apaziguante ou ansiosa, atuando de forma envolvente ou dissipadora, ora congregando e ora afastando, acalmando ou aterrorizando e tantas outras características dessas manifestações, quantas sejam suas emergências, decorrentes de suas naturezas primordiais!

 

3. A outorga

Outorgar, no sentido tanto efetivo quanto simbólico, significa conferir ao outro a força da competência, a qualificação implícita para realizar feitos ou para exercer-se com autoridade ou para desempenhar cargos, para assumir comandos e realizar expectativas, para sobressair-se aos demais, vencer obstáculos ou cumprir tarefas impensáveis.

O ato de outorgar decorre da competência inerente de quem outorga, ou seja, somente quem tem a dotação implícita do dom em si mesmo pode conferir ao outro o recurso simbólico para o exercício da realização de tarefas extraordinárias, ou conferir o poder para invocar as forças da natureza, ou transferir ao outro capacidades especiais.

O dom da outorga, como também sua destituição, no sentido simbólico, traduz realidade primordial, sendo de caráter divino e atributo inalienável do arquétipo do Pai. Somente ao arquétipo do Pai compete outorgar, como também destituir da concessão desse atributo!

Assim, quando a figura arquetípica do Pai, em caráter ritualístico, concede a graça ou o dom, a competência para o comando do extraordinário, ou quando outorga a ordenação do sacerdócio ou a sagração do cavaleiro ou, nos rituais iniciáticos, confere ao iniciado um poder, uma força, uma competência, um carisma especial: outorga a dotação. Assim, concorre para que o outorgado se saiba capaz, dotado de mana, ou seja, aquinhoado com a energia vital primordial que somente o arquétipo do Pai pode lhe conferir!

A outorga, simbolicamente, compete estima, carisma, força, vitalidade, confiança, luminosidade, entusiasmo, enlevo, gozo, bem-estar, júbilo, prazer, regozijo, arrebatamento, contentamento.

O outorgante, aquele que confere a outorga, explicita a imanência do caráter divino, pois confere ao outorgado um quantum significativo de energia que decorre de sua condição implícita de ser a expressão viva e incorporada da presença primordial arquetípica.

Crianças e adolescentes são contínua e constantemente instados a cumprir tarefas que configuram, simbolicamente, ritos iniciáticos profundamente transformadores, que podem concorrer para a estruturação saudável da psique como também para forjarem "feridas da alma" irreparáveis, fulcros de processos futuros de caráter patológico. Quantas são as vezes que essas crianças e adolescentes são intimados a realizar atividades de caráter enfadonho ou desagradável, muitas vezes cansativas e inadequadas, ou simplesmente afazeres domésticos, do cotidiano de todas as casas. E eis que os convocados não aguentam ou não suportam o peso da responsabilidade. E as críticas, como também os castigos, decorrentes do não cumprimento da tarefa, configuram desqualificações injuriosas que destituem essas crianças e adolescentes de outorga. Na realidade, são apontados como incompetentes, fracos, irresponsáveis ou inadequados.

 

4. A destituição da outorga

Quando a outorga é negada, o sujeito que a deixa de receber torna-se destituído de estima, de carisma, de mana. Ao não receber a outorga, sente-se envergonhado, constrangido e incompetente por não corresponder à expectativa do outro; infere ser responsável por não cumprir os requisitos fundamentais para receber os merecimentos concedidos pela outorga. A vivência de não a receber, a par de causar a sensação de empobrecimento, fraqueza, falta de ânimo, de energia, desencadeia o sentimento subjetivo, ao carente de outorga, de ser ele o responsável pela impossibilidade do ritual se cumprir.

Sentir-se incompetente para que o milagre da outorga se cumpra implica atentar para sua incapacidade e, por assim se perceber, quando a carência da outorga ocorre, a culpa implícita, decorrente da sensação de ser incompetente, emerge, tornando o momento muitíssimo doloroso pelo não recebimento da especial deferência. Como consequência a condição de sentir-se envergonhado, por assim ser, torna-se também pesaroso pela emergência do sentir-se culpado.

De outra parte, sentimentos díspares também podem ocorrer dependendo da carga de desprezo expresso pelo outorgante sobre o candidato à outorga que, diante das injúrias recebidas, sente-se humilhado, aviltado, exposto ao opróbrio, desacreditado, enxovalhado.

 

5. A vergonha de se saber incompetente

A palavra vergonha vem do latim verecunda e deriva de revereri, formada por re, com o significado de "para trás, de novo", acrescido de vereri, "respeitar". Revereri significa respeitar novamente (CRETELLA, CINTRA, 1953). Sentir vergonha configura, pois, o sentimento de não ter tido competência para respeitar adequadamente o ritual vivido, medo de perder os vínculos por não atentar para a importância do momento, medo de que algo foi realizado de forma incompleta ou deixou-se de fazer algo, tornando os carentes de outorga indignos de se relacionar com outras pessoas.

A vergonha, por desencadear um sentimento constrangedor, muito doloroso, pode dar, também, como decorrência, a constatação de forjar a crença ao não outorgado de ser ele defeituoso, inadequado e, portanto, indigno de amor e aceitação.

Quando o ritual da outorga não se realiza, a condição de não se fazer jus ao direito de recebê-la configura fator imperioso para que o sentimento de vergonha, de pudor, se apresente.

Vergonha decorrente da não competência para reverenciar a magnitude do momento ritualístico! Vergonha por não se saber capaz, por não ter se preparado a contento, por não corresponder à consideração do outro. Vergonha por ter titubeado, pelas indecisões, pelo não reconhecimento da importância da tarefa concedida. Vergonha por ser fraco.

 

6. A humilhação por ser ridículo

Quando a perda da outorga ocorre numa condição pública, acrescido ao sentimento de vergonha, emerge, muitas vezes, a sensação de se saber humilhado e de ser ridículo, de ser menor, inferior, digno de desprezo, desqualificado e, a partir de então, por conta de sua atitude profundamente retraída, atrair sarcasmos, receber enxovalhamentos contínuos dos que nem sempre receberam outorgas ou, certamente, dos que nunca foram testados! A humilhação reeditada, denominada atualmente bullying, concorre para a cronificação do sofrimento.

Por outro lado, a perda pública da outorga pode ocorrer em estruturas familiares profundamente doentes nas quais muitos são os fracassados como os demais irmãos do não outorgado, juntamente com os serviçais da família e, quando não, da própria figura materna, também desqualificada.

 

7. Pai-Narciso, aquele que não outorga

Podemos constatar o quanto é difícil, nos processos de análise, descobrir ou localizar os primeiros momentos em que a outorga foi negada. Difícil por conta da figura paterna pessoal ser, frequentemente, muito competente e, como decorrência, muito admirada. Essa figura paterna, com todas essas dotações, com certeza povoa-se com uma dose significativa de narcisismo. E, para este olhar narciso do pai, o filho precisa ser excelente, segundo os referenciais do próprio pai. Pai narciso que se preze respeita somente seus próprios valores. Assim, a desqualificação por parte do Pai-narciso é uma realidade reincidente com a negação da outorga. O filho, diga-se, precisa ser muito competente no que faz, para conseguir surpreender o Pai. Mas, para um Pai-narciso reconhecer a qualificação do filho é um grande desafio e, muitas são as vezes que, a par do não reconhecimento, o que ocorre é a desqualificação, com a negação da outorga. Reativamente, vamos encontrar filhos que se isolam, ou filhos que se calam, ou os que tentam imitar o Pai nos afazeres profissionais ou aqueles que muito precocemente tentam sair da dependência econômica. Todavia, apesar de aparentemente as reações serem muito diferentes, a tonalidade depressiva estará sempre presente, a par de sintomas físicos que, simbolicamente, refletem suas emoções e sentimentos para com esse pai, como também refletem suas repressões afetivas.

De outra parte, tenho atentado a como todos esses filhos sem outorgas apresentam atitudes, aparentemente destituídas de intencionalidade, mas que concorrem para sofrerem acusações infundadas de trapaceiros, desonestos, de falsidade, de incompetência, fraudadores e, portanto, de não merecedores de outorga. Como consequência, objetivamente fracassam; comprovando, assim, não se automerecerem outorga.

Interessante também atentar para o fato de esses filhos de pais-narcisos tornarem-se pais superprotetores de seus próprios filhos, preenchendo-os de mil outorgas, ativando competências inegáveis. Todavia, desencadeiam também disputas entre os vários filhos, que se digladiam para saberem, entre eles, quem é o eleito!

Outorga confere confiança, mas em demasia confere dúvidas quanto a saberem-se realmente competentes e com despojamento necessário para reconhecer a competência dos outros.

 

8. Pais com estruturas patriarcais rigidamente defensivas

Os pais (tanto a figura do pai quanto a da mãe), defensivamente estruturados por regras rígidas da dinâmica patriarcal, primam por comportamentos referendados por pressupostos alicerçados em normas absolutistas de lei e ordem que não podem ser questionadas, em qualquer hipótese, pelos que se encontram sob seu jugo. Esses pais, que se encontram sob essas consignas, que nem eles próprios questionam, impõem a seus filhos, ou comandados, tarefas hercúleas, cujo cumprimento beira, muitas vezes, o limite do absurdo!

E os erros acontecem, e o cumprimento das tarefas não se faz a contento, e o fracasso emerge! Parece haver um prazer mórbido, um certo delírio ensandecedor nessas psiques paternas, rigidamente defendidas, em manter os filhos dominados por exigências excessivas, desencadeadoras de fracassos na consecução das tarefas. Pais com estruturas patriarcais rigidamente defensivas não conferem outorgas.

 

9. Como entender o conflito dos filhos de casais cindidos no qual um confere outorga e o outro a nega

Quando temos uma figura de pai-pessoal expressa como uma criatura alicerçada em componentes de personalidade de caráter patriarcal rigidamente defensivas, esse pai, como já descrito acima, não confere outorgas. Sendo a mãe pessoal a outorgante, sou levada a pensar que a demanda pela outorga do pai fica acentuada, talvez por conta do filho "perceber" que a mãe confere outorga e o pai não.

E, por que, se a mãe confere outorga, o pai a nega?

É meu entender serem muitas as possibilidades tradutoras desta conflitiva. Na primeira, temos um casal parental composto por uma figura materna que confere outorgas aos filhos conjugada a uma figura paterna fraca, deprimida, muitas vezes dependente, drogadito ou incompetente como provedor, e que fica muito mais na condição de ser o enésimo filho e não como figura de pai. A não conferência da outorga paterna não tem função desestruturante na vida desses filhos, pois, na realidade, é uma figura sem outorgas.

Entretanto, quando o casal parental é constituído por uma figura materna que confere outorga e uma paterna, defensivamente patriarcal, a carência da outorga paterna passa a ter uma importância extremamente significativa. Quer me parecer que a outorga fornecida pela mãe consegue criar alianças entre si e os filhos, mas podemos constatar reações, as mais díspares nos filhos com relação ao pai. Podemos encontrar reação de agressividade vingativa do filho contra o pai ou uma reação de se tornar servil diante do pai, implorando por uma outorga que nunca vem, associada frequentemente a uma conduta temerosa de desagradar a esse pai. Uma outra possibilidade decorre da condição de uma das filhas (se houver) assumir, simbolicamente, o papel de substituta da esposa, por conta do casamento parental estar em franco desmoronamento.

O pai, quando alicerçado em componentes de personalidade de caráter patriarcal rigidamente defensivo, a par de não conferir outorgas, pode estabelecer controles para manter a eterna tutela dos filhos, como se somente ele (pai que não confere outorgas) "soubesse" o que é melhor para os filhos, ou melhor, os quer dependentes e submissos às suas ordens. Os que assim se fazem, dependentes e submissos, ardentemente mantêm o desejo de corresponder às expectativas neurotizantes desse pai. Há de convir que esse "pai", de caráter patriarcal rigidamente defensivo, a par de não conferir outorgas aos filhos, muitas vezes, disputa pelas outorgas, da esposa, que são conferidas aos filhos.

 

10. As consequências da perda da outorga

As feridas decorrentes das memórias dos momentos cruciais de perda de outorga, acrescidas de muitos outros incidentes de natureza depreciativa similar ocorridos ao longo da infância e adolescência, se somam, se confluem num todo aflitivo, pleno de amargura, constituindo-se como fulcro dos fundamentos simbólicos dos processos depressivos.

Nesses casos, com certa frequência, vamos encontrar uma desistência da condição de viver por conta de o sujeito nunca ter recebido a outorga, ou melhor, por não conseguir viver sem o sentimento de honra, que a outorga confere. Como soe acontecer no período da adolescência as demandas suicidas são muito frequentes, configurando uma profunda vivência simbólica de rito de passagem, durante o qual há um morrer para o tempo de infância e um renascer para o tempo de adultícia. Esse rito de passagem, inegavelmente, se faz comum para todos os seres humanos. Todavia, para os destituídos de outorga, quer me parecer, as demandas por suicídio são prevalentes por conta de o indivíduo não conseguir atualizar ou não se saber competente para assumir sua condição de adultícia por sentir-se destituído de honra, carisma, mana!

Outra decorrência possível, como consequência da perda da outorga, é a emergência de reações de vingança com alta possibilidade da incidência de criminalidade. A conduta reativa de se fazer como infrator contra toda e qualquer estrutura de caráter patriarcal, contra a lei e a ordem, contra a Vida, até então soberana dentro da tribo, emerge de forma imperiosa, com retaliações voltadas para quem lhe negou outorga.

Também podemos encontrar reações defensivas nos destituídos de outorga, caracterizadas por comportamentos defensivos de caráter psicopático, decorrente de inveja e demandas por vingança contra os agraciados com a outorga, do mesmo núcleo familiar, dando emergência a conflitos irreparáveis entre os membros da mesma família!

Carência de outorga gera depressão, gera defesa psicopática, gera maldições, gera desavenças, gera crimes!

 

11. A possibilidade de saída resiliente!

Como terceira e remota possibilidade, algumas vezes depois de muito trabalho analítico, podemos encontrar elementos de uma reestruturação resiliente da psique e consequente superação criativa. Aos feridos pela carência de outorga, quando conseguem elaborar a presença imanente da estrutura arquetípica do Pai, em si mesmos, lhes é conferida a certeza de poderem reconstruir-se com sua própria resiliência, estruturar-se e compor-se com invulnerabilidades e, assim, superar suas dores mais lancinantes. Ao se saberem e se descobrirem povoados por mana e se sentirem "abençoados" pela presença da divindade primordial inerente a todos os seres vivos, ou seja, a estrutura arquetípica do Pai em si mesmos, tornam-se autoconferidos de outorga.

Todos os seres humanos, portadores de consciência reflexiva, podem e conseguem ser orientados na constatação miraculosa de serem também portadores de todas essas realidades primordiais arquetípicas. Essa é uma das proposições fenomenais da Psicologia Analítica. Assim, o Pai arquetípico presente em todos os humanos, seja ele entendido religiosamente como Deus, ou como o "Senhor é meu Pastor", ou como outra entidade cuidadora e protetora, esse Pai primordial, arquetípico, poderá conferir outorgas restauradoras!

Este fenômeno, aqui descrito, e que pode ser, simbolicamente, entendido como a religação com a divindade primordial protetora - arquétipo do Pai - da qual a criatura sofredora se viu apartada, pode ser entendido como a possibilidade da estruturação da cura da ferida pulsante de dor da alma, dor de carência de mana, carência de acolhimento, de honra, do prazer do recebimento de outorga!

Dessa forma, há de convir, com análise ou sem ela, transformações miraculosas podem ocorrer e fazer a Vida florescer!

 

12. O que, simbolicamente, os castigos recebidos por Tântalo revelam sobre a grandiosidade da outorga!

Certamente que os castigos impostos a Tântalo, na região dos Ínferos, refletem a realidade de sua profunda inadequação comportamental para com os divinos, frente a intimidade das benesses previamente por ele desfrutadas! Tântalo foi condenado a manter-se com os pés fixados no solo, sem poder se deslocar com uma cornucópia de frutos e alimentos a sua frente, que se afastava quando ele tentava alcançá-la e, de outra parte com água até o meio das pernas, que sumia pelo solo adentro quando ele se abaixava para beber. Assim, diante da abundância de água e alimentos, sofria fome e sede, por toda a eternidade. Simbolicamente, podemos atentar para a profundidade da revelação, contida no mito, quando, de forma tão evidente, nos fala da realidade da manifestação do sagrado! No caso de Tântalo, sua demanda em conferir imortalidade "aos amigos", parece estar muito mais correlacionada a sua necessidade em auferir galhardia, reconhecimento de audácia, de bravura, de heroísmo e intrepidez por conta de suas atitudes: demandava reconhecimento pelos feitos realizados. Ele não compreendia que outorgar imortalidade implicava conferir ao outro as dotações divinas, ou seja, enriquecer o outro com dotações, as quais ele próprio já tivesse sido outorgado. Assim o outorgante retrata ser um fio condutor do mérito, da dotação recebida, de origem divina; mas não é o criador da dotação! O dom de outorgar demanda previamente receber do divino para depois conferir ao outro!

Tântalo ignorava que a outorga, sendo uma dotação divina, primordial, arquetípica conferida pelos deuses, detentores dessa imanência, implica transferir ao outro esse bem que lhe foi previamente dado, assim se dando ao longo das gerações!

Todas são as dotações divinas, arquetípicas, com as quais nascemos e que para serem atualizadas precisam da interação com o outro; entretanto, a outorga, demanda para ser atualizada de interações que se compõem de caráter ritualístico! O rito iniciático confere dotações sagradas que mobilizam a instauração da consciência reflexiva e a compreensão decorrente de assim se saber!

 

13. Considerações finais sobre as razões do texto

As proposições do texto decorrem de constatações havidas ao longo de minha atividade profissional, de minha condição de analista junguiana, mito e literatura, sempre concorreram para meus esclarecimentos sobre psicopatologia, fundamentalmente, no sentido maior de expressão simbólica.

Esse caráter expressivo das manifestações psicopatológicas revela o sentido profundo, primordial das razões do adoecer psíquico como também do adoecer físico. Quanto mais pudermos saber das razões do adoecer mais poderemos concorrer para o resgate das forças imanentes que conduzem à restauração resiliente.

Agradeço a especial colaboração de Ana Maria Cordeiro, que acompanhou de perto a realização deste trabalho e suas proposições sobre amplificações demandadas ao longo da elaboração das ideias.

 

Referências

BRANDÃO, J. S. Mitologia grega volume I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986        [ Links ]

CRETELLA JR. J.; CINTRA, G. U. Dicionário latino-português. São Paulo, SP: Companhia Nacional, 1953.         [ Links ]

DELGADO, P. S. Entre a estrutura e a performance: ritual de iniciação e faccionalismo entre os Xavante da terra indígena de São Marcos. 2008. 245 fl. Tese (Doutorado em Antropologia) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2008. Disponível em: <http://sga.sites.uff.br/wp-content/uploads/sites/16/2016/07/PAULO-SERGIO-DELGADO.pdf In: http://sga.sites.uff.br/wp-content/uploads/sites/16/2016/07/PAULO-SERGIO-DELGADO.pdf>. Acesso em: 4 jan. 2022.         [ Links ]

 

 

Recebido: 16/01/2022
Revisado: 31/05/2022

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