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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.2 São Paulo jul./dez. 2022

 

O arquétipo do inválido e os limites da cura1

 

 

Adolf Guggenbühl-Craig

Psiquiatra e analista junguiano. Foi Presidente da International Association for Analytical Psychology. Autor de "O Abuso do Poder na Psicoterapia e na Medicina, Serviço Social, Sacerdócio e Magistério" e "O Casamento está Morto: Viva o Casamento!", ambos publicados em português pelas editoras Paulus e Símbolo, respectivamente

 

 

Ao lermos as descrições da vida na Corte de Luís XIV, no século XVII, nos surpreendemos com o fato de que esses nobres e essas damas, embora extremamente ricos e privilegiados em todos os aspectos, eram vítimas indefesas das doenças mais triviais. Um abscesso causado por um dente estragado significava agonia durante dias, e muitos perdiam todos os seus dentes ainda jovens. Nada podia ser feito para alterar esse estado de coisas, mesmo se essa perda significasse uma catástrofe, como no caso da amante de Luís que imediatamente perdeu seus favores após a perda de um dente na frente. O slogan "Sorria" provavelmente teria sido muito impopular naquela época. Um sorriso usualmente mostrava dentes pretos e podres, ou a falta de dentes. A queda de um cavalo ou a menor infecção frequentemente significava a morte ou invalidez para o resto da vida. Tudo o que os médicos eram capazes de fazer era prescrever enemas ou sangrias, e os cirurgiões sabiam somente cortar ou queimar.

Hoje em dia o tremendo poder de cura da medicina é o fato consumado para nós. É como se tudo pudesse ser resolvido, com exceção da velhice e da morte. Contudo, os médicos, particularmente os psicoterapeutas e psiquiatras, estão mais ocupados do que nunca. Os custos médicos estão cada vez mais altos e as estatísticas preveem que logo 60% da nossa renda será gasta com saúde. Estas maravilhosas técnicas e os instrumentais médicos são caríssimos, pois requerem pessoal especializado e aparelhagem dispendiosa. "Bem", poderíamos perguntar, "e por que não"? Pelo menos esses custos são recompensadores. É o preço que temos que pagar pelo domínio progressivo da doença e das mutilações como as que vimos nos exemplos da corte de Luís XIV.

Hoje em dia, entretanto, o cenário médico não é tão glorioso como no passado. Grande parte dos custos médicos é gasta com medicamentos, pessoal, administração e manutenção hospitalar, seguros etc. Terminaram as batalhas homéricas em campo aberto - Pasteur, Ehrlich, Lister - que acabavam em vitórias decisivas. A maioria das batalhas travadas pelos médicos de hoje são contra inimigos ocultos e traiçoeiros, esquivos, difíceis de serem apanhados, qual uma guerra de guerrilhas na floresta. Estatísticas afirmam que entre 30% e 60% de todos os esforços médicos estão relacionados a doenças psicossomáticas: todo tipo de doenças inexplicáveis e estranhas, como dores de cabeça, fadiga, insônia, comer em excesso ou de menos, problemas de pele etc. Esta lista nem mesmo inclui as inumeráveis neuroses como compulsões, obsessões, ansiedades, fobias, perturbações sexuais etc. que nos mantêm ocupados continuamente. Estas perturbações neuróticas psicossomáticas, principalmente crônicas, são o pão de cada dia dos médicos. Este é o trabalho que consome grande parte do tempo do médico e do psicoterapeuta por duas razões: primeiro, porque a grande maioria dos pacientes sofre deste tipo de doença; segundo, porque parecem que nunca saram completamente. Mas comumente eles pioram para depois melhorarem um pouquinho e frequentemente o médico bate em dizendo suas próprias costas dizendo "agora está resolvido". Contudo, no dia seguinte, a mesma dor, a mesma irrupção, o mesmo cansaço, aparece novamente.

Os médicos dos ambulatórios, o clínico geral, o residente, o ginecologista, todos sabem a que me refiro. Aqui, nós, médicos e psicoterapeutas, nos vemos pressionados contra a parede. Tentamos curar com todas as ferramentas médicas, psicoterapêuticas e sociais de que dispomos, despendendo uma enorme quantidade de tempo, energia e dinheiro. Entretanto, conseguimos pouco progresso e somente em casos isolados.

Aqui está um exemplo do que eu quero dizer: uma senhora foi encaminhada para tratamento comigo, depois de ter sido tratada por um clínico durante oito anos como tendo esclerose múltipla. Parecia que ela não tinha esta doença. Eu a tratei psicoterapicamente cinco anos e no decorrer deste período ela apresentou crises de alucinações.

Hoje é uma paciente muito grata, embora o cansaço e a fraqueza geral ainda estejam presentes nesses 13 anos após ter iniciado o seu tratamento médico. Até que nós todos tenhamos atingido o estado de saúde, como é definido pela Organização Mundial de Saúde - um perfeito bem-estar mental, físico e social -, ainda teremos um longo caminho a trilhar. Neste meio tempo, os profissionais entusiastas que se propõem a ajudar seus pacientes continuam sujeitos a se tornar deprimidos, cínicos ou resignados.

É claro, então, que existem limites definidos à cura, embora a própria palavra sugira o contrário. Curar, em alemão heilen, tem sua origem em uma palavra raiz que aparece em muitas línguas: provém de heilag, total completo. Saúde tem a mesma origem. Queremos que nossos pacientes se tornem completos, física, mental e psicologicamente. E quando queremos curá-los, queremos curá-los, queremos fazê-los completos. Mas milhões de pacientes quase nunca estão plenamente sãos. De certa forma eles nunca querem se tornar sãos e nunca somos capazes de fazê-los sãos. Porém há uma necessidade desesperada de direção à plenitude. Nós trabalhamos com vistas à plenitude sexual, erótica, mental e física o tempo todo; nós médicos e pacientes, que esperamos atingir isso através da medicina preventiva, pelo viver saudável, pela dieta, exercício, correr, esquiar, ginástica, natação, massagem. Nossa noção de saúde psicológica também significa totalidade; por isso procuramos terapias de todos os tipos, continuamente lutando nesta direção. Mas é um trabalho de Sísifo, pois não acaba nunca. Todos os tipos de dores e achaques, de sintomas psicossomáticos, parecem estar como o pobre "sempre conosco". São nossos objetivos otimistas por uma saúde plena vistos como totalidade perfeita, um mal-entendido? O que foi que saiu errado para que aquilo que nós buscamos e que realmente estejam tão distantes?

Abordemos a questão na clássica forma médica, através de "casos". Há alguns meses li as cartas da senhora Jane Carlyle. Ela era a mulher de um famoso escritor filósofo, Thomas Carlyle. Aparentemente estava doente: contínuas dores de cabeça e nas costas, estava sempre apanhando ou se recuperando de um resfriado. Quando mais velha, chegou mesmo a fazer uso de morfina. Era também uma senhora ambiciosa, que se deleitava com a fama do marido, e as pessoas que se sentiam atraídas por ele acabavam fazendo uma visita de doente para ela. A senhora Carlyle é uma escritora muito famosa, suas cartas são realmente cheias de bom humor e fascinantes. Contudo, através de todas essas cartas, temos a impressão de que a senhora Carlyle estava sofrendo; supostamente uma inválida total, entretanto, ela viajava por toda parte, ia a festas e tinha uma boa vida. Em suas cartas a descrição dos seus sofrimentos é penetrante e divertida. Ela queria que o meio a ajudasse a aliviar seus sofrimentos crônicos, mas não esperava realmente ser curada. Ela parecia aceitar essas infindáveis perturbações psicossomáticas como parte de sua vida. Seus amigos aparentemente também aceitavam isso e lhe respondiam descrevendo em detalhes maravilhosos as suas próprias dores, resfriados e febres.

Hoje a descreveríamos como uma mulher que sofre de "histeria de conversão" ou diríamos ainda que é uma paciente psicossomática, altamente neurótica ou "viciada em comprimidos".

Decidiríamos que está mais do que madura para uma psicoterapia, que está tão inconsciente de seus próprios motivos que necessita um tratamento extensivo, um assistente social, conselheiro matrimonial... Hoje temos muita gente como a senhora Carlyle. Mas suas famílias e amigos os querem curados. Esta invalidez, este sofrimento contínuo, simplesmente já não é mais aceito.

Vejamos um outro exemplo - menos engraçado que o da senhora Carlyle - o de senhora K. Ela vivia numa pequena cidade, tinha a idade entre 30 e 60 anos, e o médico local a diagnosticou com cerca de 16 tipos diferentes de doenças; todas nunca foram realmente confirmadas. Tinha tido problemas cardíacos, renais, no fígado, no estômago, além de problemas nas costas e outros órgãos. Sofria diferentes dores, em diferentes partes do seu corpo, estava cansada o tempo todo e, apesar de todos os diagnósticos e tratamentos, continuava a mesma. O efeito que isso causava a sua volta era opressivo. Seus filhos se sentiam continuamente culpados. Quando surgia uma confrontação na família, era sempre dito "mamãe não está se sentindo bem, ela precisa descansar". Ela não se sentia bem por causa da confrontação? De qualquer forma, seus filhos se sentiam culpados; seu marido foi escravizado. Ele assumia as tarefas desagradáveis, pois: "Ela não está bem e o doutor disse que precisa de descanso". Ela nunca saía de casa e tiranizava a todos em seu próprio terreno: desenvolveu até um zelo missionário pela doença e uma de suas filhas - apesar de ser robusta e saudável - foi declarada uma criança doentia e no final todos acreditavam nisso.

Então, o que está acontecendo com a senhora Carlyle, e com milhões de pessoas como essas? Parece haver algo em ação que desafia todos os esforços bem-intencionados como desafia a própria vontade do paciente. Algo forte, terrivelmente desumano, parece estar atuando aqui, um demônio invencível. Todavia, uma possibilidade básica de vida humana parece surgir através deste fenômeno. Poderia ser algum arquétipo? Não fui capaz de ligar este fenômeno básico e universal a nenhum dos bem conhecidos arquétipos clássicos. Assim pude compreendê-lo como padrão, um arquétipo próprio e denominei - o de "O inválido", para poder apreendê-lo. Prefiro, de acordo com os últimos trabalhos de Jung, compreender o arquétipo não principalmente como imagem, mas como uma função, "um padrão inato de comportamento numa situação clássica, tipicamente humana".

A invalidez certamente sempre nos acompanhou. Todos os seres humanos já nascem com estas deficiências graças a certas infecções intrauterinas, à hereditariedade ou a qualquer outra causa. Além disso, na medida em que a vida passa, nos tornamos "estragados", cada vez mais "invalidados", continuamente há algo sendo destruído, algo permanentemente em desarranjo. Essas falhas funcionais são frequentemente óbvias: por exemplo, um dedo faltando ou uma mão ou um olho, ou mancamos por uma perna muito curta. Ou são menos evidentes: um órgão, tal como vesícula biliar, é deficiente no seu funcionamento. Ou temos que lidar com as deficiências do cérebro, que leva ao mau funcionamento das funções mentais, ou ainda, o funcionamento é pobre em virtude das feridas da alma ou lacunas inatas. Ter que viver com e reagir a partir de uma deficiência é certamente uma situação humana, em muitos aspectos uma situação arquetípica. É, portanto, válido abordar esse fenômeno a partir de um ponto de vista arquetípico.

 

O arquétipo do inválido

Creio que o que está em ação nesses estados crônicos de deficiência é o arquétipo do inválido. Aqui, algumas observações a respeito da natureza dos arquétipos tornam-se necessárias. Nós não precisamos neste contexto repetir toda teoria ou examiná-la criticamente. Entretanto, para nossa discussão, é importante compreender que uma reação arquetípica pode ser parcialmente baseada numa situação concreta exterior, mas que eventualmente os arquétipos se liberam e se tornam independentes. Podem mais tarde aparecer sem a situação exterior real. Por exemplo, a maternidade, ou arquétipo de mãe, pode aparecer na vida de uma mulher sem que jamais ela tenha tido filhos.

O arquétipo de mãe poderia permear tudo que ela faz sem que haja filhos na realidade. Esta independência do arquétipo da realidade externa se aplica ao arquétipo do inválido real para ser ativado. Um inválido real, alguém que tenha perdido uma perna ou um olho, pode atuar o arquétipo do inválido ou não - ou num grau muito menor que o esperado, em vista de sua incapacidade física real. A vida pode ser vivenciada sob a estrela da saúde ou sobre a estrela da invalidez, independentemente do real estado de saúde. Nesta altura poderíamos perguntar: "Onde aparece o arquétipo do inválido na mitologia?". E este é um problema real. Nós esperamos que todos os arquétipos apareçam de alguma forma na Mitologia, assim, onde estaria a figura arquetípica do inválido? Onde está a imagem coletiva?

Os deuses gregos podem ter momentos de enfermidade, mas nunca parecem ser inválidos crônicos, exceto Hefaístos, que claudica. Os outros deuses gregos eram extremamente saudáveis. Talvez a Mitologia Grega, tendo chegado a nós principalmente através dos Românticos, tenha sido adocicada de tal forma que podemos aí encontrar poucos sinais destes arquétipos. Naturalmente, todas as figuras principais da tragédia grega eram ligadas a padrões crônicos de autodestruição e eles usualmente lamentavam as suas condições. Entretanto, não eram inválidos (exceto, talvez, no caso de Filotetes), assim, a tragédia não deveria ser confundida com invalidez, nem os inválidos deveriam ser trágicos.

Os deuses germânicos são um pouco diferentes. Ziu, o deus da Guerra, tinha uma grande mó em sua testa. Estava, certa vez, em uma batalha e foi golpeado na cabeça com uma mó que se quebrou e, em virtude disso, formou-se um aleijão permanente. Outros deuses germânicos são descritos como feridos e sem mão; de fato todo o mundo dos deuses germânicos é, de certa forma, inválido, pois Yggdrasil, a grande árvore de cinzas sobre a qual se apoia o mundo, está podre nas raízes e pode eventualmente cair.

A iconografia cristã nos mostra muitas imagens de invalidez. As catedrais estão cheias de imagens grotescas, de seres humanos inválidos. Estas esculturas, bem como os devotos nos altares dos Santos que promovem a cura, poderiam muito bem ser inspirados pelo arquétipo do inválido. Mas é nas artes que vamos encontrar este arquétipo, por exemplo, nas pinturas de Velázquez que pintou suas figuras de forma distorcida. E alguns diretores de cinema procuram representar seus personagens como inválidos. Nos filmes de Fellini aparecem personagens que são ou muito magros ou muito gordos, com vozes bizarras etc.

O inválido, como figura da imaginação aparece, além disso, em histórias clássicas de aventuras. Na Ilha do Tesouro, de Stevenson, Long John Silver tem perna de pau; o Capitão Gancho, no Peter Pan, tinha um gancho em vez de uma mão. Um pirata usualmente não tem uma perna ou um braço, ou usa um tapa-olho. Outra imagem familiar do inválido é o do corcunda Quasimodo, o de corcunda de Notre Dame.

Embora não duvide que as artes e religiões do mundo possam estar repletas de tais figuras, devo aqui confessar minhas próprias limitações em pesquisa simbólica. Além disso, suspeito que muitas mitologias, pelo menos da forma que nós as conhecemos, são tão defensivas em suas imagens e tão repressivas com relação a este arquétipo, como psique individual e coletiva. É difícil lidar com o arquétipo do invalido, como veremos posteriormente, mais difícil mesmo que com o arquétipo da doença. A doença ao menos pode ser curada; já para a invalidez, não há esperanças.

Nas próximas linhas tentarei fazer um breve diagnóstico diferencial do inválido. Primeiro, ele não tem nada a ver com o arquétipo da criança. A criança como inválido é frágil, mas cresce, torna-se um adulto, "mata o pai", tem um futuro. A criança é somente temporariamente fraca. Segundo, o arquétipo da doença é também algo a mais, pois a doença leva à morte, à saúde. A doença é usualmente limitada a um curto período; é uma ameaça passageira, uma catástrofe, um evento agudo, dinâmico. A invalidez usualmente não leva à morte nem à saúde, é uma deficiência do corpo, do cérebro ou da mente. Em terceiro lugar, embora a invalidez possa ser crônica, pode ser distinguida do arquétipo do Senex, ou Saturno, pois pode não ser acompanhada pela miséria, solidão e depressão. A senhora Carlyle vivia uma vida bastante social em meio a suas queixas. Digamos: era uma inválida sem ser Senex.

Pessoas que vivem plenamente sob o arquétipo do inválido parecem ser muito irritantes, maçantes, chatas. Mas o arquétipo da saúde também pode ser muito irritante! Se alguém não para de falar do que pode ou não pode fazer por causa de suas dores nas costas, se torna muito maçante. Mas, é certamente muito mais maçante aquele que não para de falar de suas corridas, de como o seu coração depois de 10 km ainda bate devagar e de como ele faz exercícios todas as manhãs e vai para o trabalho tão bem como se tivesse nascido naquele dia.

Os arquétipos não são nem bons nem maus, nem interessantes nem desagradáveis. De certa forma, são "neutros". Podem, contudo, ser vivenciados positiva ou negativamente. Nosso trabalho e nosso dever como analistas é o de estudar e refletir sobre esses arquétipos, sobre suas qualidades, de tal forma que possamos lidar com eles na prática. O arquétipo pode ser vivenciado negativa ou positivamente pelo meio ou pelas pessoas que estejam sob seu domínio. Vejamos, por exemplo, um caso de aparecimento positivo e simpático do arquétipo do inválido.

Eu tenho um grande amigo que sofre de dores crônicas nas costas. Está sempre um pouco deprimido, queixa-se de cansaço e sofre de varizes. Realmente é um prazer tê-lo ao lado; faz-nos sentir prestativos e úteis. Pode-se fazer algo por ele, dar-lhe uma cadeira confortável, uma cama firme, e ele percebe nossos esforços. Não é ameaçador, é fraco, desamparado e não competitivo. Evoca bondade, descontração. O arquétipo do inválido quando vivido, inspira reflexão e discussão. Por exemplo, quando alguém o convida para um passeio, ele agradece, dizendo: "Eu estou com dor nas costas, preferiria ficar sentado perto da lareira conversando".

O arquétipo do inválido pode também ter um efeito positivo para a pessoa que o vivencia. Ele se opõe à soberba e promove a modéstia. A fraqueza humana é compreendida em sua plenitude por essas pessoas e, assim, torna possível um tipo de espiritualização. Elas vivem continuamente com um tipo de memento mori; estão sempre se confrontando com a decadência de seu próprio corpo - não se vê aquela ambição centrada em si mesmo, baseada no corpo. É um arquétipo que constela em outras pessoas bondade e paciência. Por ser tão humano, pode o arquétipo ser muito humanizador. Saúde, portanto, é própria dos Deuses - e aí está o perigo. O complexo de Deus ligado ao arquétipo da saúde transparece no fanatismo com o qual a saúde é cultivada. Ela é perseguida com convicção religiosa e dogmatismo: "chá de ginseng é bom para você, não se importe com o sabor". Inválidos, por outro lado, raramente tentam converter você.

O arquétipo do inválido é importante para a relação. Hoje em dia está em voga uma fala morgana psicológica, a fantasia da "pessoa independente". Todos somos dependentes, da mulher, do marido, do pai ou da mãe, dos vizinhos, das crianças, dos amigos. Viver o arquétipo da invalidez significa compreender sua própria dependência eterna de algo ou de alguém. Uma pessoa com um sentimento de vida forte e saudável. Dependência unilateral e mútua tem sua razão de ser no arquétipo da invalidez. Ele contrabalança a imagem arquetípica do herói independente ou viajante, sempre livre não ligado a alguém.

O arquétipo da invalidez desempenha um papel importante na transferência. A dependência na transferência é principalmente vista como padrão de pais/filhos ou regressão. Mas a teoria pais/filhos com frequência se revela insatisfatória na transferência. Frequentemente um analisando é dependente do analista como inválido e não como criança a este tipo de dependência do inválido deve ser aceito como qualquer outro arquétipo. O aparecimento do inválido na análise é algo bastante enigmático e ardiloso. Às vezes, percebemos que os analisandos se tornam dependentes de nós por anos a fio. A criança parece que nunca cresce, contudo não há criança. Haverá invalidez e dependência para sempre. Os resultados disso para o analista são usualmente difíceis de suportar. Ele pergunta a si mesmo se a análise se transformou numa pensão para velhos. Talvez o próprio analista tenha se tornado uma muleta, a muleta psicológica de um inválido emocional. Mas não há nada de alarmante nisso: é algo legítimo. O que nós deveríamos fazer é tentar encorajá-lo a transferir esta dependência para outras pessoas, eventualmente, e não a deixar com o analista. A dependência em si provavelmente deve existir.

Devo repetir que os perigos do arquétipo do inválido nunca devem ser subestimados. Nós nos tornamos inconscientes dele, da mesma forma que encontramos tão poucas imagens míticas em que ele aparece. É um arquétipo muito problemático, difícil de lidar, por isso nós o reprimimos. Ele pode criar uma disposição do tipo "o inválido nos acompanhará para sempre", um tipo de atitude fatalística, passiva. Nada pode ser feito. Pode criar uma atitude como a expressa em dísticos que podiam ser lidos em alguns velhos hospitais "de doenças incuráveis". Esta pré-disposição se insinua ao lidarmos com a invalidez mental, psicológica e social. Esta compreensão negativa do arquétipo poderia nos fazer desistir de trabalhar pela saúde e seu estabelecimento. Todo o tremendo progresso da medicina ocorreu parcialmente por causa do arquétipo do inválido ter sido rejeitado, reprimido, negado. Nós, analistas, vivemos parcialmente de pessoas que esperam crescer e se curar, não vivemos de inválidos.

Assim, olhar todo nosso trabalho terapêutico desta perspectiva da invalidez falsifica nossa tarefa multifacetada. Somos dominados por muitos arquétipos. Muito nos tem em seu poder. O arquétipo do inválido é somente um padrão de comportamento. Mas, aqui neste artigo, estou desempenhando o papel de advogado do inválido e eu quero defender essa figura arquetípica.

Quero atacar seus inimigos, pois são fortes e coletivamente bem aceitos. Quero, portanto, atacar novamente a fantasia da saúde, apontando o perigo desta fascinação pela saúde.

 

Invalidez, saúde, totalidade

Primeiramente, precisamos reconhecer que tanto a saúde como a invalidez são fantasias arquetípicas e, em segundo lugar, que a totalidade foi identificada unilateralmente com saúde.

A saúde até foi absorvida pela totalidade, a totalidade como sinônimo de não comprometimento da função e pleno desempenho de seus poderes mentais e físicos; não deixou lugar para a fantasia da invalidez. Nossa fantasia de totalidade é unilateralmente "saudável" e nossa fantasia de saúde se tornou tão total que deixou de ser verdadeiramente saudável. De acordo com a fantasia de saúde contemporânea, devemos nos tornar sãos; qualquer defeito, mau funcionamento deve ser superado. Em outros tempos, as pessoas prosseguiam através da vida com um temperamento melancólico; hoje as mesmas pessoas têm que engolir fortes medicamentos até que se tornem descontraídas e estupidamente felizes. Por sabermos que no fundo somos todos parcialmente inválidos para sempre, tentamos rejeitar este conhecimento e negar este arquétipo. Trabalhamos ininterrupta e inutilmente para manter a saúde a qualquer preço.

Conheço um casal que era tão fascinado pelo arquétipo da saúde e fazia tanta ginástica durante o dia que à noite, quando ia para cama, estava demasiadamente cansado para fazer amor.

Os seguidores da saúde, os discípulos de mens sana in corpore sano adoram e ritualizam suas próprias saúdes.

Eles começam a correr três meses após um enfarte, vão a safaris, apesar de sofrerem de diabetes, insistem em estar em plena forma depois de uma operação, comem alimentação vegetariana e consultam um conselheiro matrimonial para curar seus casamentos. Estão normalmente, é claro, bronzeados. Querem aparentar saúde até morrer. "Nunca esteve um só dia doente, ele ainda faz alpinismo aos 80".

A ideia predominante de que saúde é estar são de corpo e alma, um idealizado deus grego, não leva em consideração o arquétipo do inválido dentro de nós mesmos e nos torna incapazes de lidar com o inválido quando ele surge dentro de nós. Nossa fantasia de saúde também nos faz projetar nossa invalidez em crianças com paralisia cerebral, nos velhos nos asilos, nos paraplégicos, preocupando-nos com eles e nos esquecendo ao mesmo tempo que ela aparece nas menores queixas do cotidiano. Não vemos que somos defeituosos incuráveis. Dissociamos saúde de invalidez, reprimindo que temos pernas curtas, pés chatos, músculos fracos e que nossos corações disparam; ou que sofremos de pequenos comprometimentos cerebrais, que somos exaltados, indolentes, compulsivos e psicossomaticamente perturbados.

A consequência mais desagradável da falta de se cultivar o arquétipo do inválido aparece no moralismo da saúde e da totalidade. Isto provoca resultados desastrosos para os que sofrem de neuroses e doenças psicossomáticas. Ao discutir casos, surpreendo-me com o tom moral que nós psicoterapeutas tão frequentemente usamos com relação aos doentes. São - é essa nossa atitude - simplesmente pessoas inferiores; eles não querem - principalmente quando são psicologicamente inválidos - serem curados. Não querem crescer, mudar e, por isso, mantêm-se atrás de suas defesas; embora você veja através delas que simplesmente não querem colaborar. Não podemos deixar de desprezá-los. Somente os aceitamos quando participam de nossas fantasias de crescimento, sanidade e totalidade. Somente quando concordam em serem curados e tratados despertam algum interesse em nós. Alguns de nossos pacientes são realmente doentes e podem ser tratados até certo ponto; mas muitos, pelo menos na prática psicoterápica, são dominados pelo arquétipo do inválido. Não podem ser curados, pelo menos no sentido de se tornarem sãos. Está mais do que na hora de refletirmos sobre o arquétipo do inválido. Este arquétipo tem sido extremamente deselegante - como a sexualidade há 80 anos. E como naquela época, a relutância para ver um arquétipo provoca infelicidade em nossos pacientes. Pois, quanto mais queremos curar todos os que estejam crônica, neurótica ou psicossomaticamente doentes, tanto mais essas pessoas, vivendo sob o arquétipo do inválido, devem se defender desesperadamente, sem saber o que está acontecendo com elas. Tornam-se mais tirânicos e mais exigentes e solicitam mais remédios, mais cuidados, mais pensões e menos trabalho. Toda uma sociedade que solicita mais cuidados médicos, apoio, segurança e bem-estar. Por negar um arquétipo podemos sofrer uma terrível e cruel vingança. Milhões de pessoas são levadas por seus inconscientes a esperar aquele momento e que possam entrar abertamente para servir o arquétipo do inválido. Um pequeno acidente, uma pequena perda de alguma capacidade física ou mental e eles param imediatamente de trabalhar. Exigem compensações, pensões, seguro de invalidez etc. "Agora sou um Inválido, minha invalidez inata foi finalmente reconhecida e agora posso dizer minhas exigências, me tornar dependente".

Não podemos ajudar esses pacientes a se livrarem do arquétipo do inválido, apenas podemos mostrar-lhes como viver com ele, como lidar com e, talvez, estimular um outro arquétipo. Podemos auxiliá-los a vivenciá-lo de uma forma menos negativa. Como já disse, pessoas que estão vivendo o arquétipo, como qualquer outro padrão arquetípico, poderão fazê-lo de forma agradável ou desagradável, criativa ou não criativa, com amor ou sem amor. O lado negativo do padrão pode ser mais pronunciado, tal como: tirania, egoísmo, prepotência, culpa, fuga da realidade; ou os lados positivos, como: modéstia, acomodação, reflexão, habilidade de aceitar a dependência, religião etc. Se a vivência agradável, ou não, do arquétipo não depende do arquétipo em si, de que então ela depende?

 

Eros

Nessa altura gostaria de apresentar algumas reflexões relacionadas ao deus Eros. E gostaria de acrescentar algo do que já disse acima, acerca do arquétipo como padrão de reação. Os arquétipos podem também ser compreendidos como deuses, isto é, como poderes divinos eternos e independentes nesses padrões de reação. Como tais, são não humanos e remotos, simplesmente comportamentos neutros, a menos que outro fator esteja envolvido na sua encarnação, numa vida humana. Este "fator" eu considero como sendo um outro arquétipo, o deus Eros.

De acordo com algumas lendas, Eros é o mais velho de todos os deuses, segundo outras, o mais jovem. O mais velho e o mais jovem - o que certamente indica um deus muito especial.

Encaremos Eros primeiramente como deus do Amor no sentido de amor sexual, da amizade, e no sentido de envolvimento com alguma coisa ou com alguém. Eros não somente está presente no amor que uma mulher tem por um homem ou um homem por uma mulher, mas está presente também no envolvimento que um político tem pela política ou o interesse que um matemático tem pela matemática. Sem ele não haveria gerações de deuses e nenhum movimento entre eles. Eros é responsável pela união de deuses e deusas e pelos seus encontros com seres humanos como amantes, para que haja novos deuses, novos heróis e novas formas humanas. Consequentemente, os deuses são criativos, passionais, amantes, ciumentos, somente sob a influência de Eros. De outra forma, permanecem não humanos, sem significado, frios e distantes. Assim os arquétipos são criativos somente com Eros; se movem e nos movem unicamente através de Eros.

Por exemplo, o trickster sem Eros é um burlão, um mentiroso e trapaceiro, um criminoso desalmado. O trisckster, quando aparece com Eros, torna o homem ou a mulher estimulantes, cheios de surpresas, olhando para a vida por um ângulo inesperado, saindo-se bem de uma situação difícil, nunca sendo apanhado num procedimento convencional.

Um guerreiro sem Eros é brutal, uma máquina de matar, um demônio exterminador, um assassino desprovido de sentido. Por outro lado, o guerreiro com Eros é um defensor, ou um missionário armado com valores que são sublimes para ele, pronto a sacrificar sua vida por outros, ou na defesa de ideias mais altos - ideais que podem ser extremamente importantes para um grupo de seres humanos.

O arquétipo da mãe quando aparece sem Eros é apenas superprotetor, sufocando seu filho com seguranças materiais, demasiadamente preocupada com alimentação e calor; há uma ausência de moralidade, não há ideais, não há espírito; para ela existe unicamente seu filho no centro do mundo, um instrumento usado pelo poder e domínio, um prolongamento biológico dela mesma. O arquétipo da mãe quando aparece com Eros, entretanto, ama seu filho de forma desprendida; deseja o melhor para sua alma, espera que lute por outros valores, que desenvolva o espírito e os ideais que ela como mãe acredita importantes para o grupo, a nação, ou mesmo a humanidade. Uma mãe com Eros não quer ver o filho apenas como prole material e biológica. Ela o quer representante do seu espírito ou do espírito do pai, ou portador do símbolo do amor que a ligou ao seu amado.

Num inválido com Eros observamos o mesmo fenômeno: as pessoas à sua volta tornam-se prestativas e gentis e o portador do arquétipo mostra-se modesto. Sua invalidez estimula uma atitude não heroica que leva à contemplação filosófica e religiosa, não se prendendo à competição, mas compreendendo as limitações de seu corpo e sua psique humana. Como resultado, os valores espirituais tornam-se mais importantes. O inválido sem Eros é mau, tirânico, parasita, mal-humorado, compensando, desesperadamente, a invalidez através de artimanhas astutas ou se deixando obcecar por bens materiais. É invejoso, pessimista, desesperançado, cheio de ódio e melancolia.

Eros não nos dá paz e tranquilidade e nossas ações guiadas por Eros nos trarão frequentemente dificuldades, desespero e tragédias. Pelo menos Eros produz um envolvimento cheio de significado aos padrões arquetípicos que vivemos. São, com Eros, não apenas forças não humanas, que atuam sobre nós, porém, também maneiras de nossas psiques agirem e de nosso espírito se iluminar.

Tentei mostrar algumas limitações de nossos esforços de cura, relacionando essas limitações ao arquétipo do inválido. Tentei lembrar que, desde que surgiu o ser humano, fomos e ainda somos seres mais ou menos imperfeitos. Nossa natureza física jamais funciona de maneira completa e perfeita. Somos imperfeitos desde que nascemos e, na medida em que atingimos a maturidade e a velhice, mais limitações vão se acrescentando. Arquetipicamente nosso corpo, através do qual nossa psique se manifesta, é um organismo defeituoso, impreciso, sempre vivenciado como parcialmente funcionando e parcialmente não funcionando. A medicina atual realmente consegue maravilhas, os defeitos mecânicos podem ser em parte corrigidos, mas não completamente eliminados. Por isso sofremos continuamente de uma permanente imperfeição limitadora. É uma verdade de nossa condição existencial que somos parcialmente defeituosos sem reparo. Esta é uma vivência básica da vida e é esta que deve definir nossa ideia de saúde.

Um bom analista pode ser visto como um sacerdote do arquétipo do inválido, cuja atitude frente a invalidez é orientada por Eros.

 

 

Recebido em: 10/08/2022
Revisado em: 18/10/2022

 

 

1 Artigo traduzido por Glauco Ulson com a autorização de Spring Publications, New York, 1979, p. 29-41 e publicado pela Revista Junguiana nº 1, 1983, p. 97-106

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