SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.40 número2Uma avaliação das técnicas expressivas pela psicologia simbólica: Apresentação da técnica "marionetes do self"Depressão: a dor da alma de quem perdeu-se de si mesmo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.2 São Paulo jul./dez. 2022

 

Pais e filhos: uma rua de mão dupla1

 

Padres e hijos: una calle de dos sentidos

 

 

Iraci Galiás

Médica psiquiatra. Membro analista e fundador da SBPA. E-mail: imeg@uol.com.br

 

 


RESUMO

Neste artigo são discutidos alguns aspectos da relação pais-filhos, focados na importância do filho no desenvolvimento dos pais. A relação filho-adulto e pais é abordada tanto em seu sentido criativo como complicado, gerador de patologia. A relação filhos-pais é associada a outra mão da mesma rua onde a psicologia bastante tem discutido a relação pais-filhos. Daí o título: "Pais e filhos: uma rua de mão dupla". A compreensão simbólica do ditado popular "filho criado, trabalho dobrado" é buscada. Esse "maior trabalho" dado pelo "filho criado" é associado ao trabalhoso processo de recolhimento necessário que os pais precisam fazer da depositação-projeção dos papéis parentais arquetípicos de filho, Fm e Fp, sobre os filhos. Também são discutidos a função da idealização cruzada e o consequente jogo de poder cruzado entre filhos e pais. Algumas complicações desse processo de retirada das depositações-projeções pelos pais sobre os filhos são enfocadas pela sua importância clínica, a saber: os riscos dos avós, o risco da inversão de papéis entre pais e filhos e a adolescência tardia. É chamada a atenção para a importância do tema, uma vez que, com o aumento da vida média, a população com mais idade cresceu e sua problemática precisa ser mais bem compreendida.

Palavras-chave: adolescência tardia, inversão dos papéis parentais, "vovozice", relação filhos-pais.


RESUMEN

En este artículo se discuten algunos aspectos de la relación padre-hijo, enfocándose en la importancia del niño en el desarrollo de los padres. Se aborda la relación hijo-adulto y padres tanto en su sentido creativo como en su sentido complicado, generador de patologías. La relación padre-hijo está asociada con otra mano en la misma calle donde la psicología ha discutido durante mucho tiempo la relación padre-hijo. De ahí el título: "Padres e hijos: una calle de dos sentidos". Se busca la comprensión simbólica del dicho popular "hijo criado, trabajo duplicado". Este "trabajo mayor" dado por el "hijo criado" está asociado al laborioso proceso de recolección necesaria que los padres deben hacer a partir del depositación-proyección de los roles parentales arquetípicos del hijo, Hm e Hp (hijo de la madre e hijo del padre), en sus hijos. También se discute el papel de la idealización cruzada y el juego de poder cruzado resultante entre hijos y padres. Se destacan, por su importancia clínica, algunas complicaciones de este proceso de eliminación de depositaciones-proyecciones de los padres sobre sus hijos, a saber: los riesgos de los abuelos, el riesgo de inversión de roles entre padres e hijos y la adolescencia tardía. Se llama la atención sobre la importancia del tema, ya que, con el aumento del promedio de vida, la población de mayor edad ha crecido y es necesario comprender mejor sus problemas.

Palabras clave: adolescencia tardía, inversión de roles parentales, "abuelices", relación padre-hijo.


 

 

Introdução

Filho criado, trabalho dobrado (Ditado popular).

A psicologia muito tem falado sobre a relação pais-filhos, enfatizando a importância dos pais no desenvolvimento psicológico dos filhos. É bastante conhecida a influência dos pais, seja para a estruturação criativa da personalidade dos filhos, seja para gerar patologia.

 

 

Mas, o que pensar do contrário? Ou seja, qual será a influência dos filhos sobre a personalidade dos pais?

Se pensarmos o processo de individuação acontecendo durante toda a existência humana, teremos um tempo grande em que filhos e pais são adultos se desenvolvendo e interagindo. Não temos, como em outras espécies da escala zoológica, a característica de deixar de nos reconhecermos como pais e filhos após certa idade.

Que preço pagamos por isso? Já que, durante toda nossa existência, continuamos nos reconhecendo, filhos e pais. Como tais, qual será a influência dos filhos no processo dos pais? Qual poderia ser nossa compreensão simbólica do ditado popular: "Filho criado, trabalho dobrado"?

 

Os pais, os papéis e os arquétipos parentais

Tornar-se pai ou mãe está entre as mais intensas vivências do ser humano, podendo isso acontecer ser muito profundamente vivido. É indescritível, iniciático, fascinante.

Para a psicologia analítica de Jung, essa vivência, como outras, apoia-se na mobilização de símbolos que vêm dos arquétipos parentais, ou seja, o arquétipo da grande mãe e o arquétipo do pai.

Tanto a mãe pessoal, humana, quanto o pai pessoal, humano, são ambos grandes humanizadores desses dois arquétipos para seus filhos. Assim, tanto a mãe quanto o pai pessoal têm para seus filhos uma força e um consequente poder muito intensos, que são arquetípicos. Para a criança, mãe e pai são como deuses, poderosos, que terão, então, enorme importância no desenvolvimento dos filhos.

Para os pais, a criança tem uma espécie de poder divino.

 

 

Podemos imaginar que se um pai ou uma mãe pudessem ser vistos pelo filho pequeno como eles realmente são, ou seja, humanos com qualidades e defeitos, provavelmente tal idealização não ocorreria. Sabemos, enfim, que os pais reais não têm sobre o filho o poder que lhes é atribuído pelos filhos pequenos, embora muitas vezes bem que gostariam mesmo de tê-lo.

Ao humanizarem para os filhos o arquétipo da grande mãe os pais estarão desenvolvendo em suas consciências o papel M (doador a si mesmo e ao outro de cuidados matriarcais). Bem como, ao humanizarem o arquétipo do pai, desenvolverão em suas consciências o papel P (doador a si mesmo e ao outro de cuidados patriarcais), conforme já descrevemos em artigos anteriores.

Portanto, os desempenhos de mãe e pai pelos pais com relação a seus filhos, ou seja, o desempenho dos papéis parentais é arquetípico, carregando a força dos arquétipos.

 

A criança, o papel de filho e os arquétipos parentais

Na criança pequena, o arquétipo da grande mãe é dominante, em termos psicológicos. Entre a mãe (ou adulto cuidador) e a criança, esse relacionamento está sob a influência dos símbolos provenientes do arquétipo da grande mãe. No eixo ego-self, como descrito por Neumann (1991), esse arquétipo é constelado fortemente desde a concepção. Podemos pensar que, enquanto na consciência da mãe (ou cuidador) vai sendo ampliada a estruturação do papel M (papel matriarcal adulto), na consciência da criança um papel complementar está sendo estruturado, o papel Fm (papel receptor dos cuidados matriarcais do outro e posteriormente de si mesmo), formando o circuito matriarcal, conforme já discutimos em artigo anterior.

Dessa forma, ambos os polos desse relacionamento, ou seja, pais e filhos, estão sendo estruturados em suas consciências pela simbólica do mesmo arquétipo, o da grande mãe. Essa mesma estruturação ocorre com a constelação do arquétipo do pai, entre os pais pessoais (e/ou adulto cuidador) e a criança. Assim se estruturam os papéis P e Fp, ou circuito patriarcal, conforme também já discutimos. Desse modo, tanto pais quanto filhos estão investidos pelos símbolos dos mesmos arquétipos, ou seja, pais e filhos são humanizadores, uns para os outros, dos arquétipos parentais.

Então, podemos perceber que, se de um lado os pais são investidos pelo poder do arquétipo na relação com seus filhos, de outro lado os filhos são investidos também pelo mesmo poder com relação a seus pais.

Assim, embora a criança real seja tão humana quanto seus pais, tendo suas qualidades e defeitos, para os pais ela tem uma espécie de poder divino, ela é especial tanto quantos os pais para os filhos pequenos são especiais, ela tem o poder que vem do arquétipo. Essa humanização cruzada dos arquétipos entre pais e filhos garante a necessária idealização também cruzada entre pais e filhos.

 

Pais e filhos, as idealizações e o poder

A criança, em seu desenvolvimento psicológico, para alcançar sua autonomia, precisa aprender como ser sua própria mãe e seu próprio pai. Ou seja, parte do seu desenvolver é se tornar capaz de se cuidar matriarcalmente e patriarcalmente.

Enquanto os papéis arquetípicos adultos de mãe (M) e pai (P) são colocados (depositados ou projetados - serão usados os termos depositação para o arquétipo da grande mãe e projeção para o arquétipo do pai, pelo diferente funcionamento entre os polos na dinâmica matriarcal e na patriarcal) nos pais pessoais, o filho vive uma espécie de dependência psicológica desses pais. Crescer, desenvolver-se implica "recolher" essas depositações-projeções, ou seja, retirar os papéis M e P dos pais e estruturá-los em sua própria consciência. Enquanto os pais pessoais estão revestidos desses papéis, eles se mantêm idealizados e têm um grande poder sobre os filhos, não podendo ser vistos como humanos. Se essa idealização é positiva os pais são vistos como deuses e, se negativa, como demônios, porém sempre muito poderosos. Para a criança, que depois adolesce e se torna adulto, desenvolver-se é poder tornar-se ele mesmo e não mais "filho-de" alguém.

Um adulto, ao se tornar mãe ou pai, vive um fascínio em relação a seu filho(a). Todos nós, pais ou mães, sabemos o que nos acontece quando nossa criança nasce. Paixão, fascínio, devoção são palavras e, portanto, não são suficientes para descrever tão profunda e complexa vivência como a de se tornar pai e mãe.

Desde o início os papéis F, tanto como o Fm como o Fp, depositados-projetados no filho(a) fazem com que, para os pais, aquela criança seja especial. A criança daqueles pais é, para eles, diferente de todas as outras, única, como que imantada. A criança-filho(a) é idealizada e tem sobre os pais um enorme poder, maior do que o de qualquer outra criança, tanto o poder de suscitar amor, carinho, como preocupação, atenção, cuidados etc.

Esse poder é também do arquétipo. Ou seja, enquanto o filho(a) carrega os papéis Fm e Fp ele não é visto como humano pelos pais, ele carrega os papéis de filho dos arquétipos parentais ou o arquétipo da criança divina, como chamado por Jung, com todo seu esplendor e força, tornando-se muito poderoso. Esse poder é, às vezes, tão grande que a criança controla e tiraniza os pais, desempenhando um abuso de poder, como nomeia Guggenbühl-Craig (1978) em seu Abuso do poder. Esse jogo dos papéis arquetípicos entre pais e filhos é fundamental para o bom desenvolvimento psicológico, tanto do filho como dos pais. E enquanto esses papéis estão polarmente depositados-projetados (M e P nos pais e Fm e Fp nos filhos), a idealização cruzada permanece. Essa idealização cruzada é extremamente necessária para todo o desenvolvimento, em parte para desenvolver um narcisismo saudável e positivo, necessário a todo ser humano. A autoconfiança, a sensação de segurança pessoal, o acesso à própria criatividade depende em boa parte do bom andamento dessas estruturas cruzadas.

Um adulto, ao se tornar mãe ou pai, vive um fascínio em relação ao seu filho.

 

 

Quando os pais não funcionam para os filhos como essa espécie de "plateia fascinada", o desenvolvimento da criança se complica, como nos diz Alice Miller (1997) em O drama da criança bem-dotada. Se, porém, esse fascínio se prolonga indevidamente ou impede um olhar mais adequado dos pais, teremos também problemas com a narcisogênese do filho, como discuto em A mãe-coruja (1992).

 

E como será o inverso?

A meu ver, os pais têm tanta necessidade de se sentirem amados, desejados, necessitados, preferidos por seus filhos quanto os filhos. Naturalmente é diferente a manifestação dessa necessidade na criança e no adulto. Os pais, como adultos, já têm, ou poderiam ter, um universo relacional mais amplo, de mais amplos e diversificados interesses. Porém, se focarmos na maternagem ou paternagem, a criança é extremamente ativa nessa "conquista". Os pais, para darem seu melhor, também precisam se sentir "escolhidos" pelos filhos. Conhecemos o drama vivido pela mãe (pais) de uma criança autista, ao não se sentir correspondida no seu amor, vivendo uma espécie de "mito do amor impossível" com relação à maternagem, como discute Ceres Araújo (2000) em seu precioso trabalho sobre autismo.

A desidealização depende do desenvolvimento do filho.

 

 

Esse fascínio cruzado tão necessário pode ser entendido como se fazendo à custa dos papéis arquetípicos cruzados, que mantêm as idealizações cruzadas e o consequente poder de uns sobre os outros, também cruzados.

Pais bastante poderosos em seus processos existenciais costumam "baixar a crista" se algo sério ocorre com seus filhos. Estes têm de fato um enorme poder de fazer com que os pais se sintam bem ou mal, realizados ou profundamente ansiosos e culpados.

 

Pais e filhos como indivíduos - a desidealização necessária

A psicologia tem falado bastante da necessária desidealização dos pais para o crescimento dos filhos. Na adolescência, com a ativação do arquétipo do herói, esse processo é bem marcante, trazendo uma conhecida turbulência na relação entre filhos e pais. Essa desidealização é difícil, porém dela depende o desenvolvimento do filho em busca de sua própria identidade. Com essa progressiva desidealização os pais vão se tornando menos poderosos e mais humanos para seus filhos, enquanto estes vão estruturando seus próprios papéis M e P, podendo, portanto, se cuidarem matriarcal e patriarcalmente. Tornam-se dessa forma menos dependentes dos pais, graças ao "recolhimento" dos papéis M e P que estavam "revestindo" os pais, dando-lhes poder arquetípico.

Porém, a psicologia tem falado menos da outra mão dessa mesma rua, ou seja, do necessário processo de desidealização dos filhos pelos pais. Em outras espécies animais, após uma idade do filhote (que varia de espécie para espécie), o reconhecimento dos pais pelos filhos e dos filhos pelos pais cessa. De uma fase para a frente, os animais de outras espécies não mais se reconhecem e, portanto, não mais se comportam como pais e filhos, como já discutimos no artigo sobre a mãe-coruja (1992). Mas na espécie humana, com a existência da consciência e do ego, esse processo é extremamente complicado. Estamos, como humanos, mais distanciados de alguns de nossos instintos, de alguns de nossos comportamentos mais naturais, animais. Isso, porém, nos leva, às vezes, a pagar preços bem altos, de dramáticos mesmo a trágicos.

Quando os filhos estão se tornando adultos e independentes, os pais necessariamente estão envelhecendo.

A manutenção, pelos pais, dos papéis Fm e Fp depositados-projetados nos filhos faz com que estes se mantenham idealizados e poderosos, com o poder do arquétipo. É como se o arquétipo da criança divina permanecesse depositado no filho. E esse é um processo extremamente perigoso, para ambos os lados, para os pais e para os filhos. Na senescência, os pais estão, de certa forma, mais fragilizados, seja física, seja, às vezes, emocionalmente. Se os papéis F (Fm e Fp) permanecem depositados-projetados nos filhos estes se mantêm ambiguamente na Consciência dos pais necessitados (infantilizados) e poderosos, e como os pais estão fragilizados, eventos de dramáticos a trágicos podem ocorrer, numa espécie de adolescência tardia.

A necessidade do recolhimento desses papéis é imposta pelo próprio processo de individuação. Os pais têm simbolicamente que morrer como pais idealizados e poderosos para os filhos, tanto quanto os filhos têm que simbolicamente morrer como filhos idealizados e poderosos para os pais. Esse é um evento natural no processo de individuação. E é dessa forma que os pais de filhos adultos, ao recolherem os papéis F (Fm e Fp), depositados nos filhos, para si mesmos, podem se cuidar, podem dar espaço para o filho em si mesmos. Ou seja, é pelo recolhimento dessas projeções sobre os filhos que os pais podem desidealizar os filhos, que os pais podem se tornar mais filhos de si mesmos, cuidando das próprias fragilidades, que os pais podem recolher a simbólica do arquétipo da criança divina, dando espaço para ele em si mesmo. É dessa forma que os pais de filhos adultos têm de ser pais de si mesmos e podem permanecer criativos.

O processo de desidealização dos pais pelos filhos, iniciado na adolescência, embora difícil, me parece mais fácil. O filho adolescente está se encaminhando para a vida adulta, cheia de percalços, mas também de atrativos bastante valorizados, enquanto que, na desidealização dos filhos pelos pais, estes estão se encaminhando para a senescência, para a velhice tão enormemente desvalorizada em nossa cultura. E os pais senescentes estão se encaminhando para a morte, sempre tão temida, às vezes negada pelo ser humano, dados seu mistério e desconhecimento. Parece-me que o se agarrar dos pais aos filhos como se estes ainda permanecessem crianças é, em parte, uma defesa contra essas vivências. Mas sabemos que há defesas cuja manutenção mais nos expõe que nos protege.

Outra vicissitude que me parece dificultar essa outra mão da mesma penosa rua da desidealização é que os pais serem desidealizados pelos filhos já é um processo mais conhecido pela consciência coletiva e, portanto, menos temido. A psicologia tem muito ajudado nesse sentido. A consciência coletiva já integrou que, por exemplo, adolescente dá trabalho e parte dele é o "chega-pra-lá" que ele dá nos pais. Porém a consciência coletiva pouco sabe dessa outra mão da mesma rua. Os pais e os filhos sabem pouco da natural e necessária desidealização dos filhos pelos pais. E o desconhecimento aumenta a culpa e o sofrimento. Muito dessa vivência natural costuma ser reprimida. Os pais se sentem obrigados a continuar cuidando dos filhos adultos como se não o fossem e os filhos, como se fossem filhos-crianças, se sentem obrigados a manter os pais idealizados. Com isso, se mantém também o jogo de poder cruzado.

Há filhos que são facilitadores e outros que são dificultadores de seus processos.

 

 

Essa espécie de complicação do natural processo de desidealização cruzada leva muitas vezes a eventos dramáticos, quando não trágicos, como infelizmente com tanta frequência temos visto nos parricídios, matricídios e filicídios concretos. Obviamente não creio no reducionismo de qualquer comportamento a uma compreensão apenas, muito menos o homicídio ou o suicídio. Mas creio que esse fator deve estar presente e cabe à psicologia se ocupar mais dele.

 

A importância dos filhos no desenvolvimento dos pais

Bastante tem sido discutida a importância dos pais no desenvolvimento dos filhos, como já falamos. Mas e o inverso?

Não me parece, evidentemente, que a paternidade ou a maternidade seja um evento obrigatório do processo de individuação. Mas, sem dúvida, pela enorme mobilização simbólica, emocional que trazem, paternagem e maternagem são vivências muito fortes em nosso processo existencial. Já discutimos anteriormente quanto a chegada do filho traz a chance do alargamento, na consciência dos pais, da estruturação dos papéis M e P. Sabemos o quanto filhos suscitam nos pais a mobilização de suas realizações, crescimento, aquisições, enfim, quanta mobilização arquetípica os filhos têm o poder de provocar nos pais. Mas parece-me fazer falta discutir outros aspectos que têm sido bastante discutidos dos pais com relação aos filhos. Por exemplo, quanto os filhos podem facilitar ou dificultar o processo dos pais.

Os seres humanos, sabemos, não nascem todos iguais. Assim, para determinados pais, há filhos que são facilitadores de seus processos e filhos que são dificultadores. Outras vezes, o mesmo filho tem aspectos facilitadores e outros dificultadores. Vários fatores podem ser considerados nessa diversidade, por exemplo, a tipologia, como discute Nairo Vargas (1981) na dinâmica de casais. Na dependência da tipologia dos pais e dos filhos e de como são integradas poderá ser facilitada ou dificultada a interação entre eles. Se temos, por exemplo, na relação mãe-filha uma introvertida e outra extrovertida, há um risco enorme de uma achar a outra inadequada e, com isso, graças às depositações-projeções, já tendo sido discutido o consequente poder, uma tenderá a castrar a outra. Se a filha se desenvolveu intelectualmente, por exemplo, mais que a mãe, o que é bastante frequente, ao tentar castrar a mãe, repreendendo-a por sua introversão ou extroversão, ela consegue. Para essa mãe, que mantém a filha tão poderosa, esta deve ter razão e, portanto, a mãe deve se enquadrar. Ou então, outras vezes, vira uma verdadeira guerra entre mãe e filha, com prejuízo de ambas. Se uma filha, por exemplo, é tipo pensamento e a mãe sentimento, o olhar da filha para a mãe como se esta fosse pouco inteligente é levado a sério pela mãe da filha poderosa. Todas essas interações tipológicas podem ser bem complicadas.

Poderá haver filhos que são da mesma "família psicológica" dos pais e outras não.

 

 

Além da tipologia, parece-me importante considerar as próprias características de personalidade dos filhos e dos pais. Como disse Jung, há a família biológica e a psicológica, ou seja, aquela que temos a função de encontrar e que são nossos "semelhantes". Pois bem, poderá haver filhos que são da mesma "família psicológica" dos pais e outros não. O mesmo filho poderá ter características semelhantes e outras bem diferentes e até opostas às dos pais, trazendo de um lado riqueza e, de outro, complexidade à relação. As diferenças que levam às vezes um membro da família a se sentir o "patinho feio" podem estar referidas ao pai ou à mãe. Dado o(a) filho(a) ser mantido(a) como muito poderoso(a), isso pode colaborar muito para que esse pai ou mãe não se descubra "cisne", dificultando seu processo. O(a) filho(a) mantido poderoso, ao ser diferente dos pais, pode levar estes, outras vezes, a fazer uma adaptação forçada, ou seja, a desenvolver uma persona aprovada pelo(a) filho(a), ou permanecer muito desvalorizados.

Todas essas são vicissitudes que influem muito no desenvolvimento da personalidade dos pais. O gênero e a orientação sexual do filho poderão trazer diferenças no tipo de mobilização dos conteúdos dos pais. Por exemplo, quando pais heterossexuais têm um(a) filho(a) homossexual, podem passar por intensas mobilizações. A perda ou a doença de um filho traz vicissitudes aos pais que são bastante modificadoras de suas identidades. Alguns acontecimentos com os filhos ou suas próprias ações poderão funcionar como abuso para os pais, ou seja, trazer um peso maior do que a psique dos pais tem condições de suportar, como por exemplo o suicídio de um filho. Como diz Hilmann (1997) em O código do ser - a teoria da semente do carvalho, não sabemos sementes do que somos. E muito menos sabemos de que são as sementes-filhos que de nós nascem, ou conosco crescem. Só sabemos que somos todos sementes da espécie humana. E na dependência de que sementes são e com que tipo de sementes-filhos os pais têm que lidar, suas individuações serão bastante afetadas. Encarar filhos muito diferentes dos pais em valores, escolhas, preferências é diverso de criar filhos mais parecidos com os pais.

Os filhos serão influenciados por múltiplos fatores, dos quais, sem dúvida, os pais são um dos bastante importantes. Mas, relativo. Os filhos não são, absolutamente, resultados dos pais. Parece-me que a crença onipotente presente na consciência coletiva e muito criada pela própria psicologia de que os filhos são o resultado do que os pais deles fizeram é perigosíssima. Serve para atrapalhar uma compreensão mais ampla do processo e sua complexidade. Sabemos, por exemplo, o quanto conceitos como o da "mãe esquizofrenogênica" trouxeram culpas falsas, inúteis e perigosas. Sabemos o grande sofrimento das mães que tiveram filhos autistas e se sentiram culpadas, por mais que fossem vítimas desse fato.

Evidentemente, como não temos a característica de deixar de nos reconhecer como pais e filhos como outras espécies têm, como já dissemos, os filhos sempre serão importantes para os pais, tendo, portanto, sempre certo poder sobre eles. Porém, se mantidas as depositações-projeções dos papéis F (Fm e/ou Fp) nos filhos, estes ficam muito poderosos com relação aos pais e, dessa forma, podem exercer sobre os pais enorme influência, tanto criativa como destrutiva e geradora de patologia.

A culpa falsa dos pais advinda da crença onipotente, portanto, também falsa, de que são muito responsáveis pelo, às vezes, mau comportamento dos filhos, mesmo adultos, faz com que os pais não se protejam da agressividade dos filhos contra eles.

Tanto filhos como pais estão em processo de individuação, apenas em momentos diferentes; enquanto os filhos estão passando de crianças a adolescentes e adultos, os pais estão passando de adultos a senescentes.

Assim, graças às depositações-projeções cruzadas dos papéis parentais, a consequente idealização cruzada e o consequente poder cruzado entre pais e filhos fazem com que os filhos sejam tão importantes para a individuação dos pais. O mesmo poder que os pais têm de influenciar a estruturação da personalidade dos filhos também os filhos têm sobre os pais.

Com a senescência dos pais, mais poderosos ficam os filhos. E nem sempre os pais idosos têm a força necessária para lidar com as inadequações dos filhos adultos. E parecido, somente que na outra mão da mesma rua, com o fato, tão discutido pela psicologia, de a criança não ter estrutura forte o suficiente para lidar com atitudes muito inadequadas dos pais. Se, por exemplo, chega ao nosso consultório uma família com preocupações com seu filho pequeno e o casal parental nos conta que briga muito, mesmo em frente do filho, imediatamente nossa atenção é chamada para esse fato, pois sabemos que o conflito dos pais recai sobre a criança, que, às vezes, não tem ego forte o suficiente para lidar com essa situação. Essa criança pode ser considerada abusada pelos pais. Ora, para pais senescentes, o que representam brigas entre irmãos adultos, seus filhos? Vemos com frequência, infelizmente, irmãos adultos brigando seriamente entre si, disputando poder, dinheiro etc., por exemplo, em empresas familiares. Vemos pais senescentes sendo ainda solicitados pelas diferentes facções dos irmãos briguentos a tomar partido de um deles e ainda pressionados a assinar procurações, doações de ações etc. Porém, esses pais muitas vezes também não têm força psicológica, ou não têm ego forte o suficiente para lidar com essa situação. Esses pais também estão sendo abusados. E nem eles, nem mesmo nós terapeutas, muitas vezes temos a prontidão para perceber e trabalhar esse abuso.

Os filhos têm o poder de influenciar a estruturação da personalidade dos pais.

 

 

Se os pais de filhos pequenos ou até adolescentes, por exemplo, têm alguma doença e não se cuidam, ou uma adição, como álcool, jogo ou drogas, a sintomatologia da criança é por nós, terapeutas, prontamente associada à patologia dos pais. Essas patologias nos pais associadas à resistência ao tratamento costumam criar situações extremamente difíceis para os filhos. Mas, a consciência coletiva conhece e identifica esse abuso. Mas, como ficam os pais de filhos com essas patologias? Anorexia nervosa, drogadição, quadros psicóticos em filhos que resistem em aceitar tratamento são verdadeiras torturas para os pais. Esses quadros nos filhos, de um lado, mobilizam os pais a cuidarem deles, pois estão mesmo precisando, porém, de outro lado, a resistência dos filhos ao tratamento ou a receber cuidados parentais mantém os pais impotentes. No entanto, a consciência coletiva, os pais e mesmo nós, terapeutas, não identificam facilmente esse abuso. Os filhos poderosos ficam mantidos, na consciência dos pais, "coitadinhos", e os pais, culpados, impotentes, não podendo se proteger dos ataques dos filhos, nem os perceber. Os pais muitas vezes ficam se autoacusando por falhas cometidas com os filhos que os "fizeram" ficar assim, carregando falsas culpas e não vendo as atitudes inadequadas dos filhos como sendo responsabilidade deles mesmos. Ou seja, os pais muitas vezes pensando sobre o "leite derramado" (onde errei com meu filho?) não percebem que estão "derramando o leite" ao manter os filhos poderosos e não se protegerem de seus ataques. É claro que os pais "erraram", se assim podemos falar, com a educação dos filhos; os pais são humanos e sujeitos a muitas falhas, longe estando da perfeição. E pensar sobre as próprias falhas pode ser bastante útil. Porém muitas vezes pensar muito sobre os erros já cometidos, ampliando-os, é uma defesa contra se percebem os erros que se estão cometendo.

Os avós podem ser estruturantes para a personalidade do neto e vice-versa.

 

 

Os pais são realmente, como afirma Jung (1986) em Sobre os conflitos da alma infantil, os primeiros educadores dos filhos. Assim, ao tratar psicoterapicamente uma criança, há que se ver se não é melhor que se tratem os pais em vez de ou na paralela das crianças. Quando tantos quadros incidem, como as depressões, por exemplo, ao se tratar o idoso, é igualmente necessário que nos façamos a mesma pergunta. Ou seja, se não será conveniente tratar, ainda que seja "orientar a família", por exemplo, os filhos adultos em vez de ou na paralela do tratamento do idoso. Aliás, cada vez mais os psicoterapeutas são procurados com essa demanda. Convém refletirmos.

Mas é interessante que, por treino, somos mais habituados a, na anamnese de um adulto, darmos muito maior importância a seus antecedentes familiares, pais e irmãos, que aos filhos. Convém rever.

 

Complicações do processo

Várias complicações do processo do necessário recolhimento das depositações-projeções cruzadas dos papéis parentais entre pais e filhos podem ser encontradas. Examinemos algumas, bastante frequentes e que nos parecem de importância clínica:

a) A "vovozice" e seus riscos;

b) A inversão de papéis;

c) A adolescência tardia.

a) A "vovozice" e seus riscos

Para os pais de filhos adultos tornar-se vovô ou vovó também me parece algo difícil de ser descrito em palavras. Como a maternidade e a paternidade, talvez seja uma vivência iniciática.

Novamente passam por enorme ativação os arquétipos parentais. Porém, dessa vez, os avós não são os pais. Se a família fosse uma empresa é como se os pais fossem os diretores executivos e os avós fossem os membros do conselho. E nem sempre é fácil essa transição, embora evidentemente tenha seu lado bom. Não mais como pais, os avós podem não ter tantas obrigações difíceis como educar, disciplinar etc.

Os avós podem ser bastante estruturantes para a personalidade dos seus netos. Podem trazer-lhes maior sentimento de pertencer a um grupo familiar maior, aumentando sua segurança pessoal. Se a família fosse uma árvore, evidentemente como uma imagem, os avós seriam como que o alargamento de suas raízes, garantindo-lhe maior inserção e segurança.

Os netos podem ser muito estruturantes para a personalidade de seus avós. Além de trazerem a possibilidade da ampliação dos dinamismos parentais dos avós, os netos trazem renovação, fazendo com que os avós passem do "executivo" para o "conselho", como já mencionamos, o que mobiliza o arquétipo da sabedoria. Haja mesmo sabedoria na personalidade dos avós para, diante de tanta mobilização dos arquétipos parentais que os netos de um lado trazem, terem que passar do executivo (que é dos pais) para o conselho, não podendo muitas vezes agir diretamente como gostariam. Diante do sofrimento de um neto ou de suas vicissitudes, por exemplo, difícil é, às vezes, para os avós serem mobilizados e não poderem agir diretamente com suas próprias discriminações, conhecimentos, valores, ainda que imaginários.

Ter que respeitar atitudes ou decisões do filho, da filha, do genro ou da nora (pais da criança) com relação aos netos requer muito jogo de cintura, muita reflexão, muita ativação da dimensão política, muita humildade, enfim, muita sabedoria, como seria bom que sempre membros de qualquer conselho tivessem.

Os pais de filhos pequenos ou adolescentes nem sempre podem exercer mais assumidamente sua afetividade, tal a sobrecarga trazida pelas preocupações de educar, de colocar limites e mesmo de estarem se afirmando profissional, financeira ou economicamente. E, então, quando se tornam avós, o afeto, por exemplo, vem à tona, podendo ser exercido.

Ou seja, os netos propiciam que os avós revivam seus papéis parentais em outro nível, de outra forma, juntamente com a necessária sabedoria. Porém, os riscos se referem exatamente a essa passagem do "executivo" para o "conselho". Se as projeções-depositações nos filhos dos papéis Fm e Fp não foram recolhidas, elas se deslocarão com muita facilidade dos filhos para os netos. Assim, netos poderão ser confundidos com filhos, com toda as decorrentes complicações, pois, assim, os avós não passam para o conselho querendo se manter no executivo.

A competição pelos filhos-netos entre pais e filhos, entre sogra e nora ou genro, entre sogro, nora ou genro, bastante conhecidas por muitos de nós, em parte me parece conter esse fator. E a chegada da nova criança traz a possibilidade, como risco, do aumento da guerra de poder entre pais e filhos com o uso-abuso da criança filho-neto como objeto da competição. O apego ao papel de avós-pais atrapalha dessa forma a continuidade do processo dos pais de filhos adultos.

Os netos propiciam que os avós revivam seus papéis parentais.

 

 

b) O risco da inversão

Outro risco que esse processo corre é o da inversão de papéis, ou seja, os filhos adultos se tornando pai e/ou mãe dos pais na senescência destes.

Certamente pais senis precisarão muito dos filhos, da família como um todo. A velhice, tão desvalorizada em nossa cultura, necessita de melhor compreensão psicológica. Mas o risco que me parece grande é, dentro de uma atitude defensiva de filhos e pais, em vez de haver o recolhimento das projeções-depositações cruzadas, haver a inversão delas. Ou seja, os pais senescentes passam a se comportar como filhos dos filhos, carregando a depositação-projeção dos papéis Fm e Fp. Ao mesmo tempo, os filhos começam a se comportar como pais dos pais, carregando as depositações-projeções dos papéis M e P.

Invertem-se, dessa forma, os papéis e se invertem as relações de cuidados e de poder. Podemos encontrar os desvios nessa situação tanto para o lado de filhos superprotetores-controladores como para o oposto, rejeitadores dos pais mais velhos. Atos de tirania muitas vezes são realizados pelos filhos com relação aos pais nessas situações, dando vazão a uma espécie de vingança com relação às fases anteriores desse relacionamento, quando a relação de poder era vivenciada como invertida.

Evidentemente os pais senescentes também muitas vezes continuam querendo, mesmo sem mais poder, superproteger os filhos, resistindo à passagem do executivo para o conselho, dando origem a situações até engraçadas. Outras vezes esses pais tiranizam os filhos, com o poder do "velho". Mas insisto na rua de duas mãos, pelo jogo de depositação-projeção cruzadas.

c) Adolescência tardia

Dentre as complicações da manutenção da idealização cruzada por um tempo muito prolongado, a adolescência tardia é uma delas, bastante complicada.

Como a desidealização cruzada precisa acontecer pelo próprio processo do desenvolvimento, se não ocorre na adolescência do filho, ocorrerá muitas vezes mais tarde. E como tudo que ocorre com certo atraso, traz uma complicação maior.

Nessa situação, o(a) filho(a) já adulto tem de um lado maior poder sobre os pais e, estes, menor poder sobre ele(a), mas, de outro lado, graças à manutenção da idealização cruzada, mantém-se também o imaginário da dependência cruzada.

Parece-me importante frisar que na adolescência tardia, embora ocorra também na adolescência mesmo, não é apenas o(a) filho(a) que está precisando desidealizar os pais, não é somente o(a) filho(a) que está como que em "atraso" nessa importante etapa do desenvolvimento. Essa é somente uma mão da rua. Na outra mão dessa mesma rua os pais também estão como que "em atraso" quanto à necessária desidealização do(a) filho(a). É um problema nas duas polaridades, pais e filhos, ou seja, na relação entre eles.

Às vezes sintomas bastante sérios podem ocorrer tanto nos filhos como nos pais, visando prospectivamente essa necessária desidealização cruzada. A necessidade do(a) filho(a) não é somente desidealizar os pais, mas também ser por eles desidealizado(a). Se essa desidealização não ocorre, vem a sintomatologia do que estamos chamando de adolescência tardia. Ou seja, aquele "chega pra la" nos pais que o(a) adolescente não deu vem mais tarde através do sintoma, com condutas pouco adequadas, que chocam os pais, ou até mesmo com a eclosão de quadros mais graves.

Esse chocar os pais, em seu lado prospectivo, me parece exatamente ter a ver com provocar essa necessária desidealização, tardiamente. Esse processo ocorre pela permanência das depositações-projeções cruzadas dos papéis Fm e Fp nos filhos (pelos pais) e dos papéis M e P nos pais (pelos filhos).

Com relação ao(à) filho(a) que está se tornando adulto, mais independente, é necessário que os pais o(a) desinvistam da maternagem e paternagem infantilizante e invistam em si mesmos. Ou seja, que os pais de filhos adultos maternalizem e paternalizem a si mesmos, até porque já estarão se encaminhando para a senescência e necessitam de maiores autocuidados e autoproteção.

 

Conclusões

As reflexões contidas neste texto são apenas algumas sobre um assunto tão complexo quanto à relação entre pais e filhos, focando no que chamamos a outra mão dessa rua, ou seja, algumas das vicissitudes da relação que os filhos estabelecem com os pais.

De maneira geral, a psicologia, ao focar mais a relação dos pais com os filhos crianças, tem destacado menos a importância dessa relação quando os filhos são adultos. No entanto, com a teoria da individuação e o desenvolvimento sendo concebido como permanecendo ativo durante todo nosso processo existencial, temos instrumentos para procurar compreender melhor essa relação. A concepção simbólica dos arquétipos, ativa durante toda nossa existência, possibilita mais esse enfoque.

O aumento da vida média com o consequente aumento da população da terceira idade requer como também possibilita um olhar psicológico mais acurado sobre a relação filhos adultos com pais envelhecendo ou, até mesmo, filhos já envelhecendo e se relacionando com pais já em idades mais avançadas. Somos muitas vezes procurados em nossos consultórios por famílias perdidas e sofrendo com o manejo desses relacionamentos dos quais nossa cultura ainda tem poucos modelos. Cabe a nós refletir.

Pensando no ditado popular citado na introdução, "Filho criado, trabalho dobrado", uma associação possível nos parece se referir à trabalhosa tarefa do recolhimento das depositações-projeções sobre os filhos dos papéis-filhos (Fm e Fp) referentes aos arquétipos parentais.

Quando os filhos nascem e crescem seguramente dão muito trabalho aos pais. Mas, quando crescidos, a tarefa dos pais de recolher a maternagem e a paternagem a si mesmos de fato parece muito mais trabalhosa. Essa tarefa requer o reconhecimento do envelhecer e a coragem de abrir mão da tarefa tão longa, tão treinada, tão complexa, mas tão gratificante de cuidar dos filhos. Além do que, cuidar do outro, com frequência, mesmo sendo complicado, costuma ser mais fácil do que cuidar de nós mesmos, principalmente no que se refere à problemática da sombra.

Mas, se de um lado parece-nos bastante verdadeiro que simbolicamente "filho criado, trabalho dobrado" procede, também poderíamos completar dizendo que "filho crescido, trabalho cumprido" também faz sentido.

 

Referências

ARAÚJO, C. A. O processo de individuação no autismo. São Paulo: Memnon, 2000.         [ Links ]

GALIÁS, I. A mãe-coruja e a menopausa. Junguiana, São Paulo, n. 10, p. 20-37, 1992.         [ Links ]

_______. Psicopatologia das relações assimétricas. Junguiana, São Paulo, n. 18, p. 113-32, 2000.         [ Links ]

GUGGENBÜL-CRAIG, A. O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. Rio de Janeiro: Achiamé, 1978.         [ Links ]

HILMANN, J. O código do ser: uma busca do caráter e da vocação pessoal. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.         [ Links ]

JUNG, C. G. Sobre os conflitos da alma infantil. In: JUNG, C. G. O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Vozes, 1986.         [ Links ]

MILLER, A. O drama da criança bem-dotada. São Paulo: Summus, 1997.         [ Links ]

NEUMANN, E. A criança: estrutura e dinâmica da personalidade em desenvolvimento desde o início de sua formação. São Paulo: Cultrix, 1991.         [ Links ]

VARGAS, N. S. A importância dos tipos psicológicos na terapia de casais. 1981. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 1981.         [ Links ]

 

 

Recebido: 11/08/2022
Revisão: 22/10/2022

 

 

1 Publicado originalmente na Revista Junguiana nº 21, 2003, p. 69-80.

Creative Commons License