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Junguiana

On-line version ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.2 São Paulo July/Dec. 2022

 

Depressão: a dor da alma de quem perdeu-se de si mesmo1

 

Depression: The pain of the soul of those who lost themselves

 

 

Maria Zelia de Alvarenga

Médica (FMUSP-1966), psiquiatra (AMB), analista junguiana - SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica) e afiliada à IAAP (International Association for Analytical Psychology). Livros publicados: Mitologia Simbólica (em colaboração); O Graal: Arthur e seus Cavaleiros (em português e inglês - editora Karnac); Édipo, um herói sem proteção divina; Ulisses o herói da astucia (em colaboração com Sylvia Baptista); Por que os deuses castigam? (todos pela Casa do Psicólogo); Os deuses castigam? Anima/Animus de todos os tempos (em colaboração). e-mail: <mza@boitata.org>

 

 


RESUMO

A depressão, no sentido simbólico, é a melhor expressão da dor da alma que se perdeu de sua própria natureza. Depressão como um estado de aprisionamento. Os seres vivos estão sempre em transformações físicas, psíquicas, socioculturais e noéticas. Quando as transformações não encontram espaço para se expressar, surge o sofrimento. A solução seria romper e, quando não se consegue, a depressão surge. A busca da possibilidade de refazer a ligação com o outro poderá ser feita por um processo via logos espiritualizado. O mito de Orfeu é usado para explicitar a perda da coniunctio com a anima e a segunda busca de si mesmo pelo caminho da Sabedoria Profunda. Essa busca pode ser traduzida também pelas questões kantianas: Quem sou eu? Por que estou aqui? Qual o sentido da minha vida? Qual é minha responsabilidade diante de tudo que me cerca? A conclusão sobre o texto define a condição do entender que o se perder de si mesmo, fundamento da depressão, encontra respostas, num segundo momento da vida, pelo conhecimento, via logos espiritualizado e veiculado pela Sabedoria Profunda.

Palavras-chave: depressão, dor da alma, alma como demanda para trair o estabelecido, perder-se de si mesmo, mito de Orfeu, logos espiritualizado e Sabedoria Profunda, as quatro questões kantianas.


ABSTRACT

Depression, in the symbolic sense, is the best expression of the pain of the soul that has lost its own nature. Depression as a state of imprisonment. Living beings are always undergoing physical, psychic, sociocultural, and noetic transformations. When transformations do not find space to express themselves, suffering arises. The solution would be to break up and when you don't succeed, depression arises. The search for the possibility of remaking the connection with the other can be done through a process via spiritualized logos. The myth of Orpheus is used to explain the loss of the coniunctio with the anima and the second search for oneself along the path of Profound Wisdom. This search can also be translated by the Kantian questions: "Who am I? Why am I here? What is the meaning of my life? What is my responsibility to everything around me?" The conclusion on the text defines the condition of understanding that losing oneself, the basis of depression, finds answers, in a second moment of life, through knowledge, via spiritualized logos and conveyed by Profound Wisdom.

Keywords: depression, pain of the soul, soul as a demand to betray the established, to lose oneself, myth of Orpheus, spiritualized logos and Profound Wisdom, the four Kantian questions


 

 

"O herói é o ator da transformação de Deus no homem" (JUNG, 1988).

A depressão é um quadro clínico de caráter sindrômico descrito pela psiquiatria como um processo mórbido das manifestações relacionais, consigo mesmo e com o mundo. O ser humano deprimido é irritadiço ou indiferente a tudo. Ao mesmo tempo, é ansioso, inquieto e se sente oprimido. O comportamento é pautado pela redução da energia global: cansaço fácil e dificuldade de concentração. Os pensamentos têm um cunho negativo, o juízo da realidade está alterado, bem como a capacidade de planejar o futuro. O deprimido sofre de uma incapacidade total ou parcial para sentir alegria e experimentar as vivências prazerosas (MORENO et al., 1995).

A depressão, no sentido simbólico é, no meu entender, a melhor expressão da dor da alma que se perdeu de sua própria natureza. A alma, como sopro divino, institui ou dá ao corpo a condição da criatura fazer-se humana. Ser humano é ser corpo com alma, alma como desejo, demanda para se transformar, ultrapassar, trair o preestabelecido, como nos fala Nilton Bonder (1998) em seu texto "A Alma Imoral".

Podemos pensar a depressão como um processo se desenvolvendo como decorrência de vários fatores desencadeantes e que dá emergência a incontáveis sintomas físicos e psíquicos e a alterações profundas e muito comprometedoras das relações do sofredor com seu mundo. No entanto, enquanto expressão do sofrimento da alma, a depressão pode ser vista como um estado de aprisionamento no qual a pessoa se coloca, se sente ou se sabe, mas não entende emocionalmente o porquê de estar nessa condição. Estar aprisionado, sem poder se exercer com liberdade, sem competência para romper com o preestabelecido, faz o ser humano sentir-se escravo. Ser escravo implica perder a criatividade, tornar-se infértil, submetido à obrigatoriedade de cumprir tarefas sem possibilidade de escolha.

Liberdade é a condição de poder viver num lugar de fertilidade, onde nada prenda e se tenha o direito de ir e vir. O lugar fértil permite que se crie, enquanto nos locais estéreis nada germina. Quando se está numa relação estéril, a criatura torna-se escrava e, por sua vez, tudo que se torna estéril, escraviza e mata! Todo ser que se sabe livre trabalha, pois trabalhar significa criar, estabelecer um processo interativo, profícuo com a vida. Dessa forma, não há como ser livre sem trabalho, sem criação. O aprisionamento causa desespero, ansiedade, esvaziamento, sensação de nulidade, perda de identidade, perda do próprio senso de direção.

O escravo é alguém com potencial para crescer, mas subjugado à realização de tarefas que exigem potencial menor do que lhe confere sua competência. Não há escravo que não sonhe com liberdade e com o desejo de romper com o estatuído. E essas demandas sempre emergem quando o ser humano se sente aprisionado.

Tudo que cresce precisa romper. Tudo que é vivo é uma constante sequência de rupturas. O relacionamento pode, num determinado momento, configurar um estado de continência, aconchego. Entretanto, enquanto seres vivos, o processo de crescimento e transformações acontece, seja no sentido físico, psíquico, sociocultural ou noético. Por mais continente que uma relação seja, só poderá se manter nessa condição se, concomitantemente às transformações de cada parceiro, qualquer que ele seja, a própria relação sofra transformações que acolham as demandas emergentes nos partícipes, dando espaço para que elas se manifestem e interajam. Quando essas transformações e crescimentos não encontram espaço, surge o sufocamento. "Aceitar" essa condição de sufocamento significa deixar-se aprisionar, negar-se, trair a si mesmo, seja por medo, insegurança, covardia. Não "aceitar" a escravidão e romper com o estatuído faz a criatura experimentar um dos tantos ritos de passagem, em comemoração ou celebração à ruptura ousada.

Quando não se consegue romper, ou pior ainda, quando a pessoa se descobre prisioneira de uma relação tradutora da própria escravidão, mesmo quando não consciente dela, o desespero se instaura, explicitado pela perda do desejo de encontrar saídas ou pela desistência de se lutar por liberdade. A condição de não se poder criar um futuro, diferente do provável, coloca os "escravizados" cada vez mais prisioneiros de um passado idealizado e perdidos de si mesmos. Por mais "acomodado" que o aprisionado-deprimido seja, o Self não deixa de mandar "notícias": sonhos, fantasias, ideação de morte - como expressão introvertida e subjetiva da dor da alma -, bem como os incontáveis sintomas físicos - como expressão extrovertida, objetiva da dimensão concreta da dor da alma. O até então lugar aprazível cede lugar ao desejo de "nascer", deixar a casa, a cidade, a família e buscar o novo, mudar de emprego, mudar de parceiro, mudar, mudar. A nova ordem é mudar. É o momento da ruptura. Para se conseguir há que deixar vínculos, heranças, expectativas... Se não se aceitar o desafio de nascer, morre-se, deprime-se, adoece. Quando o espaço em que se vive não é mais competente e continente para o tamanho adquirido, quando não há "permissão" para se expressar ideias, quando a ordem é manter o comedimento, só resta romper. Quando não se rompe, a alma morre e a servidão se instaura.

Todos que são escravizados se escravizam!

As antinomias estão presentes em todos, representadas pela demanda por crescer e demanda por acomodar-se, estagnar; pelas forças criativas e forças acomodatícias. Dependendo da polaridade emergente que determina o comportamento, o ser será maldito para o mundo porque rompeu com as normas, com os valores, com os dogmas, ou será maldito, para si próprio por ter-se acomodado e permanecido como "escravo".

E a alma dói...

A dor da alma que emerge para a consciência, quando do se saber perdido de si mesmo, expressa o sofrimento mais profundo do ser humano. Não há ninguém que, tendo passado por um processo de reflexão analítica, ignore a intensidade dessa dor, dessa condição de ser.

Essa dor que dói como dor da alma e dói mais que a dor do corpo, dói no desatino da vida quando o viver se carrega de expressão de morte. É uma dor incontável, aparentemente intraduzível, que dói intensamente e traz para a consciência a certeza subjetiva de ter-se perdido de si. É a dor do sentir-se apartado, expulso do paraíso, acusado de infâmias que ignora ter cometido. É a dor do sentir-se culpado por não ser ou não conseguir ser o que a centelha da singularidade reclama como demanda por se atualizar. E, nesse momento supremo, a dor é o próprio ser e o ser só se sabe dor, ou seja, é a própria dor.

Ser a dor enquanto abandono, ser a dor enquanto incongruência, desacerto, incompreensão e incompreendido no mundo, solidão na caminhada, perda e luto, derrota e fracasso.

Ser a dor de "só ter levado porrada, tropeçado no tapete" e caído de cara no chão. Ser a dor de não pertencer, de ter sido abusado, vilipendiado, ofendido, não respeitado. A dor de não ser amado, de ser ignorado, humilhado. A dor de ser covarde por não ter aceitado o desafio, a dor de ser pateta, de ser servil, de ser o anti-herói. A dor de ter tentado tirar a máscara e descobrir ser a própria máscara, como disse Fernando Pessoa (1983).

Ser a dor do desalento, da desesperança, da incompetência, de não conseguir ser o que nasceu para ser. Ser a dor de perceber a oportunidade acontecendo ao seu lado e ter medo de tomar assento na viagem da vida. A dor da inveja do sucesso e abastança do outro; a dor do ciúme pelo carinho que o outro recebe; do prazer não sentido; da fome não saciada; do corpo não tocado.

Ser a dor de ver o tempo passar e envelhecer sem ter sido jovem; de arrotar burguesia quando o revolucionário ficou preso no calabouço da covardia. A dor de desejar a mulher do próximo sem ter tido a coragem de conquistá-la. A dor da feiura, do desajeitado, do mutilado, do abortado como pária maldito.

Ser a dor de saber que o peso do desafio foi maior do que a coluna podia suportar; a dor por ceder diante do medo de não aguentar o sofrimento de ser esmagado; a dor por ter evitado o esforço, rendendo-se à humilhação de ser olhado como incapaz, desprezível e sentir vergonha de si mesmo.

Ah! Como dói a dor da alma!

Essa dor que dói em todos, quando acontece em cada um traz a sensação de sofrimento ímpar, inédito, sem parâmetro de comunhão com os outros. A dor que dói parece não ter paralelo no mundo. Seria necessário que cada um se descobrisse como parte integrante da humanidade, carregado de matrizes de dolorimentos da alma, compostas com todas as dores do mundo para encontrar salvação. Dessa forma podemos tentar ser analistas, somente dessa forma podemos ser analisandos.

A necessidade de entender e sofrer a dor do outro, como de si mesmo e não somente como sintoma, mas como símbolo da humanidade, reclamante de espaço na consciência, traduz a realidade da própria identidade do ser: a condição de ser dor.

Dito dessa forma, há como compreender a dor da alma que traduz, em última instância, o conflito entre a certeza de que o chamado para um destino individual não pode mais ser ignorado e a certeza de que o ser se exauriu de tal forma que não encontra mais condições de corresponder ao chamado.

E o ser humano sofre quando fica e permanece escravo. Mas sofre também quando rompe e se torna responsável por si mesmo. O custo da liberdade é muito alto.

Nesse caos de sentimentos, vivências, sensações, o deprimido se sente inútil, a vida não tem sentido, o desejo de morrer se instaura. Quando o analista se depara com esta situação, tendo diante de si seu paciente que deseja morrer; que se sente traído pela vida sem se dar conta do quanto se traiu; que se sente vítima, abandonado, sem compreender o quanto é algoz e abandonador para si mesmo, faz parecer que as saídas não existem nesse estado de alma.

O texto da vida escrito e descrito pelos atos, relações, fracassos, sucessos, abandonos, traições, mutilações, feiuras, azares, sorte, insatisfações, angústias, lutos, fomes, covardias, bravuras, casamentos, separações, acusações, culpas, crimes, maldições, incompetências, porradas, ciúmes, invejas, pobreza, escravidão, deveres, heranças, nome e sobrenome etc. retrata o caminho que leva à saúde, ao bem-estar, à realização, à certeza de estar trilhando seu processo de individuação. O mesmo texto, porém, pode também retratar o caminho da doença, da tristeza, da depressão.

O texto da vida relata, retrata e delata!

E quando a depressão emerge, o tempo presente detecta um passado terrível e um futuro pior. O tempo presente não compreende o passado e não tem competência para criar um futuro diferente do provável, e se traduz como o tempo do desespero, o tempo da escravidão. O deprimido-escravo é uma criatura que se sente fora do tempo: o passado já foi, não é mais; o presente é estreito, sufocante, mortífero; o futuro será, provavelmente, reedição e reedição de um presente que não se transforma.

O deprimido é alguém que não tem fé ou não acredita ou confia que algo possa mudar em seu futuro, vendo-o sempre como a provável reedição do hoje. Sem fé não se atinge a Alegria2. A fé pode estar ligada a um conceito religioso ou não; o que a define realmente é o saber e o confiar independente de onde venha isso. Isso é muito importante, pois a pessoa que perde estes valores deixa de ter a possibilidade de ser e estar alegre, e com frequência sente-se num "túnel sem saída". O marasmo ocorre, no mínimo, antes do quadro depressivo.

A realidade que permeia o tempo de desespero, tempo de escravidão, poderá, entretanto, conter a semente do renascimento simbólico, anunciando um tempo novo. Se o processo de vida se povoar de busca de emergências simbólicas decorrentes de regências arquetípicas tradutoras da Sabedoria Profunda, a possibilidade de refazer a ligação com o Self, de religar-se consigo mesmo, emerge como saída transformadora, como renascimento. As regências arquetípicas tradutoras da Sabedoria Profunda demandam uma busca deliberada. Alcançar a compreensão simbólica, acessar o sentido oculto dessa verdade escondida, como um segredo que se recusa a ser revelado, reclama por reflexões e questionamentos incansáveis sobre o que até então esteve encoberto.

Em meu entendimento, o mito de Orfeu se apresenta como um presente dos deuses para nos conduzir ao entendimento desse fenômeno: acessar a Sabedoria Profunda e alcançar a compreensão simbólica do texto da própria vida. Essa compreensão devolve a criatura a si mesma, refaz a conexão com o Self, propicia a coniunctio simbólica consigo mesmo como um casamento pelo caminho de Sofia.

A coniunctio pelo caminho de Sofia nos remete a Orfeu. O herói, depois de longa viagem ao reino de Eetes, na Cólquida, compondo a tripulação da nau Argos, comandada por Jasão, retornou a sua casa e, para seu desespero, encontrou sua esposa Eurídice morta, picada por uma serpente quando perseguida por Aristeu. Orfeu sem Eurídice se sente perdido de si mesmo e decide descer aos ínferos para resgatá-la do reino dos mortos.

A viagem de Orfeu ao reino do Hades configura um episódio iniciático de seu processo de individuação. Quem quer que adentre o reino das profundezas haverá de morrer e renascer simbolicamente para um tempo novo. Quem desce aos ínferos nunca mais retorna, pois o que volta é outro ser, é o renascido. Orfeu canta e encanta a todos quantos o ouvem; toca sua lira com a competência de mestre, filho insofismável do divino Apolo, deus da música, da arte, da medicina e da cura. De outra parte, Apolo é o deus da ordem, da lei, da justiça, da visão solar. Orfeu pode ser considerado como um duplo simbólico de Apolo. Inflado, talvez, pelo poder de sua arte e, tendo comovido tanto a Perséfone quanto a Hades com sua música, melodia, paixão, acabou por conseguir o retorno de Eurídice. Havia, porém, uma interdição: não olhar para trás, não ficar no passado, e, assim se dando, retornar permeado pela transformação ritualística. Orfeu já era casado com Eurídice. Ao tentar resgatá-la do reino da morte, resgatava a si mesmo, porquanto transformado pela coniunctio simbólica com a anima. Mas, Orfeu titubeou, suas dúvidas o fizeram olhar para trás e sua anima Eurídice se perdeu no reino da morte.

Talvez, tomado pela inflação egoica, Orfeu não conseguiu sua coniunctio com a anima. Sua juventude não lhe conferiu competência para tão grande desafio, e, assim, não confiou no presente que o Self lhe oferecia. O desespero tomou conta de nosso herói. Retorna derrotado, não mais tocou sua lira, não mais cantou, desdenhou Afrodite, deprimiu-se e perdeu-se de si mesmo. Orfeu não desiste, assim conta o mito. Sua busca continua e seu encontro e coniuctio consigo mesmo se darão pela busca da Sabedoria Profunda, busca pelo Conhecimento, pelo religar-se pelo caminho do logos, da busca espiritual. O herói do tempo novo ousou fazer perguntas e buscar respostas que somente ele poderia responder. Orfeu se individua pelo caminho do logos espiritualizado, quando busca o divino em si mesmo. O Eros da relação carnal, material, concreta com seu grande amor Eurídice, transforma-se no amor de Ágape sagrado com Sofia3.

A busca por religar-se a si mesmo e tornar-se um com o todo poderá se fazer pela compreensão simbólica, pelo conhecimento, pelo encontro com Sofia. Esse processo se realiza no meu entender por uma conduta regida por um logos espiritualizado que promove a emergência de manifestações simbólicas provenientes da Sabedoria Profunda. A instância Sabedoria Profunda, conforme descrito no texto Mitologia Simbólica (ALVARENGA, 2007) continente de regências arquetípicas traduzidas por figuras míticas, encontra-se em contínua e constante demanda por atualização. Essas estruturas, componentes da instância Sabedoria Profunda, quando atualizadas expressam momentos profundamente significativos do processo de individuação, busca da própria identidade, finalidade precípua de quem caminha para torna-se cada vez mais o que nasceu para ser.

Essas realidades estruturais arquetípicas de busca da própria identidade, traduzidas em incontáveis expressões simbólicas, podem ser entendidas ou traduzidas por perguntas e respostas próprias de cada um. Entretanto, podemos usar questões já pertencentes ao coletivo. Para tanto, nos serviremos das quatro questões filosóficas enunciadas por Kant para melhor compreender o processo de busca de si, busca de identidade, busca de sentido para a vida e os desafios a enfrentar na consecução da tão demandada liberdade.

As questões kantianas são: Quem sou eu? Por que estou aqui? Qual o sentido da minha vida? Qual é minha responsabilidade diante de tudo que me cerca?

Essas quatro questões estão imbricadas de tal forma que se torna inviável tentar respondê-las individualmente. Cada pergunta, quando puder ter uma resposta, se resolverá pela conjunção de dados compostos de aspectos restritos da realidade.

A primeira questão reclamará sempre por respostas a cada tarefa cumprida, a cada decepção vivida, a cada traição consumada. O quem sou eu? será sempre a tradução de um processo em contínua e constante transformação, portanto dependente da segunda questão: Por que estou aqui?

A segunda questão, se respondida por inteiro, demanda saber o sentido da própria vida, o que implicaria a presença da terceira: Qual o sentido da minha vida?

A segunda e a terceira questões são também complementares, pois o estar aqui se consolida com o sentido da própria vida. A busca de sentido implica a inclusão da pertinência, o que a faz vinculada à quarta questão: Qual é minha responsabilidade diante de tudo que me cerca?

A consciência plena da terceira e quarta questões somente se faz realidade após muitos anos de vida. A quarta questão parece emergir em tempos do herói revolucionário, mas somente se coagula e se estrutura como consciência na segunda metade da vida.

Assim, podemos entender essas quatro questões como uma forma completa de traduzir a busca da própria identidade e as instâncias abrangidas para que essa demanda se consume. O buscar-se, segundo os referenciais traduzidos por essas quatro questões, é o próprio processo de individuação.

A dinâmica da consciência que comporta as questões quem sou eu? e por que estou aqui? só é possível se a totalidade da psique "souber" que, para expressá-las, é necessário conter em sua inerência o reclamo por um sentido da vida.

A dinâmica da consciência que comporta a questão qual o sentido da minha vida? só é possível se a totalidade da psique "souber" que, para expressá-la, é necessário conter em sua inerência o reclamo pela descoberta da responsabilidade diante de tudo.

A dinâmica da consciência que comporta a questão qual é a minha responsabilidade diante de tudo que me cerca? só é possível se a totalidade da psique "souber" que para expressá-la é necessário conter em sua inerência o reclamo pela descoberta de quem sou eu?

A questão quem sou eu? reclamará por respostas diferentes em diferentes fases da vida. Cada vez que for formulada, as demais questões estarão implícitas, mesmo quando não conscientes.

Atentando para a primeira questão, podemos perceber que, para respondê-la, precisamos saber de nossas origens, nossa ancestralidade. Para nós sabermos quem sou? precisamos buscar nossa pertinência.

O conhecimento de que decorremos de está implícito na condição de termos e sermos consciência. Ninguém se vê ou se sabe como sem princípio nem fim. Todos nos sabemos oriundos de alguém, vindos de algum lugar, com a certeza da finitude impressa em nosso código genético.

A necessidade de termos resposta para a questão quem sou? é condição imprescindível para a estruturação de nossa identidade e pressuposto básico para o processo de individuação. Sempre que os elementos componentes da origem são negados ao ser humano, como nos adotados, a demanda por saber quem são os pais, a terra e a família de origem torna-se imperiosa para a psique. A impossibilidade para encontrar resposta a essa questão se traduz como sofrimento da alma sem pertinência.

A primeira questão se respondida pelo próprio inquiridor resulta ou num "não sei" ou na enumeração de atividades ou relações ou afazeres desenvolvidos como: ser professor (atividade); ser filho ou pai ou amante (relações); ser responsabilidades, encargos... (afazeres).

Interessante atentar para o fato de que se a questão for depositada no outro, a resposta virá com os mesmos predicados: o outro é professor ou filho ou pai ou então um sujeito com muita responsabilidade. A resposta nunca traz a nossa natureza intrínseca. Não podemos dizer de nós mesmos: eu sou aquele que é ou eu serei o que serei - respostas dadas a Moisés por Jeovah.

A questão: Quem sou eu? talvez nunca encontre resposta satisfatória, pois, apesar de o sujeito saber-se um inteiro composto de realidades conscientes e inconscientes, somente se sabe pelos referenciais da consciência. A impossibilidade de uma resposta não exclui a presença da pergunta; a resposta, quando vier, falará da origem, das razões do estar no aqui-agora, das responsabilidades com o todo, de funções e tarefas a cumprir.

A segunda questão kantiana por que estou aqui? pode nos remeter a respostas fatalistas como: "a vida me colocou aqui" ou ao cumprimento de tarefas, condição precípua da realização da jornada heroica, das quais não tenho certeza do porquê cumpri-las. Apesar de não saber a razão de cumpri-las, sempre se estará ciente da certeza de ter que realizá-las, premidos, de forma consciente ou não, pela demanda da terceira questão.

O por que estou aqui? se consuma pelo cumprimento de tarefas imprescindíveis para a emergência de novas questões. Sem o cumprimento das tarefas não haverá transformação suficiente para formular a terceira pergunta.

A terceira questão da busca de si mesmo, traduzida por qual o sentido da minha vida?, revela a necessidade de encontrar a condição prospectiva de tudo quanto é realizado pelo cumprimento das tarefas. A aquisição de uma consciência reflexiva pede um futuro no qual o cumprimento das tarefas deixa a condição da obrigatoriedade para se tornar uma escolha, uma opção. Inegavelmente, através dessas escolhas é que podemos criar o futuro ou modificar o futuro que se cumpre como decorrência da "escravidão", da ausência de liberdade, da depressão A condição de poder optar decorre certamente, cada vez mais, da estruturação da consciência reflexiva, com o que o cumprimento das tarefas se compõe como condição para a resposta à quarta questão.

A quarta questão, apesar de ainda não formulada explicitamente, sempre esteve presente como realidade da psique. A realização das tarefas coagula a consciência da própria responsabilidade de ser e estar presente no mundo. A consciência da pertinência traz a sensação subjetiva de plenitude e o saber-se quem sou? implica saber-se na relação com o outro e responsável pelo outro, parte de si-mesmo, natureza própria, a par de ser parte do outro.

E, finalmente, a quarta questão qual é minha responsabilidade diante de tudo que me cerca? responde-se por si mesma, como decorrência da consciência de saber-se sendo em função da relação, da interação, das sincronicidades. Saber-se responsável por tudo quanto nos cerca confere um sentido grandioso à vida, transforma a efemeridade dos dias em capítulos substanciais do corpo simbólico de ser e estar aqui, agora.

O fechamento de um ciclo de questões nos remete ao próximo, quando retomamos a primeira questão quem sou eu?, com o que poderemos encontrar referenciais ímpares da própria identidade, até então nunca intuídos.

 

Conclusões

O propósito deste texto se define pela condição de: o perder-se de si mesmo, fundamento do processo depressivo, encontra respostas, num segundo momento da vida, pela via do conhecimento, pela via de um logos espiritualizado e veiculado pela Sabedoria Profunda. Se ousarmos fazer as perguntas, haveremos de buscar as respostas. Não há como viver um processo de análise sem que essa busca órfica se consume.

 

Referências

ALVARENGA, M. Z. et al. Mitologia simbólica: estruturas de psique e regências míticas. Itatiba: Casa do Psicólogo, 2007.         [ Links ]

BONDER, N. A alma imoral: traição e tradição através dos tempos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.         [ Links ]

JUNG, C. G. Símbolos de transformação. Petropolis: Vozes, 1988.         [ Links ]

MORENO, D. H.; DIAS, R. S.; MORENO, R. A. Transtornos do humor. In: LOUZÃ NETO, M.R.; ELKIS, H. Psiquiatria básica. Porto Alegre: Artmed, 1995.         [ Links ]

PESSOA, F. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983.         [ Links ]

 

 

Recebido: 07/08/2022
Revisão: 07/10/2022

 

 

1 Publicado originalmente na Revista Junguiana nº 25, 2007, p. 19-27
2 Nilton Bonder, em comunicação pessoal, na aula do curso sobre Cabala de Pesach, em março de 2007, na Casa de Cultura Judaica, São Paulo, SP.
3 Ana Célia Rodrigues de Souza, em comunicação pessoal de 2007.

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