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Junguiana

On-line version ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.3 São Paulo  2022

 

James Hillman e a Fenomenologia: a base poética da psique

 

James Hillman and Phenomenology: the poetic basis of psyque

 

James Hillman y la Fenomenología: la base poética de la psique

 

 

João L. Corá S.I; Carlos A SerbenaII

IPsicólogo pela PUC-PR. Especialização em Psicologia Analítica (PUC-PR). Mestre em Filosofia (PUCPR). Mestrando em Psicologia Clínica pela UFPR. e-mail: joao_luis_cora@hotmail.com
IIEngenheiro Elétrico (UFPR). Psicólogo (UFPR). Mestre em Psicologia (UFSC) e Doutor em Ciências Humanas (UFSC). Professor associado da Universidade Federal do Paraná, professor permanente do Programa de Pós-Graduação (mestrado e doutorado) em Psicologia da UFPR e coordenador do GT Epistemologia e interfaces da Psicologia Analítica na ANPEPP. e-mail: caserbena@gmail.com

 

 


RESUMO

O principal objetivo desse artigo é refletir e apontar para os possíveis horizontes epistemológicos e ontológicos da psicologia arquetípica de James Hillman ao aproximá-la de uma possível relação com a fenomenologia. Para cumprir com tal intento, torna-se necessário delimitar dois pontos de partida, sendo eles: (1) O lema central da psicologia arquetípica de "ficar com a imagem" (stick to the image) e sua possível relação com a noção fenomenológica de "voltar às coisas mesmas". (2) O postulado de uma base mito-poética para a psique humana e a possível aproximação com a noção de poiesis tal como apresentada na fenomenologia de Heidegger. A psicologia arquetípica surge em um novo contexto "pós-junguiano" que busca substituir uma atitude interpretativa, unívoca e metafísica, por uma atitude fenomenológica em relação as imagens da alma. A base mito-poética e o "ficar com a imagem", noções centrais em sua psicologia, constituem a base dessa possível atitude fenomenológica em seu pensamento.

Palavras-chave: psicologia arquetípica, fenomenologia, epistemologia, poiesis, James Hillman.


RESUMEN

El objetivo principal de este artículo es reflexionar y señalar los posibles horizontes epistemológicos y ontológicos de la psicología arquetípica de James Hillman acercándola a una posible relación con la fenomenología. Para cumplir con esta intención, es necesario delimitar dos puntos de partida, a saber: (1) El lema central de la psicología arquetípica de "adherirse a la imagen" (stick to the image) y su posible relación con la noción fenomenológica de "volver a las mismas cosas". (2) El postulado de una base mitopoética para la psique humana y el posible acercamiento a la noción de poiesis tal como se presenta en la fenomenología de Heidegger. La psicología arquetípica surge en un nuevo contexto "pos-junguiano" que busca reemplazar una actitud interpretativa, unívoca y metafísica por una actitud fenomenológica hacia las imágenes del alma. La base mitopoética y el "adherirse a la imagen", nociones centrales en su psicología, constituyen la base de esta posible actitud fenomenológica en su pensamiento.

Palabras clave: psicología arquetípica, fenomenologia, epistemologia, poiesis, James Hillman


 

 

Introdução

O contexto epistemológico da obra de Jung é multidisciplinar e multifacetado, a psicologia analítica surge em meio a uma "rede" de ideias e sistemas teóricos, diálogos em sua época entre as ciências do espírito e as ciências da natureza, sendo as próprias concepções de Jung resultantes de uma intensa reflexão tanto empírica, médica e científica, por um lado, quanto filosófica, religiosa, antropológica, mitológica e simbólica, por outro. Será nesse contexto polissêmico em que veremos despontar a concepção de Jung de uma psique complexa que não pode ser explicada somente em termos fisiológicos, biológicos, neurológicos e/ou anatômicos. Pelo contrário, Jung elabora um novo método nomeado de prospectivo e/ou sintético-construtivo, tendo como finalidade ater-se a complexidade da alma a partir do seu próprio sentido simbólico (SHAMDASANI, 2005; JUNG, 2013a; 2013b; 2015).

Será a partir da reflexão de que a psicologia analítica de Jung possui um fundo (background) multidisciplinar, assim como levando em conta a preocupação do autor com a complexidade da alma humana, que alguns autores como Roger Brooke (2000) encontrarão na obra de Jung, assim como em sua visão de mundo (Weltanschauung), uma possível relação com uma perspectiva fenomenológica. Ora, segundo Brooke (2009) em sua obra Jung and Phenomenology, podemos encontrar possíveis traços de uma perspectiva fenomenológica em Jung a partir do instante em que ele intenciona compreender a alma a partir do seu sentido simbólico singular, antes de reduzi-la a interpretações prévias e redutivas. Ao perguntar-se sobre o telos do próprio símbolo, se atem à compreensão do conteúdo inconsciente a partir de sua própria significação, procurando assim manter-se fiel a uma linguagem própria da alma, tal qual o lema fenomenológico apregoa, "voltar às coisas elas mesmas", trocando em miúdos, voltar-se ao sentido simbólico próprio da psique (BROOKE, 2009, p. 13, 23-31).

Além disso, é possível considerar uma possível relação com a perspectiva fenomenológica em Jung a partir do seu estilo de pensamento poético, seu método hermenêutico/interpretativo e seu ponto de partida simbólico e metafórico, aproximando-o assim da ontologia poética da fenomenologia hermenêutica de Heidegger (BROOKE, 2000; 2009). Por outro lado, segundo Brooke (2009), a emergência de um pensamento poético em Jung nunca teria sido sistematicamente exposto em um sistema teórico/epistemológico claro, não há nenhuma preocupação por parte do próprio Jung em demonstrar sistematicamente as possíveis relações epistemológicas e ontológicas com uma base poética para as suas ideias.

Entretanto, encontra-se na psicologia arquetípica de James Hillman uma tentativa de estabelecer uma relação mais explicita com esse arcabouço poético e fenomenológico, talvez possamos encontrar ali de forma mais clara essa possível relação com a fenomenologia a partir do trabalho de Hillman com o imaginal e o arquetípico. Como exemplo poderíamos citar a primeira obra de James Hillman sua tese de doutoramento Emotion de 1959, na qual não apenas citará autores da fenomenologia, assim como objetivamente utilizará o método husserliano de "voltar às coisas mesmas" e o "colocar entre parênteses" da epoché fenomenológica, mas também o utilizará a fim de apreender as diversas teorias psicológicas sobre as emoções como "aparências fenomenológicas" e/ou significados possíveis sobre esse complexo fenômeno da alma (HILLMAN, 1992).

Considera-se aqui a psicologia arquetípica como um desdobramento teórico da psicologia analítica de Jung. Em alguns momentos, evidenciaremos também o compromisso de Hillman em aprofundar as ideias de Jung, assim como em outros momentos se afastará de suas noções, conceitos e perspectivas. Podemos citar como exemplo o estilo poético do pensamento de Jung, tal como concebido por Samuels (1989) e Brooke (2009), enquanto um estilo metafórico, poético e mitológico, como ele será retomado e levado às últimas consequências por Hillman. Ao postular uma base mito-poética para a psique como fundamento de sua própria compreensão da psique, estará propondo um novo estilo de psicologia que tem seu ponto de partida na base poética da alma (HILLMAN, 1988; 2010).

Nesse sentido, pode-se afirmar que a psicologia arquetípica de Hillman, como escreve Samuels em Jung e os Pós-Junguianos, se trata de um desdobramento teórico da psicologia analítica de Jung, e não de uma cisão ou separação dessa última. Para além disso, veremos que será apenas na psicologia arquetípica de Hillman que será possível evidenciar com maior clareza aquela relação com a fenomenologia, uma vez que a perspectiva fenomenológica diante das imagens da alma substituirá uma compreensão metafísica da alma humana, tornando a fenomenologia de grande importância para refletir sobre as questões relacionadas as bases epistemológicas da psicologia arquetípica (SAMUELS, 1989; TACEY, 1988).

Daremos especial destaque aqui em duas noções centrais para a psicologia arquetípica, sendo elas: (1) o "ficar com a imagem" (stick to the image) e a possível relação com a noção básica em fenomenologia de "voltar às coisas mesmas"; (2) o postulado de uma base mito-poética para a psique e a noção de poiesis tal como apresentada na fenomenologia de Heidegger. Porém, em primeiro lugar buscar-se-á demonstrar já em Jung uma possível relação com a abordagem fenomenológica, em especial a partir da presença de um estilo poético em seu pensamento, já que poderemos encontrar ali pontos importantes que parecem convergir com a presença da fenomenologia na psicologia arquetípica de James Hillman.

 

Possíveis relações da Psicologia Analítica de Jung com a Fenomenologia

Diante da complexidade do fenômeno da alma, Jung entenderá como necessário um olhar sobre a psique que tenha como ponto de partida sua própria dinâmica, a fim de não a reduzir a uma única explicação unilateral. Em sua concepção, a alma não pode ser explicada apenas em termos químicos e/ou fisiológicos, já que a própria vida humana não poderia ser reduzida as leis da ciência moderna (JUNG, 2013). Em razão desses e demais apontamentos, vemos despontar um posicionamento teórico/crítico na psicologia analítica de Jung, tendo como locus uma crítica as interpretações redutivo-causais e materialistas em relação à complexidade simbólica da alma humana (SHAMDASANI, 2005, p. 75-76).

Em resposta ao método redutivo-causal, suas tendências reducionistas e causais que reduzem o fenômeno psicológico a elementos causais mais simples, estruturas pré-definidas ou conceitos fechados em si mesmos, Jung desenvolverá um novo método prospectivo e não redutivo, nomeado por ele como método sintético-construtivo. De modo geral, podemos dizer que o método construtivo se atem ao símbolo per se, isto é, voltará sua atenção à complexidade e o telos (finalidade) do símbolo a partir de um ponto de vista construtivo amplificando seu sentido a partir de si mesmo. O método sintético-construtivo será exposto com maiores detalhes em suas obras, em especial citaremos aqui a apresentação do método em Psicologia do Inconsciente (OC 7/1) em um capítulo intitulado "VI O método sintético ou construtivo".

Será por conta de seu método sintético-construtivo que alguns autores como Roger Brooke (2000) encontram na psicologia analítica de Jung uma possível relação com a perspectiva fenomenológica, especialmente quando Jung pergunta pelo sentido do símbolo a partir de si mesmo, sem antes reduzi-lo a suas causas elementares. Neste sentido, o método construtivo-sintético não só evitará o materialismo e o reducionismo causalista, afastando-se assim de abstrações conceituais e/ou "explicações" meramente teóricas, lógicas, espirituais, atendo-se à experiência simbólica da alma a partir de seu próprio significado e sentido, algo muito próximo ao lema central da fenomenologia o "voltar às coisas mesmas" (BROOKE, 2009; 2000).

Além da possível relação da psicologia analítica de Jung com a perspectiva fenomenológica a partir do método sintético-construtivo, poderíamos apontar para uma segunda possível relação com a perspectiva fenomenológica em Jung a partir do seu estilo de pensamento poético (BROOKE, 2009; SAMUELS, 1989).

De acordo com a análise de Brooke (2009), o estilo poético do pensamento de Jung está possivelmente relacionado à ontologia poética proposta por Heidegger, tendo em vista a assertiva do filósofo alemão de que a modernidade assiste a "fuga dos deuses", relacionando assim as figuras míticas à ideia de esquecimento do Ser na modernidade. Na concepção de Heidegger, apenas o poeta seria capaz de encontrar os "rastros dos deuses fugitivos", sendo a poiesis a atividade necessária diante do esquecimento do Ser no interior do racionalismo e do materialismo insurgente na modernidade (HEIDEGGER, 1936, p. 94 apud BROOKE, 2009, p. 29).

Segundo Jung, no interior da perspectiva moderna "os deuses tornaram-se doenças" (JUNG, 2002, p. 43), isto é, as narrativas mito-poéticas vestem uma nova roupagem racionalista e diagnóstica, perdendo de vista a realidade metafórica da alma e a perspectiva de que as imagens são alusivas e não realidades concretas e literais (BROOKE, 2009, p. 29-39).

Na concepção de Brooke (2009) e Samuels (2008), o estilo poético de pensamento em Jung está relacionado a um dos dois horizontes epistemológicos de sua obra. Por um lado, um horizonte científico e natural de entendimento, empírico e voltada aos "fatos", por outro lado, uma perspectiva poética, imaginária, mitológica. Poderíamos aproximar essa tensão epistemológica da questão da dupla personalidade de Jung mencionada em sua autobiografia Memórias, Sonhos, Reflexões, correspondendo ali as suas personalidades número 1 e número 2, cada qual com suas próprias necessidades, seu próprio modo de ser e ver o mundo (Weltanschauung) (BROOKE, 2009, p. 21-24; JUNG, 2016, p. 99; SAMUELS, 2008).

Segundo Samuels (2008), essa dupla perspectiva fomentará o surgimento de uma grande variedade de práticas e produções teóricas em psicologia analítica desde a morte de Jung em 1961, entre elas a escola pós-junguiana da psicologia arquetípica de James Hillman. Ademais, o estilo poético de pensamento virá à tona a partir da ênfase de Jung na experiência sensível e no significado da experiência subjetiva da alma, sendo que a linguagem poética aparecerá em seus escritos sobre religião, filosofia, mitologia e alquimia, correspondendo diretamente a figura da personalidade número 2 em Memórias (BROOKE, 2009; JUNG, 2016).

Em última análise, segundo Hillman (2019), o estilo poético de pensamento se dá por metáforas, de forma poética e imaginativa, entendido por ele como um modo mais "acurado" de alcançar as profundezas da alma humana. O estilo poético de Jung será a base para o postulado posterior de uma base mito-poética para a psique. Sobre esse ponto específico, Hillman (2019, p. 163) comentará: "Sua teoria das imagens anunciou uma base poética da mente, e a imaginação ativa a colocou em prática, mesmo enquanto Jung continuou usando linguagem científica e teológica para suas explicações1".

O pensamento poético remonta a palavra grega poiesis que significa o ato da criação, sendo essa a perspectiva poética que possibilita o envolvimento sensível com o mundo em sua materialidade. O estilo poético de pensamento em Jung aponta para um entrelaçamento e/ou transformação entre psique e matéria, alma e corpo, opondo-se assim a uma concepção cartesiana e afastada do mundo (BROOKE, 2009, p. 27).

Em última análise, a perspectiva poética dará as caras primeiro em Jung desdobrando-se posteriormente até o pensamento da psicologia arquetípica de James Hillman. O trabalho da poiesis implicará em um retorno a uma relação imediata e fenomenológica com o mundo, sendo uma forma de apropriação das temáticas a partir de um trabalho com a imaginação. Como veremos posteriormente, a base poética da mente buscará elucidar aquela experiência arquetípica e primordial, sendo a poiesis a condição para acessar as imagens arquetípicas da psique (HILLMAN, 1988, p. 28).

 

A Psicologia Arquetípica de James Hillman e a Fenomenologia

Apesar de a Psicologia Arquetípica de Hillman ter suas raízes na Psicologia Profunda de Jung, ainda assim ela terá suas próprias nuances e características singulares. Sobre as aproximações e diferenças possíveis entre a psicologia de Hillman e Jung, podemos mencionar em especial o fato de que a psicologia arquetípica se volta em primeiro lugar à imaginação, à imagem e à manifestação dessas imagens na própria cultura, enfatizando assim uma perspectiva imaginal em relação a ideia clássica de inconsciente, assim como a manifestação das imagens na cultura em relação a dinâmica inconsciente no indivíduo (TACEY, 1998, p. 219). Deve-se mencionar que, em relação à psiquiatria moderna do século XIX, a psicologia de Hillman opõe-se à uma perspectiva estritamente médica e empírica que confinaria a psique às manifestações da ciência positiva (HILLMAN, 1983, p. 22).

Ainda sobre as diferenciações em relação à psicologia analítica clássica de Jung, o termo "arquetípico" substituirá o "analítico" já que, como bem pontuará Hillman (1988, p. 21), a noção de arquétipo refletirá a "profundidade teórica dos últimos trabalhos de Jung, os quais tentam resolver os problemas psicológicos para além dos modelos científicos". Em segundo lugar, porque a ênfase no arquetípico está relacionada a um movimento próprio da psicologia arquetípica que visa os padrões da imaginação e como eles se manifestam tanto na subjetividade quanto na cultura, tornando-se assim uma cosmovisão que abrange todos os planos da vida humana como imaginais, estando para além da estrita prática psicoterapêutica no interior dos consultórios e clínicas de psicologia (Idem, Ibidem).

Como visto anteriormente, aquela dupla perspectiva no pensamento junguiano entre o estilo poético, imaginário e metafórico, por um lado, e o estilo científico, empírico e natural, por outro, terá repercussões nas práticas e produções teóricas em psicologia analítica após a morte de Jung em 1961. Podemos considerar aqui que o estilo poético, a ênfase de Jung no significado da experiência singular da alma, a linguagem metafórica e imaginária que corresponderia ao mistério da personalidade número 2 em Memórias, será retomado por Hillman ao postular uma base mito-poética da psique como ponto fundamental para sua própria compreensão de psique (BROOKE, 2009; SAMUELS, 1989; JUNG, 2016; HILLMAN, 2019).

A psicologia arquetípica fundamentará seus pressupostos naquela perspectiva poética intrínseca ao pensamento junguiano, o que se torna cada vez mais evidente, por um lado a partir de sua relação com o imaginário, ao considerar a linguagem metafórica e mito-poética como constituintes básicas da psique, assim como ao levarmos em consideração as críticas de Hillman a uma linguagem literalista em psicologia, excessivamente científica, concreta e materialista, em especial sua crítica ao reducionismo do aspecto imaginal da psique à physis, palavra grega para natureza, isto é, a oposição a uma redução daquela apreensão poética à uma literalização excessivamente objetiva e física em psicologia (BROOKE, 2009, p. 21-24; SAMUELS, 1989, p. 82; HILLMAN, 2010).

Entre as possíveis relações com a fenomenologia poderíamos citar brevemente a compreensão de Hillman de "arquetípico" como uma visada fenomenológica sobre os fenômenos (TACEY, 1989). Apesar das nuances e diferenciações apontadas em relação a psicologia analítica clássica, a ideia de arquétipo de onde provêm o nome "psicologia arquetípica" é de Jung (HILLMAN, 1988). Os arquétipos aqui definidos como os "archai" (formas originárias), estruturas básicas e/ou padrões da psique, aparecem na cultura, arte, religião, hábitos sociais e mitos, assim como nos sonhos e nas psicopatologias. Os arquétipos são como "as perspectivas que temos de nós mesmos e do mundo", assim como são "autoevidentes", em suma, "todas as maneiras de falar de arquétipos são traduções de uma metáfora a outra" (HILLMAN, 2010, p. 33).

Nesse sentido, apesar de a psicologia arquetípica se ater ao conceito junguiano de "arquétipo", ainda assim estrutura sua própria compreensão do arquétipo como qualidade arquetípica da experiência, pensando dessa forma o arquetípico não apenas através do comportamento individual ou a alma no interior de um "individuo", mas antes o caráter arquetípico do mundo (Hillman, 1988). O postulado de que os arquétipos são fenomenais implica uma consideração do arquetípico enquanto um adjetivo e/ou qualidades da experiência humana, adotando aqui uma atitude fenomenológica em relação à experiência arquetípica, em outras palavras, o "ficar com a imagem" (stick to the image) (p. 51).

Além disso, devemos mencionar que a psicologia arquetípica se afasta de uma compreensão que procura "entender" racionalmente o que "é" o arquétipo, como se tratássemos de uma qualidade intrínseca as coisas, uma "substância" que deve ser "desocultada", tal como a "coisa-em-si" kantiana. Segundo Hillman (1988, p. 22-23), os arquétipos não "transcendem" o mundo empírico, pelo contrário, eles são fenomenais, isto é, qualidades da experiência humana que se manifestam junto ao mundo em seu próprio acontecer, em sua aparência imediata, como perspectivas fenomenológicas, assim considerando-o como consequência de uma interação entre observador e imagem (BROOKE, 2009, p. 31; SAMUELS, 1989, p. 74).

Como veremos a seguir, a relação de Hillman com o pensamento fenomenológico será apontado por vários comentadores de sua obra, os quais afirmaram que a proposta da psicologia arquetípica de Hillman é fenomenológica na mesma medida em que ele se afasta de uma apreensão da psicologia enquanto ciência moderna e positiva, voltando-se para uma compreensão da vivência da alma a partir de sua própria linguagem, de suas fantasias e imagens. Além disso, a relação de Hillman com a fenomenologia surge, em primeiro lugar, da substituição de uma perspectiva "metafísica" por uma concepção fenomenológica do fenômeno da alma (TACEY, 1998). Segundo, extraímos de suas ideias centrais, como a noção de anima mundi e o postulado de uma base mito-poética da psique, proximidades com a perspectiva fenomenológica de Heidegger e Husserl (CASEY, 2016).

 

James Hillman e a Fenomenologia: "ficar com a imagem" (Stick to the Image)

Em Twisting and Turning with James Hillman, Tacey (1998) escreve que a "virada" pós-junguiana de James Hillman é consequência direta da necessidade de uma revisão dos conceitos junguianos para um novo contexto pós-moderno. Em outras palavras, o "desdobramento epistemológico" seria uma releitura da teoria clássica a partir de um novo contexto teórico pós-moderno marcado pela diversidade, pelo plural, o multiculturalismo, o relativismo e o perspectivismo. Neste sentido, não se trata apenas de uma mudança meramente "teórica", mas antes do surgimento de uma nova concepção que se desloca em um também "novo" espírito do tempo (Zeitgeist) (p. 219).

O "novo mundo" pós-junguiano, como será conhecido, buscará substituir as ideias de unidade por noções de diversidade e o "saber" arquetípico será substituído por uma ideia de arquétipo enquanto "abertura", incerteza e "não-saber". Além disso, a alma ganhará um elemento de fugacidade, as posturas metafísicas e estáticas em psicologia serão substituídas por uma perspectiva fenomenológica, pela ideia de movimento e continua transformação (Idem, Ibidem).

A Psicologia Arquetípica de James Hillman é uma psicologia orientada pelo pós-modernismo hermético, remetendo ao Deus grego Hermes, sendo assim uma psicologia que substitui substantivos por verbos, ideias de substância por "estilo", fixação por mudança, noções de progresso e desenvolvimento por uma ideia de contínuo e infindável refino da alma, o "cultivo da alma" (soulmaking). Em especial, vale mencionar, a substituição de uma concepção metafísica em psicologia por uma perspectiva fenomenológica frente as imagens da alma (Idem, Ibidem).

Por outro lado, a presença de uma perspectiva fenomenológica em James Hillman não aparecerá em sua obra de forma objetiva e sistematizada, sendo apenas comentada e ilustrada em algumas passagens. Como em Philosophical Intimations volume 8 das obras completas (Uniform Edition) de James Hillman, em que Casey (2016) delineia a presença cada vez mais notável da fenomenologia de Husserl e Heidegger nas noções e ideias de James Hillman. Ele descreve como o pensamento de Hillman emergirá aos poucos como fenomenológico a partir de sua "sutileza descritiva" das imagens, da profunda distinção entre as imagens que examina, "descrevendo cuidadosamente suas semelhanças e diferenças em filigrana" (CASEY, 2016, p. 16). Além disso, aproxima essa "escuta" atenta das imagens a partir de si mesmas à fenomenologia de Heidegger tal como apresentada em Ser e Tempo, apontando para o lema "stick to the image" da psicologia arquetípica como um chamado para uma descrição fenomenológica do fenômeno a partir dele mesmo. Nas palavras de Casey:

Seu shibboleth anterior, "ficar com a imagem", já era um chamado à descrição fenomenológica: ao paciente delineamento das imagens tal como elas se apresentam, seguindo seu exemplo em vez de impor-lhes seus preconceitos, presumindo saber exatamente como elas deveriam aparecer2 (p. 16-17).

Por outro lado, como escreve Casey (2016), Hillman dará à fenomenologia, como ele a entende, sua própria "flexão" (o termo original em inglês é twist), afirmando que o método fenomenológico deverá dar total atenção ao modo como a percepção, a imaginação, a cultura e a histórica apresentam-se em si mesmas. Hillman definirá sua própria atitude fenomenológica como notitia, isto é, uma atitude de total atenção as qualidades das coisas como elas se apresentam, para então formar uma verdadeira noção sobre as coisas a partir delas mesmas. Nas palavras do próprio Hillman:

Trata-se de prestar atenção às coisas de maneira escrupulosa e solícita, escolhendo suas características apresentadas tal como aparecem. O que está em jogo aqui é uma apreensão do que está lá e do que há lá - e fazê-lo sem nenhum sacrifício de precisão (HILLMAN apud CASEY, 2016, p. 16-17).

Neste sentido, a fenomenologia, no modo como Hillman a compreende, substitui a associação livre da psicanálise de Freud, sendo que sua prescrição se torna um "atentar-se ao mundo em sua apresentação imediata", sendo essa atenção ao que se apresenta de imediato a condição para acessar o fenômeno de forma precisa e genuína, para apreender o que está lá, tal como aparece, a assim explorar suas dimensões psicológicas profundas (CASEY, 2016, p. 17). Tendo como ponto de partida que as imagens são atividades sui generis da alma e a própria psique manifestando-se a partir de si mesma, isto é, "a psique na sua visibilidade imaginativa" (HILLMAN, 1988, p. 27). Compreendendo que as imagens são os dados primordiais da alma, então, não deveríamos interpretá-las, dar-lhes um significado "externo" a sua própria apresentação. Será nesse sentido que a psicologia arquetípica prescreve a total atenção ao mundo em sua aparição imediata, é essa a diretriz que fundamenta seu lema central, o "ficar com a imagem" (stick to the image).

A imagem arquetípica "não tem referente além de si mesma", ela não representa nada, não pode ser lida como significando outra coisa, senão somente a si mesma. Nada aguarda "sob" a imagem para ser "desocultado", a imagem é irredutível (HILLLMAN, 1988, p. 27). A imagem não é uma substância, mas antes uma perspectiva, o próprio ato de imaginar, a maneira como se vê e não uma "coisa-em-si" (HILLMAN, 2010, p. 27). Neste sentido, o "ficar com a imagem", lema central do que poderíamos chamar de um possível "método" em psicologia arquetípica, buscará ater-se fiel a própria imagem como uma perspectiva possível, uma maneira de se imaginar o mundo e as coisas.

Em outras palavras, pode-se afirmar que o "ficar com a imagem" será compreendido precisamente como aquela descrição atenta e focada na imagem, como aquela atitude fenomenológica de notitia elaborada pelo próprio Hillman, como comentado por Casey (2016), enquanto uma atitude de total atenção ao fenômeno em sua aparição imediata para uma descrição precisa de suas qualidades psicológicas. O "ficar com a imagem" pressupõe ater-se a própria perspectiva imaginal anterior a qualquer interpretação externa a imagem em si mesma, tal qual o lema fenomenológico de "voltar às coisas mesmas" buscará descrever o fenômeno a partir de si mesmo colocando "entre parênteses" quaisquer juízos e/ou conhecimento prévios a seu próprio aparecer (ZAHAVI, 2015).

Em última análise, é possível afirmar uma relação com a fenomenologia no pensamento de Hillman através da atitude de estar atento, com cuidado, às coisas do mundo ao redor, considerando assim o "ficar com a imagem" como condição de possibilidade para aprofundar a dimensão psicológica da vida. Para Casey (2016), somente com essa postura fenomenológica diante dos fenômenos nos tornarmos "íntimos" psicologicamente das coisas do mundo. Ora, a noção de "intimidade psicológica" com as coisas e o mundo ressoa a concepção de Hillman de que o mundo é "almado". Em outras palavras, ao "almar" o mundo, a psique não se restringe ao interior do sujeito, mas se dá na relação com o mundo. Segundo Casey (2016), o conceito de anima mundi aproxima-se da concepção fenomenológica de Husserl de "mundo da vida" (Lebenswelt), assim como da concepção de Heidegger de "Ser-no-mundo" (Dasein). Nas palavras de Casey (2016, p 17): "Com a noção de alma do mundo, fenomenologia e psicologia profunda unem forças [...]".

A fim de ilustrar a relação fenomenológica com as imagens e como o "ficar com a imagem" aparece na prática clínica, iremos tomar como exemplo uma imagem do sonho de um paciente. A. sonhou que estava em uma mansão antiga com vitrais "medievais" que pareciam mosaicos com diversas cores. A mansão estava totalmente escura a não ser pela única luz que entrava por esses vitrais. A escuridão causava no sonhador uma dupla sensação de angústia, "sufocamento", mas ao mesmo tempo mistério.

Para colocar em prática o "ficar com a imagem" (stick to the image) devemos nos ater ao modo como as imagens aparecem nos sonhos sem interpretar seu "simbolismo", mas antes nos perguntando sobre a "ação" e/ou modo como o sonhador se relaciona com essas imagens no sonho. Deve-se pontuar que a imagem do sonho não se restringe apenas à "mansão antiga" literalmente, mas antes a toda a cena onírica, isto é, cada um dos aspectos desse cenário imagético, atos, sensações e interações do sonhador, devem ser compreendidos como imagens. Neste sentido, tomaremos todo o contexto que envolve o sonho (inclusive a descrição do sonhador) como uma imagem, evitando uma postura interpretativa do significado "subjacente" à imagem (RUSSELL, 2013, p. 459-460).

A imagem do sonho da mansão antiga aponta para algo misterioso e enigmático, a sensação de que há algo oculto a ser revelado na psique do sonhador. Porém, a medida em que adentra a imagem, a emoção que emerge do escuro é o medo do que pode encontrar ali, o medo do "desconhecido". Os escassos pontos de luz que se resumem aos vitrais medievais lhe causam uma sensação de "sufocamento", além da angústia em relação à eminência de que há algo no escuro.

O cenário imaginal da mansão antiga parece refletir com certa precisão a dinâmica da psique do paciente em questão, já que ele se queixa de uma grande dificuldade em ter uma postura espontânea e criativa diante do mundo e da relação com os outros, sentindo muitas vezes sua vida como um "quadro em branco, sem cores". É importante enfatizar que, assim como o medo do desconhecido no escuro gera angústia no sonhador, o paciente A. apresenta episódios de ansiedade durante o dia seguidos de um profundo sentimento de falta de sentido e vazio, principalmente nos momentos em que está sozinho e sem "nada" para fazer. Podemos dizer a partir da imagem do sonho que algo permanece velado e/ou desconhecido na escuridão, na medida em que adentra esse lugar escuro é subitamente tomado por aquele sentimento de angústia apontando para uma dificuldade em olhar para e/ou aprofundar aqueles aspectos misteriosos de sua psique.

 

James Hillman e a Fenomenologia: a base mito-poética da psique

A "base poética da mente" é uma tese apresentada por Hillman em 1972 nas Terry Lectures em Yale, estabelecendo a partir desse ponto uma relação inextrincável entre psicologia e imaginação. Pode-se afirmar que a base poética da mente se tornou uma necessidade da própria natureza da psique. Será nesse mesmo sentido que podemos afirmar que um estudo profundo e fecundo em psicologia deve voltar-se para um trabalho com as imagens (HILLMAN, 1988, p. 32).

Seu ponto de partida para a concepção de uma psique constituída de imagens é Jung, e podemos afirmar que seguirá seus passos a partir de duas afirmações centrais, sendo elas: a afirmação de que "psique é imagem" (JUNG, 2002, p. 55), portanto, deveríamos permanecer "fiel à imagem" (JUNG, 2011, p. 33). Essa dupla afirmação torna-se eixo central de um possível "método" em psicologia arquetípica, isto é, ter como ponto de partida a imagem e permanecer fiel àquele substrato imagético que constitui a alma (HILLMAN, 1988).

Por outro lado, notamos já em sua trajetória histórico-biográfica que Hillman terá inúmeros contatos com a arte e a poesia, construindo assim gradativamente sua perspectiva mito-poética e estética da psique a partir dali. Podemos mencionar aqui a experiência com as pinturas de Van Gogh quando estudava literatura no Sorbonne em Paris, assim como a paixão por James Joyce que o levou a mudar-se para Dublin onde foi editor da Envoy, uma revista de literatura (RUSSELL, 2013).

É notória também a presença da literatura e da arte, além da leitura dos filósofos e romancistas que tratam da questão da beleza e da estética, como meio para estabelecer uma ponte entre verdade e beleza. Em seus anos de estudo em Dublin terá contato com Shakespeare, Platão e John Keats, desse último extrairá a celebre afirmação encontrada em Re-vendo a Psicologia "Chame o mundo se quiser, o 'vale de fazer alma'" (HILLMAN, 2010, p. 25; RUSSELL, 2013).

Entretanto, se quisermos compreender o postulado de Hillman de uma base mito-poética da psique, precisaremos antes nos ater a sua definição de imagem como dado primordial e constituição básica da psique mito-poética. As imagens são dados da fantasia, são "os materiais crus" e, ao mesmo tempo, "os produtos acabados da psique", assim como um "modo privilegiado de acesso e conhecimento da alma" (HILLMAN, 2010, p. 29). A atividade auto-originária de imagens é como um órgão da psique, é isso o que Hillman (2010) chama de base poética da alma, o "substrato imaginativo e autossustentado", o "lugar interno", a condição de possibilidade de toda subjetividade, experiência, ego e/ou consciência (HILLMAN, 2010, p. 27).

A consideração de Hillman (1988, p. 28) de que "a mente está na imaginação em vez de a imaginação estar na mente", implica que as imagens constituem o próprio movimento da psicodinâmica, isto é, são elas mesmas as configurações da alma, elas são a própria perspectiva que chamamos de realidade. Mesmo nossa subjetividade está calcada nas linhas do imaginal, as imagens não podem ser reduzidas a meras "representações" do mundo, mas antes o substrato poético de nosso ser no mundo.

De acordo com Hillman, uma psicologia das imagens operará uma mudança de locus no interior da própria disciplina psicológica, deslocando-a de uma perspectiva antes fundamentada no logos, isto é, em um tipo de ciência racionalista, causalista, mecanicista e materialista, para então fundamentar no eros, tendo em vista que uma psicologia do imaginário parte primeiro do coração, como o "immagine del cuor de Michelangelo" (HILLMAN, 2010, p. 64). Ao pressupor uma base mitopoética para a psicologia, suas raízes tornam-se o coração, a emoção, o eros e a imaginação, partindo-se da premissa de que "a imaginação não é meramente uma faculdade humana", mas antes a fonte que promove a atividade criativa de imagens da alma (HILLMAN, 1988, p. 29).

A imagem deixa de ser mera representação dos sentidos e torna-se "atividade sui generis da alma" (Idem, p. 29), a imagem não é um mero produto da "arte", mas a própria condição dela, não sendo passível de uma análise empírica, muito menos de ser programada, controlada ou "interpretada", já que as imagens são elas mesmas significativas e expressivas (Idem, p. 31). Em última análise, a imagem não deve ser reduzida a elementos, estruturas básicas limitadas pela consciência, mas antes pensadas como essencialmente poéticas, isto é, atos de criação espontâneas gerando-se a si mesmas a todo o momento (Idem, p. 32)

Se como vimos a imagem da fantasia, em um ato poético/criativo, constantemente gera-se a si mesma, então compreende-se que a própria alma é constituída de uma atividade criadora de poiesis, tal como encontraremos na fenomenologia poética de Heidegger. A alma cria imagens a todo o momento, em outras palavras, o imaginário poético constitui a própria estrutura da experiência, tal como veremos na fenomenologia de Heidegger onde a poiesis será apresentada como um ato de criação do ser, isto é, um modo de expressão das profundezas do ser e a condição de possibilidade "originária" de sua existência (HEIDEGGER, 2007).

Como vemos na fenomenologia de Heidegger, a linguagem poética, do grego poiesis significando o ato de criar, será considerada pelo filósofo alemão como um modo originário de expressão do ser, sendo assim a poética uma perspectiva fenomenológica par excellence (BROOKE, 2009, p. 21-24; SAMUELS, 1989, p. 82; HEIDEGGER, 2007).

Na concepção de Heidegger a linguagem poética (poiesis) é a "habitação da essência do homem" (HEIDEGGER, 2005, p. 38). Neste sentido, há uma diferenciação entre uma linguagem "cotidiana" com seu valor de signo, fonemas, ritmo, estrutura sintática, gramatical e lógica, e a linguagem poética enquanto, nas palavras de Heidegger (p. 28): "advento iluminador-velador do próprio ser". O poeta enquanto praticante da poiesis torna-se o "pastor do ser", assim como o pastor "guarda" as ovelhas, o dizer poético (poiesis) desvelará o ser, habitando entre os divinos e os mortais, os deuses e os homens (Heidegger, 2005, p. 355).

A poesia não é considerada aqui uma expressão abstrata e retórica, muito menos uma mimesis. Pelo contrário, o dizer poético expressa o indizível das coisas, sendo um modo de falar profundo e autêntico sobre a realidade do homem. Neste sentido, a poiesis é um projeto de clarificação do Ser do ente, em outras palavras, ela torna possível a realização do ser o desocultando e o lançando no mundo como forma. Portanto, a poiesis relaciona-se com a verdade do ente, ela é o projeto de abertura do Ser dos entes (HEIDEGGER, 2007, p. 58-59).

Em última análise, a linguagem poética é originária e possibilita o desocultamento do sentido do ser. Em outras palavras, a poiesis está na própria essência da linguagem, sendo que essa última, se considerada apenas a partir de sua função "cotidiana", enquanto linguagem técnica e científica, torna-se "inautêntica". Vemos que essa mesma distinção aparece também em Hillman, na medida em que propõe uma linguagem poética, imaginal e metafórica como condição de possibilidade para acessar as profundezas da alma, em oposição a uma linguagem literal, estritamente lógica e cientificista (Hillman, 2010 HEIDEGGER, 2005).

Portanto, uma psicologia da imagem afasta-se de um tipo de psicologia causalista, empirista e/ou descritivista, adotando em seu lugar um olhar através do "coração" (HILLMAN, 1988, p. 29), isto é, um pensamento do coração, nome de sua obra Pensamento do Coração de 1981, correspondendo também aquilo que Hillman nomeará em outros lugares de "epistemologia do coração" ou "pensamento do sentimento", como um modo singular de acesso as imagens da alma (HILLMAN, 2010, p. 65). A concepção de que a Poesia é ontologicamente fundamental ao ser humano, não apenas para expressar seu ser mas também para dar lhe um sentido e significado, tal como escreve Heidegger (2007), parece ser a base ontológica de uma abordagem que vê a alma como constituída originalmente por um tipo de atividade mito-poética.

 

Considerações Finais

A possível relação da psicologia arquetípica de James Hillman com a fenomenologia não deve se restringir apenas àqueles pontos enfatizados nesse artigo. Entretanto, demarcamos aqui uma possível aproximação com uma perspectiva fenomenológica em James Hillman a partir de dois pontos específicos, sendo eles: (1) O lema central da psicologia arquetípica "ficar com a imagem" (stick to the image), isto é, aquela atenta descritividade das imagens que tem como fim reencontrar a profundidade psicológica do mundo e das coisas, e a possível relação com a noção central à fenomenológica de "voltar às coisas mesmas"; (2) O postulado de uma base mito-poética para a psique, isto é, a concepção de que uma linguagem poética, metafórica e imaginal, é a condição de possibilidade para acessar as profundezas da alma, e a possível relação com o ato criador da poiesis enquanto modo originário de expressão da verdade do ser na fenomenologia de Heidegger.

Se a alma é constituída essencialmente por imagens e perspectivas imagéticas, então a psicologia arquetípica adotará como lema o "ficar com a imagem" (stick to the image), isso porque, ao contrário de ser uma postura interpretativa que buscará desvelar um sentido 'oculto' da alma, ou mesmo definir o que 'é' a imagem substancialmente, o "ficar com a imagem" guarda a intenção de dar total atenção a uma descrição das imagens a partir de seu próprio modo de ser. Essa postura diante das imagens será definida aqui como uma atitude fenomenológica de notitia em Hillman que terá como finalidade a descrição precisa das qualidades psicológicas do fenômeno a partir de uma atenção focada nas imagens a partir de si mesmas, tal qual a noção básica da fenomenologia de "voltar as coisas mesmas" através do "colocar entre parênteses" (epoché) dos juízos e interpretações externos ao fenômeno ele mesmo.

Além disso, a alma, tal como compreendida por Hillman, possui uma base mito-poética, as imagens são o substrato originário da experiência humana. Sendo assim a psique só poderá ser compreendida a partir de uma linguagem igualmente poética, metafórica, imaginal. Será nesse sentido que a poiesis surgirá como a condição par excellence para expressão genuína da profundeza da alma.

A linguagem poética (poiesis) possui seu locus no coração, a imaginne del cuor de Michelangelo, como condição de possibilidade para apreender seu movimento imaginal, o devir da alma. Se apenas uma linguagem poética é capaz de expressar genuinamente as perspectivas imagéticas da alma, revelar a dinâmica psicológica da psique e suas bases arquetípicas, então uma ontologia poética, tal como encontraremos na fenomenologia de Heidegger, torna-se condição de possibilidade para acessar a dinâmica imagética da alma.

 

Referências

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Recebido: 03/08/2022
Revisado: 07/12/2022

 

 

1 Tradução livre.
2 Tradução Livre.

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