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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.3 São Paulo  2022

 

#automutilação: a expressão simbólica da autolesão não suicida

 

#automutilación: la expresión simbólica de la autolesión no suicida

 

 

Felipe Moreira Borges Nascimento FabbriniI; Ivelise FortimII

IPsicólogo Clínico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Aprimorando da Clínica Ana Maria Poppovic. e-mail: felipembnf@hotmail.com
IIDoutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora do curso de Psicologia da PUC-SP. e-mail: ifcampos@pucsp.br

 

 


RESUMO

A autolesão não suicida (ALNS) é um fenômeno de relevância crescente com altas taxas de prevalência em adolescentes e jovens adultos. Como método, foi realizada etnografia virtual em comunidade de autolesão no Facebook de modo a ampliar a compreensão dos aspectos simbólicos relacionados à prática. Em fevereiro de 2021, 133 publicações foram coletadas e divididas em três categorias de análise: autolesão, sofrimento e religião. A autolesão é compreendida como similar ao comportamento compulsivo por meio do qual praticantes buscam uma experiência de transcendência ainda que às custas de dor. Assemelha-se a uma dependência comportamental. O sofrimento descrito aponta processos depressivos e se caracteriza por solidão, dificuldade de expressão de sentimentos e necessidade de manutenção de uma persona funcional no cotidiano. Assim, a comunidade emerge como meio de expressão dos aspectos relegados à sombra no mundo offline.

Palavras-chave: Autolesão, automutilação, ALNS, redes sociais, psicologia analítica.


RESUMEN

La autolesión no suicida (ALNS) es un fenómeno de creciente relevancia con altas tasas de prevalencia en adolescentes y adultos jóvenes. Como método, se realizó una etnografía virtual en una comunidad de autolesiones en Facebook con el fin de ampliar la comprensión de los aspectos simbólicos relacionados con la práctica. En febrero de 2021 se recopilaron 133 publicaciones y se dividieron em tres categorías de análisis: autolesiones, sufrimiento y religión. Se entiende que la autolesión es similar al comportamiento compulsivo por el cual los practicantes buscan una experiencia de trascendencia incluso a expensas del dolor. Se asemeja a una adicción conductual. El sufrimiento descrito apunta a procesos depresivos y se caracteriza por la soledad, la dificultad para expresar los sentimientos y la necesidad de mantener una personalidad funcional en la vida cotidiana. Así, la comunidad surge como medio de expresión de aspectos relegados a la sombra en el mundo offline.

Palabras clave: autolesión, automutilación, ALNS, redes sociales, psicología analítica


 

 

Introdução

A autolesão não suicida (ALNS) pode ser entendida como a destruição intencional do próprio tecido corporal sem intenção suicida e com propósitos não sancionados socialmente em cinco ou mais dias ao longo do último ano (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013). Métodos mais comuns incluem cortes na pele, arranhões, mordidas e queimaduras, além de eventos como bater partes do corpo contra paredes e enfiar objetos pontiagudos em si mesmo (FONSECA et al., 2018; VICTOR et al., 2018). Maior variedade de métodos empregados está positivamente associada a maior severidade na autolesão (AMMERMAN et al., 2020).

A ALNS apresenta maiores taxas em adolescentes e jovens adultos e se inicia tipicamente entre os 14 e os 15 anos de idade (GANDHI et al., 2018). Segundo Plener et al. (2018), em sua revisão sistemática, a prevalência de autolesão em amostras de escolas ao redor do mundo é de aproximadamente 17%, enquanto apenas 5,5% dos adultos mais velhos relatam históricos de ALNS, dado que sugere o progressivo crescimento do fenômeno nas últimas décadas. Em 2020, durante os primeiros meses da pandemia do COVID-19 no Brasil, os números são ainda maiores: em uma amostra de 4.797 adultos, um em cada 10 reportou episódios de autolesão (FARO et al., 2021).

Embora o fenômeno da autolesão seja tipicamente associado ao sexo feminino (FITZGERALD; CURTIS, 2017; FONSECA et al., 2018; PLENER et al., 2018), Klonsky et al. (2014) ressaltam estudos que apontam taxas equivalentes entre homens e mulheres. Tal atribuição da autolesão ao feminino pode se dever à ausência nas pesquisas de critérios de diferenciação entre a ALNS e a autolesão praticada com intento suicida, uma vez que as mulheres apresentam maiores taxas de tentativas de suicídio que os homens (BRASIL, 2021). Outra possível explicação é a equiparação do fenômeno ao cutting - método de autolesão que consiste em infligir danos teciduais através de cortes na pele - visto que as mulheres se cortam com mais frequência enquanto os homens são mais propensos a se baterem ou se queimarem (FITZGERALD; CURTIS, 2017; VICTOR et al., 2018).

Apoiados em estudos da última década, Klonsky et al. (2014) ressaltam que a ALNS apresenta correlação ainda mais forte com o suicídio do que outros fatores já estabelecidos pela literatura, como ansiedade, depressão, impulsividade, transtorno de personalidade borderline e histórico de tentativas - o que coloca esse comportamento como um fator de risco especialmente importante para futuro suicídio. Segundo Andover et al. (2017), poucos tratamentos específicos para a ALNS que não estejam atrelados ao diagnóstico do transtorno de personalidade borderline foram desenvolvidos até o momento e a sua eficácia em pacientes não borderline ainda é limitada. Nesse sentido, devido às peculiaridades próprias do fenômeno e de sua gravidade, o DSM-5 (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013) classificou a ALNS como uma dimensão diagnóstica independente e adicionou-a à sessão III, na categoria de transtornos que necessitam de mais pesquisas e revisão de seus critérios diagnósticos.

 

Expressão simbólica da autolesão

A autolesão pode ser compreendida como um fenômeno psicossomático. De acordo com Ramos (2006), os sintomas que se expressam através do corpo podem ser entendidos como símbolos que permitem atingir as camadas orgânicas profundas inacessíveis à consciência. A autora destaca que o "sintoma orgânico pode corresponder a uma cisão na representação de um complexo/arquétipo em que a parte abstrata/psíquica ficou reprimida" (RAMOS, 2006, p. 78). Desse modo, a conscientização da polaridade abstrata do complexo resulta, portanto, em uma diminuição da expressividade patológica orgânica. No entanto, na medida em que o conflito permanecer inconsciente, os sintomas poderão se repetir de forma compulsiva.

Nessa linha, Rothenberg (2004) argumenta que o aparecimento de sintomas físicos decorre de um impulso de realização da psique no sentido de expressar simbolicamente conteúdos que permanecem inconscientes. Assim, aquilo que não é diretamente conscientizado se manifesta de forma fisiológica e, desse modo, o corpo auxilia o ego a carregar os conteúdos que não podem ser tão facilmente absorvidos. Embora as feridas sejam frequentemente experienciadas de forma repulsiva em virtude de sentimentos de vergonha, nojo ou dor, a autora destaca que a ferida também encerra em si algo de grande valor, pois nelas reside um enorme potencial de transformação: uma joia indispensável para o desenvolvimento psicológico.

Sintomas físicos, em seu sentido mais positivo e metafórico, são como joias no corpo esperando serem descobertas. Eles criam um ímpeto no paciente para realizar o trabalho interno e trazem consigo o ponto central para a cura. O sintoma corporal serve a um propósito bem definido nesse ponto, levando o indivíduo à fonte da doença ou da desordem que a criou e, consequentemente, à cura (ROTHENBERG, 2004, p. 19).

Do mesmo modo, Hollis (1998) entende que os sintomas expressam um desejo de cura. O trabalho psicológico não consistiria, portanto, no fortalecimento da repressão ou na tentativa de eliminação dos sintomas, mas na busca do seu sentido e de sua compreensão. O sofrimento é um requisito necessário para o amadurecimento psicológico e são justamente os estados mais sombrios que fornecem o contexto para a estimulação e obtenção do significado. Assim, a despeito dos ideais de felicidade irrestrita da sociedade ocidental, o autor ressalta a necessidade de se chapinhar no esterco de tempos em tempos com vista à assimilação do sofrimento. Desse modo, os estados sombrios podem ser entendidos como chamados de individuação para a integração de conteúdos inconscientes e a retomada do desenvolvimento psicológico. Caso o indivíduo não consiga enfrentar tal tarefa de compreensão do significado, poderá permanecer preso a um estado de grande sofrimento.

Já Sternudd (2010) propõe que o aspecto visual é crucial para muitos praticantes de autolesão justamente por transformar algo indizível em algo concreto. Assim, se a as lesões consistem em uma representação visível de sentimentos ruins, compreende-se que o próprio processo de cicatrização possa servir de gatilho para a prática de autolesão, visto que a perda das cicatrizes também pode acarretar uma perda do senso de identidade (STERNUDD, 2012).

Especificamente com relação ao fenômeno do cutting, Sternudd (2014) apresenta outras hipóteses. Em oposição às formas curvas - ligadas aos conceitos de caos, eros e feminilidade - das regiões do corpo cortadas, os traços retos simbolizam princípios de ordem, logos e masculinidade. Assim, a demarcação de cortes paralelos na pele poderia ser interpretada justamente como uma tentativa de contenção de sentimentos caóticos por meio da remodelação do corpo com uma expressão formal de ordem. Já a formação de queloides decorrentes do repetido engajamento no cutting corresponderia literal e simbolicamente a uma "segunda pele" com a finalidade de conferir proteção ao indivíduo (STERNUDD, 2010).

A partir de relatos de praticantes de autolesão, Sternudd (2014) destaca a importância do impacto visual do sangue como forma de exteriorização da dor de modo a torná-la visível, como se pode perceber através da fala de um entrevistado: "a autolesão apenas faz com que a dor vire exterior, para que eu possa vê-la e saber o que está me machucando". Também foi possível identificar o sangue como um veículo que transporta tal experiência de sofrimento para fora do corpo, uma vez que a visão do sangue pingando fez com que um entrevistado sentisse o estresse correndo para fora de si através de seu sangue. Baseado em estudos alquímicos, Jung destaca a simbologia do sangue como meio de união do corpo com a alma, como substância capaz de devolver a vida ao corpo "morto" (JUNG, 1990). Nesse sentido, também foram frequentes as declarações de praticantes que se referem à autolesão como a única coisa capaz de fazê-los sentirem vida, como por exemplo o relato de um entrevistado: "o sangue jorra e então eu sei que sou real. Não uma boneca que se move rigidamente. Então eu sou um ser vivo, com sangue nas veias. [...] Nós somos reais, não falsos" (STERNUDD, 2014, p. 22).

Pimentel (2019) destaca a importância da pele como órgão que proporciona contorno ao indivíduo, simultaneamente expondo-o e protegendo-o, estabelecendo limites entre mundo interno e mundo externo. Simbolicamente, a pele cumpre a função de ponte entre corpo e psique. No entanto, devido a dificuldades na relação primal, a autora destaca que indivíduos que promovem modificações corporais extremas ou praticam autolesão permanecem em um estado de indiferenciação entre corpo e psique. Nesse sentido, qualquer tentativa de elaboração simbólica precisa acontecer via corpo e a expressão do conflito deixa de ser simbólica para se tornar concreta. Consequentemente, a libido perde sua função transformadora e fica aprisionada na compulsão à repetição.

Outra importante expressão da autolesão descrita na literatura diz respeito à prática autolesiva como semelhante a um comportamento de dependência. A partir de estudos em comunidades virtuais, percebe-se que depoimentos de praticantes de autolesão, como "É uma luta para eu não fazer isso, mas já se tornou um vício" (ARCOVERDE, 2013, p. 48), "Tem uns três dias que estou me segurando para não ter uma recaída, mas está difícil, só penso nisso, e sei que eventualmente não vou resistir... sempre acontece" (ARCOVERDE, 2013, p. 48) e "Estou a sentir tudo de novo, estava limpa há tanto tempo" (SILVA, BOTTI, 2018, p. 111), indicam que a prática autolesiva é frequentemente expressa como um comportamento compulsivo. Nota-se que as palavras "vício", "recaída" e "limpa" utilizadas pelos praticantes são expressões que se referem tipicamente ao fenômeno de dependência de drogas. A semelhança se dá especialmente com o transtorno de escoriação, caracterizado pelo ato de beliscar, friccionar ou arranhar a pele de forma recorrente resultando em lesões (APA, 2013). Esse transtorno segue, pelo menos de forma parcial, os ciclos de tensão prévia, prazer, gratificação e alívio, culpa, autocensura, escapismo, fissura, tolerância (OLIVEIRA, 2018), que são característicos de dependências.

Zoja (1992) entende o fenômeno de dependência de drogas como resultado da ausência de rituais de iniciação na sociedade contemporânea. Para o autor, a ausência de ritos responsáveis por conferir sentido e demarcar a passagem do jovem ao mundo adulto obstaculiza o renascimento do espírito. Assim, em uma cultura marcada pela ausência de instituições capazes de promover iniciações e pela sacralização do consumo, o uso de drogas emerge como uma das poucas alternativas de transcendência. No entanto, para aqueles que vivenciam uma condição de profunda carência de significado, a necessidade de transcendência atua de forma inconsciente e destrutiva. Desse modo, personifica-se no dependente a imagem arquetípica do herói negativo como forma de obtenção de identidade e papéis definidos na sociedade, ainda que tal condição seja negativamente avaliada pela cultura e resulte em comportamentos autodestrutivos.

Embora ressalte a impossibilidade de se uniformizar todos os diferentes quadros de dependência e considerá-los equivalentes, Oliveira (2004) ressalta que há importantes similaridades entre o fenômeno de dependência de drogas e as ditas dependências comportamentais. Para a autora, impulsividade, busca por sensações fortes, culpa pelos excessos, depressão, desorganização da vida familiar e queda no desempenho no trabalho são traços comuns aos diversos quadros. Nas dependências, Oliveira (2004) argumenta que há uma estagnação do processo de individuação, uma vez que a repetição do comportamento decorre de uma dificuldade de elaboração que mantém o indivíduo indiferenciado, alienado de si mesmo.

Enquanto praticam o comportamento a que se dedicam, perdem o controle, identificam-se com o arquétipo do herói, sem pensar nas consequências de seus atos. Aparece a dificuldade em aceitar limites, em sacrificar e escolher. Assim como o farmacodependente, querem tudo, já, aqui e agora. Possuídos por esses complexos, parece difícil aceitar a condição humana de incompletude e suportar privações (p. 119).

 

Método

Foi realizado estudo do grupo "automutilação" na rede social Facebook de modo a compreender como a ALNS é tratada nessa comunidade virtual. O trabalho foi desenvolvido por meio da Etnografia virtual. Tal método consiste na utilização de meios de comunicação online para se ampliar a compreensão acerca da representação etnográfica de um fenômeno na internet através de conjuntos de dados holísticos, que abrangem cultura, contexto, narrativas e perspectivas internas aliadas à rigorosa ética da etnografia tradicional (JENSEN et al., 2022). Justifica-se a escolha pelo Facebook por este ser uma plataforma que proporciona às pessoas agruparem-se em comunidades, que são de livre acesso a qualquer participante. Já o grupo foi encontrado por meio de pesquisa conduzida na barra de busca do Facebook a partir dos termos "autolesão" e "automutilação" e foi selecionado a partir de quatro critérios: (i) grupo de nacionalidade brasileira e de língua portuguesa; (ii) grupo público e visível; (iii) grupo ativo e com maior número de participantes e postagens diárias; (iv) grupo que propõe o objetivo de fornecer um espaço de reflexão e de apoio aos praticantes de autolesão.

Foram lidas todas as publicações do grupo no mês de fevereiro de 2021. Postagens sem qualquer vinculação com a temática da autolesão, como spams de vagas de emprego e tentativas de phishing, foram excluídas da análise. As publicações e seus respectivos comentários foram arquivados através de capturas de tela. Também foram feitas notas de campo acerca das práticas comunicacionais e das interações estabelecidas no grupo. A observação se deu de forma anônima e não foram estabelecidas interações entre participantes do grupo e pesquisador.

A coleta de dados resultou em 133 publicações selecionadas. As publicações, que incluem textos, imagens e/ou vídeos, foram identificadas como Pn, sendo "n" a enumeração respectiva à ordem da coleta. Já os respectivos comentários foram identificados como PnCx, sendo "x" correspondente à ordem dos comentários em cada publicação.

Os conteúdos selecionados foram distribuídos em categorias de análise de acordo com suas características e analisados a partir do referencial teórico da psicologia analítica. A análise temática foi dividida em três etapas: um momento inicial de identificação de temas ou tópicos que apareceram de maneira recorrente nos dados, sendo comparados por similaridades e diferenças. Depois foram estabelecidas categorias centrais. As categorias foram revisadas pela orientadora da pesquisa, sendo que as poucas divergências foram discutidas em conjunto até se chegar a uma percepção convergente. Foram estabelecidas três categorias centrais: autolesão, sofrimento e religião. A categoria autolesão refere-se às postagens diretamente relacionadas à ALNS e abarca tanto a publicação de imagens e vídeos com comportamento de autolesão quanto comentários e descrições processuais do comportamento autolesivo.

A categoria sofrimento inclui postagens nas quais os usuários descrevem sentimentos dolorosos e desabafam, mas que não estão diretamente relacionados à prática autolesiva. Por fim, a categoria religião inclui publicações e comentários que se propõem a apoiar os membros do grupo a partir de argumentos de cunho religioso católico e evangélico.

 

Resultados e discussão

Autolesão

A partir da análise das publicações do grupo, foi possível identificar que os membros descrevem a prática autolesiva como forma de concretização de um sofrimento emocional, como ilustram os depoimentos: "Ainda dói e está inchado, mas garanto que dói menos que a alma aflita" (P65C50), "As marcas em meus braços contam minha história, revelam os meus traumas..." (P92) e "tenho essas (cicatrizes) e mais as cicatrizes internas q não se curam" (P65C132). Também puderam ser observadas descrições da autolesão como um importante meio de regulação afetiva, como revelam os comentários "Quando eu me corto fica tudo bem com tudo o que eu sinto" (P12C4) e "Eu também fazia isso pra tentar amenisar a dor, mais com o tempo persebi que isso n adiantaria. Não fassa isso minha linda" (P64C26) (sic).

Assim, apesar do alívio imediato propiciado pelos cortes, muitos membros da comunidade apontam a ineficiência da estratégia a longo prazo: "[...] eu confesso, quando vc ta la se cortando é uma sensação maravilhosa, mas depois que vc para, viu que n adiantou em nd, e ver cada corte e fica se perguntando: pq eu fiz isso? [...]" (P55C26) (sic); "Sei muito bem como é, um alívio que a gente sente, mas o pior vem depois [emoticons tristes]" (P74C6). Percebe-se que o bem-estar é efêmero e o sofrimento pode retornar de forma ainda mais intensa, o que contribui para o aprofundamento das lesões, conforme ressalta o comentário: "acho que VC entende, quando se começa n passam de arranhões e depois começam a virar rasgos e VC nem percebe" (P12C14).

Também foi possível constatar que vários membros da comunidade descrevem a autolesão como um comportamento compulsivo. Comentários como "Sei como eh, é muito difícil! E eu não consigo controlar a vontade de fazer isso" (P75C4), "Faz muito tempo que não me corto, mas não tô aguentando mais, a vontade de me cortar é maior do que posso suportar" (P75C12) e "Eu prometi pra meu namorado que não ia mais fazer isso [emoticon triste] so que não resisti a dor da minha alma é insuportável e só assim pra eu me sentir melhor" (P75C23) (sic) são extremamente frequentes. Nesse sentido, os membros do grupo reconhecem o desafio que é permanecer "livre" de autolesão e celebram as conquistas dos demais, como em uma publicação na qual o usuário foi parabenizado ao postar "Uma semana que não me corto" (P4) ou em comentários como "dois anos sem me mutilar [emoticon de coração]" (P66C13) junto a uma foto de um braço livre de lesões. Por outro lado, nem todos conseguem sustentar essa condição: "eu consegui parar, mas tenho recaídas ainda" (P65C20).

Assim, percebe-se no grupo que a autolesão é caracterizada como uma compulsão. Há uma clara sensação de impotência frente aos impulsos autodestrutivos e o alívio e bem-estar promovidos pela prática são passageiros e invariavelmente sucedidos por um retorno à condição de sofrimento, capaz de provocar cortes ainda mais profundos. Os marcos temporais livres de lesões são celebrados e o retorno à prática autolesiva é descrita como "recaída". Nesse sentido, o grupo caracteriza a autolesão como um comportamento de dependência, análogo ao do uso de drogas.

Como destaca Zoja (1992), a dependência de drogas é fruto da ausência de rituais de iniciação na sociedade contemporânea. Atualmente, desde o momento de sua concepção, o indivíduo se vê lançado ao acaso em uma determinada cultura e sociedade que não lhe inspiram nenhum respeito sacral. Consequentemente, não há mais uma trabalhosa passagem à cultura a ser ritualizada responsável por conferir sentido e demarcar as transformações que acompanham o desenvolvimento do indivíduo. No caso dos jovens, para que a transformação seja de fato significativa, é preciso ritualizar a morte da criança para que o adulto possa, enfim, nascer. Nesse sentido, identifica-se nos ritos de iniciação o tema arquetípico Morte-Renascimento.

[...] De um modo geral, a sociedade de hoje já quase não tem condições de oferecer iniciações institucionais. Tais iniciações exigiriam ao mesmo tempo mestres e estruturas formadas durante um longo tempo e dentro de toda uma cultura participante. A iniciação pressupõe que o mero nascimento ponha o homem no mundo em condições insatisfatórias, sem valores ou transcendência, ou antes numa condição apenas vegetativa. O acesso a uma condição superior é obtido com uma morte e uma regeneração simbólica e rituais (ZOJA, 1992, p. 21).

A cultura ocidental, entretanto, não apenas carece de rituais de iniciação, como também exalta sobremaneira valores da positividade, materialidade e consumo ao passo que nivela as diferenças subjetivas. Zoja destaca que tal contexto favorece a emergência de uma necessidade arquetípica de transcender o próprio estado a qualquer preço, mesmo às custas de meios danosos para a saúde física. Assim, principalmente dentre os indivíduos que sofrem com uma condição carente de significado, personifica-se a figura do herói negativo como uma tentativa inconsciente de conseguir uma identidade e papel definidos ainda que negativamente pelos valores correntes, como seria o caso dos dependentes químicos.

O dependente, no entanto, não consegue transcender sua situação e se vê preso em um ciclo vicioso. Na dependência há uma estagnação do processo de desenvolvimento, pois trata-se da repetição de um comportamento em que não há elaboração, apenas anestesiamento (OLIVEIRA, 2004). Se as etapas clássicas dos bem-sucedidos rituais de iniciação consistem em situação a ser transcendida, morte e renascimento, a transformação almejada pelo dependente está fadada ao fracasso, pois subverte a lógica: ao consumir a substância, o indivíduo experiencia um contato com o sagrado que lhe fornece uma breve vivência de renascimento. Tão logo os efeitos cessam, o indivíduo retorna à sua profana condição de sofrimento que, no limite, pode provocar sua morte literal caso não volte a consumir a substância.

A descrição da autolesão pelos participantes assemelha-se a uma dependência comportamental, tal como a descrita por Oliveira (2018) sobre o transtorno de escoriação. Os membros da comunidade descrevem experiências semelhantes, como se pode observar em: "Me corto pra me sentir 'VIVA' [emoticons de coração partido e choro]" (P4C1). Mais do que simplesmente euforia e bem-estar, a autolesão pode fazer com que os praticantes enfim sintam vida, ainda que por breves instantes, ainda que às custas de dor. A exemplo dos achados de Pimentel (2019), percebe-se que a pele e o corpo originais se revelam insuficientes para indivíduos que se autolesionam: há uma clara necessidade de se usar o corpo para sentir vida e o sacrifício necessário para o renascimento não consegue se realizar no campo simbólico, o que demanda o sacrifício concreto do corpo.

Rejeitado pela cultura, o elemento psicológico arquetípico da transcendência propiciada pelos antigos rituais de iniciação retorna, nesses casos de autolesão, de forma inconsciente e destrutiva. Atualmente, a necessidade de transcendência se manifesta principalmente através de fenômenos de grupo nos quais indivíduos com conflitos semelhantes se unem de modo a criar não apenas um espírito comunitário como também aquele necessário clima de grupo místico que exalta e reforça reciprocamente a tentativa de cada um, como aponta Zoja (1992). Em consonância com Pimentel (2019), as lesões no corpo parecem emergir como formas de compartilhar com o outro aquilo que não se consegue suportar sozinho: o sofrimento psíquico parece ser tão grande que o indivíduo precisa dividi-lo com o coletivo para suportá-lo. Entretanto, enquanto não for elaborada e integrada, a necessidade de transcendência, de vivência da totalidade, permanecerá na sombra e assombrará o indivíduo com os sintomas do excesso ou da dependência (OLIVEIRA, 2004).

 

Sofrimento

Foi possível identificar três importantes aspectos do sofrimento compartilhado pelos membros do grupo: solidão, depressão e trauma. A solidão é uma temática que grita na comunidade. O sentimento de desamparo e de não ter com quem contar foi amplamente compartilhado no grupo, seja através de relatos pessoais, poemas ou músicas sobre o tema. Frequentemente, a dor da solidão aparece diretamente vinculada a desilusões amorosas, como se pode perceber no comentário "pq nenhuma menina me quer" (P57C5), no qual o membro explica o motivo de seu sofrimento após um episódio de autolesão.

No entanto, a dificuldade de estabelecimento de vínculos com os pares também é destacada no âmbito da amizade, como se pode perceber em "Nem amigos, nem amor. Eu sou aquela pessoa que todo mundo acha legal, mas ninguém gosta de verdade" (P35). Consequentemente, foi possível identificar que a solidão com frequência desperta no indivíduo o sentimento de que está sozinho por ser indesejável, o que contribui para o desenvolvimento de um senso de valor próprio diminuído conforme se pode observar na publicação "Eu sou um lixo mesmo, todo mundo sempre vai embora da minha vida. Eu cansei, as pessoas que eu amava tanto mentiram pra mim e me destruíram, não sinto mais vontade de viver [emoticons de coração partido e choro]" (P18).

Hollis (1998) representa a temida solidão como um dos "pantanais da alma": estados sombrios e ameaçadores nos quais o indivíduo se vê preso, atolado, incapaz de prosseguir com seu desenvolvimento psicológico. Segundo o autor, o reconhecimento de que ninguém é capaz de nos salvar, de nos proteger da morte ou mesmo de nos distrair suficientemente torna-se inevitável. Assim, mais cedo ou mais tarde somos obrigados a abandonar a fantasia de que há um Outro mágico que irá nos salvar do isolamento existencial.

A solidão é ameaçadora precisamente porque é uma condição irremediavelmente humana. Nem mesmo o mais funcional dos relacionamentos poderia restaurar plenamente o senso de participação mística da vida uterina, a conexão original rompida com o nascimento e que tanto buscamos nos outros. Nesse sentido, Hollis argumenta que o amadurecimento do ser humano depende diretamente de sua capacidade de fazer escolhas, de deixar de culpar os outros ou esperar que eles venham salvá-lo, e de reconhecer a dor da solidão por mais que esteja envolvido em papéis sociais e relacionamentos.

Assim, o autor aponta que mesmo a avassaladora solidão encerra algo de enorme valor: o desenvolvimento de nossas qualidades únicas. É estando a sós, munidos apenas de nossos próprios recursos, que descobrimos quem somos e que rumo tomaremos. Sozinhos, temos a oportunidade de nos desenredar dos outros, de nos diferenciar, de avançar em direção a nosso próprio caminho. Se a impossibilidade de uma plena união com o outro traz sofrimento, ao rejeitarmos o chamado que a solidão convoca sofremos duplamente, pois abdicamos também de nossa jornada mais pessoal, a individuação.

Se adentrarmos a densa floresta sozinhos pelo caminho que ninguém jamais percorreu é algo aterrorizante, ao menos deixamos para trás os pantanais da solidão, onde quanto mais nos debatemos, mais somos tragados pela areia movediça e mais afundamos. Desse modo, o "antídoto para a solidão é abraçá-la. Como na homeopatia, a ferida é curada engolindo-se um pouco da toxina" (HOLLIS, 1998, p. 87). Se conseguirmos abraçar a solidão, descobriremos a solitude e perceberemos que há sempre uma presença interior com a qual se pode dialogar. Assim poderemos atravessar o pantanal da solidão.

Conteúdos compartilhados pelos usuários que fazem referência a sentimentos de profunda tristeza e letargia também vieram à tona no grupo, como apontam as publicações "hoje eu não estou triste não, hoje eu estou muito triste [emoticon de coração partido]" (P26) e "A tristeza é tão grande que te dá tanto sono, mas um sono que você não consegue dormir [emoticons de choro]" (P27). Outro ponto levantado diz respeito ao caráter incessante do sofrimento e à dificuldade de deixar essa condição, como sugerem as postagens "Pfv não me fassam fingir que isso é só uma fase! Porque não é..." (P113) (sic) e "25 anos e minha vida está imóvel. Estou tentando subir a grande colina de esperança por um destino: insônia e crise existencial me resume agora" (P58). Desse modo, percebe-se que tais sentimentos não correspondem a uma flutuação natural do humor, mas a processos depressivos duradouros.

O sofrimento, entretanto, é frequentemente camuflado e vivenciado em segredo, oculto dos demais relacionamentos do indivíduo no cotidiano, como se pode perceber em "Eu me faço de durona, sabe? Mas aqui dentro dói tanto" (P96), publicação que gerou o maior número de reações da categoria. Já na segunda publicação mais reagida, a autora da postagem coloca uma foto de si mesma com a legenda "Aprendi a sorrir mesmo sentindo dor" (P29). Na imagem é possível identificar tanto um sorriso em seu rosto quanto cicatrizes em ambos os braços.

A mesma dinâmica pode ser observada em diversos outros relatos, como "Aprendi a chorar sem lágrimas, a sorrir sem felicidade, a viver sem vontade" (P69), "[...] até quando vou te que mostra um sorriso no rosto mas por dentro to me sentindo mal, até quando vou te que mostra uma pessoa que eu não sou" (P1) (sic) e tantos outros. Percebe-se, portanto, que a dificuldade de expressão emocional aliada à inautenticidade decorrente da grande discrepância entre os aspectos demonstrados pela persona e a dor sentida internamente são componentes importantes do conflito vivenciado por muitos membros do grupo. Nesse sentido, a comunidade virtual emerge, como meio de expressão dos aspectos relegados à sombra no mundo offline.

Hollis (1998) aponta que, como a própria palavra depressão literalmente diz, há algo sendo pressionado para baixo: nossa energia vital. Daí decorrem as sensações de tristeza, cansaço, apatia, anedonia e dor que nos envolvem durante nossa estadia nos pantanais da depressão. Mesmo no caso das chamadas "depressões sorridentes", nas quais conseguimos cumprir suficientemente bem com as demandas do mundo externo, a alma se torna pesada e impede que desfrutemos da jornada. Assim, se os papéis que fomos chamados a representar não estiverem em harmonia com nossa imagem interior, poderemos nos deprimir. A depressão é justamente a forma pela qual a psique expressa que há algo de profundamente errado no modo como a vida está sendo conduzida; é um "protesto da alma que remove autonomamente a energia de nós porque ela não aprova a maneira como o ego a está despendendo" (HOLLIS, 1998, p. 103). A depressão extrai nossa energia e não sairemos do lugar enquanto não a recuperarmos.

Se tivermos deixado para trás uma parte vital de nós mesmos, metaforicamente falando é essencial que voltemos para encontrá-la, trazê-la à superfície, integrá-la, vivê-la. Assim como os xamãs penetram no mundo dos espíritos para recuperar a parte da alma que foi dividida, e trazê-la de volta para reintegrá-la, nós também somos terapeuticamente obrigados a encontrar o que foi deixado para trás e trazê-lo de volta à superfície (p. 98).

Ao tentarmos desesperadamente escalar as paredes do poço escuro que nos encontramos, somos mais cedo ou mais tarde frustrados com uma nova queda. Por outro lado, ao mergulharmos em direção à escuridão que nos habita descobriremos que o poço não é sem fundo. Seremos, sim, obrigados a enfrentar aquilo que mais tememos, mas em compensação poderemos reaver nosso eu esquecido e recuperar nossa energia para, enfim, retornar à superfície. Embora repudiemos esse sombrio pantanal, Hollis argumenta que há grande valor terapêutico na depressão. Se ao invés de tentarmos eliminá-la soubermos respeitá-la, confrontá-la e, a exemplo de Orfeu com sua lira mágica, talvez até encantá-la, poderemos encontrar o maior tesouro de nossa alma: nosso eu autêntico.

O sofrimento decorrente de vivências dolorosas é outro aspecto frequentemente destacado na comunidade. Na publicação "Já sofreram bullying? Pelo o que?" (P83), por exemplo, foi possível identificar violências sofridas pelos membros principalmente em função de aparência física, como "por ser baixinha e gordinha" (P83C8), "por ser magra, alta e espinhas" (P83C35). No entanto, também foi possível identificar questões ligadas à raça: "Muito, pela minha cor, pelo cabelo" (P83C31) e "[...] soltou que eu pareço o macaco da passatempo... dei risada, porém senti" (P83C32); à orientação sexual: "por ser bi e meu jeito de ser" (P83C5); e à saúde mental: "por ser magra e ter depressão" [emoticons de tristeza e coração partido] (P83C3). Já na publicação "Desafio você a escrever as palavras mais dolorosas que já falaram pra você" (P13), foi possível constatar uma série de vivências traumáticas relacionadas à experiência com os pais, como "Eu tentei te abortar, mas nem pro capeta você serve" (P13C28) e "Você não serve pra nada seu bicho do mato, por isso te dei embora quando você nasceu" (P13C2).

Assim, também é possível identificar como determinantes importantes do sofrimento dos membros da comunidade os atravessamentos do patriarcado que incidem na cultura através de manifestações machistas, racistas e misóginas, que inibem a "alteridade", a expressividade emocional, a demonstração de fraqueza e, em última análise, o feminino. Aliada aos ideais de produtividade, consumo e felicidade irrestrita do capitalismo, a depressão pode ser considerada em si uma manifestação da sombra de nossa cultura (HOLLIS, 1998). A tristeza, a anedonia, a letargia e a baixa autoestima emergiriam como a compensação necessária.

Para os indivíduos que sofreram na infância tantas violências, não é raro a internalização de tais circunstâncias em um senso diminuído de eu. Nesse sentido, Hollis aponta que a tarefa implícita nesse pantanal é discernir a diferença entre o que nos aconteceu no passado e quem nós somos no presente. Tornar-se capaz de dizer "eu não sou o que me aconteceu; eu sou o que escolhi ser" é uma condição necessária para o desenvolvimento psicológico (HOLLIS, 1998, p. 95).

 

Religião

Destaca-se a atuação de organizações religiosas na comunidade com uma série de postagens direcionando os usuários para a participação em projetos da Igreja. Frente às dificuldades compartilhadas pelos membros da comunidade, são frequentes as mensagens que buscam oferecer conforto através da vinculação à Igreja ou da crença de que tudo será resolvido pela fé em Deus, como se pode observar em "Não pensa nisso linda. Jesus TE Ama sua Alma é muito preciosa pra Deus... Tenha fé é só uma fase tudo vai passa" (P111C16) (sic) e "Vai pra igreja aceitar Jesus, eu tenho certeza que ele resolverá seus problemas" (P111C20). Há de se ressaltar que o último comentário provocou três reações de risada.

Especificamente em relação à ideação suicida, os comentários religiosos adquirem ainda mais relevância. Em resposta à publicação "Existe forma de cometer suicídio sem dor?" (P100), foi possível identificar comentários como "existe siim... Vc vai pra igreja e se batiza, aí tu morrer pro mundo e renasce pra Cristo [...]" (P100C36) (sic). Já na publicação "Quais remédios tomados juntos provocam suicídio?" (P111), a mesma dinâmica pôde ser observada através do comentário "O remédio se chama eucaristia, vc morre pra o mundo é nasci pra Deus!" (P111C14) (sic).

Percebe-se, desse modo, que os meios de superação de uma condição de intenso sofrimento descritos nos relatos de diversos usuários apontam para o mesmo padrão arquetípico de morte-renascimento subjacente à dependência da prática autolesiva. Nesse sentido, se o processo de dependência consiste em uma tentativa falha de renascimento do espírito e se a ideação suicida advém de um desesperado desejo de transformação instantânea, os comentários P100C36 e P111C14 sugerem que a religião é uma via possível para se vivenciar uma experiência bem-sucedida de transformação e transcendência.

No entanto, a predominância de mensagens que apontam o caminho da salvação por via da religião gera desconfiança por parte de diversos usuários. Como exemplo, é possível destacar o questionamento "se libertou e porque está no grupo? Estás curada? Não tomas mais nenhum medicamento?" (P111C45), no qual se evidencia o ceticismo dos membros frente a relatos de superação pela fé. Até mesmo usuários que acreditam em Deus chegam a demonstrar desconforto com o excesso de mensagens dessa natureza, como evidenciam os comentários: "Acredito em Deus, mas meu limite de sofrimento deu" (P111C38), "Quantas vezes no meu quarto implorei por ajuda, pedi que ao menos me fizesse dormir, orei e orei com todas as forças que eu tinha ali" (P111C39), "E não tive resultado" (P111C40).

Percebe-se, portanto, que discussões sobre crenças são frequentes e polarizam opiniões no grupo. Percebe-se que os próprios membros reconhecem a carência de outras formas de apoio e tipos de intervenção. Assim, se por um lado as religiões cristãs podem propiciar legítimas experiências de transcendência a determinados indivíduos, por outro, não se pode afirmar que o caminho da fé cristã se configura como uma possibilidade de desenvolvimento psicológico para todos. Sobre a iniciação promovida pelo cristianismo, Zoja (1992) afirma:

Sem dúvida, não se pode dizer que o cristianismo careça de revelação, de um modelo que sirva de guia para o homem. Nem que falte ao cristianismo a intenção de superar o homem natural e, a partir da sua morte, fazer renascer o homem consagrado. Mas esta consagração é essencializada, absolutizada, aberta a todos e igual para todos. Não há diferentes caminhos: eles são tantos quantos são os homens e ao mesmo tempo um só, aquele que foi aberto por Deus. Os muitos ritos de passagem são praticamente substituídos pelo batismo. Não há diversas verdades a revelar, mas sim o Verbo. Simplificada ao máximo a passagem, a iniciação está aberta a todos e a ninguém (p. 118).

Em uma sociedade carente de rituais na qual os jovens sofrem pela ausência de papéis definidos e de significado, o cristianismo assume de forma hegemônica a tarefa de iniciar os indivíduos em cada nova etapa da vida. No entanto, a própria religião pode ganhar contornos massificadores na medida em que a preocupação com a apreensão dos símbolos é frequentemente preterida pela teatralização das pregações de modo a angariar mais seguidores. Assim, em vez de fomentar o desenvolvimento psicológico no âmbito espiritual, a repetição mecânica e irrefletida da doutrina pode tanto conduzir aqueles que a rejeitam em direção ao desenvolvimento de uma identidade negativa dependente, como também isentar os fiéis mais fervorosos da responsabilidade de zelar pela própria vida na medida em que essa se encontra nas mãos de Deus.

 

Considerações finais

A pesquisa teve como objetivo compreender a partir da psicologia analítica como o fenômeno da ALNS se expressa em uma comunidade virtual. Nesse sentido, foi possível identificar que a autolesão é descrita como um comportamento compulsivo com características de dependência por meio do qual praticantes buscam uma experiência de transcendência ainda que às custas de dor e sofrimento.

Também foi possível identificar que o sofrimento descrito pelos membros faz referência a processos depressivos duradouros e se caracteriza por grande solidão, vivências de eventos traumáticos, dificuldade de expressão de sentimentos e necessidade de manutenção de uma persona funcional no cotidiano. Nesse sentido, pode-se pensar no grupo como meio de expressão dos aspectos relegados à sombra no mundo offline e da depressão como um aspecto sombrio compensatório de uma sociedade que prima pela produtividade e pela felicidade irrestrita.

Por fim, percebe-se que há um predomínio de organizações religiosas oferecendo apoio aos membros, o que gera controvérsias na comunidade. O sofrimento compartilhado pelos membros da comunidade é bastante significativo e, embora seja necessária, a remoção de páginas com conteúdos nocivos, por si só, é insuficiente para fomentar processos de recuperação. Assim, dada a baixa procura de praticantes de autolesão por profissionais da saúde, faz-se necessário o desenvolvimento de novas estratégias de intervenção e cuidados em saúde mental, de modo a acessar o ambiente online e promover maior aproximação entre usuários e serviços de saúde.

 

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Recebido: 06/07/2022
Revisado: 03/12/2022

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