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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. v.18 n.1 Rio de Janeiro  2006

 

SEÇÃO LIVRE

 

De mãe para filha: a transmissão familiar em questão

 

From mother to daughter: the familiar transmission in question

 

 

Teresa Cristina CarreteiroI; Letícia de Luna FreireII

IPsicanalista, Doutora em Psicologia Social Clínica pela Universidade de Paris 7, Pós-Doutorado em Sociologia Clínica pela Universidade de Paris 7, Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFF, Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, Bolsista de Produtividade do CNPq
IIMestre em Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Neste artigo, estudamos um caso de transmissão familiar, tomando como analisador uma carta de uma mãe para a sua filha, encontrada logo após o falecimento daquela. Nossa hipótese é que esta carta adquire valor de objeto-testemunho privilegiado no processo de transmissão da herança (material, afetiva e simbólica). Após desenvolvermos uma breve discussão teórica sobre a questão da herança, apresentamos as condições em que conhecemos a filha, seu contexto familiar e habitacional, a partir da ameaça de remoção de sua casa pela prefeitura em função de uma intervenção urbana na favela onde morava, investigando em seguida os legados familiares presentes na carta. Focalizamos em especial a posição que o Estado assumiu no processo de transmissão da herança patrimonial, analisando as possíveis repercussões sobre a dinâmica familiar. Por fim, pontuamos a inseparabilidade entre as perspectivas psíquica e social na investigação das transmissões familiares.

Palavras-chave: transmissão familiar, contexto social, herança


ABSTRACT

In this article, we study a case of family succession through the analysis of a letter from a mother to her daughter, found after the mother's death. Our hypothesis is that this letter has a privileged value of testimony-object in the process of family succession (material, affective and symbolic). After developing a theoretical discussion about the issue of inheritance, we present the conditions into which we met the daughter, her living and family environments in the moment of the removal of her house on account of a urban intervention by the city hall in the slum where she lives. We then investigate the family's inheritance, theme of the letter. A special focus is given on the position that the State assumed in the process of the patrimonial heritage, analyzing its possible effects in the family relationships and dynamics. Finally, we stress the impossibility to separate psychic and social perspectives in the study of families' successions.

Keywords: family succession, social context, inheritance


 

 

A transmissão familiar é um tema bastante estudado, tanto por psicólogos e psicanalistas de família (ver Dordier, 2000)1, quanto por sociólogos (ver Segalen, 2002). As transmissões não ocorrem unicamente em momentos privilegiados, mas estão presentes durante todo o processo de vida dos membros de uma família. Elas são fruto de um constante trabalho interpsíquico e intrapsíquico familiar e transgeracional, relacionado às condições sócio-históricas, o que alguns psicanalistas familiares denominam aspectos transubjetivos das configurações vinculares (Kaës, 1993; Tozatto, 2004).

Em outro texto (Carreteiro, 1993a), afirmamos que as transmissões familiares interferem ao mesmo tempo em dois tipos de herança: na herança familiar, inscrevendo o sujeito na posição de filho e membro de uma família, e na herança social, inscrevendo o sujeito na posição de cidadão. Consideramos importante ter em perspectiva estas duas posições, pois elas comparecem sempre de forma articulada.

As heranças são modeladas constantemente pelo dinamismo do psiquismo e da sociedade. Não obstante, na dimensão inconsciente as transmissões podem inserir aspectos de não-atualização. Por conter conteúdos que estão sob a ação do recalque, não podem ser incluídas no dinamismo psíquico, favorecendo a produção de segredos e traumas familiares. Estes aspectos são melhor discutidos por Abraham e Torok (1995) através do conceito de cripta. Ao serem impedidas de adquirir significados diversos ao longo da trajetória de vida dos membros familiares, as transmissões geracionais então se congelam.

As heranças familiares e sociais com seus dinamismos e/ou zonas de congelamento vão atuar em diferentes inscrições subjetivas e sociais e interferir no modo de as gerações parentais legarem suas heranças conscientes e inconscientes (Magalhães e Féres-Carneiro, 2005; Segalen, 2002). As transmissões poderão favorecer a configuração de resoluções criativas ou repetitivas na transformação das heranças.

Embora as transmissões ocorram constantemente, existem ocasiões privilegiadas nas quais elas adquirem um especial valor simbólico. Geralmente são as situações onde há um falecimento, um nascimento ou momentos que marcam uma mudança na ordem da filiação. Estes acontecimentos vão interferir na reconstrução da memória familiar e na de seus membros. A memória familiar será então modelada pelos recursos psíquicos de que dispõem os membros familiares, articulada aos suportes afetivos, sociais e às condições concretas em que ocorrem os acontecimentos de passagem. Este segundo aspecto se relaciona às concepções de Halbwachs (1997), que enfatiza a fabricação da memória em função do contexto presente.

É um destes momentos de passagem que se destaca do cenário familiar que evocaremos ao longo deste texto, ao discutirmos uma carta escrita por uma mãe para sua filha — aqui chamada Joana — bem como as heranças que lhe são associadas e suas conseqüências.

 

O CASO DE JOANA E A QUESTÃO DAS HERANÇAS

Conhecemos Joana em julho de 2004, no decorrer do trabalho de campo desenvolvido em Acari, localidade da Zona Norte do Rio de Janeiro, por ocasião da pesquisa de mestrado de Freire (2005). Nessa pesquisa, a autora acompanhou e analisou os efeitos da intervenção do Programa Favela-Bairro nas favelas vizinhas de Parque Acari, Vila Rica de Irajá e Vila Esperança durante os anos de 2003 e 2004. Considerado hoje uma das mais importantes ações empreendidas pela prefeitura no âmbito da política habitacional, este programa tem como objetivo integrar as favelas à cidade, dotando-as de infra-estrutura urbana, serviços, equipamentos públicos e políticas sociais2.

Em julho de 2003, a favela de Parque Acari foi "tomada" por engenheiros, arquitetos, operários e máquinas, anunciando o começo da intervenção e despertando nos moradores sentimentos que oscilavam entre a ansiedade e a apreensão diante do que estava por vir. Se, por um lado, o início da realização das obras afastava as desconfianças dos moradores frente à implantação do programa e às ações do poder público na localidade, por outro reativava o antigo fantasma da remoção, deixando-os apreensivos diante da possibilidade de terem suas casas removidas para viabilizar a construção de algum dos equipamentos públicos previstos na comunidade.

Joana foi um dos moradores que acabou tendo sua vida entrecortada de forma incisiva pela intervenção, tanto do ponto de vista habitacional quanto familiar, como narraremos em seguida, já que o Programa Favela-Bairro propôs a remoção de sua casa e a de seus vizinhos, dentre os quais a sua tia.

Esbelta e independente, Joana tinha 36 anos e criava sozinha dois filhos — de 16 e 1 ano de idade —, frutos de duas uniões desfeitas, trabalhando como cabeleireira num salão de beleza próximo à favela. Na comunidade, tinha a "fama de valentona e durona", segundo ela mesma nos dizia, reportando-se à sua recusa a levar desaforo para casa. Apesar de ser nascida e criada em Acari, Joana relatava que nunca se identificou com a favela e seus moradores. Seguindo o ditado que sua mãe sempre lhe repetia — "quem anda com porcos, farelo come" —, evitava ter qualquer tipo de relacionamento com pessoas ligadas a atividades criminosas ou mesmo se envolver afetivamente com outros moradores, de modo que sempre se sentiu ali como "um peixe fora d'água".

No momento em que a conhecemos, Joana residia em uma casa de fundos na principal rua de Parque Acari, considerada no imaginário local a "zona sul" da localidade. Esta área dispunha de melhor infra-estrutura, um comércio bastante diversificado e uma grande circulação de pessoas durante todo o dia. Ao lado de sua casa, entulhos de concreto traziam à memória as marcas do que até bem pouco tempo havia sido a casa da sua tia, que aqui chamaremos de dona Guiomar, uma senhora de uns 70 anos que vivia ali com seu único filho.

Segundo Joana, sua tia foi quem a "adotou"após a morte de sua mãe, em agosto de 2000, decorrente de um acidente doméstico. Além disso, era ela quem cuidava de seu filho menor enquanto estava trabalhando. Esta estratégia familiar ficava cada vez mais difícil de ser mantida após a remoção da casa de dona Guiomar e sua mudança para um bairro mais distante.

Focalizaremos doravante o percurso de Joana face às intervenções no tecido urbano ocorridas na comunidade. Logo no primeiro contato com Joana, percebemos que a entrada da sua residência já estava marcada com as iniciais SMH (de Secretaria Municipal de Habitação), seguidas de um número — inscrição que sinalizava o mesmo destino para sua casa e prenunciava-lhe um futuro ainda incerto. Receptiva à nossa presença, contou-nos que os técnicos do programa a tinham procurado para informar que o terreno onde estava situada a sua casa e a de outros moradores teria que ser desapropriado para viabilizar a construção de uma creche e uma praça no local, o que a deixou "revoltada", uma vez que vinha realizando pequenas reformas em sua residência com muito custo há mais de um ano.

A casa de Joana era a única que ainda permanecia erguida naquela área, ilhada por entulhos e poeira do que havia restado das construções vizinhas. Há vários meses vinha negociando com a prefeitura o valor de sua indenização, sem chegar a um acordo3. Para Joana, o valor oferecido pela prefeitura era sempre muito aquém do que considerava valer sua casa, diante dos investimentos em obras e reformas que havia feito.

Na verdade, conforme fomos conhecendo a sua história e acompanhando o processo pelo qual estava passando, percebemos que, para além da qualidade da construção e de seu estado de conservação, o valor daquela casa seria sempre impagável para Joana, uma vez que o que estava em questão ali não era um valor apenas material, mas também afetivo e simbólico, que não seria suprimido pelo aporte financeiro. A casa fazia parte de uma herança que lhe havia sido deixada por sua mãe, de modo que sua destruição significava ferir este legado e as prescrições que sua mãe lhe havia indicado sobre os cuidados com aquele bem. Este aspecto será mais bem esclarecido pela análise que desenvolveremos adiante.

 

A CARTA COMO OBJETO DE TRANSMISSÃO FAMILIAR

A casa em que Joana morava foi erguida por sua mãe com muito empenho e sacrifício ao longo de vários anos. Morar lá significava se apropriar do "sonho de sua mãe", com quem Joana dizia ter uma relação não apenas de parentesco, mas de sincera e sólida amizade. Embora dissesse nunca ter gostado de morar na favela, afirmava emocionada que "a presença da mãe estava em cada canto da casa". Assim, a casa representava um contato vivo com ela. Cuidando com afeto daquele bem herdado, perpetuava a presença materna.

Durante o ano de 2000, sua mãe, que aqui chamaremos de Maria, vinha sofrendo seguidas crises de pressão alta, que a deixavam fragilizada e mobilizavam a atenção da família. Entretanto, não foi seu estado de saúde instável que a levou à morte, já que esta resultou de complicações de um tombo em sua própria casa. Alguns dias após seu falecimento, Joana encontrou uma carta escrita por sua mãe, que nos impressionou tanto quanto a ela pelo fato de simular uma despedida. Quando nos mostrou a carta redigida numa folha de caderno, Joana a havia plastificado, guardando-a com todo o zelo de quem guarda algo precioso, ou melhor, um objeto do legado familiar que deve ser apreciado e preservado pelas próximas gerações. Mesmo sem data, o conteúdo da carta nos faz pressupor que Maria a tenha escrito poucos meses antes de sua morte.

Mantendo a forma original no sentido de preservar a espontaneidade da escrita, reproduzimos a seguir o conteúdo da carta4 que será objeto de nossa análise:

Joana, eu tenho passado mal a noite. Se derrepente eu faltar saiba que eu te amo muito e me "preucupo" com você e o Gustavo [filho mais velho de Joana] o Paulo [irmão de Joana] não deu sinal de vida sexta-feira santa meu aniversário, nem sinal. Olha, este barraco pertence a você e ao Gustavo [filho de Joana], termine a obra e venha morar aqui por favor. Olhe a minha irmã [tia Guiomar], seja paciente com ela, seja uma mãe mais presente na vida do Gustavo que vocês se rendam aos pés de Deus que só ele pode te ajudar. Reviste todas as bolsas, tem fotografias, tem receitas de "culinária" tem "carnêt" que comprova que tudo está pago. Me despeço te abençoando a você e ao meu neto Gustavo. Em nome de Jesus o nosso amado Salvador. 'Amem'. (Sic)

Esta carta representa um dos momentos de passagem a que nos referimos anteriormente e tem um peso simbólico considerável na questão da transmissão familiar. De modo geral, podemos dizer que ela tem um valor testamentário que intercede em várias dimensões.

 

EXPRESSÃO DOS SENTMENTOS E DESEJOS

Certamente, um primeiro ponto que nos chama a atenção na carta é o fato de Maria prenunciar a proximidade de sua morte, deixando registrados, por escrito, os seus últimos desejos. Na carta, expressa o que lhe parecia ser mais importante a ser resguardado de sua vida, através da exposição de seus sentimentos em relação à sua família, dos pedidos e conselhos para sua filha.

É como se Maria dimensionasse com sua morte as lacunas que iria deixar na vida das pessoas da família com quem convivia e também as lacunas que lhe foram deixadas pelo filho Paulo. Desse modo, a carta registra um momento de desigualdade entre os dois filhos frente ao seu reconhecimento e amor na condição de mãe. Enquanto Joana é reconhecida como a filha que está sempre presente e retribui a atenção e cuidados dispensados, Paulo aparece como o filho ausente e ingrato, que a deixou ressentida por não ter comparecido no seu aniversário, num dia santo — data especial em que Maria gostava de comemorar com toda a família reunida.

Assim, a carta testemunha a definição e distinção dos lugares ocupados pelos dois filhos naquele momento de sua vida, refletindo-se na distribuição de seus bens e de seu amor. Maria também mostra um grande interesse pelo neto, Gustavo, pensa em protegê-lo materialmente legando a casa a Joana e a ele; pede que a filha seja mais presente na vida do filho. Pode-se dizer que a carta é implicitamente encaminhada também ao neto. A carta se projeta para as duas gerações que a sucedem, a de Joana e a de Gustavo.

 

OBJETO BIOGRÁFICO E INDICADOR AFETIVO

A partir do momento em que Joana encontrou a carta, esta se tornou imediatamente um objeto biográfico (Morin, 1969, apud Bosi, 2003), representando uma experiência vivida insubstituível que envelheceria com ela, dando-lhe uma sensação de continuidade. Ao mesmo tempo que imortalizava para Joana a figura de Maria, simbolizava parte da própria história de vida da filha, contando a respeito da relação afetuosa que tinha com esta.

A carta é uma prova real que referenda Joana como sendo objeto do amor da mãe, que, com medo de faltar com sua filha, lhe diz: "saiba que eu te amo muito e me preucupo com você e o Gustavo". Assim, ela lhe dá o lugar de herdeira do afeto, dos bens, das indicações sobre o futuro. Mas Joana faz também uma aliança com este desejo materno, mantendo a exclusão do irmão. Sabemos que há um ganho psíquico de se ver como a "filha eleita", o que pensamos que para se sustentar deve se contrapor ao "filho deserdado" ou "filho ingrato". Estas duas figuras estão presentes na organização familiar expressa na carta.

A partir desse reconhecimento pela mãe, a carta passou a funcionar para Joana como uma espécie de bússola, guiando suas ações e validando suas decisões futuras. Buscando realizar os desejos da mãe, logo após sua morte Joana mudou-se para o que Maria denomina "barraco" e começou aos poucos a reformá-lo, transformando-o assim em sua "casa". Enquanto nela viveu, Joana casou-se, morou com seu segundo marido, engravidou, separou-se e vinha criando sozinha os dois filhos.

 

TRANSMISSÃO PATRIMONIAL?

Um outro ponto importante da carta que mantém relação com o anterior diz respeito ao seu caráter de substituto de prova jurídica. Ao dizer claramente que, após sua morte, seu barraco deveria pertencer a Joana e a seu neto, explicitando seu desejo de que ela terminasse a obra e fizesse dele sua moradia, Maria conferia à sua carta o estatuto de testamento. Com isso, a carta passa a ser apropriada por Joana como suposta prova jurídica de sua propriedade sobre a casa, especialmente em relação aos interesses de seu irmão, que, durante a intervenção urbana na comunidade, reivindicava o direito de receber metade do valor da indenização paga pela prefeitura.

Quando seu irmão questionou-a sobre a propriedade da casa, Joana exibiu-lhe a carta de sua mãe com a segurança de como se estivesse com um documento em mãos que provava que a casa lhe pertencia, função que, de certa maneira, a carta também cumpriria para Paulo, consolidando assim o cenário que havíamos indicado anteriormente. Sentindo-se deserdado, Paulo, tendo na carta a prova escrita por próprio punho pela mãe, não teve coragem de insistir na sua reivindicação, afastando-se, por conseguinte, também de sua irmã.

É interessante examinar este fato, pois o que se tem verificado nas favelas em geral é que os moradores não têm o título de propriedade do imóvel, por se tratar de ocupações irregulares. Quando os moradores querem se desfazer da casa, a transação entre o novo e o antigo ocupante é, muitas vezes, intermediada pela Associação de Moradores, que recolhe a assinatura de testemunhas e emite a certificação do ato. O documento obtido passa a ser então o representante do título de propriedade (Valladares, 1978).

Retornando ao caso abordado, poder-se-ia perguntar se a carta contendo o desejo de Maria de doar a casa unicamente à filha e ao neto não estaria ferindo o Código Civil5, visto que atestava estar deserdando um filho, o que, do ponto de vista jurídico, não seria possível. Mas o que vale ressaltar, nestas condições, é que a situação é praticada dentro e fora da lei. Por um lado, segue-se em parte a Constituição Federal quanto a garantir o direito de todo cidadão à moradia, de maneira que Joana pôde optar entre receber outra casa na comunidade ou o valor equivalente à anterior. Por outro lado, o aspecto legal que trata da propriedade da residência, frente ao falecimento da antiga moradora, não é considerado pelo poder público, que ignora os dispositivos legais que a carta de Maria assume como valor de testamento.

No caso analisado, estas questões de herança são totalmente desprezadas pela prefeitura, que trata de negociar o valor da indenização com quem se intitula o atual proprietário da casa. Dessa forma, os conflitos que emergem dessa situação de remoção passam a ser considerados problemas para se resolver no âmbito familiar, não fazendo interceder também o plano jurídico. Na verdade, nem a prefeitura nem a família de Joana tratam a questão da propriedade da casa como podendo ter um amparo jurídico, procuram resolvê-la no âmbito das negociações pessoais e familiares.

Há uma negação da lei enquanto figura simbólica. É a situação atual de moradia que passa a responder pela verdade do usufruto do bem. Se assumirmos este fato como um analisador, podemos perguntar se o projeto implícito do programa de urbanização não estaria ignorando o passado dos moradores, apagando o processo de favelização que aquela localidade vivia. O importante é fazer prevalecer um novo imaginário, embutido na proposta de "transformar a favela em bairro"6. Nesta perspectiva, a residência é considerada unicamente a partir da situação atual de moradia. No caso analisado, a casa não teve valor de patrimônio familiar.

Há um paradoxo bastante acentuado na forma de o poder público tratar esta situação. A casa se inscreve na ordem da herança para Joana e Gustavo, como legado afetivo e como patrimônio econômico, mas a lei na sua vertente jurídica não funciona para proteger também o outro herdeiro, Paulo. É como se ele fosse duplamente banido da herança afetiva e material.

Em "O mal-estar na civilização" (1930), Freud escreve páginas bastante esclarecedoras sobre a questão da lei. Ele nos mostra como esta vai interferir como um terceiro, buscando construir um processo que não seja pautado unicamente no desejo de Um, pois este pode ser agressivo ou mortífero. Neste aspecto, a lei pode ser também representada como a figura de proteção, visto que, ao criar uma distância no campo do desejo entre dois sujeitos, cria também um envelope protetor para todos os que estão envolvidos, funcionando como um terceiro elemento. É neste quadro que Freud situa a criação da Justiça como figura institucional, que, podemos dizer, deveria estar atenta aos cidadãos. A análise desta situação mostra como a herança faz entremear as suas duas dimensões: familiar e social.

Embora não tenhamos neste artigo a intenção de aprofundar esta análise, podemos levantar algumas hipóteses. Ao não ser amparada por critérios jurídicos, a questão da herança da casa de Maria não estaria criando também deslizes na dinâmica familiar e subjetiva? Isto não poderia sinalizar uma certa ilusão de Maria de ser o único investimento do amor materno?

A literatura tem mostrado, em contextos marcados por exclusão social, a evidência de famílias matrifocais (Sarti, 1996), chefiadas exclusivamente por mulheres. Pode-se perguntar se esta situação também não é indiretamente enfatizada, no caso estudado, pelo Estado. Parece-nos que aqui ela é atualizada no legado do patrimônio feito por Maria. A questão da família matrifocal é também observada na linhagem de Maria e na de Joana, que, como dissemos, cria sozinha seus dois filhos.

 

OUTRAS HERANÇAS…

Além da casa, Maria afirmava em sua carta estar deixando também para a filha suas fotografias, suas receitas culinárias e os carnês quitados. Autorizando Joana a "revistar todas as bolsas" para localizá-los, deixa transparecer o grau de intimidade e confiança da relação que mantinha com a sua filha.

Em primeiro lugar, Maria se refere às suas fotografias. Segundo Mortain (2002: 191), as fotos de família são "objetos sem valor de mercado, mas que têm um valor afetivo e de memória". Estes testemunhos concretos de recordações familiares são depositados nas mãos de Joana para serem cuidados e perpetuados.

As receitas, ao serem citadas na carta, nos fazem perguntar se elas não têm o valor de um bem significativo que deve ser legado. Pode-se indagar o lugar que têm receitas culinárias para uma pessoa que trabalhou como doméstica. Elas fizeram parte de suas atividades de trabalho, devem ter tido um lugar privilegiado no seu cenário laboral. Mas elas representam também um legado feminino.

O último objeto citado por Maria são os carnês que comprovam que "tudo está pago". Para compreender este item deve-se pensar no contexto no qual vivia Maria. Para os moradores de favelas, o ato de guardar os carnês dos objetos comprados a prazo equivale não apenas a uma prova documental, mas também a uma prova da conduta moral (Carreteiro, 1993b). Isto é, confirma que os objetos foram honestamente adquiridos e não conseguidos de forma espúria. Por ocasiões de investidas policiais, a origem dos bens pode ser colocada em dúvida, visto que a polícia atua freqüentemente nestes espaços partindo do princípio de que todos são suspeitos até que se prove o contrário. A comprovação remete, assim, ao valor de honestidade do proprietário dos bens.

Ao afirmar que os carnês estavam quitados, Maria dizia não estar deixando dívidas, provavelmente não apenas para os bens serem utilizados por Joana caso houvesse necessidade, mas também para preservar, mesmo após a sua morte, a integridade de sua imagem como "trabalhadora" e "boa pagadora".

Em grande parte do texto da carta, perpassa ainda fortemente o legado religioso. Maria, ao se mostrar amargurada com o filho, queixa-se por ele não a ter procurado na sexta-feira santa, seu aniversário. Este é o primeiro sinal da importância da religião: ter a família reunida na data comemorada pela Igreja Católica como a do sacrifício e morte. No meio da carta, Maria aconselha ainda a filha e o neto a se renderem aos pés de Deus, acrescentando que "só ele pode ajudar". Poder-se-ia indagar se essa afirmação não estaria evidenciando, além da crença religiosa de Maria, a condição de desamparo social vivida por sua família, impossibilitando-lhe contar com a ajuda de terceiros, fossem eles pessoas físicas ou jurídicas, incluindo aqui as instituições de representação do Estado.

A despedida é também feita sob a evocação religiosa. Ela abençoa a filha e o neto — "em nome de Jesus o nosso amado Salvador" — e despede-se como se finalizasse uma oração — "Amem". Estas palavras finais testemunham a fé e o sentimento de pertencer também à família religiosa. Ao evocar com convicção que Jesus salva, podemos supor que, ao se despedir, Maria estivesse sentindo-se salva. O conjunto desta análise aponta a evidência da religião como uma herança que Maria também quer deixar para Joana e Gustavo, supondo legar uma vida dirigida pelos valores cristãos.

 

AS HERANÇAS CONCLUEM?

Nosso propósito, ao enfocar o caso de Joana, foi estudar um momento sensível da transmissão familiar, com o falecimento de um de seus membros, e destacar o peso que teve uma carta na re-atualização dessa transmissão. Quisemos apontar na análise a importância de se considerar a perspectiva psíquica e social e a íntima relação entre ambas.

Pensamos que a situação ocorrida com Joana, a partir das transformações efetivas trazidas pelo Programa Favela-Bairro, levou sua família a revisitar a questão da herança. A incidência desta intervenção no contexto habitacional e familiar a fez trazer à memória o legado familiar. Sabemos que as heranças não se concluem, mas atuam durante toda a vida. O que é transmitido é recebido e transformado, é modelado pelo processo de historialização e temporalização do sujeito (Kaës, 1993; Magalhães e Féres-Carneiro, 2005).

O processo vivido pela família retomou em múltiplas dimensões a questão da herança. Quais serão as formas que esta ainda vai adquirir para Joana e sua família não sabemos. No entanto, todos os herdeiros presentes não podem passar incólumes a esta problemática, uma vez que ela tem incidências sociopsíquicas sobre o conjunto familiar. Cada membro vai se apropriar dela e se fazer herdeiro de forma diferente.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 A este respeito, o livro coordenado por Dordier (2002) faz um inventário interdisciplinar da questão.

2 Para maiores informações sobre a história, estrutura e organização do Programa Favela-Bairro, consultar Freire (2005).

3 Aos moradores que teriam suas casas removidas, eram oferecidas duas formas de se receber a indenização: ou a prefeitura lhes comprava uma outra casa na comunidade no valor correspondente ao da sua casa avaliado pela equipe técnica do programa ou a prefeitura lhes pagava diretamente o mesmo valor para comprarem uma casa onde desejassem. A segunda era a opção mais comum entre os moradores nessa situação, pois assim teriam maior autonomia em relação ao uso do dinheiro e à escolha da nova residência.

4 Todos os nomes citados foram substituídos por nomes fictícios para preservar a identidade e privacidade das pessoas envolvidas. Apesar de esta carta ter sido citada na dissertação de Freire (2005), a análise que fazemos da mesma neste artigo não foi antes realizada.

5 Referimo-nos aos artigos 1814-18, que tratam dos excluídos da sucessão familiar, da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002.

6 Esta proposta do programa é criticamente abordada por Freire (2005) a partir das diferentes concepções das categorias "favela" e "bairro" entre os moradores de Acari e os representantes do poder público.

 

 

Recebido em 20 de setembro de 2005
Aceito para publicação em 23 de outubro de 2005

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