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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.19 no.1 Rio de Janeiro  2007

 

Resenhas

 

A voz do seu dono, pelo amor do Mestre

 

Her master's voice, for the Master's sake

 

 

Eduardo Berendonk

Psicólogo do Serviço de Psicologia Médica do Hospital dos Servidores do Estado – Rio de Janeiro

 

RESENHA DE:

Allouch, J. (2005). Sombra do teu cão – Discurso psicanalítico, discurso lésbico. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 94 pp.

Este livro versa sobre o domínio do amor. Nele se constrói uma figura de um amor cão (amar como um cão, amar um cão) com um material que o autor vai buscar no ensino de "Sidonie Csillag" (ainda não é seu nome verdadeiro), a dita "jovem homossexual de Freud". Para Allouch, esta mulher faz de sua vida algo comparável a um ensino sobre o amor elevado à "transparência do ser".

O autor desenvolve uma narrativa fluida, se deixando levar como numa densa associação livre. Não é, entretanto, uma narrativa trivial, exigindo do leitor uma certa familiaridade com algumas nuances do caso da jovem homossexual e interesse em algumas questões cruciais da psicanálise, em particular alguns limites de seu próprio campo: o pai, o ato, o amor, a mulher, o ser. Este leitor será, contudo, muito bem recompensado. Em alguns pontos, não poucos para um texto relativamente curto, fragmentos do real parecem pairar sobre algumas expressões de sua letra. Abundam indicações preciosas em rigor e vigor crítico. Trata-se de um escrito no limite do pai, levando-o ao limite, questionando-o em seu gozo.

O ponto de partida do livro é, portanto, a apreensão pelo autor de algumas das principais referências ao "caso da jovem homossexual" de Freud, incluindo sua biografia, a de Sidonie, recém publicada na França. O caso freudiano tomado por Allouch desenvolve-se numa espécie singular, rara hoje em dia, de elegia a uma mulher a que a história, notadamente a história da psicanálise, ainda não teria feito jus.

O caso de Sidonie Csillag, relido após Freud, Lacan, após a própria Sidonie, transforma-se em um "caso Freud" e mais um "caso Lacan". E talvez o autor se insira também nesta série. Explica-se. Nosso autor, Jean Allouch, se debruça corajosamente, como talvez somente alguns hoje possam fazer, extraindo conseqüências fecundas dos impasses introduzidos pelo caso. Apoiado em Lacan, denuncia o que considerou a père-version de Freud, isto é seu "empaternamento" (Allouch, 2005: 81) diante de Sidonie, impossibilitando a análise da jovem. Um mestre não se curva a outro, diria Allouch. A denúncia desta posição também é relacionada pelo autor a uma questão já bastante estudada, principalmente na França: as relações de Freud, "papanalista" de sua filha Anna.

Allouch segue adiante e corrige o próprio corretor de Freud. Lacan passa de regador a regado pelo autor, que desta forma se coloca diante dos riscos, bem conhecidos, de uma tal tomada de posição. Ele já havia feito algo semelhante, embora aqui o faça de forma mais pontual, nem por isso menos contundente, na sua minuciosa releitura do caso Aimée, de Lacan (Allouch, 1997). É claro que esse emaranhado transferencial suscitado pela obra de Allouch permanece um vasto campo de estudo. A quem interessar possa, está aberta a tarefa de se inserir nesta trama, elevando-a a um novo grau.

É bem insistente a exortação lacaniana aos analistas para que não recuem com seus pacientes diante do rochedo freudiano da castração. A invenção da noção conceitual de objeto a testemunha a esse favor. Essa invenção de Lacan mostra que o analista deve desconfiar da referência única ao falo como determinante último do ser. Os muros que cindiam o mundo moderno, separando Ocidente e Oriente, caíram. Hoje, para se circular de forma razoável também na psicanálise, é necessário ir além dos antigos limites, da estrita lógica fálica, paterna. Em cada caso surge, à sua maneira, uma solicitação intensa de produção de um saber-fazer com o real, com a pulsão, justamente no ponto não alcançado pela linguagem, resto da lógica paterna. Ela falha, algo próprio ao ser lhe escapa de modo permanente. Um dos problemas desta discussão é, entretanto, ser esta mesma lógica aquela que permite a própria constituição da psicanálise. Mas Allouch contorna habilmente este problema e o faz apelando para uma narrativa feita sobre a vida (e não a obra) de uma mulher.

Freud já se deparara, desde cedo, com a importância da questão do pai. A morte de seu próprio pai parece ter sido crucial para o surgimento daquela que é considerada a obra inaugural do edifício psicanalítico, "A interpretação dos sonhos" (1900 [1899]/1996). Escrito anos após, "Totem e tabu" (1913 [1912-13]/1996) representa hoje um mito produzido por nossa cultura. "Moisés e o monoteísmo" (1939 [1934-38]/1996), ponto culminante da investigação freudiana sobre o pai, é, talvez, o texto onde Freud parece mais claramente desconfiar de suas próprias interpretações, tomando-as mais como construções. Importante me parece ser a discussão sobre o quanto cada uma dessas obras, além de se fundarem numa lógica paterna, permitem também ultrapassá-la, supondo mesmo que Freud tenha tomado alguma distância de seus próprios mitos paternos. O texto de Allouch nos faz pensar o quanto um certo aspecto "doméstico" de Freud, amante de cães e próximo a mulheres, ainda que restrito a algumas poucas escolhidas, podia transpor a dureza do edifício psicanalítico. Por alguma razão, Freud não pôde reconhecer em Sidonie uma dessas escolhidas, e ela se queixou disso até perto do fim de sua vida. "Não pôde reconhecer que eu era inocente", dizia ela.

Foi esse mesmo caso, não sem razão, que permitiu a Lacan, em seu Seminário X (1962-1963/2005), introduzir uma radical revisão na noção de objeto, através da noção de objeto a, indicando a impossibilidade de todo súbito relacionamento com aquilo que se é como objeto, dejeto, abjeto, para o Outro.

Ao reler o caso, Allouch aponta ainda para um aspecto fundamental que Lacan não havia reconhecido. Trata-se, justamente, da questão da mestria da moça, reivindicada por sua posição diante do domínio do amor.

Diante da passagem ao ato da jovem destacada por Lacan, o autor a reinterpreta com inventividade e algum rigor, inserindo-a em uma série na vida de Sidonie Csillag. Considera-a como uma atuação que recupera posições de domínio perdidas: com seu pai, que vai progressivamente cedendo e deixa de querer "corrigi-la", mas também com sua amada de então, a cortesã Leonie von Puttkamer, a qual, após a tentativa de suicídio de Sidonie, passa a lhe dar mais crédito em seu amor. Tal como um mestre hegeliano, Sidonie corre o risco de morte e reconquista seu domínio. Penso que a riqueza desta discussão é tal que, aprofundada, poderia permitir estabelecer parâmetros de continuidade entre os conceitos de passagem ao ato e acting-out.

A recente biografia de Sidonie Csillag, publicada ainda apenas na França, seria importante também entre nós para acompanharmos melhor a trajetória de Allouch. O decurso da vida de Sidonie, após o breve período de análise com Freud, não cessaria, segundo Allouch, de revelar uma contínua busca de construção e transmissão de um saber sobre o amor. Um saber sem escrito, como os de Cristo e Buda.

Este "discurso lésbico" (acrescentado ao título em português) sobre o amor situado no limite do patriarcado é, contudo, ainda capaz de afirmá-lo, ao sustentar o mestre, sendo também por ele sustentado. Mas justo por sustentá-lo é também capaz de questioná-lo, tendo potencial para deixá-lo cair, revelando coordenadas de sua própria posição, nada distante de uma forma de desamparo e súplica de amor.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Allouch, J. (1997). Paranóia. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Freud, S. (1900 [1899]). La interpretación de los sueños. Obras completas, vol. IV-V. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.

_______. (1913 [1912-13]). Tótem y tabú. Obras completas, vol. XIII. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.

_______. (1939 [1934-38]). Moisés y la religión monoteísta. Obras completas, vol. XXIII. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.

Lacan. J. (1962-1963). O Seminário, livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

 

 

Recebido em 4 de janeiro de 2007
Aceito para publicação em 6 de maio de 2007

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