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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.19 no.1 Rio de Janeiro  2007

 

Resenhas

 

Perdida

 

Astray

 

 

Luiz Eduardo Prado de OliveiraI; Tradução de Lourenço Astúa de MoraesII

IProfessor de Psicopatologia Clínica da Universidade da Bretanha Ocidental; Diretor de pesquisas na Escola Doutoral "Recherches en Psychopathologie et Psychanalyse" da Universidade de Paris 7 – Denis Diderot; Membro Titular de Espace Analytique
IIMestrando em Psicologia Clínica da PUC-Rio

 

RESENHA DE:

Capurro, R. & Nin, D. (1995). Extraviada. Buenos Aires: Edelp, 1995, 528 pp.

Era uma casa bonitinha, cheia de plantas verdes, em uma rua calma, um pouco afastada do centro, em Montevidéu. Alguns vizinhos, muitos pássaros na primavera e no verão, estações bem européias. O Uruguai foi durante muito tempo considerado um tipo de Suíça latino-americana.

Volto à contracapa. É verão no hemisfério sul, dezembro de 1935. Um tiro sacode a cidade: Iris, uma jovem e brilhante estudante, mata seu pai, Lumen Cabezudo. Raimunda Spósito, sua mãe, apóia a filha. A versão materna dos acontecimentos é amplamente acolhida. A filha faz-se o eco da mãe. Um pai tirano, ameaçador, violento, sádico, amplamente incestual, senão incestuoso, estranho sob todo ponto de vista. Uma mãe vítima. Pequenas crianças aflitas. A filha mais velha libera a família desse monstro. Ela simplesmente diz: "Eu o matei. Era meu pai". Uma coisa justifica a outra.

Lumen Cabezudo. Lumen Cabezón. Luz cabeça-dura1. Fogo cabeça-dura. Um nome de paranóico. A observação foi feita: freqüentemente, nas psicoses, um nome, significante particular, escapa a essa regra, cola no mundo dos significados.

Iris matou sob a ameaça assassina de seu pai. Há muito isso estava para acontecer. Quando havia crimes em que um homem matava uma mulher, Lumen os comentava em família, com simpáticas observações em relação aos sujeitos assassinos. Na hora do crime, ele tinha perdido o controle. Ele tinha jurado que ia matar Raimunda, matar toda a família. Ele foi buscar uma arma, tinha voltado, estava agitado.

Solta depois de passar um ano na prisão, Iris volta para a família, retoma seus estudos, os termina, torna-se professora do primário. Sua foto faz pensar em uma menina de caráter firme, inteiro, decidido.

No entanto, o inferno familiar não termina com o desaparecimento do pai. Pelo contrário. Raimunda multiplica as queixas em relação ao morto. Octave Mannoni (1978) assinalou essas brigas que prosseguem para além da morte.

Iris descobre: mas é sua mãe que é louca! Em dezembro de 1956, 21 anos após o assassinato do pai, ela pede um parecer de sua mãe. É o que a leva, ela, a libertadora, ao hospital psiquiátrico. As reações dos psiquiatras eram para ela imprevisíveis. Ela tenta explicar-se por escrito. É liberada do hospital, mas com duas condições: deixar a casa da família e ser aposentada. Ela se torna uma vagabunda, quase sem apoio.

A querela não se limita ao girão familial. Ela se estende. Iris critica o ensino nacional, os perigos ligados à intrusão dos católicos na escola laica, suspeita daqueles, raríssimos, que ainda a acolhem.

Deixo de lado a contracapa deste livro tão rico. Venho aos sentidos das palavras. A psiquiatria se apropriou das palavras paranóia ou parafrenia da mesma forma que novos ricos tentam atribuir-se ancestrais ilustres. Os psicanalistas os retomaram para darem-se ares de psiquiatra. A psiquiatria ou a nosografia, a clínica supostamente diferencial, doenças infantis da psicanálise. A nosografia é tão útil à psicanálise quanto a astrologia à astronomia.

Parafrenia é uma palavra empregada por Heródoto ([s.d.] 2005). Isso nada mais quer dizer do que "ao lado de seus espíritos". Paranóia é uma palavra usada por Ésquilo ([467 BC] 1982) e Eurípides ([408 BC] 1965). Édipo e Jocasta são paranóicos pelo fato de sua união. Orestes é paranóico pelo fato do assassinato de sua mãe, Clitemnestra. Eles estão "ao lado de seus conhecimentos". Aliás, eles serão perdoados. Hipócrates roubou estas palavras dos poetas. Ele faz destas uma história de rubores de garganta que se estendem pelo interior do corpo. Não se trata tanto aqui de uma dualidade qualquer entre espírito e corpo. Está mais para a questão da criação pela medicina nascente de uma pseudo-realidade para esconder sua profunda ignorância a respeito de uma palavra que circulava e fugia, no domínio das comemorações ligadas à tragédia.

Platão ([s.d.] 2006) e Aristóteles ([s.d.] 2006) também usam a palavra paranóia. São paranóicos pais e crianças que não têm boas relações, sobretudo quando os pais têm uma certa idade e os filhos querem tomar posse de sua herança. São paranóicos os que se revoltam contra as tradições. Assim, por uma curiosa volta, Platão considera paranóicos os que não acreditam na vida após a morte, os que não acreditam na intervenção dos mortos nos afazeres quotidianos dos vivos. Seus motivos são simples: a tradição, o fato de serem crenças estabelecidas; desde sempre, segundo ele, o homem acreditou nisso.

Parafrenia é até mesmo uma palavra leve em relação à paranóia e ambas o são em relação à mania ou ao furor, palavras que designam a loucura entre os gregos antigos. Parafrenia quer simplesmente dizer perdido, mas não muito longe. O espírito ainda está presente.

Paranóia era uma palavra popular na Alemanha. Lá pela segunda metade do século XIX, os alienistas quiseram dar-lhe uma dimensão científica. Ziehen (1902) a utiliza para dizer loucura. Kraepelin ([s.d.] 1972) quis criar categorias bem definidas. Ele usa parafrenia para dizer o que se tornará, primeiro com Bleuler ([1908] 1993) e em seguida com Melanie Klein ([1946-1963] 1968), a esquizofrenia paranóica ou paranóide. É o pão de todo dia daqueles que trabalham com os loucos. Nada mais comum do que a parafrenia, ou a esquizofrenia paranóica, no reino dos hospitais psiquiátricos ou de outros centros de cuidados.

Iris Cabezudo teria começado paranóica, tanto quanto Édipo ou Orestes. Ela evoluiu para a parafrenia, no sentido de Kraepelin ([s.d.] 1972). Iris não é Schreber (Freud, [1911] 1969). O paranóico pode matar, ele mata com freqüência. Esse gesto é, para o parafrênico, bem mais raro. Mas existe um ponto em comum entre Iris, a cabeça-dura, e Schreber. Ambos vêm de um ninho de paranóia. É inútil retomar aqui a notável história de Schreber, desde um ancestral cura e autor de novelas desbragadas até um pai louco por ginástica e uma mãe cujo espírito era mais cheio de cultura do que o devido, segundo as palavras do próprio presidente, a quem não faltava espírito crítico2.

E Iris, essa história cheia de reviravoltas que nos deixa em suspense, com a respiração curta, história perdida. É preciso lê-la para entender o tecido da loucura. Esse livro apresenta artigos de imprensa, os textos de Iris, as declarações de sua mãe e de seu irmão. Os testemunhos, os depoimentos, os julgamentos, os pareceres médicos, os arquivos, a luta de seus colegas para que seja solta, para apoiá-la, as peças culturais, poemas ou romances que marcavam a época, os arquivos da Educação Nacional, onde Iris trabalhou, as lembranças daqueles que a conheceram no fim de sua vida, tudo isso notavelmente reunido e comentado por Raquel Capurro e Diego Nin.

Aí está Iris, caminhando pelas ruas de Montevidéu, o passo rápido e firme, no verão como no inverno, muito sobriamente vestida, em direção à escola onde faz seus estudos, depois, com paixão em direção ao trabalho, anos mais tarde, vestida de trapos, mas sempre limpa, arrastando com ela essas sacolas indescritíveis que freqüentemente os loucos arrastam consigo, testemunhos de um tipo de carapaça. E nosso desespero: aí está a humanidade. Um dia, ela foi uma estudante brilhante. Mais do que uma exposição de caso, magnífica, é um romance que Capurro e Nin organizam, no sentido que Freud quer dar aos seus "contos de Natal" ou "fantasia de uma primavera" através dos quais a metapsicologia se torna viva.

 

NINHO DE PARANÓICOS

Lumen, o pai de Iris, é um iluminado. No Uruguai, em 1930, ele já crê nas espiritualidades budistas e no naturismo, que ele pratica em casa e impõe aos seus filhos. Abusa de uma de suas filhas e por que não teria ele abusado de Iris para-além da imposição do naturismo? Lê revistas pornográficas, as quais larga em todo canto, ao alcance das crianças. É um perverso. A perversão paranóica corresponde à tentativa de domínio da vida de outrem ou de situações que dizem respeito a outrem, sem a menor preocupação por estes.

Raimunda também é bem particular. Ela veio estudar na Europa, o que a realçava em relação às mulheres de sua geração. Um destino brilhante lhe era reservado, assim como, mais tarde, também o seria para sua filha. Na véspera de sua partida ou no próprio dia, Lumen a conhece em uma conferência a respeito de temas esotéricos. Ele a quer como esposa. Ela recusa. Ele promete esperar por anos, se for preciso e, de fato, ele esperará. Ela o desencoraja. No seu retorno, muda de idéia.

Por ele ela deixa de lado tudo aquilo para o qual foi prometida. Mas permanece sua superioridade intelectual e cultural. E faz com que ele o saiba. Ela até mesmo o provoca armada dessa ferramenta. E ele reconhece. Ele a admira ao extremo. Se não compartilham grande coisa, eles compartilham pelo menos crenças budistas. E a violência. Ele bate nela, ela o acusa, grita, o denigre.

Raimunda, na verdade, nada faz para se proteger ou para proteger seus filhos. Quanto à fuga, se durante um momento ela chega a pensar a nisso, ela se fia num certo tipo de tribunal de família seqüencial. Exibe seu sofrimento aos raros familiares que vêm visitá-la. Aliás, o isolamento dessa família Cabezudo é notável. Não há homem para defender Raimunda, não há mulher para aconselhá-la. O isolamento é, em si, um sinal patológico. O masoquismo de Lumen o leva a buscar a morte. É ele quem traz à casa a arma que servirá para matá-lo. E a esquece. Deixa-a para sua mulher, que a esconde. E que faz da filha deles, Iris, a depositária do segredo do esconderijo dessa arma.

 

IRIS

"Desde minhas mais longínquas lembranças, desde que era criança, vivíamos em casa a sensação de um profundo medo inspirado em nós por nosso pai... ao passo que minha mãe, pelo contrário, é uma santa que eu adoro". Iris Cabezudo, 12 de dezembro de 1935 (Capurro & Nin, 1995: 27). Mas de onde tirou ela a idéia de que os lares nunca se apagam?

Eu tinha pena dele, pois víamos que era uma pessoa sem valor próprio: era ruim, sim, muito ruim; mas era ruim por isso mesmo, porque não tinha valor positivo, não tinha razão de viver, e ele se propôs a elevar-se (graças ao que os outros possuíam), especialmente com o que era o fruto do trabalho, da inteligência e da abnegação de mamãe que era a pessoa que tinha em seu poder, prisioneira. Iris, em 16-17 de dezembro de 1935 (Capurro & Nin, 1995: 39).

E foi assim que eu chegava à conclusão (para mim, desconcertante) que o ódio de minha mãe pelo meu pai é inextinguível: não se apagou nem com sua morte, nem com seu descrédito (que se tornou quase total). Ela o odeia hoje com o mesmo furor que em 1935. Ela não esquece um só instante de escornear o pai... Iris, 1957 (Capurro & Nin, 1995: 208).

Ela tem a intuição de algo que não pode plenamente compreender, que não pode ab-reagir, como descrito por ela. É claro que esse ódio provavelmente existia também em Lumen. Esse casal tinha se formado no ódio, era unido pelo ódio, vindo à luz no ódio. "O ódio antecede o amor", escreve Freud ([1913] 1958).

Lumen, o irmão caçula, quer ir ao baile. Sua mãe quer proibi-lo. Iris lembra:

Escuta, você tem sempre necessidade de perseguir alguém, primeiro o papai que você perseguia e atormentava sem necessidade, exagerando as coisas e depois Ariel "que não te deixava viver" e eu acreditei em você, mas agora chega, não vou permitir que persiga Lumen. Lumen é bom, alegre, são, bonito, bom aluno, todo mundo o aprecia, não tem vícios nem tendências ruins, todo mundo gosta dele [...]. Você vai deixar Lumen em paz. Se você não queria filhos que se parecessem com o papai, você não deveria ter se casado com ele. [...] Que ele vá ao baile, que tenha uma namorada e que se case! (Capurro & Nin, 1995: 221).

Os autores, mais prudentes, concluem: "Sob este ponto de vista, a ausência de delírio em relação ao ato de Iris não desqualifica esse ato como sendo um ato paranóico" (Capurro & Nin, 1995: 355).

Quem pode saber se o delírio de Iris já não estava lá, latente, no momento de seu gesto parricida, tornando-se manifesto com o passar dos anos? Em todo caso, a subcultura da família Cabezudo parece de fato bem atípica. Agradecemos Capurro e Nin por relançar as reflexões e as pesquisas trazendo esta dramática e exemplar história de nossa condição humana.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Aristote. (s.d.). Constitution d'Athènes. Paris: Librairie Générale Française, 2006.

Bleuler, E. (1908). Dementia Præcox ou Groupe des Schizophrénies. Paris: EPEL, GREC, 1993.

Eschyle. (467 BC). Les sept contre Thèbes. Tragédies complètes. Paris: Gallimard, 1982.

Euripide. (408 BC). Oreste. Em Théâtre complet, I. Paris: Garnier-Flammarion, 1965.

Freud, S. (1911). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia. Obras completas, ESB, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

_______. (1913). The disposition to obsessional neurosis. Standard Edition, vol. XII. London: The Hogarth Press and The Institute of Psycho-Analysis, 1958.

Hérodote. (s.d.). Enquête, t. 1. Paris: Paléo, 2005.

Klein, M. (1946-1963). A propos de l'identification. Envie et gratitude et autres essais. Paris: Gallimard, 1968.

Kraepelin, E. (s.d.). Leçons cliniques sur la démence précoce et la psychose maniaco-dépressive. Toulouse: Privat, 1972.

Mannoni, O. (1978). La pathogenèse de la création (ou la libération des femmes). Fictions freudiennes (pp. 161-195). Paris: Seuil.

Platon. (s.d.). Les Lois, VIIXII. Paris: Flammarion, 2006.

Ziehen, G. T. (1902). Psychiatrie. Leipzig: Hirzel.

 

NOTAS

1 N.T.: escolhemos traduzir têtu por "cabeça-dura" e não "cabeçudo" por melhor se adequar às idéias fixas características da paranóia.

2 Ver também o belo Schreber Président, sob a direção de Petitjean, Smith & Thiellement, Fage Éditions, 2006.

 

 

Recebido em 15 de dezembro de 2006
Aceito para publicação em 3 de fevereiro de 2007

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