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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.20 no.1 Rio de Janeiro  2008

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Os destinos do originário1

 

Destinations of the originary

 

 

Bernard GolseI

IPsiquiatra Infantil; Psicanalista; Chefe do Serviço de Psiquiatria do Hospital Necker-Enfants Malades (Paris); Professor de Psiquiatria da Criança e do Adolescente na Universidade René Descartes (Paris 5)

 

 


RESUMO

Este artigo aborda a questão do destino do originário. São apresentadas três concepções do destino do originário: 1) material-pedestal: o originário como material de base a processos posteriores; 2) material reativável em um segundo tempo: o originário como material reativado por ocasião de etapas mais tardias da vida; 3) tipo de trabalho psíquico retomado em níveis ulteriores: o originário como modalidade de trabalho psíquico duradouramente eficiente por meio de um certo número de transposições ao longo de toda a existência do sujeito. O autor defende que os processos originários - quer eles sejam pensados em termos de pedestal, base de processos psíquicos posteriores, em termos de materiais iniciais reativados em segundo tempo ou em termos de modalidades de trabalho psíquico - só podem ser modelados integrando os efeitos de a posteriori. Trata-se de uma temporalidade não-linear.

Palavras-chave: originário; trabalho psíquico; temporalidade, intersubjetividade


ABSTRACT

This article approaches the issue of the destination of the originary through three different theories: 1) pedestal-material: the originary as a basis material for posterior processes; 2) a material that can be re-activated in a second moment: the originary as an element that can be re-activated in later stages of life; 3) a type of psychic work that can be resumed in ulterior levels: the originary as a type of psychic work that efficiently lasts through a certain number of transpositions that take place throughout an individual's existence. Whichever the theory adopted, the author defends the idea that originary processes can only be modeled integrating the effects of the a posteriori. It is, in this sense, a non-linear temporality.

Keywords: originary; psychic work; temporality; intersubjectivity


 

 

Em primeiro lugar, eu gostaria principalmente de insistir sobre o fato de que o destino do originário encontra-se, de imediato e antes de tudo, na fonte de uma interrogação central, mas que não tem outra saída senão permanecer, enfim, em tensão. Eu me explico. Primeira hipótese: o originário remete a um tempo inicial e tangível do desenvolvimento. Ou, então, uma segunda hipótese, desenvolvida por Green (1987; 1992): o originário se realiza, de fato, como uma simples ficção retrospectiva, ou seja, como a "teoria sexual infantil do analista sobre seu objeto, a psique". É a partir desse questionamento aberto que o conjunto de minha proposta deve então ser compreendido. O que é mítico é o a priori (avant-coup) original, mas sua sucessão não o é, pois todos os a posteriori (après-coups) são também a priori para o que lhe vem depois. Diante disso, a propósito da temporalidade, nem a reta nem o círculo nos convêm como figurações ou configurações geométricas, mas antes a espiral.

 

INTRODUÇÃO

A propósito dos destinos do originário, é importante, hoje, ressaltar que essa problemática verifica-se muito fecunda na consideração dos funcionamentos psíquicos dos bebês e dos adolescentes, como testemunha o sucesso conquistado pelo congresso A corps et à cri ocorrido em Paris, entre os dias 23 e 24 de março de 2004. É sobre essa perspectiva particular que considerarei a questão dos destinos do originário, sabendo, é claro, que esta não é redutível a esse ponto de vista particular.

Alice Doumic-Girard e Pierre Male (1975) foram, em seu tempo, os precursores na matéria, uma vez que sua obra comum que apareceu sob o título Pychothérapie du premier âge conserva ainda hoje toda a sua atualidade. E, na época, era fruto do trabalho de uma maravilhosa pediatra que pedia a um psiquiatra-psicanalista especialista em adolescência para ajudá-la a elaborar uma teoria de sua prática. Havia já aí, parece-me, uma reflexão implícita sobre os destinos do originário na adolescência.

Mas a questão do originário permite hoje colocar de outro modo o tema dos laços entre o bebê e o adolescente na medida em que o conceito de originário remete a processos psíquicos da "l'avant-primaire" (Green, 1987; 1992) e, particularmente, aos significantes ditos primordiais ou arcaicos, cujo estudo começou com Bion ([1962] 1979; [1963] 1979; [1965] 1982) e Aulagnier (1975) e desenvolveu-se, em seguida, nos trabalhos de toda uma série de autores, freqüentemente psicanalistas de adultos e principalmente de adultos psicóticos. Didier Anzieu (1985; 1987) dizia, então, de bom grado, com o humor sutil que o caracterizava, que, devido ao fato de que a reflexão sobre esse tempo hiperprecoce da ontogênese exige intensamente o narcisismo dos autores, estes, quase todos, quiseram dar um tipo de denominação específica às proto-representações que eles tentavam descrever, mas que, às vezes, se recobriam mais ou menos.

Citemos de memória:

-Os elementos beta e os ideogramas de Bion ([1962] 1979; [1963] 1979; [1965] 1982);

-Os pictogramas de Aulagnier (1975);

-Os significantes enigmáticos de Laplanche (1984; 1986; 1987; 1999; 2002);

-Os significantes de demarcação de Rosolato (1985);

-Os significantes formais do próprio Anzieu (1985; 1987);

-As representações semióticas de Kristeva (1985).

E a propósito dos trabalhos conduzidos por clínicos da infância:

-As formas ou os contornos autísticos de Tustin ([1977] 1982; 1986; 1989);

-As representações de transformação de Gibello (1984);

-As identificações intracorporais de Haag (1985; 1991; 1993; 2002).

Desde então, esses materiais originários, de função pré ou proto-representativa, nos convidam a pensar de diversas maneiras a noção de devir: seja como material-pedestal, subtendendo toda a seqüência de transformações processuais, seja como um material reativável em um segundo tempo, seja, enfim, como um tipo de trabalho psíquico indefinidamente retomado em níveis ulteriores. É a partir dessas três rubricas que abordarei agora algumas problemáticas a título de exemplos.

Acrescento, entretanto, que é plausível pensar que o a posteriori nos venha sempre do outro e de seu trabalho de transformação psíquica, seja em uma perspectiva interativa, seja em uma perspectiva intergeracional.

 

O ORIGINÁRIO COMO MATERIAL-PEDESTAL

Abordarei aqui, de um lado, a questão dos processos originários e, de outro, aquela das ilhotas autistas.

PROCESSOS ORIGINÁRIOS

Os ideogramas de Bion ([1962] 1979; [1963] 1979; [1965] 1982) e os pictogramas de Aulagnier (1975) podem, provavelmente, ser considerados como os ancestrais epistemológicos dos significantes ditos primordiais ou arcaicos.

A tripartição de Aulagnier ("colocação em forma" pelos processos originários, "colocação em cena" pelos processos primários e "colocação em enunciado" pelos processos secundários) deve, aqui, ser colocada em perspectiva com o conceito de atividade tradutora que se encontra no âmago da reflexão de Laplanche (1984; 1986; 1987; 1999; 2002) e que coloca a questão da dessimetria própria à "situação antropológica fundamental", ou seja, a questão da atividade tradutora do adulto partenário relacional do bebê, e mesmo do adolescente.

De qualquer modo, nessa perspectiva, os processos originários formam o pedestal [a base] dos processos psíquicos posteriores que deles derivam e, desde então, a questão não é "tê-los ou não" - os processos psíquicos originários - mas, antes, "saber o que se faz deles".

Dito de outro modo, na verdade, todo mundo tem processos originários ou arcaicos, tanto o bebê quanto o adolescente, mas esses processos podem verificar-se estruturantes ou obstrutores, segundo o caso.

Para serem estruturantes, eles devem poder fazer-se objeto de traduções e de retraduções sucessivas - e isto no âmbito da relação com um adulto falante, ou pelo menos pensante - e devem, igualmente, poder ser tomados em um processo de historização e de circularização próprio ao campo da dinâmica do a posteriori.

Parece-me, então, que tanto o bebê como o adolescente encontram-se inteiramente envolvidos nessa problemática fundamental. Ao se poder conceber o sonho como um trabalho cotidiano de primarização dos processos originários (Golse, 1994; 2002), pode-se compreender, então, a importância quantitativa da percentagem de sono paradoxal nos bebês e a intensidade qualitativa dos processos oníricos nos adolescentes. O filme Sonhos de Akira Kurosawa (1990) que, por meio de um procedimento cinematográfico, inverte a dinâmica noturna da função onírica parece-me ser útil ao apoio dessas concepções.

AS "ILHOTAS AUTISTAS" DESCRITAS POR SIDNEY KLEIN

Na concepção de um gradiente dinâmico e progressivo entre indiferenciação primitiva e intersubjetividade que reveremos abaixo, vê-se que esse movimento só é tornado possível devido à existência de núcleos de intersubjetividade primária existentes em toda criança, bem como nas crianças autistas ou psicóticas (talvez se trate, aqui, de partes não autistas que Alvarez (1997) descreve nas crianças autistas, tão autistas quanto sejam, e que se poderia, por analogia com as "ilhotas autistas" descritas por Klein (1980) e Tustin ([1977] 1982; 1986; 1989) nos sujeitos neuróticos, denominar ilhotas não-autistas dos sujeitos autistas). Estes [os núcleos] derivam, no fundo, de processos originários não traduzidos ou não primarizados e seu destino é variável:

-Seja encriptado sob uma forma mais ou menos inerte;

-Seja germe de um entrave funcional do tipo esquizóide;

-Seja, enfim, fonte viva de uma criatividade artística: um artista como Glenn Gould sabia provavelmente muito sobre as ilhotas autistas na origem de sua criatividade. E Tustin ([1977] 1982; 1986; 1989) insistia freqüentemente sobre todo o trabalho que, infelizmente, era necessário para passar do estado de autista ao estado de artista, tanto que apenas uma letra os separa...

Qualquer que seja, esse triplo destino oferece-se provavelmente em condições um pouco análogas ao bebê e ao adolescente. E as contribuições da psiquiatria do bebê ajudam-nos, aqui, parece-me, a melhor compreender as hesitações existenciais do adolescente entre o refúgio na inação ou nas sensações, de um lado, e a criatividade psíquica ou física, de outro.

 

O ORIGINÁRIO COMO MATERIAL REATIVÁVEL

Tomarei aqui três exemplos sucessivos: aquele da adesividade, aquele da comunicação analógica e aquele, enfim, dos processos de fixação cuja reativação na adolescência esclarece de uma maneira diferente a dinâmica dessa idade particular da vida.

A ADESIVIDADE

As identificações adesivas bem descritas no bebê por todo o movimento pós-kleiniano e a tendência à uniformização própria dos adolescentes, da qual testumunham, por exemplo, a generalização atual do uso de jeans e o fenômeno das bandas, podem, sem dúvida, ser compreendidas, hoje, de outro modo que não segundo a clássica perspectiva da identificação ao líder.

Entretanto, permanece delicado saber se existe uma adesividade normal ou se toda adesividade comporta, em si e por ela mesma, uma dimensão patológica.

A COMUNICAÇÃO ANALÓGICA

Sabe-se que a comunicação analógica subtende, de maneira central, a natureza do estilo de acordo afetivo (Stern, 1989; 1992; 1995; 2003) a que pertence propriamente cada díade.

Pode-se imaginar que o início do tratamento e o estilo dos primeiros encontros com os adolescentes dão lugar a uma intensa reativação dessa comunicação analógica e que o futuro do tratamento depende em grande parte da adequação do terapeuta a esse nível particular e originário da comunicação.

OS PROCESOS DE FIXAÇÃO

A adolescência corresponde provavelmente a um tipo de reconsideração dos esquemas de fixação precoce, reativação que se encontra nos movimentos de colocação à prova do quadro no início do tratamento.

É assim que as primeiras entorses ao quadro podem, verdadeiramente, e em certo número de casos, ser mais compreendidas como reativações de esquemas de fixação precoces empregadas pelo paciente a fim de testar o terapeuta e de saber se ele pode ser vivido como uma figura de fixação segura ou insegura, por exemplo, antes que como atos transferenciais no sentido estrito.

Nessa perspectiva, a noção de aliança terapêutica que foi, como é sabido, objeto de numerosas controvérsias pode, sem dúvida, ser mais eficazmente compreendida em referência aos esquemas de fixação do que em referência à dinâmica transferencial propriamente dita, a qual demanda um certo tempo antes de manifestar-se verdadeiramente (Golse, 1994; 2002).

 

O ORIGINÁRIO COMO TIPO DE TRABALHO PSÍQUICO RETOMADO EM NÍVEIS POSTERIORES

Não se trata mais aqui do originário como material de base a processos posteriores, ou do originário como material reativado por ocasião de etapas mais tardias da vida, mas do originário como modalidade de trabalho psíquico duradouramente eficiente por meio de um certo número de transposições ao longo de toda a existência do sujeito.

A OSCILAÇÃO DIALÉTICA ENTRE POSIÇÃO ESQUIZO-PARANÓIDE E POSIÇÃO DEPRESSIVA

Geissmann (1996) mostrou muito bem que a questão da oscilação entre posição esquizo-paranóide e posição depressiva podia ser comparada, mutatis mutandis, ao trabalho psíquico dialético entre a priori e a posteriori.

O ACESSO À INTERSUBJETIVIDADE E O LUTO DO OBJETO PRIMÁRIO

Sob o termo intersubjetividade designa-se - simplesmente! - o vivido profundo que nos faz sentir que eu e o outro, isso faz dois. A coisa é simples de enunciar e de representar-se, mesmo se os mecanismos íntimos que subtendem esse fenômeno sejam provavelmente muito complexos e ainda incompletamente compreendidos. Essa questão da intersubjetividade é atualmente central e articula, parece-nos, o eterno debate entre os defensores do interpessoal e aqueles do intrapsíquico.

Mas existe também um outro debate na atualidade, concernindo à emergência progressiva ou, ao contrário, ao dado imediato dessa intersubjetividade.

Para dizer as coisas um pouco esquematicamente, pode-se expor a idéia de que os autores europeus seriam mais partidários de uma instauração gradual e necessariamente lenta da intersubjetividade, enquanto os autores anglo-saxões o são sobretudo de uma intersubjetividade primária, de algum modo geneticamente programada (Trevarthen, 2003 ou Stern, 1989; 1992; 1995; 2003, por exemplo).

Stern (1989; 1992; 1995; 2003) insiste sobretudo no fato de que o bebê recém-nascido está imediatamente apto a perceber, a representar, a memorizar e a sentir-se como agente de suas próprias ações (processos de agencialização dos cognitivistas) e que, por isso, não há nenhuma necessidade de recorrer ao dogma de uma indiferenciação psíquica inicial, tão querida aos psicanalistas (quaisquer que sejam suas referências teóricas, ou quase), dogma que, notemo-lo de passagem, faz inevitavelmente apelo a um ponto de vista fenomenológico.

Os psicanalistas, ao contrário, e não apenas na Europa, insistem na dinâmica progressiva do duplo gradiente de diferenciações (extra e intrapsíquico), elogio da lentidão que se ancora principalmente na observação clínica das crianças que se enterram nos primeiros tempos dessa ontogênese e que se inscrevem então no campo das patologias ditas arcaicas (autismos e psicoses precoces), mesmo se essa concepção das coisas implica certamente uma visão estritamente desenvolvimentista dessas diversas patologias.

Como sempre nesse gênero de polêmica, uma terceira via existe, mais dialética, e que nós defenderemos de bom grado.

Essa terceira via consiste em pensar que o acesso à intersubjetividade não se realiza em um "tudo ou nada", mas que se realiza, ao contrário, de maneira dinâmica entre momentos da intersubjetividade primária efetivamente possíveis de imediato, mas fugidios, e prováveis momentos de indiferenciação; todo o problema do bebê e de suas interações com seu entorno sendo, precisamente, estabelecer progressivamente esses primeiros momentos de intersubjetividade lhes fazendo tomar o passo, de maneira mais estável e mais contínua, sobre os tempos de indiferenciação primitiva.

Parece-nos, por exemplo, que a descrição das mamadas por Meltzer (1980) como um tempo "de atração consensual máxima" evoca bem esse processo, uma vez que, segundo esse autor, no momento da mamada, o bebê teria transitoriamente a experiência de que as diferentes percepções sensitivo-sensoriais surgidas da mãe (seu odor, sua imagem visual, o gosto de seu leite, seu calor, sua qualidade tátil, sua condução) não são independentes umas das outras, ou seja, não estão divididas ou "desmanteladas" segundo as diferentes linhas de sua sensorialidade pessoal (aquela do bebê), mas, ao contrário, estão "manteladas" temporariamente. No momento da mamada e nessas condições, o bebê teria acesso ao vivido pontual que tem, inteiramente, um esboço de um outro exterior a ele, verdadeiro pré-objeto que assinala já a existência de um tempo de intersubjetividade primária.

Após a mamada, esse vivido de sensações manteladas esfuma-se novamente, o desmantelamento volta a ser predominante e, de mamada em mamada, o bebê vai, em seguida, trabalhar e retrabalhar essa oscilação entre mantelamento e desmantelamento para, finalmente, conseguir fazer prevalecer o mantelamento e, então, a possibilidade de acesso a uma intersubjetividade doravante estabilizada. O acesso à intersubjetividade corresponderia, então, a um movimento de confluência e de convergência progressivas desses núcleos de intersubjetividade primária.

Os trabalhos de Roussillon (1987; 2001a; 2001b) vão, igualmente, no mesmo sentido, indicando que o primeiro outro só pode ser um outro especular, suficientemente semelhante e um pouco não-semelhante de si (para retomar aqui a terminologia de Haag, 1985; 1991; 1993; 2002), características do primeiro outro que convidam a se representar o acesso à intersubjetividade como um processo de despreendimento lento, mas precocemente escandido por momentos de diferenciação acessíveis no seio das interações.

Sabe-se que Roussillon (1987; 2001a; 2001b) integra profundamente em sua reflexão os trabalhos de Winnicott (1975; 1990) sobre a "transicionalidade" e aqueles de Milner (1976; 1990) sobre as características de "separabilidade" do objeto, perspectivas que não excluem em nada a noção dessa terceira via apresentada aqui.

Acrescentemos agora que, para nós, a intersubjetividade uma vez adquirida não é, portanto, um dado definitivamente estável. É uma conquista a ser preservada ao longo de toda a vida e mesmo a ser questionada em algumas circunstâncias, tais como o amor, o compartilhar emoções (sobretudo estéticas), as experiências grupais e, last but not least, o pensamento da morte.

Existe, sem dúvida, um autêntico bis dessa dialética na adolescência, com alternância entre afirmação narcísica e recusa do sujeito no seio dos grupos.

Em todo caso, quer a intersubjetividade seja apenas secundária ou gradualmente adquirida a partir de núcleos de intersubjetividade primária, essa dinâmica de diferenciação extrapsíquica traz nela o risco de uma certa violência na medida em que pode sempre realizar-se de maneira muito repentina ou muito brutal, ou seja, de forma traumática.

A NARRATIVA PRÉ-VERBAL OU ANALÓGICA

Pode-se distinguir hoje, no estado atual dos conhecimentos, uma narratividade sensorial, bem retomada por Nassikas (2004), uma narratividade comportamental e, enfim, uma narratividade verbal.

As narrativas sensorial e comportamental são do tipo analógica; a narratividade verbal é do tipo digital.

A narratividade sensorial esprime-se no registro do ser, organiza-se segundo uma "sintaxe do sentir" (Nassikas, 2004), remete a uma lógica dos invólucros e, como tal, se desenrolaria na atmosfera monádica. Já a narratividade comportamental remete à lógica binária dos laços primitivos, está ancorada no acesso à intersubjetividade e se desenrolaria, então, na atmosfera diádica. A narratividade verbal, por sua vez, exprime-se no registro do ser e do ter, se inscreve na lógica ternária das relações de objeto clássicas (sempre trianguladas, em referência a um terceiro real, imaginário ou simbólico) e se desenrolaria então, na jovem criança, antes na atmosfera triádica.

A narratividade pré-verbal engloba a narratividade sensorial e a narratividade comportamental. Ela dá toda sua importância ao corpo, à imagem motora e às figurações comportamentais. Ao se concebê-la mais como um acompanhamento paralelo da narratividade verbal do que como uma precursora desta no sentido estrito (Stern, 1989; 1992; 1995; 2003), a narratividade pré-verbal mantém-se, então, ao longo de toda a vida, enquanto processo de ligação. É ela que nos conduz ao "O que é que você nos narra?", perguntado ao bebê. Conduz-nos ao "O que é que você nos mostra ao invés de nos dizer?", perguntado ao adolescente.

O PAR DEPENDENCIA/AUTONOMIA

Quer seja em termos de fixação (duplicado sobre a "base de segurança" ou exploração do mundo) ou em termos de narcisismo, de antinarcisismo e de objetalidade (investimento de si ou do objeto), tanto o bebê quanto o adolescente vivem ao mesmo tempo e de maneira complementar, mesmo conflitual, uma necessidade de dependência e de autonomia com abertura para o exterior.

É toda a questão de distância do objeto que se encontra aqui colocada e que Jeammet (2004) bem descreveu como "a síndrome corso" dos adolescentes: se nos preocupamos com eles, sentem-se perseguidos, mas se os deixamos livres, eles se sentem abandonados...! Lembra, também, a parábola dos porcos-espinhos de Schopenhauer, citada por Freud: quando estão muito próximos, ficam aquecidos, mas espetam-se; quando estão muito afastados, não se espetam, mas sentem frio!

Em realidade, parece-me aí haver uma certa correspondência entre a problemática dos adolescentes que se sentem perseguidos por aquilo do qual eles sentem, precisamente, necessidade (quer se trate de um sentimento de perseguição pelo objeto ou pelo próprio laço de dependência) e a problemática dos bebês que experimentam o nascimento do objeto como uma etapa necessária, mas dolorosa (e está aí toda a dialética difícil da passagem da dependência absoluta à dependência relativa, cara a Winnicott, 1975; 1990).

Então, tem-se aí, igualmente, a manutenção de um mesmo tipo de trabalho psíquico, de um trabalho psíquico análogo a essas duas idades da vida.

A QUESTÃO DA BISSEXUALIDADE PSÍQUICA, ENFIM

A questão da bissexualidade psíquica comporta, evidentemente, raízes extremamentes precoces, e nós só faremos relembrar aqui os trabalhos de Houzel (2002), que mostraram muito bem que, antes de se realizar em termos de objeto total (homem e mulher), a bissexualidade psíquica se realiza primeiramente no nível dos invólucros corporais e psíquicos (equilíbrio dialético entre o holding ou a contenance feminina ou maternal e a regulação masculina ou paternal dos limites), depois, no nível das relações de objeto parcial (com a instauração e o emprego dos diferentes pares de oposição sensorial contrastados).

Nessas condições, nota-se bem como o originário dessa bissexualidade psíquica (no nível dos invólucros) vê-se progressivamente retrabalhado nos níveis posteriores (relações de objeto parcial e relações de objeto total) e como esse destino particular do originário remete a uma dimensão de globalização, de totalização e de integração progressiva da problemática concernida.

Essa dinâmica não pode evidentemente conceber-se nem exclusivamente nos termos da teoria das pulsões, nem exclusivamente nos termos da teoria das relações de objeto, mas, novamente, percebe-se que o ultrapassamento da clivagem entre esses dois corpos teóricos foi muito mais abordado no registro das pulsões de vida do que naquele das pulsões de morte.

 

CONCLUSÕES

Os destinos do originário, tão complexos que eles sejam, não podem ser conceitualizados em termos de desenvolvimento linear.

Quer eles sejam pensados em termos de pedestal [base] de processos psíquicos posteriores, em termos de materiais iniciais reativados em segundo tempo ou em termos de modalidades de trabalho psíquico mantendo-se ao fio dos remanejamentos estruturais da ontogênese, eles só podem ser modelados integrando os efeitos de a posteriori, tais como a psicologia e a psicopatologia psicanalíticas formularam (Laplanche, 1984; 1986; 1987; 1999; 2002).

Por isso, não há originário sem destino e não há destino sem originário.

Nós citaremos aqui três proposições de Widlocher (2000) que nos parecem essenciais:

-"O que a psicanálise deve explicar é a origem dos fantasmas sexuais infantis e não o desenvolvimento afetivo da criança".

-"A sexualidade infantil não é uma sexualidade prematura".

-"A sexualidade infantil é considerada como esboço prematuro da sexualidade genital" (posição freudiana de tipo fisiológica), ainda que "a sexualidade infantil não persista no adulto tal como um resíduo mal assimilado, mas como uma fonte de desejos e atividades criativas permanentes".

O termo destino nos convida, assim, a levar em consideração uma temporalidade não linear, a integrar os efeitos de encontro - e especialmente de encontro relacional - e então, finalmente, a nos fazer desistir claramente de uma concepção desenvolvimentista endógena, cuja evidência reducionista é demasiado simplista.

É somente a esse preço que poderemos então pensar o sujeito como depositário e portador de um certo grau de liberdade, lhe permitindo descobrir a alteridade sem cair nas armadilhas da alienação.

 

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NOTAS

1 Intervenção inicialmente prevista no quadro do Congrès National organizado por ocasião dos cem anos de Três ensaios sobre a teoria sexual de Sigmund Freud. "100 anos depois... A sexualidade infantil hoje", Espaço Pierre Cardin, Paris, 28 e 29 de janeiro de 2005.

 

 

Recebido em 7 de abril de 2008
Aceito para publicação em 27 de junho de 2008

 

 

Tradução: Bianca Novaes
Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e Doutoranda em Psicologia Clínica (PUC-Rio)

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