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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.20 no.1 Rio de Janeiro  2008

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Da consideração ao detalhe em Freud ao dispositivo Traço do Caso em Lacan1

 

From Freud's consideration to detail to Lacan's Trait of the Case device

 

 

Luís Fernando Barnetche Barth

Psicanalista e Psicólogo; Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); membro do Serviço de Atenção a Criança, Adolescente e Família (SACAF) do município de Cachoeirinha - RS

 

 


RESUMO

Este artigo parte do problema do sigilo na apresentação pública de um caso clínico buscando apoio para essa questão em duas diferentes abordagens do traço em psicanálise. Primeiro, o autor examina a Consideração ao Detalhe, retirada do texto freudiano "O Moisés de Michelangelo", para, em seguida, apresentar o dispositivo lacaniano Traço do Caso.

Palavras-chave: caso clínico; consideração ao detalhe; dispositivo Traço do Caso


ABSTRACT

This article starts from the secrecy problem in the public presentation of a clinical case, targeting support for this issue in two different approaches of trait in psychoanalysis. Firstly the author examines the consideration to detail, extracted from Freud's text "Moses of Michelangelo", and secondly presents Lacan's device trait of the case.

Keywords: clinical case; consideration to detail; trait of the case device


 

 

O sigilo sempre foi uma questão delicada para a psicanálise. Freud ([1905] 1972) já se preocupava com a possibilidade de os dados revelarem a identidade do paciente e essa foi a causa de ter esperado por cinco anos até a publicação de "Fragmento da análise de um caso de histeria" conhecido como caso Dora, retirado do tratamento da jovem Ida Bauer, realizado entre 14 de outubro e 31 de dezembro de 1900 (Flem, 1988).

Nas "Notas preliminares" desse artigo, Freud ([1905] 1972) faz importantes afirmações sobre a apresentação da história de um caso clínico. Em primeiro lugar, ele se diz embaraçado com o fato de publicar o resultado de suas investigações, sem que outros pesquisadores pudessem verificar a natureza surpreendente de seus achados. Na seqüência, afirma ter sido acusado de não dar informações sobre seus pacientes e, agora, encontra-se na iminência de ser acusado por revelá-las em demasia.

Freud ([1905] 1972) assevera que a apresentação de seus casos clínicos é um problema de difícil solução para ele próprio. Tais causas são, por um lado, atribuídas à natureza técnica e, de outro, às próprias circunstâncias. Ressalta, então, que as causas das perturbações histéricas devem ser buscadas na particularidade da vida psicossexual dos pacientes, assim como os sintomas são a expressão de desejos inconscientes, e que a apresentação completa da resolução de um caso pode implicar a revelação dessas particularidades.

Os psicanalistas não podem esperar que os pacientes derrubem as resistências que dificultam a revelação de determinados dados, segundo Freud ([1905] 1972), se souberem que tais dados possam ter uma finalidade científica, bem como se torna inútil pedir a autorização do paciente para a publicação de sua história clínica. Para o autor, o psicanalista assume deveres também em relação à ciência, além dos deveres para com o paciente. Freud vê, no compromisso com a ciência e com todos aqueles que sofrem ou sofrerão de determinado mal, as razões para a publicação do que averiguou sobre as causas e a estrutura da histeria. Ressalta, igualmente, ter tomado todas as precauções para evitar qualquer dano a sua paciente.

Além de ter modificado deliberadamente tudo o que pudesse identificar a paciente em questão, como, por exemplo, os nomes das personagens envolvidas, Freud ([1905] 1972) teve o cuidado de fazer publicar esse artigo em uma revista científica, o que significa restringi-lo ao círculo dos estudiosos. No entanto, ele entende que, caso a história clínica de Dora caia nas mãos de Ida Bauer (nome verdadeiro de Dora), ela não encontrará nada que não seja de seu conhecimento e, ainda, apenas ela poderá se reconhecer nesse relato. Freud garante modificar qualquer elemento que permita a leitura de uma história clínica como um roman à clef, ou seja, como uma obra literária cujas personagens e situações possam ser identificadas na vida real. Todavia, garante que as questões sexuais sejam discutidas com total franqueza, chamando os órgãos e as funções sexuais pelos nomes apropriados.

Freud ([1905] 1972) especifica as dificuldades técnicas encontradas na elaboração do caso Dora. A primeira delas refere-se à dificuldade no registro escrito do material, durante as sessões, com vistas à publicação do caso clínico, pois a tarefa, além de abalar a confiança do paciente e de dificultar o seu processo de associação, torna-se difícil quando o analista atende de seis a oito pacientes por dia. A história clínica foi escrita de memória, depois de terminado o tratamento e com interesse na publicação. Como se sabe, Freud organizou esse caso a partir do relato de dois sonhos e as alterações introduzidas tinham como único objetivo uma melhor apresentação do caso.

Alguns dos pontos tratados nessas notas preliminares são novamente e melhor esclarecidos no artigo "Conselhos ao médico no tratamento psicanalítico" (Freud, [1912] 1975). Para efeito desse artigo, somente abordaremos aqueles que tiverem ligação com o recolhimento de material clínico e com a apresentação científica dos mesmos.

Como primeira recomendação, Freud ([1912] 1975) aconselha que o analista não se preocupe em memorizar todos os dados trazidos pelo paciente, apoiando-se na atenção uniformemente suspensa ou eqüiflutuante, a fim de não dar maior ênfase a algum material em detrimento de outro. Muitas das coisas escutadas em análise só terão sentido em um momento ulterior, por isso não se deve desprezar os dados aparentemente sem sentido.

A segunda recomendação fica por conta da impressão desfavorável no paciente ao se tomar notas durante as sessões, as quais devem ser evitadas. Freud ([1912] 1975) também lembra que tal expediente implica seleção do material, o que deve ser evitado numa análise. Exceções a essa regra ficam por conta de datas, texto de sonhos ou fatos literalmente dignos de nota para fins científicos. Mesmo assim, o pai da psicanálise afirma guardar tais dados de memória, transcrevendo-os somente à noite, após ter encerrado os atendimentos.

Ainda sobre a tomada de notas durante a sessão com o intuito de publicar um caso, Freud ([1912] 1975) ressalta que relatórios minuciosos de análises são de pouco valor, já que a exatidão ostensiva, além de enfadonha para o leitor, não substitui sua presença numa análise. Hoje, podemos acrescentar que a utilização de outros meios de registro audiovisual - tão freqüentes nas pesquisas atuais - também não captaria os processos realmente em jogo em uma análise, deslocando-se para a ordem escópica o que é da ordem da escuta significante. Quanto a isso, basta que retomemos o parágrafo acima para verificarmos que Freud fala no registro do texto de um sonho, não de suas imagens.

Em seguida, Freud ([1912] 1975) afirma que pesquisa e tratamento são coincidentes, mas até certo ponto, pois analisar com o intuito de publicar a história clínica pode comprometer a escuta do analista em favor do seu lado pesquisador. Os melhores casos, segundo o autor, são aqueles retirados de tratamentos desenvolvidos sem a intenção de uma apresentação científica, aconselhando os analistas a submeterem o material clínico obtido em um tratamento a uma visão sintética somente depois de concluída a análise.

Quanto ao enlace entre a clínica e a pesquisa psicanalítica, Figueiredo, Nobre, e Vieira (2001) são enfáticos:

A proposta de Pesquisa Clínica em Psicanálise é a de construir um saber que não seja apenas sobre a psicanálise em seus fundamentos teóricos, e sim a partir da clínica psicanalítica, na medida em que esta opera na instituição universitária e no campo da saúde mental. A própria junção entre teoria e prática só pode ser realizada no exercício permanente da clínica, onde os pressupostos teóricos que a fundamentam podem ser postos à prova (Figueiredo, Nobre & Vieira, 2001: 12).

Os mesmos autores chamam atenção para o fato de que, embora pesquisa e clínica estejam ligadas, não há uma garantia, a priori, de que as duas possam ocorrer. O que a experiência mostra é que há certa dissimetria entre os dois aspectos, ou seja, pesquisa e clínica não coincidem de forma absoluta, o que coloca o psicanalista-pesquisador em uma situação de tensão em sua escuta analítica.

Destarte, ainda que a pesquisa psicanalítica universitária disponha, em alguns casos, de um ambulatório ou de uma enfermaria, como previu Freud ([1919] 1976) em "Sobre o ensino da psicanálise nas Universidades", isso não garante a realização de uma pesquisa psicanalítica. Entendo que a pesquisa psicanalítica universitária é aquela que recebe a chancela da universidade, independentemente do local onde se encontra a clínica do pesquisador. Isso quer dizer que o apoio material à pesquisa pode ser buscado nos hospitais, nas clínicas e nos ambulatórios públicos e, ainda, na clínica privada do psicanalista. O que está em jogo é a apresentação dos achados de pesquisa através da estrutura universitária.

A necessidade de modificar os dados para que a identidade do paciente seja preservada também recebeu a crítica de Freud (McGuire, 1993), que, na carta de 30 de junho de 1909 a Jung (carta 149F), ao comentar o caso de o Homem dos Ratos, se queixa de ter de modificar as grandes obras criadas pela natureza, dificultando a tarefa de descrever uma análise. Um comentário similar foi feito ao pastor Pfister, em uma carta um ano depois, datada de cinco de junho de 1910:

Acho, portanto, que a análise sofre do mal hereditário da virtude. Ela é a obra de um homem decente demais, que também se sabe comprometido com a discrição. Acontece que estas questões psicanalíticas somente são compreensíveis numa certa totalidade e minuciosidade, assim como a própria análise só anda quando o paciente desce das abstrações substitutivas para os pequenos detalhes. A discrição é, portanto, incompatível com uma boa configuração de uma análise. A gente precisa tornar-se um mau sujeito, jogar-se fora, abandonar, trair, comportar-se como o artista que compra tintas com o dinheiro do orçamento doméstico da esposa, ou aquece o ambiente para a modelo queimando os móveis da casa. Sem tal dose de criminalidade, não há produção correta (Freud & Meng, 1998: 53-54).

 

A CONSIDERAÇÃO AO DETALHE

Nesse breve comentário, podemos entrever um aspecto relacionado à própria técnica psicanalítica e que também foi alvo da especulação freudiana: a consideração ao detalhe. Em 1913, Freud ([1914] 1975) escreve anonimamente para a revista Imago o artigo "O Moisés de Michelangelo", assinando como de***, embora já o tivesse planejado desde 1912. Segundo a breve introdução, Freud visitou a estátua em setembro de 1901 - no quarto dia de sua primeira visita a Roma -, tornando a visitá-la em outras ocasiões.

Em uma nota de rodapé associada ao título, os editores afirmam que aceitaram a publicação do artigo, visto que o autor era pessoa conhecida do círculo psicanalítico, cuja maneira de pensar se aproximava da metodologia da psicanálise, embora tal trabalho não estivesse conforme as normas para a publicação na Revista. A real autoria desse artigo só foi revelada em 1924.

De início, Freud ([1914] 1975) afirma, de forma anônima, não ser um conhecedor de arte, embora fosse atraído por ela independentemente dos aspectos formais e técnicos. Dentre as artes, o autor confessa dar maior atenção à literatura e à escultura, exercendo menor influência sobre ele a pintura. Afora isso, a música não exerceu maior influência sobre Freud.

Isto posto, Freud ([1914] 1975) declara não se permitir sentir sem que seu lado racional explique o porquê dos sentimentos nele despertados. Assim, sua tarefa diante da grande obra de Michelangelo é buscar transpor em palavras a intenção do artista, supondo haver uma similitude entre a atitude emocional do espectador e a força pulsional (Triebkraft) que concorre na criação artística. Ele pergunta, então: "Mas por que a intenção do artista não pode ser descrita e concebida em palavras como qualquer outro fato da vida anímica?" (Freud, [1914] 1975: 198; tradução nossa). Para a concretização, e acreditando que fosse a psicanálise a única capaz de dar conta da tarefa de transpor em palavras a intenção do artista, Freud intenta uma interpretação (Deutung) da obra, ou seja, a descoberta de seu significado e de seu conteúdo. Como exemplo, ele cita a tragédia Hamlet, de Shakespeare, a qual parece ter seu efeito misterioso revelado somente após as contribuições psicanalíticas sobre o Complexo de Édipo.

Essa outra obra a merecer a atenção do pai da psicanálise, a estátua de Moisés, foi esculpida em mármore por Michelangelo. Ela se encontra em Roma, na Igreja de São Pietro in Vincoli. Possivelmente feita entre os anos 1512 e 1516, essa estátua constitui apenas um fragmento da tumba que seria erguida ao Papa Júlio II e representa Moisés segurando as tábuas dos 10 mandamentos.

É nas dúvidas suscitadas pela figura de Moisés que Freud ([1914] 1975) julga estar oculto tudo o que há de essencial e importante para a compreensão dessa obra de arte. A partir daí, Freud descreve a escultura desse Moisés com cabeça de Pan. Para ele, aquilo que não foi compreendido deu margem a percepções e interpretações inexatas, principalmente no tocante à posição do braço direito, que repousa sobre as tábuas da lei, assim como em relação à mão esquerda, que prende a barba ao corpo. Mais indefinida ainda é a fisionomia de Moisés, a qual sugere, dependendo do crítico de arte, tanto ira e dor quanto a grandeza do espírito de Moisés ou mesmo a total falta de significado da figura.

Outro ponto é relativo a que aspecto da vida de Moisés Michelangelo teria imortalizado nessa obra. Seria uma visão do caráter de líder religioso ou de algum momento específico da sua trajetória? Muitos críticos apontam o momento histórico da descida do Monte Sinai, após ter recebido de Deus as Tábuas da Lei. Nesse caso, a estátua representaria o instante anterior ao que Moisés arremessa as Tábuas ao chão, ante o fato de seu povo infiel adorar o Bezerro de Ouro. De modo geral, a figura mostra Moisés pronto para se levantar e agir.

Freud ([1914] 1975) lembra que a estátua em questão deveria figurar entre outras cinco igualmente representadas sentadas, como tipos diferentes de modelos do caráter humano - vita activa e vita contemplativa -, excluindo a intenção de representação de um momento histórico particular. Um esboço posterior mostra que Moisés deveria ser acompanhado de apenas mais três figuras. Destarte, a estátua de Moisés figuraria ao lado da escultura de Paulo. Outro par a representar a vita activa e a vita contemplativa, Lia e Raquel, acabou por ser executado de pé e até hoje permanece inacabado.

A conclusão a que chega Freud ([1914] 1975), em consonância com um dos autores por ele citado, é que Moisés representa um específico tipo de caráter, qual seja, o de um apaixonado líder da humanidade diante da resistência incompreensiva dos homens. Assim, a figura representa o conflito de emoções dando vida também às próprias experiências internas de Michelangelo, bem como da personalidade do Papa Júlio II. Freud busca compreender a báscula representada pelo ardor interno e a aparente tranqüilidade externa da postura de Moisés.

No segundo capítulo desse artigo, Freud ([1914] 1975) lembra a importância de Ivan Lermolieff, um conhecedor de arte russo que revolucionou o mundo da arte através de sua técnica inovadora de reconhecimento da autenticidade de uma obra. Segundo esse conhecedor, que, na verdade, era um médico italiano de nome Morelli, a distinção entre o original e as cópias deveria ser buscada não no aspecto geral da obra de arte, mas nos detalhes de menor importância, como, por exemplo, na representação das unhas e dos lóbulos da orelha. Para Freud, a técnica desenvolvida por Lermolieff-Morelli guarda semelhanças com a técnica psicanalítica. Quanto a esse método, Freud é muito incisivo ao afirmar: "Creio que este método é parente próximo da técnica da psicanálise médica, a qual também está habituada a adivinhar o latente e o oculto a partir dos traços [Zügen] menosprezados ou não considerados, do resíduo - do lixo - da observação" (Freud, [1914] 1975: 207; tradução nossa).

Utilizando-se do estudo dos detalhes da obra, Freud ([1914] 1975) debruça-se sobre dois aspectos insuficientemente explicados pelos críticos de arte, quais sejam, a postura da mão direita e a posição das Tábuas da Lei. Ele tece minucioso comentário sobre a maneira estranha com que Moisés segura sua longa barba e também conclui que as Tábuas da Lei, a despeito de serem objetos sacros, foram concebidas de cabeça para baixo e ligeiramente apoiadas sobre uma quina. Então, isso leva Freud a pensar que a figura dá idéia de continuidade de um movimento já executado anteriormente e não do instante anterior a um acesso de fúria. Assim, Moisés teria dominado seu impulso, ao se lembrar da importância de sua missão. A figura guarda a representação de três divisões de camadas distintas à medida que a olhamos de cima para baixo: o rosto faz menção aos afetos que foram dominados; no meio da figura, encontram-se os evidentes traços (Zeichen) do movimento reprimido (unterdrückten Bewegung); e o pé ainda se mostra na posição da ação pretendida. Por outro lado, a posição do braço esquerdo, a repousar a mão suavemente, ao mesmo tempo que acaricia delicadamente a barba, não fora ainda explicada.

Segundo Freud ([1914] 1975), a mudança na concepção desse Moisés, o qual mostra um homem a reter sua crise de ira, pode ser considerada uma blasfêmia a despeito do que é descrito nas Sagradas Escrituras, o que corrobora a hipótese de que Michelangelo não tinha a intenção de retratar um momento histórico específico, mas a de mostrar a capacidade de Moisés de se defender dos círculos inferiores da própria paixão em função das exigências de sua missão.

As explicações para as modificações na representação da figura de Moisés estariam, segundo alguns críticos lidos por Freud ([1914] 1975), no próprio caráter de líder do Papa Júlio II e no comportamento deste em relação a Michelangelo. Para Freud, a obra reflete um misto de censura ao pontífice, por sua tentativa de realizar sozinho o que custaria o tempo de mais de uma vida, e, por outro lado, uma advertência ao próprio escultor. Michelangelo e o Papa Júlio II eram homens de grandes objetivos.

Por fim, Freud ([1914] 1975) encontra, em um trabalho de Lloyd, os mesmos resultados a que chegou antes de ler sua pequena obra. Como ele, Freud também acredita que a postura de Moisés só pode ser explicada como conseqüência de um ímpeto anterior, embora Lloyd não utilize o exame dos pormenores dissonantes para a sua interpretação. Para Freud, Michelangelo foi ao limite de sua possibilidade de expressão, considerando que seu intuito fosse o de fazer adivinhar a violenta tempestade de excitação no decurso do retorno à tranqüilidade.

Novamente, vemos a importância dada aos traços (Zügen) pelo método psicanalítico. Seguir as possibilidades sugeridas por eles, como no bonito artigo freudiano acima citado, é optar por um distanciamento em relação à metáfora que faz uma aproximação da técnica psicanalítica com o trabalho arqueológico.

No artigo "Construções em análise", Freud ([1937] 1975) compara o trabalho do psicanalista ao do arqueólogo, uma vez que cabe àquele completar ou construir o que foi esquecido pelo paciente a partir dos traços deixados pela experiência. A construção se dá, tanto para a psicanálise quanto para a arqueologia, por suplementação e combinação dos restos encontrados, embora o material analítico não esteja destruído, mas ainda vivo. Todavia, algumas diferenças devem ser destacadas: os objetos psíquicos são muito mais complexos do que os encontrados nas escavações e o analista não tem um conhecimento prévio do que pode encontrar; e as reconstruções são o objetivo final do escavador enquanto que, para a psicanálise, a construção é apenas um trabalho preliminar. Então, proponho que se faça uma distinção entre detalhe e fragmento.

A própria escultura de Moisés figura como um fragmento da monumental tumba de Júlio II. Na metáfora arqueológica freudiana, esse fragmento faz alusão ao todo da peça ou a sua ruína, pois é a partir dele que se pode inferir, respectivamente para a arqueologia e para a psicanálise, o complexo arquitetônico e o complexo inconsciente. Todavia a utilização dos detalhes dispensa a presença de todos os elementos ou mesmo a referência a uma idéia de todo. Segundo o que proponho, a visibilidade do traço mostra-se no detalhe. Dito de outra forma, o detalhe revela o traço.

Proponho analisar o todo da obra arquitetônica, incluindo-se aí as esculturas planejadas e que nunca foram realizadas, em relação ao conjunto de traços (Spuren) constituintes quando comparados à formação do aparelho anímico. Destarte, esses traços estariam aí determinados, ainda que jamais tenham sido conhecidos - dados a ver -, permanecendo irrecuperáveis tais quais os traços de uma impressão. Todavia, será através do detalhe mais anódino que teremos acesso a esse traço (Zug) capaz de ressignificar a obra. Esse traço em sua qualidade de Zug, que, ao contrário dos Spuren, já guarda em si uma relação significante com a obra.

Freud ([1914] 1975) parte do fragmento da tumba figurado por Moisés, mas é no detalhe desse fragmento que o psicanalista apoiará suas especulações. Pode-se dizer que o detalhe toma corpo e ganha status de totalidade em si. Diferentemente do fragmento, o qual estará sempre em relação ao todo irrecuperável, o detalhe dispensa o todo, ou melhor, destaca-se dele como elemento dissonante, mas significante, prontamente oferecido às construções.

Mannoni (1994) afirma que o artigo "O Moisés de Michelangelo" é um auto-retrato muito sincero de Freud, na medida em que foi escrito de forma anônima. O autor salienta que Freud se via na mesma posição de Moisés - figura que, aliás, o fascinava -, ao enfrentar as divergências de opinião e as ameaças de dissidências no seio do movimento psicanalítico. As Tábuas da Lei, nesse caso, simbolizam as difíceis decisões buscadas por Freud.

Para Mannoni (1994), Freud não se analisou perante essa escultura da mesma forma como fez com a obra Édipo Rei, de Sófocles. O autor observa que aquilo que foi revelado por Freud é da ordem da resistência, concluindo que a crítica de arte, assim como a própria arte, pode servir às nossas resistências.

Quanto a esse artigo freudiano, observa-se que Freud só fala em nome próprio no Postscript. Pode-se dizer, então, que Freud ([1914] 1975) faz uma alegoria, na qual Freud descreve um fragmento (Moisés, em relação à tumba de Júlio II) para destacar e interpretar os detalhes dissonantes da figura, utilizando-se da técnica de Lermolieff-Morelli sobre o reconhecimento da originalidade de uma obra de arte.

Desse mesmo trabalho freudiano, Willemart (2005) faz a seguinte crítica: de que a função do artista não é a de expressar seu inconsciente - como imaginou Freud em relação a Michelangelo -, ainda que as obras de arte toquem em sua vida psíquica. Para o autor, o inconsciente do artista é inacessível sem suas próprias associações no divã, e, assim, não é possível descrever o inconsciente do outro. Todavia, teorizações e detecções de efeitos do inconsciente na obra são possíveis.

Willemart (2005) compara o trabalho de criação artística com a associação livre no divã. O projeto inicial é abandonado, se o artista se deixar levar durante o processo de concepção de sua obra. Destarte, tal qual ocorre no processo analítico a partir do discurso do analisante, no processo de criação artística há um remanejamento do inconsciente à revelia do artista. Todavia, o que Willemart (2005) parece negar é o sentido de construção trazido por Freud ([1914] 1975). O próprio artigo freudiano faz referências às contribuições de diversos autores que buscaram uma interpretação dessa escultura de Michelangelo. Calcado nessas diferentes versões, Freud oferece a sua visão, a qual, como mostrado por Mannoni (1994), não deixa de refletir um misto do caráter de Moisés e de Freud.

A partir da atenção dada por Freud à importância do traço, Lacan também acaba por destacá-lo em seu ensino e lança o significante Traço do Caso, o qual será retomado por seus seguidores.

 

O DISPOSITIVO TRAÇO DO CASO

O dispositivo Traço do Caso foi desenvolvido por Dumézil (1989) a partir desse significante um pouco enigmático e utilizado uma única vez por Lacan, mas que pode ser encontrado na quarta capa da primeira edição da revista Scilicet de número 1, de 1968. As demais edições não trouxeram mais o texto de apresentação no qual Lacan justificava o princípio do texto não assinado pelos seus respectivos autores naquela publicação. Tal princípio visava dar mais segurança para evocar o aspecto pessoal na prática clínica e, especialmente, o traço do caso. Diante da possibilidade de algum analisante ser reconhecido pelos demais em algum caso exposto por seu respectivo analista, na revista, Lacan opta por uma publicação na qual todos os textos sejam assinados em seu nome. Quanto a isso, Lacan ([1968] 2003) diz, textualmente:

A tal ponto que poderias, bacharel, perguntar-te como pudemos não perceber mais cedo o preço, para nós, de uma fórmula que já é de boa norma no melhor campo da crítica.
Que vaidade nos aponta ela, portanto - refiro-me a nós, os psicanalistas -, para que nenhum tenha visto a solução do problema permanente que suspende nossa pluma: o da mínima alusão que nos ocorre de fazer referência a um caso? Referência, como se sabe, sempre passível de ser denunciadora, por não sustentar um desvio tão comum que não se apóie no traço mais particular.
Ora, o que cria obstáculo aqui não é tanto que o sujeito se reconheça no texto, mas que outros o situem através do seu psicanalista (Lacan, [1968] 2003: 290).

Melman (2006) sugere outra explicação para esse princípio. Para ele, o objetivo da publicação de texto não assinado, bem ao estilo Bourbaki2, era que a autoria - de quem quer que fosse - estivesse excluída. Destarte, o sujeito não era o autor e estava fora dessa lógica matemática para a qual o que lança as bases, o que funda o sistema, é considerado um elemento externo a esse sistema.

Retomando, é preciso esclarecer que, tanto em francês quanto em alemão (incluindo o inglês), há termos distintos para traço, o que não ocorre na língua luso-brasileira. O seminário organizado por Dumézil (1989) trata do traço, que, em francês, se chama trait e, em alemão, Zug. É verdade que também encontramos o verbete trace na língua francesa, assim como Strich e Spur em alemão, os quais também são vertidos para o português como traço.

Para efeito desse artigo, tomo trait e Zug como traço, característica, sinal ou marca. Nessa acepção, o traço é o representante de um objeto e pode ser observado nos demais traços (traces); é estilo e ética e também é usado para designar traço de personalidade ou caráter. Ele é o que uma vez deflagrado não pode não acontecer. Por outro lado, tomo trace como traço, vestígio, pista ou rastro. Nessa acepção, traço significa algo produzido no ambiente que denuncia a presença anterior de alguém, e temos, na escritura, um bom exemplo dele. Nas palavras de Lacan ([1957-1958] 1999):

Um traço é uma marca, não é um significante. A gente sente, no entanto, que pode haver uma relação entre os dois, e, na verdade, o que chamamos de material significante sempre participa um pouco do caráter evanescente do traço. Essa até parece ser uma das condições de existência do material significante. No entanto, não é um significante (Lacan, [1957-1958] 1999: 355)

Lacan ([1957-1958] 1999) dá como exemplo a pegada de Sexta-feira encontrada por Robinson Crusoé. Para o autor, ela não é um significante. Todavia, se o náufrago apagar essa pegada - esse traço -, estará introduzindo a dimensão significante com esse ato de apagamento, por atestar uma presença passada. O autor chama atenção para o fato de que, após o apagamento, o que resta é o próprio lugar onde foi apagado, e é esse lugar que sustenta a transmissão.

Para Dumézil (1989), a polissemia da palavra traço, principalmente quando associada ao termo caso, torna operatória essa montagem significante por sua própria equivocidade. O autor vai mais longe, ao afirmar que o caso não é o analisante, não é o tratamento, não é nem a observação, nem a anamnese, e nem mesmo o analista. O caso é um pouco de cada uma dessas coisas.

Esta expressão, introduzida por Lacan ([1968] 2003), foi tomada por Dumézil (1989) no sentido de propô-la como um dispositivo e como uma ficção operatória, com o intuito de apoiar o curso da experiência e da reflexão teórica. Quanto a sua face de dispositivo, ainda que receba a mesma designação dada ao enquadre que delimita o espaço analítico ou o que é comumente chamado de contrato, não tem a conotação de alguma obrigação. No funcionamento do dispositivo Traço do Caso, o autor destaca duas particularidades: a primeira delas é não consignar, aos participantes, um lugar determinado, particularmente, em relação ao Sujeito Suposto Saber; a segunda é permitir ao analista que fala de um tratamento operar uma passagem do privado para o público, a qual acarreta uma parcela de gozo.

O segundo elemento do funcionamento é como uma ficção operatória. Essa ficção corresponde, para Dumézil (1989), a uma extensão simbólica, ou seja, a um procedimento que consiste em supor um fato ou uma situação diferente da realidade pela dedução das conseqüências. Podemos ainda dizer que o Traço do Caso como ficção é uma convenção destinada a fazer existir um ser abstrato e a permitir, dessa forma, certo número de operações, assim como, por exemplo, os números negativos e infinitos são ficções matemáticas. Também observamos o uso desse recurso em áreas como o direito. Nela, a pessoa moral aparece como ficção jurídica, facilitando o estabelecimento de princípios. Na psicanálise, a regra fundamental também opera como uma ficção no tratamento.

É nessa perspectiva do Traço do Caso que o analista realiza o procedimento de expor certos momentos privilegiados de um tratamento, colocando em jogo um deslocamento de sua própria posição enunciativa num espaço que possibilita aparecer isso que é capaz de fazer traço com momentos relativos do tratamento. Ele também permite uma modificação dessa posição enunciativa pelo levantamento de uma censura ou pelo recalcamento de uma palavra ou de uma formação inconsciente. O Traço do Caso será isso que faz laço ou corte entre a história do sujeito e as estruturas em causa no tratamento, funcionando como uma perspectivação desse laço e podendo ser definido como qualquer coisa de temporariamente operatória entre o desejo do paciente e o desejo do analista.

Se o controle se endereça aos analistas iniciantes ou aos analistas que encontram dificuldades com pacientes em tratamento, explorando toda a dinâmica de um tratamento em curso, bem como a análise do espaço transferencial, o Traço do Caso corresponde melhor a um trabalho realizado a posteriori (après-coup), através da relação entre diferentes momentos do tratamento ou entre vários tratamentos, funcionando para além do tempo de controle (supervisão). O Traço do Caso será um dos meios de elaborar no après-coup desse tempo, no qual o analista encontra a certeza de seu ato a partir da elaboração de um saber inconsciente.

A apresentação escrita de um caso metapsicológico corresponderia, assim, à escritura do traço, permitindo sua circulação na comunidade de pesquisadores, sem o risco de tornar pública a identidade do paciente.

Os avanços na teoria psicanalítica podem ser apresentados de modo a dispensar o uso de um caso clínico na forma como classicamente são apresentados. Todavia, a escritura de um historial clínico bem delineado, ou seja, que se utilize adequadamente do recurso da narratividade do relato histórico das falas que um paciente traz às consultas parece ser ainda um recuso válido e, muitas vezes, de muita ajuda para a melhor exposição dos elementos em jogo. Assim, o problema do sigilo, já enfrentado por Freud desde o início de sua grande obra psicanalítica, acaba por ser sistematicamente colocado a cada vez que nos aventuramos em esboçar um caso clínico.

Como foi visto anteriormente, a consideração ao detalhe desenvolvida por Freud ([1914] 1975) aponta para a possibilidade de trabalharmos com os elementos advindos de um tratamento psicanalítico ainda que de forma parcial, desde que nos deixemos levar pelos detalhes dissonantes, na medida em que o detalhe revela o traço (Zug), furtando-nos da idéia de um fragmento em relação ao que seria um todo hipotético. Nesse sentido, as vinhetas ou excertos de um caso clínico ganham aqui todo o seu destaque.

Por outro lado, a psicanálise lacaniana soube trabalhar o significante Traço do Caso no sentido de buscar um elemento mínimo que tenha representação nos registros simbólico, imaginário e real, porém sem o risco de revelar a identidade do paciente. De Freud a Lacan, esse parece ser um caminho possível na necessidade de resguardar a identidade do paciente sem ceder ante a tentativa de avanço da pesquisa psicanalítica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Artigo retirado da tese de doutorado Da Figuração à Transfiguração da Fantasia na Construção do Caso: as ficções metapsicológicas defendida, pelo autor, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio grande do Sul (UFRGS), sob a orientação da professora Dra. Maria Nestrovsky Folberg.
2 A partir de 1939, um grupo fundado por ex-alunos da Escola Normal Superior publica os Elementos Matemáticos, de acordo com uma ordem lógica e com terminologia precisa, sob o pseudônimo de Nicolas Bourbaki.

 

 

Recebido em 10 de janeiro de 2008
Aceito para publicação em 12 de maio de 2008

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