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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.20 no.1 Rio de Janeiro  2008

 

SEÇÃO ESPECIAL

 

Em busca do amor perdido: um diálogo sobre o casamento entre homens espanhóis e mulheres brasileiras

 

In search of love lost: a dialogue about the marriage between Spaniard men and Brazilian women

 

 

Mirian GoldenbergI; Jordi RocaII

IDoutora em Antropologia Social e professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
IIAntropólogo, professor e coordenador do Mestrado em Antropologia Urbana da Universidade Rovira i Virgili de Tarragona, na Espanha

 

 

INTRODUÇÃO

A antropóloga Mirian Goldenberg esteve em Tarragona, Espanha, em novembro de 2007, onde iniciou esta conversa com o professor Jordi Roca. O diálogo prolongou-se ao longo dos meses seguintes e resultou, em sua forma final, na entrevista que se segue e que traz um conteúdo elucidativo, fornecendo informações e conhecimentos transculturais acerca de temas tão importantes, como papéis de gênero, amor, emancipação feminina, migração, entre outros. Ao final da entrevista, encontra-se a listagem dos principais trabalhos levados a cabo pelo antropólogo Jordi Roca.

MIRIAN: Jordi, conte um pouco sobre o seu atual projeto de pesquisa.

JORDI: Nos últimos dois anos, coordeno um projeto, financiado pelo Instituto da Mulher do governo da Espanha, intitulado "Amor importado, migrantes por amor: la constitución de parejas entre españoles y mujeres de América Latina y de Europa del Este en el marco de la transformación actual del sistema de género en España". Ele tem como objetivo conhecer e analisar a realidade de casamentos resultantes de um processo ativo de busca por homens espanhóis de mulheres não-espanholas- especialmente de países eslavos (Rússia e Ucrânia) e latino-americanos (Brasil e Cuba). A pesquisa situa-se no marco das transformações dos papéis de gênero produzidas na Espanha nas últimas décadas e na emergência de novas formas de amor e de convivência que, em parte, as novas tecnologias de informação e de comunicação tornaram possíveis. O interesse específico nesses casais se concretizou em uma abordagem dos motivos pelos quais homens espanhóis e mulheres não-espanholas buscam um parceiro com as características uns dos outros, nas diferentes modalidades de busca, nos perfis de ambos, na consolidação ou não da relação e nos processos de negociação nos campos da conjugalidade, sexualidade, etc. Também quero entender a redefinição dos papéis de gênero que esse tipo de relação produz, tanto para cada um dos membros, como para o casal como um todo, para seu entorno familiar, amigos, colegas de trabalho, etc.

MIRIAN: Que tipos de esposas estrangeiras os espanhóis buscam?

JORDI: Fenotipicamente distintas, mas não muito; que estejam em algum plano de inferioridade-subordinação e que lhes garantam o sentimento de se sentirem reconhecidos e necessários. Penso em uma hipótese que pode ser interessante. Os homens espanhóis buscam:

Natureza: a mulher latina ("naturalmente" sensual, sexual, erótica, "caliente", mas que não tem modos refinados, "pouco civilizada").

Cultura: a mulher eslava (fria e distante, educada, culta, preparada, com bons modos, "mais civilizada").

MIRIAN: Por que os homens espanhóis vão buscar esposas fora da Espanha?

JORDI: Porque:

a. podem fazê-lo (facilidades de mobilidade física e virtual);

b. querem fazê-lo (não desejam casar-se com a mulher espanhola);

c. conhecem essas mulheres não-espanholas por meio do turismo e de sua presença como imigrantes na sociedade espanhola, e têm delas uma imagem que lhes recorda algumas das características das mulheres espanholas de 30 anos atrás.

MIRIAN: Essa idéia é interessante. Que tipo de mulher que eles buscam lhes recorda a espanhola de 30 anos atrás?

JORDI: Fundamentalmente, eles estariam buscando uma mulher que prioriza a dedicação à família e o âmbito doméstico-reprodutivo, frente ao trabalho ou à realização profissional. Uma mulher que valoriza a formação de uma família - matrimônio, filhos - mais do que qualquer outra coisa. Isso não supõe negar a possibilidade dessas outras coisas - trabalho, por exemplo -, mas desde que a família ocupe o lugar central. O principal é casar-se e ter filhos, a dedicação e o cuidado com o marido e filhos - daí a ênfase desses homens em citar como características dessas mulheres estrangeiras seu carinho, sua atenção, etc. Se, ou quando, esse homem espanhol permite a sua mulher realizar também um trabalho profissional, este deve ser adiado para depois da constituição da família e da criação dos filhos. A mulher espanhola, nas últimas décadas, realizou um grande processo de transformação de seu papel de gênero baseado em uma crescente incorporação e uma valorização de sua vida profissional, com um conseqüente esquecimento ou subordinação de seu papel reprodutivo. Uma evidência atual: a idade de casamento se retardou consideravelmente e mais ainda a idade de ter o primeiro filho. Os casamentos entre espanhóis e mulheres latinas e eslavas, ao contrário, se caracterizam pelo fato de essas mulheres desejarem intensamente ter filhos de forma imediata, fato que por sua vez contribui para aumentar uma certa repulsa social contra elas, por se ver nisso um meio de prender o marido.

MIRIAN: Ao entrevistar algumas mulheres catalãs, em novembro de 2007, percebi que a família ocupa um lugar central em suas vidas. Diferentemente das alemãs, encontrei mulheres que desejam ter marido e filhos e que, quando constituem uma família, dedicam tempo, atenção e preocupação em mantê-la feliz e unida. Embora elas, como as espanholas em geral, apresentem um projeto profissional, ele não é tão preponderante como os que encontrei entre as alemãs. Além disso, elas não mantêm um discurso de desvalorização dos homens como parceiros. Ao contrário, as catalãs falam de seus maridos como parceiros muito presentes, amorosos e sexualmente ativos. Outro aspecto interessante foi o fato de elas me dizerem que não há conflito nem discussões sobre as tarefas domésticas, que os homens já consideram serem suas obrigações algumas das tarefas dentro do lar, assim como o cuidado com os filhos. Chamou-me atenção que os homens parecem preferir cozinhar e gostam de todas as atividades ligadas à cozinha (compra dos mantimentos, escolha do cardápio, etc). Nesse sentido, os espanhóis que procuram mulheres estrangeiras não estariam fugindo desse modelo quase já institucionalizado atualmente de relacionamento mais igualitário exercido nos casamentos com as espanholas e buscando uma mulher que aceite uma posição desigual, isto é, que ocupe integralmente as responsabilidades com as tarefas domésticas, como no modelo antigo?

JORDI: Sim, por um lado, o estabelecimento de uma desigualdade é uma das principais razões de tais buscas e uniões, mas não é a única, ou melhor, não nesse único sentido. Como disse antes, é verdade que o perfil de um grupo desses homens espanhóis que se casam com estrangeiras com essas características é o do homem que sente falta e pretende recuperar aquele tipo de mulher tradicional, como se quisesse parar o trem das mudanças e transformações de gênero, um homem que imaginava e tinha a expectativa de encontrar nesse tipo de mulheres a "mulher perdida" de anos atrás. Mas também encontramos essas posições menos radicais que você demonstrou: a de homens que não são necessariamente contrários a uma certa divisão igualitária das tarefas domésticas e de uma vida profissional mais ou menos igual em termos de importância para eles e suas mulheres. Esses mesmos homens, entretanto, dizem estar cansados do que entendem ser uma certa atitude imperativa de reivindicação e de negociação contínua por parte delas. É verdade que por trás dessa atitude esconde-se igualmente uma incapacidade ou falta de vontade para aceitar plenamente essas mudanças. Por outro lado, alguns desses homens, ainda que resistam a manifestar publicamente isso, sentem falta de um maior reconhecimento, por parte de suas mulheres, de seu "esforço" adaptativo nessa direção. Finalmente, também encontramos homens, geralmente mais jovens, que já foram socializados com um espírito de igualdade entre os gêneros e que não buscam nas mulheres latinas e eslavas um tipo de mulher tradicional, ao menos de forma consciente. Poderíamos dizer, nesses casos, que sua busca faz parte de um novo supermercado mundial da intimidade, no qual cada um já não está mais sujeito às limitações do espaço físico, tal como acontecia até há muito pouco. Além disso, no caso espanhol, não se deve esquecer que a Espanha é o país da União Européia com maior dinamismo quanto a processos de imigração nos últimos anos, de modo que a familiarização-convivência dos espanhóis com a diversidade avançou muitíssimo na última década.

MIRIAN: Não lhe parece contraditório que esses homens busquem mulheres com características físicas, culturais e emocionais tão distantes? São quase mulheres opostas. O que une essas mulheres? Se são frias, por um lado, e "calientes", por outro, o que realmente atrai o espanhol? Neste sentido, a eslava não estaria mais próxima da mulher espanhola de hoje (fria, educada, preparada, culta, civilizada) e a latina seria, além do exótico e primitivo, a mulher espanhola de décadas atrás?

JORDI: Comentário muito pertinente. Certamente parecem, e são, modelos de mulheres muito diferentes, inclusive opostas. De fato, parece produzir-se algo como a colocação da mulher espanhola como o padrão feminino e essas duas variações como uma certa extensão, até extremos opostos, de suas características. Assim o expressam alguns homens pesquisados, que dizem, por exemplo, que a mulher latina é "caliente", a mulher eslava é "fria" e a mulher espanhola é "temperada" ou "morna", quer dizer, nem fria nem "caliente". Deixando de lado estas gradações, na realidade o que une esses dois tipos de mulheres é o fato de que, no imaginário masculino espanhol, as eslavas e as latinas colocam o fato de se casar e formar uma família como algo prioritário e fundamental em suas vidas.

MIRIAN: Qual o perfil do espanhol que busca mulheres latinas?

JORDI: Em geral, um homem mais velho, com nível educacional médio-baixo, divorciado, com filhos que vivem com a ex-mulher. Mas há também homens mais jovens de nível profissional baixo.

MIRIAN: Qual o perfil das brasileiras que querem se casar com espanhóis?

JORDI: Mulher jovem, de classe baixa, com uma má relação com alguns aspectos de sua cultura, como, por exemplo, o machismo.

MIRIAN: Por que uma brasileira quer se casar com um espanhol?

JORDI: Para melhorar sua situação socioeconômica e de gênero.

MIRIAN: Por que um espanhol quer se casar com uma brasileira?

JORDI: Para encontrar uma parceira que lhe permita estabelecer relações de gênero "tradicionais", centradas na segregação de papéis.

MIRIAN: O que o espanhol mais valoriza em uma esposa?

JORDI: Que tenha admiração por ele e que adote um papel de certa submissão, dependência ou inferioridade (claro que tudo isso de forma muito sutil, discreta, já que ninguém manifestará esse desejo abertamente). Isso se percebe bem no fato de que o homem espanhol tolera muito mal que sua mulher tenha um salário ou prestígio profissional mais elevado do que o dele.

MIRIAN: Então, parece que o que as espanholas mais desejam hoje é a igualdade, dentro e fora do espaço doméstico, e o reconhecimento de sua atuação como profissionais, intelectuais, etc. Já as brasileiras e as estrangeiras que os espanhóis buscam para casar estariam mais centradas na família, especialmente no marido e nos filhos, e não na profissão. As brasileiras, portanto, ocupariam um lugar social que as mulheres espanholas não querem e não valorizam.

JORDI: Totalmente de acordo.

MIRIAN: Quais características as brasileiras mais valorizam em um marido?

JORDI: Que esteja com ela, de verdade; que se preocupe com ela; que não tenha desconfiança; que participe e colabore nas tarefas domésticas; que se sinta orgulhoso dela; e que goste de exibí-la em público.

MIRIAN: Quais os problemas típicos de um casal espanhol-brasileira?

JORDI: Os ciúmes e o trabalho da mulher fora de casa.

MIRIAN: Como você descreveria um tipo ideal de casal composto por uma mulher brasileira e um homem espanhol?

JORDI: Diferença de idade notável - a mulher 20 anos mais jovem do que o homem; a mulher mulata e o homem gordo e calvo; a mulher como dona de casa ou trabalhando em um setor não qualificado do ramo da hotelaria (camareira) e o homem com um trabalho mais estável, mas de pouca qualificação; com nível educativo de secundário ou primário para o homem e primário ou mais baixo para a mulher; nível cultural médio-baixo para o homem e baixo para a mulher.

MIRIAN: Essa mulher mulata e muito mais jovem do que o marido sofre algum tipo de preconceito na Espanha?

JORDI: Em geral, essa mulher, especialmente no início, pode ser objeto de preconceitos e de acusações de falsidade de seu amor para com o marido, de obscuras intenções econômicas que animam seu matrimônio, de desejo de conseguir papéis para viver na Espanha e que, depois de consegui-los, irá abandonar seu esposo, de fazer sua vida com o dinheiro ou propriedades do marido, etc. Também pode sofrer insinuações a respeito de seu passado - em algumas ocasiões é associada à prostituição - e da sua virtude no presente - predisposição maior para a infidelidade. Quando são muito jovens, não é raro que estudem, embora eu tenha constatado esse fato mais no caso das mulheres eslavas. Essas mulheres, pelo que pudemos observar, costumam ser trabalhoras ativas, ainda que em certas ocasiões seu trabalho se constitua em motivo de conflito com o marido. Conheci casos em que o marido espanhol se opunha ao trabalho da esposa estrangeira. As razões dessa oposição seriam fundamentalmente duas: o fato de que o modelo tradicional masculino valoriza que o marido seja capaz de manter, sozinho, a unidade doméstica; e, em segundo lugar, a insegurança e os ciúmes provocados pelo fato de que sua mulher possa se movimentar pelo espaço público sem sua vigilância. Freqüentemente, ambas as razões estão camufladas pelo eufemismo do desejo de que a mulher se ocupe unicamente da casa e da família.

MIRIAN: Como as mulheres espanholas percebem as mulheres brasileiras?

JORDI: Competitivas - e vencedoras - no físico; submissas - e perdedoras- nas relações com os homens ou interesseiras e muito espertas - contrastando com os homens espanhóis "tontos" - nessas mesmas relações.

MIRIAN: As mulheres brasileiras com quem eles se casam são realmente mais bonitas ou isso é apenas uma representação sobre as brasileiras?

JORDI: O conceito de beleza, obviamente, é relativo. Mas, certamente, as mulheres brasileiras, em geral, são consideradas muito bonitas pelos espanhóis de ambos os sexos. Agora, na realidade, é certo também que muitas das mulheres brasileiras que se casam com homens espanhóis não correspondem ao estereótipo da mulata com curvas impressionantes. Inclusive, poderíamos dizer - Não é verdade, Mirian? - que a maioria das mulheres brasileiras em geral não corresponde a esse estereótipo.

MIRIAN: Qual a representação sobre a mulher brasileira feita pelos homens espanhóis?

JORDI: "Caliente", carinhosa, atenciosa, serviçal, compreensiva.

MIRIAN: O que significa o adjetivo compreensiva? A espanhola não é compreensiva? Por trás da idéia de que a mulher espanhola não é compreensiva não está a demanda, por parte delas, por uma relação mais igualitária? Neste sentido, o que eles buscam não seria compreensão, mas, sim, submissão?

JORDI: "Compreensiva" é de fato uma palavra muito utilizada pelos homens espanhóis que buscam o casamento com uma mulher não-espanhola. Compreensiva, certamente, tem conotações inegáveis e eufemísticas de submissão, mas penso que vai muito além ou, em todo caso, que não se trata apenas de submissão. Compreensiva é também a expressão de uma exigência masculina de que a mulher seja tolerante com algumas das supostas características da masculinidade que, cada vez mais, têm sido publicamente rejeitadas ou consideradas politicamente incorretas, na medida em que supõem um freio aos avanços no terreno da igualdade de gênero. Mais concretamente: uma mulher é compreensiva quando não nega nem impede seu marido de manter mundos relacionais nos quais ela esteja excluída, isto é, que ele possa sair e compartilhar toda uma série de âmbitos apenas com outros homens, seus amigos. Compreensiva é entender que o marido não pode estar tão comprometido quanto a mulher com as questões domésticas e familiares (organização da casa, atenção aos filhos, relações com os familiares, etc). Compreensiva é, por fim, aquela mulher a quem ele pode procurar como uma mãe em busca de carinho e proteção, sem medo de ser julgado ou repreendido, mas, também, aquela que ele pode tratar como uma filha, impondo sua autoridade e vendo como esta autoridade é aceita e reconhecida.

MIRIAN: Como você mesmo diz, essa representação da mulher compreensiva parece, na verdade, a representação de uma mãe. O que os espanhóis buscam, quando procuram estrangeiras para casar, é uma esposa que aceite o papel de mãe, que cuide, que proteja, que aceite tudo que a espanhola não aceita mais?

JORDI: Talvez no caso dos homens mais velhos de nossa pesquisa. São homens que, geralmente, já foram casados ou viveram juntos com espanholas e que não foram socializados, em grande parte precisamente por suas próprias mães, para o fato de compartilhar a realização das tarefas domésticas. Eles, com uma idade adulta avançada, se apercebem, inesperadamente, sem a esposa/empregada doméstica e, freqüentemente, sem uma capacidade econômica tão boa que possa contratar diversos tipos de serviços que substituiriam esta ausência. Às vezes, sim, o fazem e, então, não é raro que se deparem com o fato de que a oferta para esses serviços domésticos está constituída, fundamentalmente, por mulheres da mesma procedência que as esposas estrangeiras de que falamos (latinas e eslavas). Portanto, não é descartável pensar que se opera no imaginário do homem espanhol uma espécie de recomposição de todos estes elementos no sentido de buscar um novo tipo de matrimônio que suponha uma certa (sub)contratação de mão-de-obra - mais barata - reprodutiva. A hipótese é audaciosa, eu sei, mas não de todo descartável em alguns casos. Mas sigo defendendo que um bom número de homens de nossa pesquisa, tanto quanto uma mãe, ou inclusive mais do que uma mãe, busca também uma espécie de filha ou pupila. O reconhecimento de uma mãe se funda no amor incondicional, acrítico, desinteressado. Nesse sentido, e ainda que possa parecer contraditório, é menos "objetivo" ou valioso do que o reconhecimento de uma filha/pupila, o que se funda na admiração. Quando uso a idéia de mais "objetivo", quero dizer que o amor de mãe nasce mais da emoção incondicional, não considera os "merecimentos" alheios a esse amor, enquanto que o da filha, além do vínculo emocional, leva em consideração, também, as "virtudes" e "defeitos", qualidades ou ausência delas. Alguns desses homens certamente pretendem levar a cabo com suas esposas/filhas (às vezes este binômio não é apenas conceitual, pois, em muitos casos, a diferença de idade é a que poderia existir entre um pai e sua filha) uma reedição do mito de Pigmalião, tratando suas esposas como Galateas que vão esculpindo até chegar à perfeição.

MIRIAN: Como as mulheres brasileiras percebem as mulheres espanholas?

JORDI: "Mandonas" e autoritárias.

MIRIAN: Como os homem espanhóis representam as mulheres espanholas?

JORDI: "Empoderadas".

MIRIAN: O que você quer dizer com "empoderadas"? A categoria me parece muito mais de um antropólogo do que de seus pesquisados. Como os espanhóis descrevem as espanholas?

JORDI: Evidentemente a categoria "empoderada" é minha, não deles, e a uso como uma condensação ética da percepção êmica que capto entre os homens espanhóis. Eles definem as espanholas em função do contexto. Se são questionados sobre as espanholas ao lado de perguntas sobre eslavas e latinas tendem a defini-las em termos de "normalidade", de média estatística. Por exemplo: as latinas são mais infiéis do que as espanholas e as eslavas são menos. As espanholas, portanto, estão no meio. O mesmo se pode dizer em relação ao caráter. No entanto, quando a pergunta acontece fora deste contexto comparativo, o que aparece de forma importante é a caracterização da espanhola como uma mulher que luta por se desfazer tanto de sua imagem quanto de seus comportamentos mais tradicionais: uma mulher estudiosa, trabalhadora, profissional, independente, com personalidade forte e clareza com relação aos seus direitos, igualitária, liberada.

MIRIAN: Por tudo o que você disse, parece que o espanhol que não consegue o reconhecimento de uma espanhola busca uma estrangeira como compensação (ou até vingança). Neste sentido, pode-se pensar que ele, ao não encontrar o que quer em seu próprio país, busca alguém "inferior" (de uma cultura menos desenvolvida, de um país mais pobre economicamente, etc) para obter o reconhecimento que tanto deseja. Portanto, ele pode ser visto como alguém que "perdeu capital", já que buscou alguém "inferior" para obter o reconhecimento e a admiração. Já para as brasileiras, casar com um estrangeiro parece ser um "ganho de capital", em todos os sentidos. Elas se casam com alguém de uma cultura mais "adiantada", com mais prestígio, mais dinheiro, mais nível educacional e cultural, etc. Daí o possível sentimento de vergonha do espanhol em se casar com uma estrangeira e o orgulho de uma brasileira em casar com um europeu.

JORDI: Concordo. No entanto, há um certo orgulho por parte do homem espanhol na ostentação pública de uma mulher mais jovem e muito bonita, espetacular, apesar dos comentários críticos de boa parte da sociedade no sentido de acusar tudo isso como uma relação de interesse, o que, por sua vez, sempre pode ser interpretado pelo homem como uma manifestação de inveja dos outros por sua sorte.

MIRIAN: O desprezo das espanholas pelos "tontos" - como você disse acima que elas os chamam - espanhóis não estaria provocando a busca masculina por mulheres estrangeiras que reconheçam o seu valor? Parece que as espanholas não respeitam e reconhecem os espanhóis como eles desejam. Assim, se justificaria a busca por "outras" mulheres, de outros países, na falta de mulheres espanholas que lhes dêem aquilo que eles tanto querem.

JORDI: Estou plenamente de acordo com seu comentário, ainda que não possa ser generalizado a todos os homens espanhóis. Quando digo que as espanholas consideram o homem espanhol "tonto", refiro-me àquele homem espanhol "fisgado" nas redes de mulheres latinas-eslavas. Por outro lado, é claro que os homens espanhóis não encontram o reconhecimento nos termos em que este se produzia até há algumas décadas, isto é, como a expressão de admiração por parte das mulheres por sua capacidade de sustentar e manter uma família, de guiar seus passos com segurança e autoridade. Hoje, esse tipo de reconhecimento está em franca decadência e se considera até um símbolo de submissão e inferioridade feminina. A própria palavra reconhecimento traz, implicitamente, para muitas mulheres, um significado de opressão. O certo é que, muito além da existência de alguns homens que seguem desejando esse tipo de reconhecimento, muitos outros, sem aspirar a ele, bem que agradeceriam por um "reconhecimento" dos seus esforços no sentido de estabelecer relações de gênero mais igualitárias, do seu interesse por se envolver no âmbito doméstico, de sua total aceitação da negociação das renúncias e sacrifícios por igual para as respectivas carreiras profissionais. E o que freqüentemente encontram é uma atitude "insolente" do estilo de "não há nada para agradecer porque isto é o justo e o que deve ser feito, você não faz nada mais do que a sua obrigação".

MIRIAN: Há, então, um ressentimento masculino, uma certa raiva porque as mulheres espanholas não reconhecem seus esforços? Seria uma espécie de vingança do macho desprezado procurar mulheres fora da Espanha?

JORDI: Eu diria que em alguma medida, e para alguns destes homens, sim.

MIRIAN: Permita-me retornar ao ponto sobre os homens espanhóis não encontrarem o reconhecimento que desejam com mulheres espanholas. Já com as estrangeiras sentem-se valorizados e reconhecidos. Sentem-se poderosos, com alguma autoridade. Já as brasileiras, não se sentem reconhecidas e valorizadas pelos brasileiros. Assim, buscam no homem estrangeiro um reconhecimento pelos seus comportamentos, valores, aparência física, etc. Diferentemente do que se vê nos estereótipos, não acredito que os espanhóis busquem na brasileira apenas uma mulher bonita e sexy. Eles parecem buscar compreensão e reconhecimento, acima de tudo. Acham que as espanholas são muito exigentes e "mandonas", como você disse. Por outro lado, não acredito que a brasileira tenha simplesmente um interesse econômico ou de obter uma nacionalidade européia, mas busque, sobretudo, segurança, estabilidade, reconhecimento e, talvez, fidelidade, que não encontram nos brasileiros. Portanto, o homem espanhol teria capitais bastante superiores aos do homem brasileiro (poder, status, prestígio, dinheiro, segurança, estabilidade, proteção, fidelidade) e a brasileira, capitais afetivo e familiar que faltariam às espanholas.

Quero ressaltar que tudo isso parece ocorrer muito mais como uma fantasia de ambos, como uma projeção de expectativas que é muito mais fácil de existir com alguém de fora, um estrangeiro, um outro, um estranho, que é praticamente desconhecido, do que com alguém próximo, de dentro, do próprio país. Como uma fantasia, essa projeção de todos os desejos em um estrangeiro parece muito mais fácil. Haveria, no entanto, um segundo momento que seria o de encontro efetivo entre duas culturas, duas histórias, dois habitus. Considero que neste segundo momento, que poderíamos chamar de realidade, vai ocorrer um confronto entre as fantasias/desejos/expectativas/projeções e a realidade cotidiana de um casal. Assim, e este é o ponto que quero discutir com você, considero que uma relação entre homens e mulheres de culturas muito distantes pode ser mais fácil (um espanhol com uma eslava, por exemplo), pois a falta de uma real comunicação evitaria os problemas "naturais" de uma relação a dois. O fato de não poder existir uma comunicação efetiva entre os cônjuges impediria uma real e profunda comunicação, o que evitaria, possivelmente, muitos conflitos e reclamações. Eles são obrigados a se concentrar na resolução de problemas mais objetivos e, portanto, a subjetividade (e suas demandas) ficariam em um segundo plano.

Já no caso do casamento entre um espanhol e uma brasileira e, portanto, muito mais próximos em termos culturais e lingüísticos, a comunicação mais profunda e, também, mais subjetiva favoreceria os conflitos, as reclamações, as demandas. Nesse caso, além das dificuldades de gênero existentes mesmo entre membros da mesma cultura se acrescentariam os problemas que são produtos de diferenças culturais. Como exemplo, o fato de a brasileira ser mais expressiva, afetiva, romântica, e o espanhol, especialmente o catalão, mais fechado, frio, racional. Seriam problemas em dobro: os de gênero e os culturais, que só poderiam aparecer por existir a possibilidade de uma real comunicação.

No caso do espanhol com a eslava, a impossibilidade ou dificuldade de comunicação amenizaria os problemas de gênero, as cobranças e as demandas mais subjetivas. Portanto, os conflitos seriam reduzidos e o casal estaria muito mais centrado na resolução de problemas práticos, objetivos e não em questionamentos existenciais ou subjetivos.

JORDI: Para mim, suas considerações são muito interessantes, pois subvertem a lógica e o lugar-comum generalizados de que a maior distância cultural é garantia segura de fracasso, de falta de entendimento, de conflito. Não tenho ainda dados estatísticos referentes ao grau de fracasso dos matrimônios mistos entre espanhóis e estrangeiras, mas alguns dados indiretos, parciais e intuitivos, parecem apontar para a direção de que ocorreriam mais divórcios e separações entre espanhóis e latinas, especialmente brasileiras, do que entre espanhóis e eslavas, o que abonaria sua hipótese.

Por outro lado, em relação ao que você assinala sobre o que buscam os espanhóis e as mulheres estrangeiras, já apontei em ocasiões anteriores a idéia de reciprocidade equilibrada de Marshall Sahlins (deficiências sentimentais/emocionais e superávit material/educacional/comportamental do homem espanhol e deficiências materiais/educacionais/comportamentais e superávit sentimental/emocional da mulher brasileira ou latina). Compartilho a sua idéia de que o sexo e o corpo são menos importantes do que o reconhecimento e a compreensão. Porém, nesse sentido, eu gostaria de introduzir uma hipótese. Fala-se muito, no contexto da pós-modernidade, da banalização da sexualidade, convertida em sexualidade visual, de aparência, na qual importa mais o corpo do que a carne. Uma sexualidade ocular mais do que genital, dentro da tendência de espiritualizar o corpo, convertendo-o em espelho da alma. Nesse sentido, talvez, os espanhóis que buscam essas mulheres descritas como espetaculares em termos físicos estão buscando de alguma maneira uma espécie de reconhecimento indireto, que receberiam ao exibir esses corpos considerados belos. É amplamente aceito que a mulher que se cuida e se arruma o faz principalmente para seu marido. Não deixa de ser significativo que tanto as mulheres latinas quanto as eslavas se caracterizem por se ocuparem e preocuparem muito com seu corpo e, mais ainda, da apresentação pública do seu corpo. Muitos desses homens, sem dúvida, podem ver nesse fato um reconhecimento de seu poder e de sua capacidade de conquistar (e possuir) uma bela mulher.

MIRIAN: Aqui no Brasil as mulheres costumam dizer que falta homem interessante no mercado. O que seria um homem interessante para as espanholas?

JORDI: O termo "interessante" resulta muito interessante, desculpe a redundância. Acredito que ele expressa um sentimento de insatisfação difuso, vago, não preciso nem concretizado em determinados aspectos. Quando alguém não encontra em sua busca algo interessante - o que desencadeia, freqüentemente, aborrecimento ou tédio -, é porque o entorno não lhe oferece nada que lhe chame a atenção, que lhe interesse, ou as expectativas com relação ao que busca estão superdimensionadas, ou uma mistura das duas coisas. Isso explica por que as pessoas que assim se sentem podem facilmente concluir que para encontrar o que buscam, alguém interessante, devem fazê-lo em um entorno distinto do seu, porque, na realidade, o que estão buscando não faz parte de sua experiência ordinária, cotidiana. Em algumas das entrevistas com mulheres jovens que realizei no Brasil, em outubro de 2007, esta ênfase na falta de homens brasileiros interessantes estava muito presente. É claro, acredito que era, em parte, uma justificativa e busca de legitimação de seu interesse por encontrar um homem estrangeiro como companheiro. Nesse contexto específico, portanto, a pessoa interessante se define como aquela que é o reverso da moeda das pessoas que alguém tem ao seu redor. Definir um homem ou uma mulher como interessantes supõe também definir inclusive com maior precisão - o homem e a mulher que não são interessantes. Freqüentemente, é possível que se tenha mais claro o que não é interessante do que o que se considera interessante. Mas, deixando as divagações de lado, talvez as características gerais que melhor poderiam associar-se à imagem de um homem interessante para as mulheres espanholas - claro que isto não deixa de ser uma generalização - estariam vinculadas ao fato de não ser o protótipo do homem supostamente dominante e representativo das gerações passadas: não ser um homem autoritário que exerce um papel de dominador nem estar desvinculado das questões domésticas e familiares. O homem interessante seria, portanto, o que tem um reconhecimento pleno da igualdade entre os gêneros, que manifesta um comportamento horizontal com sua parceira, tanto na vida afetiva - é um homem que não esconde seus sentimentos - como na doméstica - participa por igual em todas as tarefas do lar e no cuidado dos filhos - quanto na pública - não considera sua dedicação ou promoção profissional mais importante do que a de sua mulher.

Isso tudo está muito relacionado com as mudanças produzidas na Espanha com respeito à vivência da paternidade. No contexto de um sistema de gênero de caráter patriarcal e machista, vigente até há algumas décadas, o pai era, idealmente, um ser autoritário a quem se devia respeito e obediência - por parte de todos os membros da família - e que, muito freqüentemente, despertava medo e temor entre eles. Além disso, era um ser alienado de tudo o que estava relacionado com o âmbito doméstico e familiar. A transformação da sociedade espanhola e do correspondente sistema de gênero provocou, também, uma redefinição do papel de pai e da vivência da paternidade. O envolvimento dos pais em todo o processo de gestação e parto se tornou a norma nas duas últimas décadas. A responsabilidade pelo cuidado das crianças, apesar de continuar sendo prioritariamente das mulheres, tem crescido paulatinamente entre os homens. Esse processo de "humanização" do pai, que se tornou mais participativo e presente dentro da casa e da família, se manifestou ainda mais claramente na educação dos filhos, em um sentido amplo, no contato e preocupação com eles, no interesse por suas vidas, na participação em suas atividades. Muito além, portanto, de assumir crescentes responsabilidades administrativas, os pais incorporaram, poderíamos dizer, importantes doses de responsabilidades afetivas para com os seus filhos.

MIRIAN: Para as mulheres catalãs que entrevistei, os filhos parecem ocupar um lugar central no casamento. E o casal parece se construir e se consolidar em torno do cuidado com os filhos.

JORDI: É verdade que a importância dos filhos cresceu de forma exponencial nas últimas décadas e a Espanha, nesse sentido, não foi uma exceção. Também é certo que a natalidade diminuiu de maneira importante - a Espanha deixou de ser de um dos países europeus com o índice mais alto de natalidade, nas décadas de 1980 e 1990, para ter hoje uma taxa de natalidade muito baixa. Porém este fato, longe de refletir uma diminuição da importância dos filhos, significa exatamente o contrário: precisamente porque os filhos se tornaram importantíssimos para o casal, este decide reduzir seu número para poder dedicar mais tempo, dinheiro e atenção a eles. A crescente importância outorgada aos filhos, no caso espanhol, se constata, também, no número de adoções internacionais. Em 2005, na Espanha, foram realizadas 5.423 adoções internacionais, ou seja, 12,3 adoções internacionais para cada 100 mil habitantes, o índice mais alto em todo o mundo. A Espanha também tem sido pioneira no tema das técnicas de reprodução assistida.

Tudo isso, certamente, pareceria abonar a sua impressão, Mirian, e contradizer a minha. E é verdade de certo modo, mas não de maneira absoluta e, inclusive, diria até que de maneira fundamental. Os filhos se tornaram mais e mais importantes em termos de sua problematização e transcendentalização, se me permite a expressão. Quero dizer: deve-se cuidar deles - mimá-los -, prestar muita atenção ao seu desenvolvimento pessoal e intelectual, evitar possíveis traumas... Um pouco na linha que se iniciou nos Estados Unidos há muitas décadas e hoje se reproduz em muitos dos telefilmes americanos que inundam as televisões de todo o mundo. Nesse sentido, a importância dos filhos, sua valorização, aumentou e é indiscutível. Mas, quando falo que os filhos já não são o elemento fundamental do casamento, refiro-me ao fato de que o motivo, a razão principal da constituição de um casal não é a vontade de ter filhos, mas, sim, a de formar uma unidade de convivência na qual, certamente, em um futuro, se desejará que haja filhos e estes serão muito importantes. No entanto, a existência de filhos não é mais uma condição sine qua non para a constituição nem para a permanência do casal, como ocorria em épocas anteriores, nas quais a infertilidade de um dos cônjuges, por exemplo, era vivida como uma grande desgraça.

Posso trazer como exemplo para o meu argumento o fato de os casais espanhóis terem o primeiro filho cada vez mais tarde. Isso em um contexto em que aumentou consideravelmente a idade em que os espanhóis se casam. As mulheres catalãs, por exemplo, se casaram, em 2006, em média, aos 31,8 anos. O padrão de natalidade até os anos 70 do século passado incluía o fato de se ter o primeiro filho imediatamente após a realização do matrimônio. Progressivamente, essa norma não escrita foi dilatando-se. Durante uma época o período foi de dois anos e, depois, de quatro. Agora, é cada vez maior a distância entre a união do casal e o nascimento do primeiro filho. Uma prova, portanto, de que os filhos não são o objetivo único, nem, talvez, o principal da relação.

MIRIAN: Não encontrei muitas mulheres solteiras ou sem filhos no tempo que passei na Catalunha. Parece que ser solteira ou viver só não é uma opção legítima e desejada na Espanha, como é, por exemplo, na Alemanha. Por que as espanholas ainda desejam casar e ter filhos?

JORDI: Hoje em dia, a percepção da vida de solteiro melhorou muito, após ter sido fortemente estigmatizada durante a ditadura, não sendo mais tão negativamente sinônimo de fracasso pessoal, ainda que seja certo que, para a maioria dos espanhóis, o matrimônio ou a vida conjugal continue sendo o ideal a perseguir e que, portanto, o fato de "ficar solteira" - expressão em si já é muito significativa -, se é considerado, por um lado, uma opção legítima e inclusive símbolo de independência e de forte personalidade, parece, por outro, constituir uma certa expressão de fracasso. Não se pode, também, esquecer algumas considerações práticas, como o fato de que nem todo mundo pode se permitir o "luxo" de viver de forma independente de maneira solitária. Viver junto com um parceiro reduz muitíssimo os gastos.

Os dados que tenho a respeito estão consonantes com o que acabo de dizer. Assim, na Alemanha, dados recentes assinalam que as pessoas que viviam sozinhas constituíam um terço dos domicílios, e nas cidades chegavam a representar cerca de 50%. Na Espanha, as cifras situam-se em aproximadamente metade desses valores, mas com uma clara tendência ao crescimento, já que em apenas uma década (1991-2001) os domicílios formados por uma só pessoa passaram de 1,6 milhão para 2,9 milhões.

MIRIAN: As mulheres espanholas também buscam homens de outros países para se casar?

JORDI: Muito menos do que os homens - estatisticamente, os matrimônios mistos protagonizados por espanholas representam quase a metade dos matrimônios protagonizados por homens espanhóis. A geografia, no caso das mulheres, é diferente: homens cubanos e africanos. Mas esta resposta é totalmente intuitiva, pois não pesquisei esse tipo de matrimônio.

MIRIAN: As mulheres espanholas seriam mais liberadas sexualmente do que as estrangeiras com que os espanhóis se casam? Eles se preocupam com a vida sexual de suas esposas anteriormente ao casamento? Há uma valorização da virgindade ou de um comportamento sexual mais controlado do que o das espanholas? Será que eles gostariam de se casar com mulheres virgens?

JORDI: Não, não. As mulheres espanholas têm um discurso muito, ou bastante, liberado sexualmente. Mas isso não quer dizer que a prática sexual das espanholas esteja, necessariamente, em consonância com o espírito do citado discurso. É, para dar um bom exemplo, como se considerássemos o fato de que muitas espanholas tomam sol na praia de topless e, ao contrário, quase nenhuma brasileira o faz, como um signo de maior liberdade sexual das espanholas frente às brasileiras. O fato de que muitas espanholas tomem sol desta forma é muito mais, ou somente, uma questão "política" do que outra coisa, que nada tem a ver com a sexualidade. Trata-se de significar um símbolo de "liberação" dita sexual, mas que, na realidade, significa de gênero. Liberação de gênero que pode resultar, inclusive, em uma certa negação da sexualização do corpo.

As brasileiras, pelo que sei, não entendem esta prática das espanholas/européias. Estas, por sua vez, estranham que as brasileiras, com tanta fama de serem mulheres sensuais e de sexualidade transbordante, não tomem sol como elas fazem. Por outro lado, não acredito que os espanhóis que se casam com latinas se preocupem demasiadamente com sua vida sexual anterior, o que pode resultar um tanto paradoxal, já que os ciúmes - e até recentemente a valorização da virgindade, ainda que agora não mais - e a exigência de fidelidade estão entre os traços mais característicos dos casais espanhóis. Digo paradoxal porque está implicitamente assumido, pela maioria dos espanhóis, que essas esposas latinas tiveram uma vida sexual anterior intensa e variada (muitas delas, por exemplo, tiveram filhos quando muito jovens e, em muitos casos, existe a suspeita de possíveis relações com o mundo da prostituição). Acredito que o que torna possível "superar" esta dificuldade para esses homens é o fato de se associar as mulheres latinas ao âmbito da "sexualidade natural": elas seriam seres sexuais por natureza. O que, por sua vez, reforça a idéia de que são desejadas e de que podem facilmente, mesmo contra sua própria vontade, seduzir os homens.

MIRIAN: Existem mulheres espanholas que buscam homens apenas para sua satisfação sexual? Se sim, que tipo de mulher procura este mercado sexual?

JORDI: Esse é um âmbito que conheço apenas superficialmente, mas que, possivelmente, entrará na continuação de minha pesquisa. Existem, certamente, mulheres espanholas que buscam homens estrangeiros - ou melhor dizendo, no estrangeiro - com finalidades unicamente sexuais. O mercado por excelência deste segmento de espanholas é Cuba, ainda que também seja conhecida a presença de mulheres espanholas em busca de sexo em alguns lugares, especialmente no Marrocos ou em alguns países latino-americanos. De forma muito intuitiva posso assinalar que se trata, penso, de mulheres pertencentes a dois grandes grupos: um formado por mulheres de mais de quarenta anos, separadas ou divorciadas, com filhos não muito pequenos, que podem entender esta prática como uma espécie de movimento emancipatório-igualitário; e outro, formado por mulheres jovens solteiras, ainda que possam ter namorado, que tratam esse tipo de experiência mais em termos de diversão.

MIRIAN: Uma pesquisa recente feita no Brasil, pelo Instituto Datafolha, mostrou que o elemento mais importante para a felicidade no casamento é a fidelidade. Em seguida vem o amor. O sexo fica muito atrás. O que você diria que é o elemento mais importante para a felicidade no casamento na Espanha? Qual a importância da fidelidade no casamento entre espanhóis, e no casamento de espanhóis com mulheres estrangeiras?

JORDI: Penso, em relação à primeira parte da pergunta, que no caso espanhol as coisas não são muito diferentes nesse aspecto. Fidelidade, algo aparentemente muito concreto e perfeitamente delimitado; em seguida, o amor, algo, ao contrário, sem limites precisos e bem demarcados; e, longe de ambos, o sexo, novamente algo bem delimitado. Indo um pouco além disso, a mim me parece curioso o fato de que está solidamente estabelecido que o nascimento do amor romântico acarreta, entre suas principais novidades, a incorporação da dimensão sexual no interior do matrimônio, precisamente porque este deixa teoricamente de representar fundamentalmente uma união de caráter econômico-instrumental, quando o sexo estava mais fora do que dentro da mesma, para passar a ser um encontro de dois espíritos e dois corpos que se complementam. Na realidade, esses tipos de classificação como a que comentas mostram de forma bastante clara que, se por um lado não se pode negar as mudanças e transformações ocorridas nesse terreno nos últimos séculos, por outro existem também elementos de continuidade e permanência.

O caso da fidelidade, que você conhece muito bem em conseqüência de suas pesquisas, é interessante nesse sentido, pois mostra a continuidade de um valor apesar das grandes e profundas transformações no âmbito do amor e do casamento. Mas essa continuidade vem com um significado distinto. Se no passado esse valor estava associado a questões relacionadas com a filiação, a legitimidade e a transmissão do patrimônio, agora, que essas questões se tornaram menos importantes, está associado a considerações mais de caráter moral, como a sinceridade, a igualdade, o respeito, etc. Sendo assim, talvez se possa compreender que, no caso dos casamentos mistos entre espanhóis e estrangeiras, o tema da fidelidade pode alcançar um protagonismo ainda maior, já que as suspeitas sobre as motivações reais de tal união são muito mais freqüentes do que em relação aos matrimônios entre espanhóis. A fidelidade, portanto, no caso dos casamentos mistos, pode chegar a ser um indicador fundamental da felicidade. Já nos casais espanhóis, ainda que sua importância seja destacável, pode ocorrer, no entanto, em alguns casos, alguma pequena permissão, mais ou menos tolerada e justificada, em termos de que certo tipo de infidelidade contribui para o fortalecimento e a boa marcha do matrimônio. Com o que, como se pode ver, realizamos uma espécie de retorno ao que eu apontava no início: a negação da dimensão sexual dentro do casamento ou, o que é o mesmo, a afirmação de que o sexo realmente ocorre fora dele.

 

JORDI ROCA

PRINCIPAIS PUBLICAÇÕES

1990 Vides de dona. Treball, família i sociabilitat entre les dones de classes populars (1900-1960). Barcelona: Alta Fulla.(con otros).

1996 Obreros. De la (im)pertinencia del obrero como objeto de estudio de la antropología social. Una reflexión en torno a las relaciones entre antropología y trabajo industrial. In: Prat, J. & Martínez, A. (Comps.) Ensayos de antropología cultural, (pp. 139-146). Barcelona: Ariel..

1998 Antropología Industrial y de la Empresa. Barcelona: Ariel.

2001 Gènere, dones i antropologia. Usos i discursos a propòsit de la construcció del gènere femení a l'Espanya actual. In: Els papers socials de les dones, (pp. 139-161). Tarragona: Universidad Rovira i Virgili..

2002 Ni perversas ni divinas, más bien anodinas. La representación de la mujer en una (pseudo)literatura de transición en mitad del milenio. In: Riera, C.; Torras, M. & Clúa, I. (eds.). Perversas y divinas, (pp. 87-94). València: Ediciones eXcultura. 

2004 De la sotana al desapego. Panorámica de las relaciones entre juventud y religión en la España del siglo XX. (con Juan M. García Jorba). JOVENes. Revista de Estudios sobre Juventud, México: 28-49.

2004 Etnografia (con otros). Barcelona: Ed. UOC.

2005 Antropologia: dels estudis sobre les dones als estudis de les dones. In: Dones, Coneixement i Societat, (pp. 63-82). Reus: Fundació d'Estudis Socials i Nacionals Josep Recasens i Mercadé i Universitat Rovira i Virgili.

2005 Los (no) lugares de las mujeres durante el franquismo: el trabajo femenino en el ámbito público y privado. Gerónimo de Uztariz (Instituto Gerónimo de Uztariz; Gobierno de Navarra), 21: 81-99.

2007 Migrantes por amor: la búsqueda y formación de parejas transnacionales, AIBR. Revista de Antropología Iberoamericana, v. 2, n. 3, 430-458.

 

 

Tradução: Mirian Goldenberg

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