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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.20 no.2 Rio de Janeiro  2008

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Direitos Humanos. Com Marx

 

Human Rights. With Marx

 

 

Carlos Henrique Escobar

Filósofo; Professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

 

 


RESUMO

Muitas formas de luta &– como os Direitos Humanos &– que não objetivem a estrutura mesma da reprodução ampliada do capital podem tomar diferentes formas e permitir diferentes usos. Do ponto de vista radical, elas não devem perfazer nem a politização nem a convocação revolucionária e não escapam ao uso encobridor eventual de uma verdadeira política. É necessário interpretá-las em suas conjunturas e as que a elas se somam. Nada disso é difícil de avaliar se acompanharmos sua origem e sua história. A isso se soma uma retomada (ainda que com reformulações e contribuições novas) do marxismo. Aliás, naquilo que Marx mesmo privilegia ao dizer que não era marxista e que no seu pensamento não se tratava disso, mas de qualquer coisa sempre mais capaz de chegar à raiz da história.

Palavras-chaves: direitos humanos; reprodução do capital; marxismo.


ABSTRACT

Many forms of struggle &– like Human Rights &– that do not have as their goal the reproduction of capital, can take on different forms and allow different usages. From a radical point of view, they should not amount to politics or to revolution, and it is necessary to interpret them in their conjunctures and together with other ideas. None of this is difficult to evaluate if we accompany its origin and its history. To this we add a recapture of Marxist ideas, even though with reformulations and new contributions, particularly in what Marx himself privileges, by saying that he was not Marxist and that his thought was not about that, but regarding anything that could come closer to the roots of history.

Keywords: human rights; reproduction of capital; Marxism.


 

 

Os chamados "Direitos do Homem" têm sua história em cima da Revolução Francesa de 1789 e se desdobram com a Carta ou Declaração após a Segunda Guerra Mundial, num texto de 1948.

Há também, e é importante lembrar &– ainda que apenas à maneira de uma certa memória &–, uma história dos "direitos naturais" que dá lugar à Lei (natural) e os direitos concernentes a uma comunidade com seu suporte jurídico. Uma reflexão exigente dos "Direitos do Homem" implica pormenorizadamente este rastreio.

O Estado moderno foi constituído (como lembra Agamben, 2002a, 2002b, 2004) no fim da Idade Média e o Estado-nação só aparece no século XIX &– mesmo se bastante articulado com as Revoluções burguesas que ocorrem na Inglaterra e França bem antes. Na Alemanha esta revolução tem uma forma bastante singular pois Bismarck (no júbilo da vitória militar contra a França) ativa certas formas de ideais alemães de uma nação no espírito grego, desde os clássicos (Goethe, Schiller), dos idealistas (Schelling, Hegel), de Wagner, etc.

O que cabe assinalar &– e é do conhecimento geral &– é que o Estado-nação se articula com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão instituída em 1789 pela Revolução Francesa.

O direito moderno, tal como o chamamos, se assenta nesta "Declaração", ainda que em torno de uma concepção que se fundamenta num "indivíduo abstrato" &– como será lembrado muitas vezes pelo pensamento político.

As questões mais debatidas &– e por vezes complexas &– em torno deste "direito" (especificamente ocidental) estão nas perguntas de se eles podem se considerar universais ou não, ou se eles se referem fundamentalmente aos beneficiados do poder e da riqueza, e se eles concernem apenas a um dos Estados-nação e não aos outros, e também se está certo deixar com o Estado o poder de arbitrar as promessas do direito no que concerne à liberdade e à igualdade. Uma última questão &– hoje centro das mais empenhadas discussões &– é saber se o Estado pode simplesmente suspender estas prerrogativas. O Estado, como se sabe, tem um lugar central no pensamento político, na análise do Direito e em torno das posições a respeito dele se separam as mais importantes correntes do pensamento político.

Hoje pode-se de imediato concluir que para os homens o Direito subentende a proteção do Estado, pois do contrário o ser vivente lembraria (no estatuto do nada) a tão falada "vida nua" revelada por Agamben (2002a, 2002b, 2004), a partir da reflexão do Direito romano.

É difícil propor ao Direito uma universalidade, pois isto seria retirá-lo da história e de seu conteúdo de forças que se enfrentam, que homogeneízam ou se desqualificam. No entanto, Norberto Bobbio (1992) argumenta na direção da positividade dos "Direitos do Homem" e da "Declaração de 1948" sublinhando justamente o seu estatuto "universalista". No livro Era dos Direitos Bobbio afirma o avanço em si &– humano e universal &– das "Declarações" de 1789 e 1948, como um desdobramento que vai dos "direitos naturais universais", passa pelos "direitos positivos particulares" e chega aos "direitos positivos universais".

Mas a verdade é que não só o "direito" é instável e resultado de configurações singulares de forças, como jamais a "Declaração" de 1789 e muito menos a "Declaração" de 1948 se fizeram valer como conquistas reais. O que talvez atribua a elas um marco na caracterização progressiva do Direito (ou na relação do Direito com a história) são as pressões crescentes da resistência no seio da exploração do trabalho.

No caso específico da "Declaração" de 1948, o histórico do fim da Segunda Guerra, o afluxo internacional do mercado caracterizou um certo otimismo. No entanto, tempos depois (às vezes contemporâneos), quando se acreditou na falência (ao nosso ver aparente) das alternativas ao capital, praticaram-se absurdos ao impor estes Direitos (já designados por ocidentais) a todo o mundo através das armas. Políticas estas &– sobre um fundo com preocupações econômicas &– que vão do Oriente Médio ao Vietnã, à Coréia, à repressão na América do Sul e América Central, etc.

De fato, a Declaração de 1948 &– na euforia do fim da Segunda Grande Guerra, na derrota dos regimes autoritários &– não conseguiu efetivamente nem transformar nem enriquecer a Declaração de 1789. Se a Declaração dos "Direitos do Homem" da Revolução Francesa parecia longe da realidade, a de 1948 acompanhava a prática bélica e policial do capital se revelando de imediato uma fraude.

De certa forma antecede a Bobbio (1992) não apenas a crítica à tese universalista da Revolução burguesa (como demonstra Foucault, retomando Marx), como o precedem também os apoios à Declaração de 1789, tais como Tocqueville e Kant, assim como já se inaugura, entre intelectuais, o debate sobre sua abstratividade, por exemplo, com Paine (defendendo a Declaração) e Burke duvidando do seu caráter universal e propondo a questão do "homem concreto".

São inúmeros os intelectuais marxistas, ou que no marxismo apostam, e sobretudo os que debatem o Direito e a "Justiça" &– como Derrida (1994, 2002, 2003), de certa forma, e Agamben (2002a, 2002b, 2004), de outra &– que não retomam, neste mesmo espírito crítico, a Declaração de 1789, como já o fazia o jovem Marx ([1844] 2002) da Questão judaica como fundamental e superestrutural na história do capital.

Marx ([1844] 2002) relembra que a "Declaração" concernente à Revolução Francesa fala efetivamente de um "homem abstrato" por isso mesmo "universal", mas que na verdade se trata de um homem singular, ou o burguês, visto como um homem egoísta e à margem da comunidade. Se Bobbio (1992) não contradiz isso (que é evidente para todos), ele contudo ainda saúda os Direitos do Homem designando-os positivos, pois "pensamento político universal", e acrescentando em seguida a frase "do qual não se pode voltar atrás" como conquista jurídica e como preocupação política.

Ora, ocorre que a formulação da noção de "universalidade" não aspira nem pode transformar-se, ela mesma, num momento verdadeiro de um processo histórico, subentendendo uma história linear do Direito. É preciso situar o Ocidente, e sua singularidade &– auferir os modelos insistentes (mas mesmo assim provisórios), coletores de valores teológicos cristãos e também de comportamentos culturais e históricos da Antiguidade, que configuram uma certa herança, uma espécie de "inconsciente histórico", resistente.

Por todos os momentos destes diferentes períodos, e sobretudo hoje na intempestividade das globalizações, os "Direitos dos Homens" ou direitos dos "cidadãos" não incluem, por exemplo, os imigrantes, não sabem pensar o Islã, não ousam ver as causas dos terrorismos, não usufruem de recursos para se auto-criticarem.

Efetivamente o Direito não implica, nem pretende implicar, aquilo que chamamos "a realidade" (ou o tempo histórico) ou aquilo tudo que nele se faz valer como discurso, como equívoco, pois um e outro persistem distanciados.

Na Questão judaica (de Marx, [1844] 2002) nada nos impede de reencontrar Babeuf &– o primeiro comunista moderno &– e aquilo de que ele se deu conta na Declaração de 1789, e que era e permanece como uma obrigação do Estado de abolir por princípio a "propriedade privada". A verdade é que esta Declaração não "dispõe" a realizar o que ela diz e no tempo paradoxalmente se torna um documento que pressupõe e defende esta propriedade. Aliás, a Revolução Francesa (e a ambigüidade da Declaração de 1789) conduz o primeiro comunista moderno à guilhotina.

Mas cabe a Marx deixar explícito que na reivindicação de "igualdade" &– da "igualdade real" &– com o pretendido peso "universalista", os pressupostos do fim da "propriedade privada" são até mesmo um imperativo.

O que efetivamente fizeram (e proclamaram) os "Direitos do homem" é que o "homem" suposto por esta Declaração ou documento &– o "homem egoísta e burguês" &– nela deve estar à frente do "cidadão".

São inúmeras as questões que envolvem o Direito e a Revolução Francesa quando o fundo perverso da comunidade é preservado &– ou até mesmo obscuro no discurso limiar de Robespierre e no projeto revolucionário &–, obrigando o Direito, pretensamente redefinidor das relações humanas, a se contradizer no seu próprio corpo.

Marx, Engels, Kautsky, Trotsky, Rosa, Lênin, Gramsci foram obrigados a se defrontarem com esta assimetria, pois tanto o Direito de 1789 quanto a Revolução Francesa (com seu histórico particular) se fazem sem distância do corpo e do caráter de todos que estão envolvidos &– sem esquecer o papel fundamental da Declaração desta Revolução no mundo e nas lutas de libertação nacional.

Marx não dispôs de tempo para pensar uma "teoria política" que cobrisse e pensasse o momento pós-revolucionário (para que fundamentasse, por exemplo, a tese da "Ditadura do Proletariado" que permanece até hoje confundida com o stalinismo). E em grande parte foi a ausência de uma "filosofia marxista" &– cuja tarefa transbordava os recursos teóricos de Engels &– e de uma "teoria política marxista" que deixou a Revolução de 17 flutuando num primeiro e complexo "experimentalismo de Lênin", e depois, já nas mãos de Stálin, nos empenhos capitalistas do chamado "capitalismo primitivo" (onde a extorsão da mais-valia vive uma fase bárbara). E todos sabem que tudo resultou no tempo e no sacrifício de milhares de comunistas não-stalinistas.

Foi Otto Bauer (em Nação, 1924, citado por Balakrishnan, 2000) que alertou para as contradições e os vazios dos "Direitos do Homem" e da Revolução Francesa, sobretudo ao pensar o projeto Democrático (e sua fraude irremovível). Está aqui talvez (a Democracia) a questão que urgentemente deve ser discutida pelo que há ainda de honesto numa esquerda. Pois ela é uma mentira sob todas as suas formas, e temos no PT o tamanho (ético e político) desta mentira &– uma espécie de abismo para a demanda de um comunitarismo comunista num partido que protege o liberalismo em contradições com o que se disse e o que escreveu no passado.

Sem desconhecer contudo que dentro da história do capital a formação da "cultura nacional" para além dos limites de uma aldeia, as oscilações da democracia e dos totalitarismos implicaram como paisagem as condições de formas novas de avaliar e de requerer um mundo novo. Como, enfim, o próprio Direito e a Democracia pressupostos por todos como vigentes na Revolução Francesa &– assim como a cultura histórica e o valor do trabalho após a Revolução de 17 &– ainda que hoje nossa leitura também seja de que todos estes acontecimentos se tornaram obstáculos aos propósitos revolucionários.

Hannah Arendt (1989, ainda que sem sublinhar a relação do "Estado-nação" e dos Direitos do Homem) percebe que a falência dos primeiros equivale ao desaparecimento dos Direitos, pretensamente adquiridos, e obriga os homens a ficarem de frente para um ser sem atributos, que ele sempre foi junto às formas do macropoder.

Esta sinistralidade do "homem" no desaparecimento tendencial do "cidadão" já estava registrada no título da Declaração de 1789 ("Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão") pois na perversidade do mundo moderno os crimes se sobrepõem aos papéis (as formas de exploração do trabalho, a segurança e disponibilidade total junto às formas hegemônicas do poder). O que nas palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben (2002a, 2002b, 2004) quer dizer que o Direito não deve ser visto como proclamações de valores eternos, mas como uma captura da vida "natural" na ordem jurídico-política do Estado-nação. Em outras palavras, isso equivale à entrada da vida na estrutura do Estado, por onde a "vida nua" natural (o nascimento) torna-se fonte e portadora do direito na medida em que potencializa o poder e assegura a produção como reprodução ampliada.

Para Agamben (2002a, 2002b, 2004), isso tudo abre uma das suas maiores teses (no estatuto do Direito) que é a da apropriação da "vida nua" pelo Estado através do "estado de exceção". Cujo efeito, diz ele, é de uma guerra civil legal que permite matar tanto os inimigos quanto os cidadãos inseridos no sistema político.

É Hannah Arendt (1989) também quem diz que uma certa desnacionalização após a Primeira Guerra criou condições para o nazismo e o fascismo &– pelo uso num projeto de expansão autoritário e ideológico da vida natural, remetendo-a aos termos de subserviência radical à soberania.

O importante no conjunto destas reflexões de Marx ([1844] 2002) e também de Agamben (2002a, 2002b, 2004) é que paradoxalmente o Estado-nação ampliou os direitos através do "estado de exceção" e com isso transformou potencialmente um cidadão em um nada (vida nua). E concluindo, dizem eles que isso tudo é, no fundo, os aparentes "direitos humanos" das notórias "Declarações" de 1789 e 1948.

 

MARX RETORNA EM TODAS AS NOSSAS LUTAS

Com Marx temos &– e de forma irremovível &– o ensinamento da forma perversa (e constante) das sociedades de ontem e de hoje. Sobretudo do chamado "modo de produção capitalista", mas também de uma periodização (nem necessária nem lógica) dos diferentes modos de produção. Marx sabe trabalhar com o acaso e com o aleatório &– e esta é uma revelação fundamental na sua releitura recente1.

Os modos de produção nos convocam para a reflexão de uma "ditadura econômica" que gere as sociedades no coração mesmo do Direito e que nos conduzem politicamente à reflexão do poder (que é, em grande parte, a "história do pensamento político" &– de Maquiavel a Hobbes e a Marx, de Max Weber a Foucault, Althusser, Debord, Agamben, Legendre, etc.).

Marx não é autor de uma teoria acabada ou fechada, e ele, particularmente, sugere a articulação complexa da luta política e do seu pensamento. E isso é o mínimo que se pede hoje na releitura do pensamento marxista, levando em conta as significativas contribuições recentes.

É preciso agora (ou hoje) escapar das restrições ou das convocações trancadas (ou dialetizadas) do seu pensamento e com isso recusar supor um Marx nos termos pobres de uma verdade. As vanguardas da praxis política (num espectro amplo de méritos), na iminência de emergirem, são como luta e pensamento fundamentais. E fundamentais para se comporem com as massas do capital globalizado, excluídas e periféricas, e para maximizarem tanto suas reflexões como suas ações. A Revolução se torna possível não apenas pelas separações crescentes entre riqueza e pobreza, mas sob formas diferentes, plurais e internacionais que reformularão radicalmente o militante.

É preciso seriedade aqui, pois isso é um imenso e difícil trabalho &– à sua vez dependente da amplitude e rigor teórico &– que rompe com os vícios e as heranças da militância do passado, pesada e subserviente.

Reler Marx, no marxismo hoje relido, é surpreendê-lo refletindo as descontinuidades históricas, as dúvidas em torno da organização política, e sobretudo fugindo da dimensão metafísica da "história linear" e dos modelos do passado.

O desdobramento de Foucault por Agamben (2002a, 2002b, 2004) na reflexão do "direito" e no aprofundamento da história nos "motores teológicos" que inauguram, por um lado, o Ocidente, potencializam em Marx seus propósitos de fundo. Eles mostram pelas investigações da "teologia política" cristã &– onde se somam Benjamin, Schmitt, Badiou, Arendt e outros &–, assim como pela "teologia econômica" (também na teologia cristã), que tal como o cristianismo de Paulo o capital é um projeto "universalista" cujo êxito constitui a inspiração e o atravessamento da associação do cristianismo e do capital.

Marx e o conhecimento da história (e suas descontinuidades), e hoje o conhecimento do Direito, do projeto comunista e das aporias da democracia, auferem uma nova força e revitalizam todas as militâncias. O Estado, nestas novas análises, sai da estrita dicotomização contra, por exemplo, a concepção de Hegel ([1807] 2002), na qual o Estado dialeticamente consagra a razão, com as críticas mais esmeradas que se dirigem para um aprofundamento das análises de cada um dos seus dispositivos. Foucault ([1975-1976] 2006; [1977-1978] 2004; [1978-1979] 2004; 1994), à sua vez, revela que o poder que reprime também produz, e Agamben (2002a, 2002b, 2004) amplia o alcance destas considerações quando avança para as questões do "Direito". Para isso ele, aliás, sublinha no Direito e no pensamento político do Ocidente o papel do "estado de exceção" e Foucault, nas análises dos "espaços disciplinares", as formas de resistência. Agamben (2002a, 2002b, 2004) é hoje um pensador fundamental, e isso se pode também dizer dele, quando analisa em Benjamin o debate, promovido por este pensador marxista, da soberania, do direito e da violência (justa ou não) com o jurista nazista Carl Schmitt.

Basta analisar os diferentes momentos da história (com seus crimes, injustiças, crueldades e explorações do trabalho) para saber como se redesenham as diferentes formas do poder arbitrário e do sofrimento dos mais indefesos. Se é ou não é propriamente um privilégio viver (e vivendo não se deixar abater pelo desespero, acaso, pelo tempo e pela morte), é sim também um privilégio assumir uma responsabilidade com aquilo que há muito fazemos (por uma inspiração ética) através da nossa escassa liberdade. Por aí nos sobrelevamos como companheiros aos custos de um existir singular e crítico para sermos entre nós teimosamente criadores de um outro mundo, inesperadamente companheiros até mesmo quando os horizontes estão ausentes.

Hoje, como se vê e por uma forma aberta e múltipla, o marxismo avança (como apelo e como análise do capital global) através das lutas que se travam em toda a parte e dos estudos recentes dos franceses e italianos, dos ingleses e norte-americanos, e até mesmo uns poucos alemães, sem esquecer nisso tudo a produção intelectual da América Latina. O importante é que todos relêem Marx, mesmo se o corrigindo e o enriquecendo, e até mesmo muitas vezes se recusando a serem tidos como marxistas. É indiscutível a importância no pensamento político de Agamben, Jameson, Sloterdijk, Derrida, Habermas, Virno e as dezenas de intelectuais agrupados na Revista Multitudes (com os quais podemos discordar), ou Kurz e, recentemente, e até de forma testamentária, Deleuze, Barthes, Guattari, Foucault, Lévi-Strauss e o "último" ou o "primeiro" Althusser. Não digo que eles, os intelectuais, por isso convergem em Marx, mas obrigatoriamente em Marx "divergem", pois eles são reflexões críticas do "capital global" e um debate profícuo do qual o marxismo se beneficiará e nossas lutas tomarão outras formas (menos distantes e menos anônimas).

No entanto, demorará uma "teoria" &– velha e nova &– que sempre precisaremos mas que faltando em nada (já agora) prejudica nosso comportamento político, incisivo e múltiplo, de subversão do capital e do engajamento plural nas diferentes lutas.

Neste universo, e sempre na preocupação e na forma de auferir um marxismo nas indicações de Marx, há que reinvestigar o tema do "poder" (Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Hegel, Weber, Schmitt, Foucault e Agamben) e a tradição de que ele se reveste na forma de um "inconsciente histórico" persistente (Benjamin, Derrida, Sichère, Legendre, Badiou, Agamben), que vai dos monoteísmos ao imperialismo, que interfere na especificidade da força de trabalho, da qualidade intelectual e da agressividade do militante.

As carências do marxismo teórico (com pleno conhecimento do próprio Marx) são encaradas e encaminhadas pelo chamado "último Althusser" com a retomada do pensamento político de Maquiavel e da filosofia com o que veio a se chamar "materialismo aleatório". Os estudos e debates destes textos de Althusser, após sua tragédia pessoal, devem ser encarados como fundamentais por todos nós e é preciso aqui, ou em tudo isso, aceitar novas revelações e exigir de nós mesmos novos comportamentos.

Um marxismo não economicista que insere em si o propósito da "violência justa" (a revolução), por exemplo, numa crítica ampla e numerosa do capitalismo e no fervor agora de uma lucidez exigente e nova que quer e pretende mudar o "homem". E mudá-lo, como já dissemos, não apenas como propriedade (ou transformá-lo tão somente em proprietário generalizado dos "meios de produção"), mas sobretudo e particularmente como propósito não mais de "dominação" da vida, dos animais e do espaço, mas (com os meios técnico-científicos disponíveis) uma viril disposição ética de promover "encontros" e "solidariedades" com todos e com tudo, no aberto e seus possíveis, e também nas irremovíveis inquietações de fundo onde nos pensamos.

Estamos longe de nos sobrepormos às maneiras aparentemente necessárias ou teológicas de encarar e de narrar a história &– onde ela por si mesma sempre foi metafísica, como também é a técnica hoje, que não se resume apenas à sofisticação de meios instrumentais, mas se constitui também numa ideologia, num propósito transcendente, numa solução da finitude, da morte e do isolamento cósmico.

Dar-se conta dos pressupostos do "capital" nesta tradição (universalização aspirada, extorsão, poder, etc.) revela-nos que se trata com Marx &– plenamente pensado e revivido &– de se sobrepor às formulações e às práticas que configuram o "homem" como "homem" e o "Ocidente" como "Ocidente".

A barbárie destas imagens &– suas práticas como forma perversa de vida, de produção e de guerras &– obriga-nos a um marxismo aberto, como dizia Marx, capaz de incorporar o pensamento de diferentes fontes e de radicalizá-las, sem se perder na disparidade de seus modelos, mas relendo-os e com eles subvertendo um "comunismo" desossado que se desconhece e que persiste não formulado. Seja quando no século XX o converteram num socialismo obrigatoriamente social-democrata ou numa democracia hoje aspirada (que alguns designam cinicamente de "radical"). Uma "democracia" que não sabe auferir sua aporia, que de resto a destrói (Derrida, 1994, 2002, 2003), nem seu papel ambíguo, configurando promessas artificiais e medíocres de "representativa", "direta" ou "participativa", fraudando o verdadeiro debate da partilha e do respeito à vida, ao fazer ontem e hoje o luto do militante, como existência e pensamento ao substantivar metafisicamente o "homem" que não somos e que nem queremos ser nos valores e nos dispositivos do poder e do capital.

O Direito a partir dos romanos, como mostra com clareza Agamben (2002a, 2002b, 2004), simula uma "justiça" cujo com-dominante é o poder econômico e o "poder" (em suas formas de macropoder) propriamente dito, onde o "estado de exceção" gere a vida e a morte.

O poder (mesmo aquele refletido por Foucault, que se pressupõe das relações e que aufere formas macrodominantes como afirma Marx), persiste um dos maiores desafios ao pensamento. Estas palavras não significam esquecer que o termo "poder" sofre abordagens aparentemente diferentes em Marx, Foucault e Agamben, mas também, e de forma original, em Levinas e Heidegger. Pensá-lo é um esforço de aproximar estas diferentes versões num vetor comum de transformação do mundo, explicando-o para além da potência, das relações por si mesmas, do desejo, do mimetismo, etc.

O Direito é resultado de uma luta de forças e a "justiça" (sendo em si mesma impossível) é sempre lembrada neste contexto, e ninguém melhor que Derrida (1994, 2002, 2003) estudou sob diversos ângulos esta articulação aporética. Que ele de resto estende até mesmo à noção de "democracia", que para ele é sempre uma "democracia por vir" e jamais um regime político.

A crise bastante conhecida do Estado providência e o papel dos Estados no livre jogo do mercado remete a forma Estado ao modelo hobbesiano e o Estado então vive fortes pressões de privatização exterior e interior. São numerosos os estudos recentes sobre estas crises e transformações do Estado-nação e os testemunhos da sua redução em dispositivos auxiliares das sociedades de controle num contexto de globalização. Seus parâmetros jurídicos da vigência do "estado de exceção" revelados por Agamben (2002a, 2002b, 2004) sublinham no Direito o lugar (ou não-lugar) deste comportamento como instrumento do poder que hoje observamos assegurando e criminalizando o "trabalhador ilegal", os campos de extermínio, a tortura, o gueto, Guantanamo, o papel dos "campos" nas grandes cidades, na segurança e na movimentação criminosa e singular do capital financeiro.

A complexidade nova da globalização &– que altera todas as referências e ritmos da acumulação, da exploração do trabalho em geral (e do trabalho imaterial, em particular) &–, hoje face ao terrorismo (e ao exercício em si do terrorismo de Estado), opera transformações nos valores e nos comportamentos e obriga a repensar o que é e o que deve ser um militante de esquerda.

Desde logo por sua amplitude internacional com instituições recentes que se sobrepõem ao Estado-nação e que se autorizam &– num espaço em transição e ainda por ser marcado &– a todas as arbitrariedades e sujeições possíveis. A questão será se é possível criar ou inaugurar &– e sobretudo internamente reivindicar &– no plano do Direito em si, ou em qualquer outro plano da vida em comum, transformações necessárias e exigentes em todos os sentidos para as massas excluídas e fragilizadas.

No Direito o "estado de exceção" &– mesmo se pensado, como dissemos, como um "não-lugar" junto e inseparável do Direito &– se torna fator determinante nesta nova época e não é difícil caracterizar os procedimentos que o tornam um campo de conflito (uma verdade até recentemente obscura) como posição ambígua do poder, que o tem radicalizado como ameaça e como discriminação em todos os temas (imigrantes, circulação, segurança, sobrevivência, controle, etc.) que configuram a nossa época.

E assim, se posso dizer, e enquanto companheiros, sabemos em meio disso tudo o que queremos (sabemos quanto de experimental e de riscos existe neste propósito), mas este saber de nada valerá se não soubermos esperar ou se nos envolvermos precipitadamente num comportamento semimorto que aparentemente nos justificaria em meio das dificuldades, mas que se esgotaria na fraude e no ritual democrático, mesmo quando se adjetiva em radical como fazem Negri e Hardt (2001, 2005).

A luta em que estamos envolvidos &– sobretudo por motivos éticos e que por vezes aufere em nós até mesmo a cólera &– busca a subversão como aquilo onde ela se começa (e se opera também como forma de luta) num número justo de direitos reclamados, de outros modelos de vida e de resistência.

Se é este o nosso propósito político, ele não exclui os engajamentos em lutas micropolíticas (Deleuze-Guattari e Foucault), nem em protestos mais gerais no espírito do "Direito dos Homens", no qual a maioria dos quadros é reformista e às vezes até capazes de excluir aqueles que, em suas posições, os façam lembrar os objetivos comunistas. Enquanto nos faltam a teoria e a luta que nos une devemos usar a diversidade e saber levá-la até seu limite &– pois é aí que a nossa luta nos espera como pensamento e forma.

As lutas contra as discriminações de gêneros, ou pelos animais, ou pelos imigrantes, ou pelo direito de asilo, ou contra a ameaça da catástrofe nuclear, ou pelos negros &– que já são a maioria no Brasil &–, pelas mulheres, pelas crianças, pelos doentes crônicos, pelos idosos, pelos sem-teto ou sem-trabalho, sem-papéis, ou pelos loucos, etc., são lutas que eventualmente nos engajam e onde também sabemos fazer valer, se possível, a ética revolucionária que nos remete para além destas metas circunscritas sem contudo abandoná-las.

Há, certamente, um quadro mundial complexo &– previsto de certa maneira como também imprevisto de certa maneira na divisão de recursos e riquezas &– e que desenhará com mais precisão o mundo que está se formando tanto verticalmente como horizontalmente. Nesse ritmo mantemos nossa atenção e nossa disponibilidade e dependemos muito de nos darmos conta deste mundo &– que muitas vezes é uma incógnita para o próprio capital, porém não para a sua acumulação de riqueza e de seu poder político. Tanto na previsão da prática que desenvolvemos, como na elaboração teórica (que insisto estar em bom caminho), não se demorará a realidade em precisar procedimentos políticos para todos nós, menos imprecisos nas formas e menos vagos nas conseqüências.

Mas nada disso &– significa ou deve significar &– uma espera repousante da nossa parte, pois todas as lutas são oportunamente nossas lutas e todos os estudos políticos devem atrair a nossa atenção.

A globalização que se distingue da "mundialização" (como mostra Jean-Luc Nancy2) é o mercado, a grande e total exclusão da vida, o direito engolido pelo "estado de exceção" e o controle e a segurança absolutizada. É (paradoxalmente) a universalização do "terrorismo de Estado".

Como disse um jovem professor palestino, numa esquina crestada por incêndios, no recente Fórum Popular da Índia: "o capital se apresenta como armazéns de ogivas nucleares, mas os nossos corpos já são bombas e entre os pigmeus já há um coro que dança e canta o Manifesto Comunista".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Refiro-me ao que se chama (suponho) um segundo Althusser (textos seus só revelados depois de seu Diário e de sua morte). Para artigos sobre o "último Althusser" consultar a revista Multitudes nº 21. Ver também a Entrevista com Fernanda Navarro "Sur la Philosophie", Gallimard, 1994; "The Uncertain Materialism of L. Althusser", Graduate Faculty Philosophy Journal, 2000; Fonds Louis Althusser/Archives Imec. Herdeiros Althusser.
2 Jean-Luc Nancy é um filósofo francês, professor em Strasbourg, do grupo de Derrida (ligado a Lacoue-Labarthe, Levinas, Agamben e outros). É o único não-judeu mas, como Derrida, pensa as "desconstruções históricas" inclusive nas relações com a tradição teológica. Sua obra é imensa. Alguns de seus últimos livros são: La Déclosion, Galilée, 2006; A plus d'un titre, Galilée, 2007 (homenagem a J. Derrida) e recentemente Verité de la democratie, Galilée, 2008.

 

 

Recebido em 17 de janeiro de 2008
Aceito para publicação em 01 de setembro de 2008

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