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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.21 no.1 Rio de Janeiro  2009

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

O corpo e a máquina: um terreno de experiência, a clínica do adolescente1

 

The body and the machine: a terrain of experience, the clinic with adolescents

 

 

Anne Tassel*

Universidade Denis-Diderot, Paris 7

 

 


RESUMO

A partir de estudo de casos em clínica com adolescentes, procuramos identificar os aparatos simbólicos da linguagem contemporânea, no que concerne à construção da identidade. As tecnologias disponíveis são utilizadas pelos adolescentes como elementos de alteridade em que a afirmação da sexualidade desvanece sob o emaranhado de "próteses da linguagem". A constatação de que esses valores, uma vez incorporados, não inibem o aparecimento dos temores do homem primitivo revela paradigmas e paradoxos singulares. Na montagem que o adolescente produz de sua imagem, as próteses não só comparecem como proteção da pulsão, mas, além e concomitantemente, como autorização erótica da angústia identitária.

Palavras-chave: imagem do corpo; adolescência; identidade; tecnologia; narcisismo.


ABSTRACT

From the study of adolescent clinical cases we tried to identify the symbolic apparatus of contemporary language, regarding the construction of identity. The technologies currently available are used by adolescents as elements of alterity, where the affirmation of sexuality fades behind "prostheses of language". Once theses values are incorporated, they do not hinder the appearance of primal fears, revealing particular paradigms and paradoxes. In the assembly where the adolescent produces his/her image, the prostheses appear as protecting the drive, as well as an erotic authorization of identity anguish.

Keywords: body image; adolescence; identity; technology; narcissism.


 

 

INTRODUÇÃO

Para introduzi-los aos efeitos clínicos da evolução do corpo contemporâneo, proponho-lhes uma reflexão a partir do universo cultural do adolescente e de minha experiência clínica com eles. Tal reflexão tornou-me sensível às suas preocupações e às suas angústias relacionadas ao corpo e à sua imagem. Mas esta reflexão só pode se inscrever no interior da atualidade de nosso contexto no qual as tecnologias contemporâneas modificam nossa abordagem do corpo e criam novas próteses à nossa disposição. O acesso a tais tecnologias (e suas próteses) e sua disponibilidade para uso imediato e regular pelos adolescentes transformam seus gestos e também suas representações.

Questionando a pertinência do termo pós-humano, esta reflexão fará aparecer as incidências de uma certa intimidade maquinal entre os adolescentes. Nossas hipóteses se focalizam sobre as modalidades de integração destas novas tecnologias que interrogam as vias da reorganização psíquica de sua sexualidade do ponto de vista de sua relação a uma nova imagem do corpo. Veremos de que maneira os adolescentes investem estas tecnologias, seja de forma patológica, que os empurra em direção a uma espécie de adição ao espaço virtual da tela, seja ao contrário, de forma mais feliz, na direção da criação e organização de cenas favorecendo a expressão dos resíduos da cena infantil e, de forma concomitante, colocando o objeto genital.

 

UMA NOVA IMAGEM DO CORPO

Aquilo que separa o natural do artificial não cessa de perder sua consistência. A integração do natural pelo artificial segue uma curva exponencial.

As tecnologias contemporâneas que se aproximam cada vez mais do corpo, sem dúvida, não são irrelevantes (Kurzweil, 2005). De fato, estas contribuem para o desenvolvimento da capacidade de hibridização com o corpo, ao recolocar em questão os princípios de base sobre os quais se funda a distinção entre o humano e o não-humano, entre o artificial e o natural.

O termo pós-humanidade, em referência à emergência de uma tecnologia integrativa que se incorpora até os níveis mais íntimos do corpo humano, parece adquirir o mesmo status que aquele antes reservado a humanidade e a natureza. Como exemplo, cito a colocação de receptores internos na circulação sanguínea capazes de regular os equilíbrios biológicos, ou a colocação de implantes neurológicos aptos a modificar as performances físicas e psíquicas do corpo humano, melhorando suas habilidades, sua rapidez e sua capacidade de atenção. As projeções futuras desta evolução sobre as performances e as transformações das capacidades humanas indicam que tais capacidades seriam não apenas aumentadas, mas constantemente diferenciadas e complexificadas em relação à condição natural original. Ora, sabemos que a expansão qualitativa de nossos algoritmos criados pela máquina utilizam paradigmas que podem incluir paradoxos, satisfazendo, assim, o desenvolvimento das operações de memória, de julgamento ou de raciocínio, até a criação de retóricas e de poéticas novas. Estas também serviriam como próteses da linguagem (Lyotard, 1988). Não só a falta de imaginação pode ser teoricamente compensada pelo cálculo, mas a extensão das próprias capacidades intelectuais pode se fazer através do artifício de sua estocagem: as máquinas engendradas por nosso córtex criam uma rede em extensão, formando um segundo córtex mais complexo.

Estas reviravoltas tecnológicas mantêm em nossos espíritos a ideia de uma atenção permanente à evolução de nossas próprias capacidades, exacerbando no homem a imagem narcísica de um corpo a organizar ou a reorganizar, como um eterno projeto, ele mesmo sendo um máquina em direção ao seu futuro. A reconstrução ampliada e transformada de nosso corpo e de suas capacidades através da máquina definiria uma nova natureza humana?

 

UMA NATUREZA PÓS-HUMANA?

Na perspectiva da evolução, Freud se apoia essencialmente sobre a hipótese de que a herança inconsciente, filogenética e ontogenética, caracteriza a natureza humana. Esta é constituída por uma organização psíquica estruturada em extratos cumulativos na qual nossas experiências são herdadas com as marcas deixadas por nossos ancestrais que se reatualizam em nossas conquistas individuais, permitindo que a história de cada um se articule com a história coletiva. Assim, a presença de temores arcaicos não é eliminada pela era maquínica e estes se encontram presentes de forma subjacente em nossas percepções, tornando-nos aptos a reconhecer, nos monstros que virão, o terror do homem primitivo.

Quais são os impactos proporcionados por esta nova intimidade maquinal? Em minha opinião, estes impactos visariam, antes de tudo, a capacidade depressiva das crianças que, sobreidentificadas, não encontrariam espaço suficiente de devaneio maternal em que ancorar suas capacidades projetivas antecipadoras e adaptativas. Confrontadas sem cessar com o cuidar de si, nossa natureza humana se faria regressiva, reencontrando a agressividade em sua forma mais arcaica do sem piedade (Winnicott, [1971] 1990). A evolução exponencial da acumulação de novos modelos que se apresentam sob a forma da avaliação ou da imagem parece acentuar, modificar e valorizar uma excitação projetiva que pode fazer obstáculo à construção de nossas identidades, favorecendo uma identificação em que o despedaçamento, a dispersão e o modo de imitação dominariam. Esta nova intimidade maquinal se revela essencial do ponto de vista das modificações psíquicas entre adolescentes, para quem uma nova imagem do corpo está sendo construída.

 

A MÁQUINA ADOLESCENTE

Deve-se constatar que a sobrevalorização extrema da imagem do corpo e também a importância de seus cuidados - estéticos, médicos e festivos - mobilizam o interesse atual de nossos jovens pacientes. Em que medida a imagem não modifica a relação imaginária que eles têm com seu próprio corpo e sobre a qual projetam e condensam todas as suas insatisfações?

Designando-se como os felizes experimentadores destas teletecnologias que lhes permitem sentirem-se ativos, os adolescentes se focalizam sobre uma imagem do corpo insatisfatória diante dos impasses da genitalidade. Tentam prolongar o prazer de ser criança disfarçando esta sob a sutileza de figuras pré-edipianas. Por qual mecanismo esta intimidade maquinal poderia tornar-se um obstáculo à afirmação de uma identidade sexual singular se, como identifica Stiegler (2005), a singularidade não é "nem calculável, nem formatável, nem controlável?" (Stiegler, 2005: 231).

A submissão narcísica à sua imagem, na medida em que esta veicula junto aos outros suas imperfeições e suas faltas, mantém entre os adolescentes a crença de que obteriam um verdadeiro ganho de prazer pelo tanto que a imagem de seus corpos se adaptou à dinâmica de seus desejos. Subitamente eles se tornam adictos às promessas e expectativas, em uma performance que apenas cede aos imperativos de um poder que quer fazer evento refinando seus gestos de dançarinos ou de esportistas sob a vigilância da webcam. Os adolescentes são os atores voluntários dessa constante autovigilância que, de artificial, se torna natural, reforçando suas relações narcísicas articuladas pela imagem de um corpo assustador. Utilizam prontamente tudo aquilo que é produzido e adaptável às inovações tecnológicas e são convidados a operar uma multidão de montagens entre seus ambientes e seus próprios corpos, quer se trate do modo virtual de comunicação (blogs e chats), da criação de ambientes sonoros (rap, rave party e techno party) ou de signos (tags, piercings ou tatuagens). De fato, eles se apresentam em um estilo, isto é, em uma atitude corporal capaz de salvaguardar seu modo de ser, quer seja pela dança (slam, break dance ou smurf) ou pela moda (gótica e outros looks), referências indispensáveis a toda reivindicação identitária que indique uma filiação específica ou um pertencimento geracional.

O processo psíquico engajado por estes objetos, que são mais geradores de afetos do que de representações, articula-se com o imperativo do excesso que solicita sensações em rede para mitigar a angústia que as drogas às vezes mascaram. A esperança de ligar o ganho deste gozo ao poder reativo da ilusão se dá às expensas da redução do corpo a uma estética, a uma imagem sensitiva, tátil ou visual, encarregada de preservar o traço fetichista (tatuagens, queimaduras, objetos subcutâneos, etc) que o adolescente, frequentemente decepcionado e sentindo-se excluído, coloca no lugar de seu objeto de desejo. Os grafiteiros têm uma forma de exprimir, sob seus pseudônimos, o que acabo de dizer. Em suas palavras:

Grimlins: Marcar, grafitar, isso faz sair as palavras. No início você não é nada, você procura um pseudônimo, e depois todo mundo sabe o que você é. Patins, mochila e tinta-spray... Assim que a gente para um "tag" (uma marca) vem, isolado, mas você pode dizer: "eu sou isso".

Sley: Meu tag (minha marca), levei quatro anos para fazê-la, um conceito de vandalismo. Com as chaves PTT para entrar nos imóveis, a gente pichava nos tetos, em todo o lugar. Tem uma força nisso. Eu estou frequentemente só, mas eu grafito o tempo todo. É por mim que eu faço, para estar representado nas paredes, na maior quantidade de paredes possível.

Neo: É uma vida rápida, um pouco fácil, a gente não planifica, vai no improviso, uma vida violenta, perigosa, como uma arte selvagem. Você pega os sprays de tinta, não é para comprá-los, você os rouba, e você tenta a sua vida. Mesmo se você se sente excluído, a gente só faz isso, pensar na beleza do tag. O resto a gente não liga.

Inscrições riscadas, os tags não fariam do movimento transgressivo um sintoma literal que a estética acolhe como abertura de uma nova era?

 

VIRTUALIDADE DO CORPO

Diante da ameaça da puberdade o prazer da performance reenvia ao temor inconsciente de ser excluído, temor reativado pela colocação em movimento dos processos psíquicos que intervêm não sobre o afeto de prazer, como nos diz Laplanche (1984), mas sobre o afeto negativo do desprazer como fonte dinâmica do processo pulsional:

Pois o afeto de desprazer é capaz de ligar diretamente o psiquismo ao corpo, sem passar através do que nós poderíamos chamar uma representação constituída, ou um afeto sentido, isto é, pensado. Ora, esta economia psíquica é particularmente custosa para o Eu, a atenção à sensorialidade toma eventualmente o passo sobre o cenário do devaneio diurno, desorganizando a defesa que se encontra subitamente encarregada de uma culpa inconsciente massiva (Laplanche, 1984: 19).

O recurso sistemático à imagem virtual em nosso mundo contemporâneo não favoreceria a condensação desses afetos negativos que se inscrevem no momento da adolescência? Estes afetos negativos, projetados e condensados sob todas as formas da imagem - visual, auditiva ou sinestésica -, negam, então, um corpo também insatisfatório, culpado e incerto, sentido às vezes como monstruoso. Esses afetos negativos encontram refúgio e resistência junto às representações frequentemente em conformidade com uma imagem do corpo fixa e estereotipada, em pseudônimo, seja ela de um corpo em ruptura ou em conformidade. Deste modo, a fixação a estas modalidades virtuais se reduz:

- seja ao corpo fórmula, que responde a uma identidade já realizada, elevada à tirania do dever ser e à mediocridade da condição anônima. Esta assume uma função de imitação, encontrando satisfação no deslizamento da identificação ao pai e aos pares, tal como ilustram os corpos em série do fotógrafo Spencer Tunick. De fato, este deslizamento enriquece o investimento narcísico dos pais, que então se desloca ao par idealizado, que é seguido cegamente.

- seja à figura do herói que se sacrifica, heróis sobreidentitários (Ardenne, 2001), cuja imagem favorece o recuo do fracasso mortal a partir de um ato de desafio à vida, e que muitas vezes se traduz em tentativas de suicídio. As imagens do herói protegem o adolescente da invasão primitiva e imaginária das imagos e lhe fornecem um sentimento de pertencimento a uma nova geração, dando-lhe a oportunidade de se apropriar de seus próprios limites face aos limites dos adultos que lhe parecem ultrapassados e humilhados.

Essas identificações perduram para benefício narcísico do adolescente, que satisfaz, assim, seu desejo masoquista de se submeter a esta nova ordem, portadora de um autoproclamado futuro (crianças-soldados e guardas-vermelhos, e também adolescentes grafiteiros, mutilados ou escarificados).

Essas ficções se aproximam da figura coisificada ou idealizada da identidade adolescente, elas interrogam suas existências acentuando o lado trágico do desafio identitário que exterioriza o mal de que o corpo interno sofre. Goza-se dos afetos profundos, das feridas íntimas, da violência na relação a si próprio, até as mutilações que o sujeito se impõe, como as mãos queimadas, as scarifications (cicatrizações) dolorosas, ou os ganchos metálicos implantados na pele. O artista Michel Journiac, através da expressão "se fazer carne", desenvolve o tema do animal que é marcado com ferro em brasa e de forma triangular, em referência aos nazistas.

 

ADICÇÃO À IMAGEM

Assim estigmatizado, é o corpo mutilado que se torna o sujeito da ação, tanto autor de seus atos quanto "matéria maleável" (um conceito de Marion Milner), isto é, o objeto ofertado para valorização ou para destruição. O adolescente se dobra, assim, facilmente, e de forma masoquista, à prova de endurance2, ao custo de resistir a fim de abrir espaço onde ele possa sentir estar, isto é, se sentir dentro da relação (Winnicott, [1971] 1990). A forma estética da endurance não se exporia através de uma adicção à imagem? A origem de uma intersubjetividade frequentemente esclerosada pela via familiar torna-se possível através da criação de uma intimidade à distância. O colo da tela pode se tornar o receptáculo de um sofrimento sem imagem, como testemunha o pequeno trecho da sessão de meu paciente, Max.

Inibido através das palavras e pelo fato de ter que se exprimir, Max mexe seu corpo durante a sessão, virando a cabeça em direção às janelas, em direção às paredes, à escrivaninha, como se quisesse escapar ao olhar que sente como estando fixado sobre ele. Logo de entrada fala de seu avatar que lhe dá "o poder de ir em todos os lugares" e Max pode através dele se transformar em humanoide assim que abre a porta de outros mundos. Sua adicção aos jogos de vídeo provoca o desespero de uma mãe bibliotecária, que às vezes lhe pede para segui-la em uma livraria, e Max lhe confessa o segredo de sua fobia: "assim que me encontro próximo dos livros eu tenho vertigens, me sinto mal, preciso sair, não suporto estar fechado entre as estantes". Esta fobia de livros não era, entretanto, uma fobia relacionada aos livros propriamente, pois seu grande temor consistia, bem ao contrário, em não poder mais largar a história uma vez que ele a tinha começado. Assim, quando o fim se aproximava, implicando sua separação dos personagens de quem havia se tornado familiar, tinha o hábito de prolongar os últimos momentos da história e às vezes não ia até o fim, deixando este sempre para mais tarde... Ao menos com os jogos, ele tinha sob seus cotovelos um mundo sempre igual que o aguardava sem surpresa.

Este sofrimento, curiosamente sem imagem, corresponde à falha no recalcamento das fantasias incestuosas e destrutivas que não coloca a agressividade edípica a uma distância suficiente. Essas condutas de contrainvestimento massivo, lutando contra a excitação e a angústia, se misturam na realidade externa, e isto se deve à insuficiência das vias psíquicas para lidar com uma realidade interna excessivamente excitante.

Em que medida estes contrainvestimentos não seriam produzidos pelo fracasso por um tipo de sublimação e não revelariam também um traço de dessimbolização? Não se prestariam também a uma regressão festiva? Em que medida esta prova organizada junto a este corpo falso não teria a tendência a se reduzir ao corpo factum (Ardenne, 2001), isto é, ao corpo como artefato? A construção do artefato parece conter e também proteger temporariamente da violência decorrente da emergência da fantasia, fornecendo uma representação de si ao mesmo tempo contrabandeada, isto é, dessublimada, objetalizada, dessimbolizada e, eventualmente, difusa, ou seja, regredida. Entretanto, este artefato permite desviar-se do outro dentro de si, este que é um alienígena, no sentido de estranho hostil, que se apresenta sob a máscara do censor do afeto. É porque a passividade do corpo da criança é sentida como dolorosa que o adolescente a substitui pela imagem de um corpo construído não só no sentido de uma forma construída, mas constituindo uma revolta, uma insurreição legítima "através da qual o sujeito encontra satisfação existencial em se opor à condição monstruosa do humano" (Ardenne, 2001: 395). A utilização de pseudônimos nos chats e nos blogs responde à necessidade de um certo acordo afetivo, segundo a expressão de Daniel Stern, capaz de minimizar as intempéries cotidianas, permitindo, também, o investimento a corpo perdido de uma imagem virtual que engaja "o simulacro de um corpo reduzido a uma aparência" (Tisseron, Missonnier & Stora, 2006: 96), possibilitando a reescritura da imagem do corpo. O caso de Sylvain expressa bem isto:

Tímido, à distância do olhar das meninas, Sylvain, 14 anos, se apaixonou. Apaixonou-se pelas palavras que tinha lido em seu blog: "eu não compreendo tudo aquilo que Maggy me diz, mas são justamente as palavras que ela emprega que fazem efeito sobre mim, e eu sonho que falo com ela, que ela deseja falar comigo. Eu me pergunto se ela não tem vontade de me reencontrar".

Sylvain me pedia para esclarecer aquilo que ele não tinha podido compreender. Certos termos lhe pareciam enigmáticos, até mesmo obscuros, mas inteiramente fascinantes. Rapidamente se instalou uma correspondência entre ele e Maggy que o encantava. Entretanto, o encontro com ela o decepcionou mais do que havia previsto, mas mesmo assim este movimento lhe permitiu sair de sua morosidade de criança e Maggy o conduziu à percepção da realidade nascente de sua genitalidade.

 

PRÓTESES PSÍQUICAS: OS MANGÁS

Esta reescritura de si mesmo participa das aleias da escolha sexual, assim como das montagens necessárias de uma identidade sexual que, no momento de sua construção, utiliza-se das figuras veiculadas pelas histórias em quadrinhos e desenhos animados.

A imagem de um corpo virtual modificável, como propõem os cenários Mangás, ao promover as mudanças de sexo entre menino e menina, oferece uma resposta pré-programada que parece apaziguar as angústias adolescentes.

A disponibilização dessas metamorfoses, ou destes desdobramentos, por procuração, mobiliza os extratos inconscientes que acompanham o movimento da puberdade, oferecendo situações pré-mastigadas que possibilitam a abertura de identificações indiretas que facilitam a organização das defesas diante da complexidade da genitalidade, da renúncia infantil e da escolha sexual. A proximidade de uma intimidade sexual seria favorecida através das apropriações projetivas do sexo do outro? A necessidade de um recalcamento utiliza este jogo psíquico à guisa de ficção, temperando a inquietante estranheza do adolescente, que pouco a pouco relaciona seus atos às fantasias representativas do prazer erógeno.

Assim, essas próteses psíquicas, ao ligarem as representações internas às representações externas, deixam livres as identificações projetivas contraditórias e paradoxais, livres para se imbricarem e se enlaçarem umas às outras. Elas se apoiam, também, sobre a atividade discriminatória das sensações originárias da imagem do corpo, permitindo misturar aquilo que, sendo externo a si, pode constituir um objeto de apropriação e aquilo que, sendo interno a si, pode se constituir como objeto de recalcamento.

 

A MONTAGEM DA IMAGEM

Estas próteses psíquicas, através de sua forma pré-interpretativa, fabricam a ilusão necessária à transformação real da relação com a imagem do corpo, autorizando uma erotização da angústia identitária. Não estamos nós, face a estas construções adolescentes, diante da criação de retóricas e de poéticas novas, elas mesmas servindo de próteses da linguagem?

Os novos hábitos de nossas sociedades contemporâneas podem concorrer para figurar, isto é, para relativizar a tensão provocada pelo estranho que incomoda, e que é também o inconsciente, como lugar da alteridade. A clínica do adolescente esclarece as formas híbridas da presença da alteridade, fazendo-o depender da percepção do corpo e de sua imagem. A utilização dos blogs, dos chats e das webcams, tão familiar aos jovens, me parece acentuar a disjunção entre o temor que existiria diante de um corpo que tornaria a pulsão objetalizável e o investimento de uma intimidade manipulável através da comunicação virtual, protetora da pulsão. A corrente terna e sensual não encontraria aí a possibilidade de se articular sobre estas duas cenas, concorrendo, assim, para um ajustamento psíquico?

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ardenne, P. (2001). Figures de l'humain dans l'art du xx siècle. Paris: Editions du Regard.         [ Links ]

Kurzweil, R. (2005). The singularity is near. New York: Viking Penguin.         [ Links ]

Laplanche, J. (1984). Problématiques I - L'angoisse. Paris: PUF.         [ Links ]

Lyotard, J.- F. (1988). Le postmoderne expliqué aux enfants. Paris: Galilée.         [ Links ]

Stiegler, B. (2005). Les nouveaux misérables. Insistances, 1.         [ Links ]

Tisseron, S.; Missonnier, S. & Stora, M. (2006). L'enfant au risque du virtuel. Paris: Dunod.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1971/1990). La nature humaine. Paris: Gallimard.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Este artigo foi apresentado como Comunicação Oral no Colóquio Internacional O Corpo Contemporâneo: Psicanálise, Cultura e Criação, realizado nos dias 29 e 30 de outubro de 2007 nas Universidades Santa Úrsula e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2 N.T.: prova de resistência, termo relativo aos esportes radicais.

 

 

Recebido em 23 de janeiro de 2008
Aceito para publicação em 25 de julho de 2008

 

 

Tradução de Sérgio Medeiros
* E-mail: tassela@wanadoo.fr

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