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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.21 no.2 Rio de Janeiro  2009

 

RESENHAS

 

Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade: mais que um manual

 

Attention-deficit hyperactivity disorder: more than a handbook

 

 

Patricia Barros M. Carôlo

Psicóloga; Psicoterapeuta Cognitivo-Comportamental; Mestre e doutoranda em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

 

 

RESENHA DE:

Barkley, R. (org.) (2008). Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade: manual para diagnóstico e tratamento. Porto Alegre: Artmed. 784 páginas.

O Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) foi, durante muito tempo, mitificado e sua existência até mesmo questionada. Um dos grandes responsáveis por uma vasta obra literária nesta área foi o psicólogo e professor Russel Barkley. Autor de inúmeros estudos científicos sobre o TDAH que buscavam conferir a este transtorno constatação científica, na obra original de 2006 (e editada no Brasil em 2008), contou com a ajuda de 20 colaboradores que, em conjunto com o próprio Barkley, fizeram uso de uma imensa quantidade de referências de artigos e livros para consolidar um manual de diagnóstico e tratamento. Na verdade, essa é uma atualização de uma versão mais antiga que vem sendo renovada desde 1981. O campo de publicações nesta área é bastante fértil, mas ainda com uma variedade de lacunas a serem exploradas. Grande parte dos capítulos deste livro faz a descrição e a análise crítica de diversos estudos científicos que abordam temas que vão desde a natureza do transtorno até os diversos campos de aplicação do tratamento.

O livro inicia-se retratando a história dos diversos impasses no estudo do TDAH e também as diferentes teorias levantadas ao longo deste tempo. Nesta história, constatam-se também os avanços da farmacologia, bem como as investigações com adultos. Ao longo desta obra, encontram-se temas amplos, tais como a etiologia do transtorno e sua classificação, assim como aspectos mais específicos, relacionados à associação deste transtorno com problemas cognitivos e de desenvolvimento e à influência de diversas comorbidades no quadro geral do TDAH.

O manual de Russel Barkley e seus colaboradores apresenta uma vasta quantidade de dados e instrumentos auxiliares à avaliação e ao processo diagnóstico. Os autores utilizam recursos teóricos e práticos, apresentando casos clínicos que permitem mostrar de forma mais concreta a integração das entrevistas, escalas, testagens neuropsicológicas e a avaliação clínica. Desde a avaliação, o estabelecimento do diagnóstico até a implementação do tratamento, é enfatizada a participação daqueles que estão no contexto da criança, adolescente ou adulto. Nesta jornada, pais, professores, cônjuges e até mesmo colegas de escola são auxiliados no modo como deverão promover um ambiente que assegure o desenvolvimento bem-sucedido do indivíduo com TDAH. Mesmo que o próprio Barkley admita que não existe consenso nos estudos sobre as intervenções parental e escolar, grande parte da sessão dedicada ao tratamento é focada no aconselhamento, treinamento familiar (em pequenos e grandes grupos), formação e apoio para professores, além de programas de resolução de conflitos mediados pelos próprios estudantes. Fica claro, assim, o enfoque concedido pelo organizador e seus colaboradores ao contexto ambiental, que, em conjunto com a farmacoterapia, estrutura o tratamento.

Nesta imensidão de dados, análises e discussões, o livro se organiza em três partes: a primeira relata a natureza do TDAH, a segunda trata da avaliação, enquanto a terceira se dedica ao tratamento do transtorno. Sobre a natureza do TDAH, além da história, a obra retrata os estudos a respeito dos sintomas, critérios diagnósticos, prevalência e diferenças de gênero. Neste campo, salienta-se a discussão sobre a revisão dos critérios de classificação, especialmente a respeito dos subgrupos do TDAH, do estabelecimento do diagnóstico em diferentes períodos do desenvolvimento e da duração mínima dos sintomas.

Todos os capítulos desta parte inicial são escritos por Barkley. Assim, ele tece relações entre eles conforme vai apresentando suas ideias. Deste modo, no terceiro capítulo, ele retoma as dificuldades cognitivas, de desenvolvimento e de saúde associadas ao TDAH, comentadas superficialmente nos capítulos iniciais. Agora, enfoca-se a dificuldade no campo intelectual e da aprendizagem e as consequências do transtorno na área acadêmica ao longo da vida. Seja pelo ensino formal ou por causa do comportamento não aderente às regras, as "batalhas" mais comuns acontecem nesse contexto. Sobre o desenvolvimento, o autor enfatiza a internalização da linguagem como dificuldade marcante no amadurecimento cognitivo. Além dela, são discutidas as principais implicações do funcionamento neuropsicológico no cotidiano destes indivíduos: na noção de tempo, no planejamento, na perseverança e na flexibilidade cognitiva, além da autorregulação, autoconsciência e motivação.

No capítulo seguinte, o mesmo autor enfatiza os principais transtornos comórbidos, o diagnóstico diferencial e analisa também as relações sociais com os pais e os pares de crianças com TDAH. Um ponto importante desta temática consiste na discussão sobre os transtornos psiquiátricos dos pais e como eles influenciam na interação com seus filhos. Por outro lado, a análise dedicada à etiologia do transtorno enfoca as questões biológicas, abordando desde pesquisas no campo da neuropsicologia até estudos em genética nuclear sem, no entanto, determinar uma causa que tenha valor explicativo ou preditivo. Ademais, num capítulo sobre o curso evolutivo do TDAH, são caracterizados os diversos sintomas ao longo da vida até a fase adulta. Destacam-se as possíveis consequências do transtorno em adultos, como a evolução para atividades antissociais, abuso de substâncias, dificuldades nos relacionamentos sociais, prática "inadequada" da atividade sexual e prejuízos no funcionamento acadêmico. Encerrando a primeira parte do livro, o autor faz uma atualização da sua própria teoria e parte para a segunda etapa do livro, a avaliação.

No processo de avaliação diagnóstica, o médico parece atuar, segundo a visão dos autores, como um maestro que escolhe e integra os instrumentos a serem utilizados e, de acordo com os resultados, planeja o tratamento. Assim, cada capítulo trata de cada etapa deste processo até a intervenção: a entrevista diagnóstica, as escalas de avaliação do comportamento e o exame médico; os testes e as medidas observacionais; a integração desses resultados; bem como a especificidade da avaliação nos adultos.

A partir da análise dos resultados colhidos no processo diagnóstico, conta-se com uma série de opções de tratamento. Nesta última parte do livro, são descritos alguns programas de intervenção, especialmente com as famílias: aconselhamento e treinamento parental, que é realizado a partir de um protocolo de 10 etapas com estratégias de psicoeducação e de manejo comportamental; um treinamento comunitário para grandes grupos; e um treinamento para famílias com enfoque nos adolescentes, contando com estratégias cognitivas e comportamentais. O tema do tratamento é abordado ainda em dois capítulos dedicados à intervenção escolar, com destaque para estratégias de aderência às regras deste contexto e de mediação de conflitos com os pares. Finalmente, o tema da intervenção chega à analise da farmacoterapia e o uso de diversas substâncias neste tratamento: estimulantes; antidepressivos e inibidores da recaptação de norepinefrina; outros medicamentos; e a farmacoterapia em adultos. Segundo os estudos apresentados no capítulo dedicado à análise das terapias combinadas (que integram medicação e psicoterapia), a eficácia do tratamento depende desses dois pilares: de um lado, a medicação; de outro, o tratamento comportamental (e, em alguns casos, cognitivo-comportamental), que abrange os domínios da família, do indivíduo e da escola. Para esta análise, foram considerados estudos importantes como o Multimodal Treatment Study of ADHD (MTA), além de estudos mais recentes, comentados sob diversas nuances, tal como são analisados os dados ao longo de toda a obra.

Esta é, portanto, mais uma contribuição significativa de 784 páginas de informação de qualidade, analisada e discutida, que contribui para uma atualização consistente sobre o TDAH. Como um dos grandes investigadores do assunto, Barkley adota uma linha teórica e prática própria. Seus estudos optam por uma teoria baseada no déficit de inibição do comportamento, de acordo com um modelo evolutivo-neuropsicológico que envolve quatro funções executivas: a memória de trabalho não-verbal, a internalização da fala, a autorregulação do afeto/motivação/excitação e a reconstituição, todas elas bem definidas e explicadas por ele mesmo. Desse modo, o trabalho é uma obra organizada, estruturada teoricamente sob a visão de seu organizador e, especialmente, uma rica fonte de evidências empíricas sobre o TDAH e que, ainda assim, formam uma dinâmica que se atualiza, reconstrói e se amplia ao longo do tempo.

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