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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.22 no.1 Rio de Janeiro jun. 2010

 

RESENHA

 

O que quer uma mulher?

 

What does a woman want?

 

 

Denise Maurano

Psicanalista; Membro do Corpo Freudiano – Escola de Psicanálise; Professora Associada da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Autora, dentre outros livros, de A transferência, Coleção Passo-a-passo, Jorge Zahar ed., 2006

 

 

RESENHA DE:

Zalcberg, M. (2007). Amor paixão feminina. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 256 páginas.

Você tem alguma ideia? Pois Malvine Zalcberg tem. E tem muitas. Elas pululam em seu belo livro Amor paixão feminina, lançado pela Editora Campus/Elsevier. Que as mulheres querem, disso não se tem a menor dúvida. Queremos sempre. Demandamos isso, aquilo, e não sei o que mais, movidas por um desejo que não quer calar. Aliás, que, sobretudo, não quer calar. Dele uma coisa nós sabemos − é indestrutível. Ai daquele que pensa poder estancá-lo com suas oferendas! O que, obviamente, não invalida nossa admiração pelas belas tentativas.

Nosso querido Freud já se coçava com essa questão: o que quer uma mulher? Eis o enigma central do insondável continente negro, maneira pela qual designa a mulher. Essa, inclusive, não existe, radicaliza Lacan, autor tão caro à autora do livro. Mas não se espantem! Nós existimos em nossa materialidade empírica, contadas uma a uma, o que não existe é a possibilidade de sermos generalizadas frente a um artigo definido: A mulher. Somos mesmo é marcadas pela indefinição, um pouco isso, um pouco aquilo, nunca totalmente. A psicanálise e a vida nos ensinam: um homem se mede por outros; o poder viril visa sempre à totalidade. Já a mulher, em sua dimensão feminina, quer ser contada como única, escapa a toda representação que tente apreendê-la. Por isso se pode dizer que, por a mulher não existir, ela precisa ser inventada: um pó marmóreo a recobrir-lhe as marcas do tempo, um carmim na face aludindo à vida sobrenatural, um risco nos olhos para que sejam vistos, um batom que reinventa a cor da carne, um silicone aqui, um botox ali... E haja Baudelaire, e toda uma legião de poetas, literatos, romancistas, dramaturgos, cineastas, artistas de todas as espécies, jamais esquecidos pela autora de Amor paixão feminina, para virem em socorro na difícil tarefa de dizer do inefável, dar-lhe visibilidade. E aí, viva a mascarada e todos os artifícios para mostrar o indizível!

Assim, num tom fluido, palatável e, sobretudo, atraente, a autora, valendo-se de sua vasta experiência acadêmica, clínica e de vida, transpõe os muros da academia e constrói uma obra que é ao mesmo tempo um compêndio de psicanálise. No qual introduz de forma clara e concisa conceitos chaves da teoria psicanalítica como pulsão, libido, desejo, fantasia, falo, gozo, objeto a, só para citar alguns. E configura também uma pesquisa minuciosa sobre a paixão pelo amor que acossa, sobretudo, as mulheres. Para isso ela toma como eixo a obra de Freud e os avanços de Lacan frente à questão da feminilidade. A autora transita com destreza entre o saber mais erudito − os clássicos, os fundamentos filosóficos − e os elementos da cultura mais próximos da observação cotidiana de alguém que está engajado no seu tempo. De forma sagaz e precisa, faz as letras de seu livro nos transportarem a muitos romances, vários poemas e filmes que lhe servem não apenas para ilustrar o que diz, mas para reificar essa dimensão da experiência que o feminino aponta e que escapa à possibilidade de delimitação racional conceitual.

E com que habilidade foi batizado cada capítulo e subcapítulo dessa obra! Quem não se interessa em saber sobre A função eminente do amor na mulher? Ou Como distinguir a essência da mulher? Ainda que seja para nos dizer que a mulher não tem essência. Quem não tem curiosidade em ler sobre O lugar do homem na definição de uma mulher? Ou O que é um homem na fantasia de uma mulher e vice-versa? E mesmo A mulher é infiel por estrutura? Como assim? Está lá. E não se trata de folhetim ou "achologia" não, como muitas vezes encontramos por aí, trata-se de uma pesquisa séria que, nem por isso, precisou ficar hermética, dogmática. Nem por esse motivo precisou deixar de frequentar o mundo dos vivos, aliás, dos muito vivos.

No contraponto, ao abordar a questão da feminilidade, uma larga discussão sobre a histeria faz-se presente. Não para reduzir a posição feminina à histeria, mas para destacar o que a histérica revela acerca das dificuldades que a lida com o feminino engendra. E aí, é claro que os percalços da função materna se evidenciam. A intensidade da relação mãe-filha, tema já desenvolvido pela autora em livro que leva esse nome, é retomada aqui para indicar o ponto no qual essa relação traz a marca indelével de um gozo ilimitado, jamais completamente barrado por um pai, e que ameaça, de forma singular, a filha. Donde a histeria surge como uma das soluções possíveis, circunscrita em torno do amor ao pai e da organização fálica que ele representa. Solução, entretanto, por demais onerosa, já que, inclinando-a a uma identificação viril, fixa-a numa posição masculina quanto à sexualidade, impedindo-a de reconhecer e valorar diretamente a imagem de seu corpo feminino, precisando pôr em cena uma Outra mulher. Aquela que não se indigna por fazer-se objeto causador do desejo de um homem e que, menos ocupada em ser, pode permitir-se gozar, e fazer gozar. Enquanto para a histérica resta a insatisfação.

No intrincado jogo no qual se separam as posições masculinas e femininas que homens e mulheres são convocados a ocupar, a impossibilidade da relação complementar entre os sexos faz com que o amor nos venha em socorro; venha compensar o desacordo entre os sexos. Mas é bom lembrar que amar é dar o que não se tem. Ou seja, é partilhar a falta que insiste e, por isso mesmo, há que se fazer com ela. Quem sabe, munida pela beleza, fazer criação − sublime-ação. Sublime-ação essa da autora ao nos contemplar com esta bela obra.

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