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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.22 no.2 Rio de Janeiro  2010

 

EDITORIAL

 

 

Este volume da Revista Psicologia Clínica é dedicado ao tema da transmissão em seus mais variados aspectos: transmissão coletiva e transgeracional, transmissão da experiência clínica, adequação de instrumentos de avaliação como forma de pesquisa e de transmissão de experiências subjetivas e transmissão da psicanálise na universidade, entre outros.

Nossa seção temática é aberta pelo artigo "A psicanálise e as narrativas modernas - a transmissão em questão", no qual Anna Carolina Lo Bianco, Fernanda Costa-Moura e Marisa Cytryn Solberg (UFRJ) investigam a transmissão psicanalítica comparando-a com aquela descrita no O narrador de W. Benjamin. Se, neste último, a narrativa que transmitia a experiência coletiva é substituída na modernidade pela informação jornalística e pelo romance cujos objetos são as experiências individuais, a psicanálise inauguraria uma práxis que dá lugar a um sujeito que não é mais igual ao eu individual. Para as autoras, a intervenção analítica realizaria, através da fala, uma operação com a história que permitiria a emergência do sujeito do inconsciente. Ponto de ancoragem de uma transmissão que, embora instaurada no campo das narrativas modernas, não se apoiaria no sentido, constituindo um campo que se realiza apenas no fragmentário e no pontual.

O artigo seguinte, "Caracterização dos sintomas do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) em meninas vítimas de abuso sexual", investiga a adequação de alguns instrumentos para a transmissão da experiência de abuso sexual através da identificação da presença de sintomas ou do diagnóstico do Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT). Luísa Fernanda Habigzang, Jeane Lessinger Borges, Débora Dalbosco Dell'Aglio e Silvia Helena Koller (UFRGS) comparam o uso de dois instrumentos de avaliação diagnóstica do TEPT infantil: o DSM-IV/SCID/TEPT e a versão brasileira da K-SADS-PL/TEPT. Os resultados apontaram semelhanças na presença do diagnóstico de TEPT nas amostras estudadas, apesar de os instrumentos indicarem diferenças específicas quanto à manifestação dos sintomas de evitação, entorpecimento e excitabilidade aumentada. As autoras concluem que ambos se aplicam à pesquisa e à avaliação clínica do TEPT infantil.

Em seguida, Nadja Nara Barbosa Pinheiro e Vinicius Anciães Darriba (UFPR) se debruçam sobre o problema da transmissão da psicanálise na universidade a partir de seu trabalho como supervisores de estágio acadêmico desenvolvido em uma clínica-escola do curso de graduação em Psicologia. No artigo "A clínica psicanalítica na universidade: reflexões a partir do trabalho de supervisão", os autores confrontam o lugar do saber e do sujeito na universidade e na psicanálise como elementos que fundam uma ética que lhe é própria, questionando alguns efeitos aí produzidos sobre a inserção do aluno no campo psicanalítico e a possibilidade de sua transmissão pelo trabalho de supervisão. Privilegiando os efeitos suscitados pela imposição de um prazo para o encerramento dos atendimentos clínicos desenvolvidos no estágio, o posicionamento freudiano frente a esse dispositivo é tomado como paradigma da posição do analista frente aos impasses que lhe são apresentados no exercício de seu trabalho.

Já no "Funcionamento psíquico e manejo clínico de pacientes somáticos: reflexões a partir da noção de desafetação", Juliana Pereira Landim Clemente (UfsCAR) e Rodrigo Sanches Peres (UFU) apresentam um panorama, em termos teóricos e clínicos, da concepção psicossomática de Joyce McDougall, utilizando a noção de desafetação como operador conceitual básico. Trata-se de um distúrbio da economia afetiva típico de pacientes somáticos, o qual promove uma incapacidade quase total de manter contato com e, portanto, transmitir as emoções próprias e alheias. Dentre outras especificidades da clínica psicanalítica com pacientes somáticos, os autores destacam que, ao profissional, é imposto o desafio de funcionar como um filtro capaz de regular o afluxo de excitações que tende a desencadear descargas corporais em função da inviabilidade, associada à desafetação, de recorrer às palavras para torná-lo dizível, ou seja, transmissível.

Por sua vez, Jacqueline de Oliveira Moreira e Adriana Araújo Pereira Borges (PUC-MG) abordam o problema da transmissão do ponto de vista da construção da paternidade. Em seu artigo "A castração e seus destinos na construção da paternidade", as autoras descrevem três versões sobre o pai, elaboradas por Freud: Édipo, o Pai da Horda e Moisés. Nestas três versões, o pai é o pai morto. Logo, se o filho é uma das soluções para a mulher, para o homem o filho assume os contornos do objeto fóbico, pois o pai se relaciona de forma privilegiada com a castração. O acesso à paternidade exigiria, assim, que o homem reatualizasse seu Édipo, colocando novamente seu desejo à prova e reativando conflitos adormecidos. Tal percurso levaria, inevitavelmente, ao encontro com a castração, produzindo perdas narcísicas. No entanto, aqueles homens que suportam o primeiro impacto e sustentam o lugar de pai transmitiriam aos filhos muito mais do que genes.

Ainda tratando da relação entre gerações, o artigo seguinte, "Relações conjugais e familiares na perspectiva de mulheres de duas gerações: 'que seja terno enquanto dure'", de Sabrine M. dos Santos Coutinho e Paulo Rogério Menandro (UFES), apresenta um recorte de extensa pesquisa que buscou identificar a rede de representações sociais (RS) que se estabelece em torno do tema ser mulher na família. Os autores buscam verificar se a vivência conjugal e familiar sofreu modificações significativas num intervalo de aproximadamente três décadas. Foram realizadas 20 entrevistas narrativas semiestruturadas com mulheres de estrato socioeconômico médio e baixo: 10 que tiveram filhos nos anos 1960 (1ª geração) e 10 nos anos 1990 (2ª geração), filhas das primeiras. Os resultados evidenciaram tanto continuidades quanto rupturas entre as gerações, podendo ser destacadas mudanças expressivas de uma geração à outra em relação a importantes aspectos do relacionamento conjugal, tais como: a manutenção do casamento que deixa de ser o seu objetivo principal; as relações conjugais, de forma geral, que se tornam mais abertas; a redução de interdições em relação à mulher, e o investimento feminino no casamento, que passa a dividir espaço com o maior envolvimento masculino.

Para finalizar nossa seção temática, o artigo "Fazer uma obra no tempo" de Céline Masson (Université Paris 7) mostra que uma imagem, a partir do momento em que é captada pelo aparelho psíquico, é sempre tomada em um tempo não cronológico, mas anacrônico, que é a temporalidade própria da memória, tal como Freud a definiu. A imagem no tempo psíquico e visual é uma imagem-traço, que drena para si as ínfimas partículas da realidade que servirão de ponto de passagem entre o dentro e o fora. Fazer uma obra é tomar algum tempo e modificá-lo pela forma plástica/estética. Quando o sujeito faz uma obra, ele capta e, ao mesmo tempo, se refaz daquilo que fez traço (no sentido do traço mnésico). Nesse sentido ele se apropria, pela sensação (estética), dos acontecimentos de sua história.

Nossa seção livre tem início com o artigo "A caverna: um retrato literário da inserção do sujeito no emergente modelo de produção moderno", de Monalisa Pontes Xavier, Cássio Adriano Braz de Aquino e Luciana Lobo Miranda (UFCE). Os autores realizam uma leitura da obra A caverna, de José Saramago, buscando a interface dessa produção com questões concernentes à Psicologia, mais especificamente, a relação entre o trabalho e sua influência no processo de produção de subjetividades. Com base na realidade literária retratada, o ensaio levanta questões relativas ao advento da Modernidade, período histórico em que a narrativa se passa, assim como à inserção do sujeito nessa nova época, caracterizada pelo modelo industrial de produção e seu estabelecimento como modo de vida predominante das sociedades modernas. O cenário de transição para uma nova ordem social contextualiza o drama da família Algor, abordando as metamorfoses sofridas pelo trabalho e impostas ao trabalhador em virtude da organização sócio-histórica então emergente.

A seguir, o artigo "Distinção teórico-clínica entre depressão, luto e melancolia", de Maria Teresa da Silveira Pinheiro, Rogerio Robbe Quintella e Julio Sergio Verztman (UFRJ), aborda os principais aspectos da depressão na contemporaneidade e visa distingui-la do luto e da melancolia. Para isso, toma como eixo teórico a noção, por eles formulada, de crença narcísica, objeto por excelência do tipo de sintoma depressivo abordado. Os autores procuram demonstrar que a presença hegemônica da crença narcísica na subjetivação pode levar a uma forma de reação à perda que se distingue tanto do luto quanto da melancolia. Este tipo de depressão apresenta-se como uma das principais formas de sofrimento psíquico que aparecem na clínica psicanalítica contemporânea.

Já em a "Voz no amor", Ana Maria Rudge (PUC-Rio) se pergunta o que o amor deve à constituição pulsional. Em especial, o que deve o amor à voz como objeto causa de desejo. Para a autora, a ligação dos objetos pulsionais ao amor é clara: a expressão "amor à primeira vista", por exemplo, já insinua o vínculo do amor com o olhar. Mas qual o lugar da voz, como objeto da pulsão invocante, no amor? Se as relações íntimas do amor com as pulsões são inegáveis, elas não deixam de ser complexas, como Freud advertiu, ao mostrar que o amor não se equipara ao campo das pulsões, visto que não compartilha com elas a parcialidade - mas, ao contrário, expressa a aspiração sexual total. A voz como um objeto que se apresenta desde o início da vida é central no amor e, como causa de desejo, nele incute a qualidade compulsiva.

Por fim, o artigo "Autoestima como expressão de saúde mental e dispositivo de mudanças na cultura organizacional da polícia", de Edson Ribeiro de Andrade (ISECENSA) e Edinilsa Ramos de Souza (FIOCRUZ), apresenta novas reflexões a partir de uma pesquisa-ação anterior levada a cabo junto a policiais civis do Rio de Janeiro, a qual visou problematizar como a autoestima e a saúde mental desses profissionais afetam e são afetadas pela cultura organizacional da polícia. Para isto, foram aplicados questionários e técnicas qualitativas em 148 policiais, antes, durante e após a intervenção. Os resultados do estudo apontam que o resgate da autoimagem pode agir como ferramenta eficaz de mudanças na vida pessoal e profissional desses profissionais e da própria instituição.

Completam a presente edição uma resenha, levada a cabo por Maria Theresa da Costa Barros (Psicanalista e pesquisadora do grupo EPOS/UERJ) e Stela Luiza de Moura Aranha (Doutora em Saúde Mental e pesquisadora do grupo EPOS/UERJ), acerca do livro Juventudes, subjetivações e violências, organizado por Helena Bocayuva e Silvia Alexim Nunes (UERJ/IMS), contendo contribuições de inúmeros autores em torno de questões relacionadas ao título da obra.

A presente edição se encerra com informações sobre dissertações e teses defendidas na PUC-Rio ao longo do semestre passado, além de notas sobre os autores e também sobre o conselho editorial, bem como as normas para publicação e a lista dos pareceristas ad hoc que contribuíram com suas avaliações ao longo de 2010.

Finalmente, temos a informar que a partir de 2011 o sistema de acesso à nossa revista será totalmente informatizado, passando a ser feito através de submissão eletrônica via Scielo. Acreditamos ser esse um passo fundamental para o aprimoramento de nosso periódico.

 

Monah Winograd e Bernardo Jablonski

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