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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.23 no.1 Rio de Janeiro  2011

 

SEÇÃO LIVRE

 

Matrizes clínicas e ética em Freud1

 

Clinical matrices and ethics in Freud

 

 

Marina de Andrade VahleI; Eduardo Leal CunhaII

IPsicóloga; Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP)
IIPsicanalista; Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ); Professor do Dep. de Psicologia e no Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe; Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos

 

 


RESUMO

O presente estudo hipotetiza que as diferentes matrizes clínicas que Freud encontrava em sua prática, e que lhe possibilitavam acréscimos teóricos, direcionaram seus distintos olhares sobre a cultura, fazendo-o privilegiar alguns elementos éticos em detrimento de outros. Desse modo, indicaremos: (1) como a histeria gerou a questão do conflito entre sexualidade e moral na civilização; (2) como a neurose obsessiva possibilitou a entrada dos temas da agressividade e do ódio como entraves contra os quais a cultura se esforça por lutar, assim como a presença marcante no psiquismo da consciência moral e do sentimento de culpa; (3) por fim, como as ditas afecções narcísicas trouxeram a Freud o papel do egoísmo e da destrutividade como inimigos da cultura. Nesse percurso nos aproximaremos das questões ligadas à problematização ética na "psicologia" freudiana e, a partir daí, do destaque que terá a dimensão moral na concepção freudiana do sujeito.

Palavras-chave: matrizes clínicas; Freud, Sigmund; cultura; ética; sujeito.


ABSTRACT

The present study is guided by the hypothesis that the different clinical matrices found by Freud in his practice, which provided him theoretical additions, directed his different perspectives about culture, making him privilege some ethical elements over others. Therefore, we will indicate: (1) how hysteria was responsible for bringing Freud the issue of conflict between sexuality and morality in civilization; (2) the obsessive neurosis enabled the entering of the aggressiveness and hate themes as obstacles against which the culture strives to fight, as well as the outstanding presence in the psyche of the moral conscience and the sentiment of guilt; (3) at last, the so called narcissistic conditions brought to Freud the role of selfishness and destructiveness as enemies of culture. In this way we will approach the issues related to the ethical problematization in Freudian "psychology" and, thereafter, the prominence that the moral dimension will have in Freudian conception of the subject.

Keywords: clinical matrices; Freud, Sigmund; culture; ethic; subject.


 

 

Introdução

O propósito deste artigo é discutir a relação entre as matrizes clínicas de Freud e suas distintas concepções sobre a cultura, com destaque para as questões éticas. Retomando a categoria proposta por Mezan (2006), ao discutir as fontes da invenção freudiana, procuramos mostrar que a clínica de Freud, marcada pelo enfrentamento da histeria, da neurose obsessiva e das neuroses narcísicas, o colocou diante de determinados problemas éticos que direcionaram seus vários olhares sobre a cultura e a sociedade. Com isso, pretende-se destacar o lugar central que a problematização moral terá na obra freudiana não apenas no estudo dos fenômenos culturais e sociais, tal como aparece nos chamados textos sociológicos, mas, sobretudo, na sua experiência clínica e na compreensão psicanalítica da experiência subjetiva.

Freud recorreu inicialmente ao exame da cultura e da moralidade a fim de obter um entendimento mais completo das fontes do sofrimento humano. Ele não estava empenhado em realizar um exame sociológico ou antropológico da cultura, tomando-a como objeto de análise por si mesma, nem em construir uma filosofia moral2; seu ponto de partida era a neurose e a experiência individual. Inicialmente, Freud descobriu, na clínica da neurose, o papel defensivo do aparelho psíquico, por meio da ação do recalque, o qual agia sobre representações incompatíveis ao eu, sendo tal incompatibilidade marca do rigor moral, das exigências éticas da civilização europeia, o que o levou a buscar respostas na cultura e a procurar elucidar o papel do dito processo civilizatório na produção do sofrimento neurótico.

Ética e moral, como categorias filosóficas, extrapolariam o interesse freudiano. O próprio Freud, numa carta escrita em 9 de outubro de 1918 ao pastor Pfister, afirma que "[...] para mim a ética encontra-se distante, e o senhor é cura de almas. Não quebro muito a cabeça sobre o bem e o mal, mas em média tenho encontrado nas pessoas pouco 'bem'" (Freud & Meng, 2001: 84). Ainda nesta carta: "quando se insiste em falar de ética, eu me professo partidário de um ideal elevado, do qual a maioria dos que conheço lamentavelmente fica distante" (Freud & Meng, 2001: 84-85). Ao mesmo tempo, no entanto, essa recusa em relação à questão moral não esgota o problema do seu lugar na teoria e clínica freudianas. A relação de Freud com a ética não é clara: ele recusa tematizá-la, mas inevitavelmente ela aparece, como será mostrado no presente trabalho. Um dos possíveis motivos dessa ambiguidade é a relação ambivalente que Freud mantinha com a filosofia, objeto tanto de distanciamento como de aproximação com a psicanálise. Enquanto, nos primórdios deste saber, Freud demonstrava a Fliess satisfação em aproximar-se da filosofia em detrimento da medicina (Birman, 2003), nos escritos mais amadurecidos, como a conferência XXXV ([1933] 1996), Freud afasta radicalmente a psicanálise do saber filosófico. Segundo ele, a filosofia ambicionava uma Weltanschauung, uma visão de mundo totalizante, unívoca, o que contrastava com a pesquisa psicanalítica, voltada para a sobredeterminação dos fenômenos, para os múltiplos elementos envolvidos na experiência singular de um indivíduo.

Como criador do saber psicanalítico, não interessava a Freud discutir o que é bom o que é mau, que ideais se devem seguir, quais condutas são dignas ou indignas; ele partiu da questão prática, clínica, da intersecção sofrimento e moralidade. Ou seja: como o código moral vigente, de herança cristã, influencia no sofrimento neurótico, chegando então à conclusão de que a moral é criada pelo homem no intuito de frear desejos imperiosos que, se levados a cabo em todas suas formas e intensidades, impossibilitariam o convívio em sociedade, o qual lhe traz tantas vantagens (Freud, [1908] 1996; [1930] 1996).

Assim, embora Freud não fizesse questão de se ocupar de uma filosofia moral, acaba por problematizar o código vigente como algo não dado e que surge com uma função – fadada ao fracasso – de regular a conduta humana e os laços afetivos e sociais. A moral seria, então, uma criação humana, contingente, falha e, ainda, algo capaz de engessar o indivíduo dentro das condutas permitidas, afastando-o de outras maneiras possíveis de ser; o que por fim traz sofrimentos. Ao mesmo tempo, seria um artifício necessário para que a civilização se erguesse e prosperasse, o que é colocado de modo bastante evidente no texto sobre adoecimento e moralidade de 1908 (Freud, [1908] 1996).

Freud afirma, em "Totem e tabu" ([1913] 1996), que moral, religião e organização social são provenientes de uma espécie de acordo entre irmãos. Acordo para que não mais se tentasse ocupar o lugar soberano do pai, o que implicaria o assassinato do mesmo; e não se praticasse a endogamia, o que também levaria à rivalidade e à violência. Não há nada de transcendental nem qualquer bem supremo nas raízes dessa moralidade. Essa ideia não veio senão depois, como Freud esboçou ainda nesse ensaio. A moral seria, então, uma das realizações humanas dentro de um projeto maior a ser alcançado: viver junto. E essa é uma questão ética: como ser o que se aspira dentro de uma conjuntura social que, para sobreviver, não permite tudo.

É nesse campo problemático que se insere o interesse de Freud, ao investigar como os modos de convivência dos seres humanos reverberam no indivíduo, principalmente pela via do sofrimento. Este é, afinal, o tema de um dos seus textos mais lidos, "O mal-estar na civilização" ([1930] 1996). É na clínica, no discurso dos seus pacientes, que tais reverberações se fazem presentes. É precisamente este o propósito deste ensaio: explorar em que medida a reflexão clínica freudiana, no que tange às formas do sofrimento psíquico e ao próprio funcionamento do psiquismo, é indissociável da reflexão ética, da problematização dos modos de viver junto e das formas de regulação do laço com o outro.

Segundo Mezan (2006), são três os fatores que tornaram a psicanálise possível: a clínica, a autoanálise de Freud e o seu exame da cultura. É a partir daí que ele introduz a noção de matriz clínica – "um tipo determinado de organização psicopatológica, com sua estrutura própria, seus conflitos originadores e suas modalidades próprias de defesa" (Mezan, 1988: 27) –, procurando delimitar os tipos de sofrimento psíquico, materializados em entidades clínicas. Tais entidades se colocaram como desafio não apenas à terapêutica, mas às formulações teóricas da psicanálise. Visto que foi por meio do discurso dos pacientes que Freud procurou decifrar inicialmente a psicopatologia, para, em seguida, estabelecer uma etiologia propriamente psíquica e ainda compreender o impacto possível de formas singulares de sofrimento sobre o funcionamento psíquico dito normal.

Tais matrizes clínicas ocuparam lugar central no trabalho do criador da psicanálise, na medida em que foi, também, em função da ressonância que o discurso de seus pacientes teve sobre ele que Freud primeiramente debruçou-se sobre a autoanálise; em seguida, a fim de generalizar as proposições referidas à clínica e garantir universalidade ao novo saber, recorreu ao estudo da cultura (Mezan, 2006).

Apesar da intenção freudiana de conferir estatuto universalizante e científico ao seu saber, pela vinculação dos fenômenos clínicos às realizações da civilização, sua visão da cultura não aparece como dado incontestável. Este caminho que segue da neurose à cultura não possui, como veremos no decorrer deste trabalho, uma única via. Assim como a neurose remete às exigências da cultura, a cultura remete ao funcionamento neurótico – trata-se de uma via dupla, de modo que a cultura poderia ser vista também como "neurótica" em si (Freud, [1930] 1996: 146).

Isso não significa que Freud tenha corrompido seu entendimento da cultura por transpor-lhe elementos atuantes nas diferentes neuroses, mas sim que a cultura interessava-lhe sob o viés psicanalítico e não como um objeto de estudo per si. Uma vez que esse viés se apoiava precisamente no trabalho terapêutico, cultura e clínica acabavam por se entrelaçar.

O que gostaríamos de demonstrar, a partir daí, é o lugar privilegiado da problematização ética nessa articulação entre clínica e cultura, orientada, como já dissemos, pelas diferentes formas de sofrimento. Propomos que, nos estudos de Freud sobre a cultura, as questões éticas eram as que de fato lhe interessavam, visto que seu ponto de partida era o sofrimento humano, o qual lhe parecia decorrente, sobretudo, da inserção social marcada pela regulação moral da conduta e das formas possíveis de relação com a alteridade.

Nesse contexto, temas éticos como renúncia, religião, regulação do laço social, consciência moral são trazidos por Freud numa articulação entre experiência subjetiva individual, neurose e cultura. A própria definição de cultura apresentada por Freud em "O mal-estar na civilização" aponta para tal articulação: "[...] a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar seus relacionamentos mútuos" (Freud, [1930] 1996: 96).

Cabe esclarecer que os termos ética3 e moral, da mesma forma que o par civilização e cultura, se confundem ao longo das exposições freudianas. Apesar de apresentar uma breve definição de ética, como "[...] aquelas [exigências] que tratam das relações dos seres humanos uns com os outros" (Freud, [1930] 1996: 145), Freud não demarcou o que entendia por moral, utilizando este termo de acordo com seu uso corrente. Visto que ele não diferenciou bem esses conceitos, empregando num mesmo texto expressões como "padrões éticos" e "padrões morais" (Freud, [1921] 1996), também aqui não trabalharemos possíveis distinções.

Abordaremos neste momento a articulação entre as distintas matrizes clínicas de Freud e a cultura, procurando mostrar que o contato gradual de Freud com cada uma dessas afecções também possibilitou novos olhares sobre a cultura, nos quais se destacavam questões éticas.

 

Histeria, sexualidade e recalque

Já nos "Estudos sobre a histeria" (Breuer & Freud, [1895] 1996) se insinuava a presença da moralidade no psiquismo das pacientes histéricas pela distinção entre o que é permitido pensar conscientemente e o que deve ser afastado pelo processo defensivo. O elemento central nesse momento eram as ditas representações incompatíveis com o eu e que seriam, via de regra, de ordem sexual, como Freud destacou em "As psiconeuroses de defesa" ([1894] 1996).

A sexualidade passou a ser vista por Freud como a chave do problema das psiconeuroses, ocupando lugar central na concepção freudiana da subjetividade, sempre em articulação com a questão moral, visto que, no outro polo do conflito, encontravam-se sentimentos como o asco, a vergonha, a dor e a própria moral (Freud, [1905a] 1996). Freud destacou nesse momento o papel do recalque, agindo sobre as representações vinculadas ao desejo, no conflito psíquico da histeria. No quadro da sua primeira teoria pulsional, esse conflito foi pensado por meio da oposição entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação ou pulsões do eu, o qual era tomado como lócus da consciência e da moralidade (Freud, [1910] 1996).

A relação entre histeria e moralidade aparece ainda quando Freud percebe a influência da educação, vinculada ao nível social do indivíduo, na formação da neurose. Suas referências eram as pacientes histéricas que, como Dora (Freud, [1905b] 1996), pertenciam à alta sociedade. Freud mostrou o quanto o tipo de educação recebida por uma menina burguesa e por uma menina humilde influi nos seus modos de encarar as questões sexuais (Freud, [1917a] 1996). Devido ao maior recato moral apreendido pela primeira, intensifica-se o conflito entre moral e sexualidade, culminando na neurose.

Neste conflito encontra-se o primeiro modelo pelo qual Freud entendeu o funcionamento da cultura. E era a educação recatada, que suas pacientes burguesas recebiam, a intermediar o conflito de dimensões sociais e o conflito psíquico da histeria. Da mesma forma, Freud percebeu a neurose como uma estrutura associal que, em sua tentativa de defender o indivíduo de impulsos nocivos à vida em sociedade, afastava-o dela. Foram estes os temas éticos trazidos pela histeria e que Freud localizou na cultura, sobretudo no texto "Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna" (Freud, [1908] 1996).

Nesse escrito, a civilização aparece como grande vilã para a natureza do homem. O indivíduo deve renunciar a grande parte de seu prazer sexual para viver em sociedade, pois a ela importaria utilizar a energia pulsional para fins considerados nobres e úteis, como o trabalho, a atividade intelectual, a arte. É da própria natureza da pulsão a plasticidade que permite trocar seu objetivo sexual por outro não mais sexual, o que Freud denominou sublimação (Freud, [1908] 1996).

A renúncia ao prazer, contudo, é uma exigência que vai além das possibilidades reais de efetuá-la, tornando-se fator etiológico da neurose. Freud aproximou o psiquismo individual, com seus conteúdos sexuais inconscientes, das barreiras externas que se impõem contra eles, funcionando como causas das afecções nervosas: "[...] todos os fatores que prejudicam a vida sexual, suprimem sua atividade ou distorcem seus fins devem também ser vistos como fatores patogênicos das psiconeuroses" (Freud, [1908] 1996: 173).

A cultura se choca com os complexos inconscientes, de cunho sexual, utilizando como arma a moral da renúncia, de origem cristã. A educação se insere aí como mediadora entre as regras morais e o desenvolvimento do indivíduo, buscando restringir as manifestações sexuais infantis, de modo que a criança passe do autoerotismo ao amor objetal, genital (Freud, [1908] 1996).

Vemos que o conflito presente na sociedade entre a sexualidade e a exigência moral de renúncia não é outro senão o conflito histérico. A configuração psíquica dessa neurose, caracterizada pela oposição dinâmica entre desejo e recalque, foi o modelo do qual Freud lançou mão na sua primeira concepção da cultura, compreendendo a sociedade de sua época como dotada do mesmo funcionamento neurótico da histeria, o que não poderia ser diferente, visto que o sofrimento histérico era a referência fundamental que tinha em mãos.

A contradição, que Freud localizou no campo da civilização, entre a valorização das realizações nobres do indivíduo e a proliferação de pessoas incapacitadas, é a mesma que via acontecer na clínica da histeria. Mulheres como Anna O. e Dora, com dotes intelectuais e artísticos, acabavam se isolando por conta de sintomas restritivos. O desarranjo da máquina civilizatória, resultante do conflito entre impulsos sexuais, naturalmente presentes no homem, e a moral, seria a ampliação da perturbação presente no psiquismo histérico.

Assim, é também sobre a clínica da histeria que se apoia uma das frases emblemáticas da teoria freudiana da cultura: a "civilização repousa [...] sobre a supressão das pulsões" (Freud, [1908] 1996: 173).

 

Neurose obsessiva: ódio, interdição e consciência moral

A clínica da neurose obsessiva possibilitou a Freud, além do entendimento metapsicológico e semiológico dessa forma de sofrimento psíquico, a ampliação de sua reflexão sobre a cultura e a moralidade. Textos como "Atos obsessivos e práticas religiosas" ([1907] 1996), "Totem e tabu" ([1913] 1996), "O futuro de uma ilusão" ([1927] 1996), "O mal-estar na civilização" ([1930] 1996) e "Moisés e o monoteísmo" ([1939] 1996) remetem, mesmo que implicitamente, à problemática obsessiva por trazerem para o primeiro plano as temáticas da ambivalência amor-ódio, da culpa, da relação com o pai e, a partir daí, com a lei e a interdição (Roudinesco & Plon, 1998).

A análise de Ernst Lanzer, o "homem dos ratos", trouxe à tona os principais temas do sofrimento obsessivo. O conflito primordial que ocupava Lanzer era a ambivalência afetiva direcionada ao pai. Odiava-o, pois era um obstáculo na realização de seus desejos (Freud, [1909] 1996). Este é o modelo da problemática obsessiva: sentimentos hostis pelo pai, devido a suas interdições, e o desejo de que ele morra, deixando livre seu lugar junto à mãe. Este ódio é recalcado e mantido inconsciente pela força do amor, que se torna exacerbado.

A essa atitude defensiva de sentido oposto ao recalcado Freud denominou de formação reativa (Freud, [1909] 1996). Essa é uma das defesas características da neurose obsessiva. Ela consiste numa atitude ou hábito psicológico de sentido oposto ao desejo recalcado, constituída em reação a ele, e que pode tomar a forma de traços de caráter (Laplanche & Pontalis, 2001). As formações reativas, assim como a sublimação, desempenham papel acentuado na constituição do caráter e das virtudes humanas (Freud, [1905b] 1996).

Ainda a partir da experiência clínica com a neurose obsessiva, mas já à luz da segunda tópica, Freud efetuou algumas considerações acerca do conflito entre a instância moral e de vigilância, o supereu, e o eu (Freud, [1926] 1996). O supereu severo pune o eu por presenciar no psiquismo a circulação de desejos inaceitáveis e, principalmente, de sentimentos odiosos e tendências agressivas contra as pessoas (o pai, por exemplo). Esta tensão entre as duas instâncias provoca o sentimento de culpa no eu e as autorrecriminações obsessivas.

De acordo com esta breve exposição sobre a neurose obsessiva, destacamos os principais elementos éticos trazidos por ela: a relação com o pai, que se desdobra na relação com a interdição dos desejos incestuosos; o papel da agressividade e do ódio; o imperativo do amor sobre o ódio; a presença marcante da consciência moral e do sentimento de culpa; e, com relação à segunda tópica, a presença no psiquismo de uma instância herdeira das figuras parentais, o supereu, cuja severidade marca sua relação com o eu. Estes temas ultrapassaram, no trabalho de Freud, os limites da clínica, estendendo-se a suas concepções sobre a cultura presentes, sobretudo, nos textos "Totem e tabu" ([1913] 1996) e "O mal-estar na civilização" ([1930] 1996).

Em "Totem e tabu", Freud localizou, nos povos primitivos, a presença de uma forte ambivalência emocional, de amor e ódio, em relação ao chefe e ao próprio totem, ambos considerados por ele representantes do pai. Observou-se nas tribos, por exemplo, que manifestações afetuosas exacerbadas eram dirigidas aos chefes, o que, por sua vez, acabava tornando suas vidas um martírio. Tal ambivalência é característica marcante na neurose obsessiva. O modelo utilizado por Freud é do amor e ódio direcionados ao pai, bem como da formação reativa, tal como aparecem no caso clínico do homem dos ratos.

Buscando elucidar, em "Totem e tabu", a origem da regulação dos laços sociais como foco para a fundação de uma moral da proibição, Freud criou uma hipótese mítica para a origem da civilização segundo a qual o homem primitivo vivia em hordas comandadas pelo macho mais velho e mais forte. A restrição, pelo pai da horda, aos desejos sexuais e egoístas de seus filhos teria possibilitado a instalação do ódio e do desejo de sua morte, o que resultou na união dos irmãos e no assassinato do pai a fim de terem acesso às mulheres e ao poder.

Satisfeito o ódio por meio do assassinato, a afeição surgiu sob a forma de sentimento de culpa. Os filhos passaram então a proibir a morte do totem (substituto do pai), assim como a endogamia. Teve início, a partir daí, uma comunidade fraterna sustentada na culpa. Assim teriam nascido a organização social, as restrições morais e a religião.

Os motivos que teriam levado ao assassinato do pai relacionavam-se à interdição que ele impunha aos desejos dos filhos. Foi a problemática obsessiva da relação com o pai, representante da interdição do amor edipiano pela mãe, que se manifestou no crime primevo. Eram a agressividade e o ódio do obsessivo que estavam em jogo quando Freud expôs a presença destes mesmos impulsos no ato assassino. Foi a culpa do obsessivo por assassinar o pai na fantasia que proporcionou a ideia da culpa dos irmãos e a instalação de uma comunidade fraterna e da moral. Foram, portanto, os elementos éticos da problemática obsessiva que Freud utilizou para compreender a instalação dos códigos morais que passaram a reger a humanidade.

A neurose obsessiva também deixou suas marcas em "O mal-estar na civilização" ([1930] 1996). Nesse texto, Freud parte de uma discussão sobre a felicidade, para, em seguida, compreender as raízes do sofrimento do homem moderno. A própria civilização, com suas exigências morais, seria fonte de infelicidade, o que levou Freud a defender a existência de algo que põe em xeque os intuitos civilizatórios, provocando sofrimento. Esta suspeita guiou sua argumentação em direção aos impulsos destrutivos do homem, maior impedimento à vida em sociedade. Daí a exigência cultural de formação de laços amorosos entre as pessoas presente na máxima "Amarás a teu próximo como a ti mesmo".

A inibição da destrutividade humana exige, em termos metapsicológicos, o seu retorno ao lugar de onde proveio, ou seja, ao próprio eu. O supereu, instância herdeira do conflito edipiano que age sob a forma de uma consciência moral vigilante e punitiva, direciona tal destrutividade para o eu, punindo-o pela satisfação que alcançaria se agredisse os objetos. O sentimento de culpa é o resultante dessa tensão entre o supereu severo e o eu (Freud, [1930] 1996).

Lembramos que foi a neurose obsessiva que primeiro mostrou a Freud o lugar dos impulsos odiosos no conflito psíquico, principais responsáveis pelas autocensuras obsessivas. O obsessivo deseja agredir e até matar aquele que se põe no caminho da realização de seus desejos sexuais. Tamanho ódio do obsessivo suscita uma reação exagerada de amor a fim de suprimi-lo. O imperativo social "Amarás a teu próximo como a ti mesmo" parece soar como uma ordem do supereu do obsessivo. Daí as formações reativas, que fazem calar no grito da bondade os impulsos hostis.

Vale destacar que tal moral, fundada na exigência de amor, no imperativo que Freud toma em análise, tem a mesma estrutura que aquela colocada pelo obsessivo sobre si mesmo. As próprias compulsões e proibições obsessivas têm o traço de um imperativo moral, de forma que algo deve ser levado a cabo de qualquer maneira ou algo não deve ser feito. A moral que se coloca de forma imperativa, positiva, que Freud enfoca n'"O mal-estar" tem suas raízes na consciência moral autoritária do obsessivo.

Quando Freud ([1930] 1996) defende que é o supereu que dá conta da hostilidade humana, dirigindo-a ao eu, ele está utilizando o modelo defensivo do obsessivo: guardar a agressividade contra si e eximir o outro. Este é o conflito marcante deste neurótico, entre eu e supereu; foi também nestes termos que Freud compreendeu a cultura e o sofrimento da vida em civilização: uma moral que se põe contra a hostilidade e a faz voltar-se contra o próprio indivíduo. Daí o sentimento de culpa que reina na cultura, aparecendo como um vago mal-estar. Foi na clínica da neurose obsessiva que a culpa apareceu de forma ruidosa, dominando o quadro clínico pela presença das autocensuras.

Vemos, por meio desta exposição, que a presença na clínica dos impulsos hostis do obsessivo direcionou o olhar de Freud para o perigo de desintegração social proveniente da agressividade e não da sexualidade; problemática esta trazida inicialmente pela histeria.

 

Neuroses narcísicas: egoísmo, hostilidade e laços sociais

"Neuroses narcísicas" foi o termo escolhido por Freud em contraposição às neuroses de transferência. Em linhas gerais, designa afecções nas quais há um retorno da libido sobre o eu. Esse termo abarca inicialmente as psicoses, restringindo-se mais tarde à melancolia.

Freud relatou um único caso de psicose, não originado de sua prática clínica, mas do relato autobiográfico do presidente Schreber (Freud, [1911] 1996), diagnosticado com paranoia (dementia paranoides). Tal afecção possibilitou-lhe contato com o processo defensivo de retirada da libido do mundo externo e retorno ao eu. O papel do eu no conflito psíquico ganhou destaque, assim como a noção de narcisismo que, no texto do caso Schreber, constituía uma fase do desenvolvimento libidinal do indivíduo. Com a ajuda das formulações de Jung sobre a esquizofrenia, Freud também localizou nesta afecção o desligamento libidinal da realidade, assim como a regressão à postura narcísica infantil (Freud, [1911] 1996).

Mesmo deixando o narcisismo primário e investindo a libido em objetos, o eu continua a comportá-la em si, funcionando no psiquismo uma balança energética entre libido do eu e libido objetal (Freud, [1914] 1996). Além disso, o ideal do eu aparece como instância que concentra parte da libido narcísica. Tendo como modelo a perfeição narcísica infantil, ele passa a medir o eu segundo suas exigências, influenciado pelos ideais sociais.

Freud esboçou, a partir dos delírios de vigilância presentes na paranoia, a existência de um "agente psíquico especial" (Freud, [1914] 1996: 102) encarregado de prover a satisfação narcísica do ideal do eu. Este agente corresponde ao que comumente é chamado de consciência (no sentido moral) e é responsável por vigilância constante, medindo o eu pelo ideal, assim como pelas autocríticas (Freud, [1914] 1996). Sob a influência da paranoia e, por meio dela, do narcisismo, a antiga consciência moral do neurótico obsessivo adquiriu a roupagem de um agente intimamente relacionado ao eu, dotado de funções específicas no aparelho psíquico, o que constituiu um passo para a ideia de supereu.

As psicoses trouxeram outro acréscimo à teoria freudiana de alcance ético inegável: a vinculação entre narcisismo e hostilidade. No narcisismo infantil, o eu coincide com o que é agradável e o mundo externo com o que é hostil. Tudo o que é exterior ao eu é odiado; apenas o eu, fonte de prazer, é amado (Freud, [1915] 1996). Logo, o ódio seria o primeiro sentimento dirigido aos objetos.

A matriz clínica da melancolia também se insere no campo do narcisismo. Ela é ocasionada pela perda do objeto de amor, o que provoca, por sua vez, autorrecriminações intensas e esvaziamento do eu, elementos que a distinguem do processo de luto (Freud, [1917b] 1996). Freud percebeu que as autoacusações do melancólico dificilmente se referiam a ele próprio, mas, com algumas modificações, ao objeto de amor perdido. Essa degradação feita ao eu viria das tendências sádicas relacionadas ao objeto e que retornam ao indivíduo. Isso porque o investimento erótico do objeto é substituído pela identificação narcisista com ele, o que ocasiona o julgamento do eu por um agente especial (posterior supereu) como se o eu fosse o objeto abandonado. Dessa forma, pune-se o objeto que o indivíduo não sabe estar dentro de si. Esses impulsos sádicos que retornam do objeto explicam as tendências suicidas do melancólico (Freud, [1917b] 1996).

A ambivalência afetiva do melancólico em relação ao objeto lembra a do neurótico obsessivo. A diferença é que, ao perder o objeto, o obsessivo não se identifica com ele, configurando uma atitude narcísica; ele sente culpa e se pune por ter desejado a morte do objeto. Em ambas as afecções, vemos o papel de uma instância crítica que agride o eu, esteja identificado ou não com o objeto.

As afecções narcísicas permitiram a Freud levantar questões éticas importantes. As psicoses, pelo destaque ao eu, trouxeram o papel do egoísmo, da hostilidade primária, da presença do ideal do eu e de um agente crítico. Já a melancolia dirigiu a atenção de Freud para o vínculo entre destrutividade e moralidade, consolidando o lugar do supereu na dinâmica psíquica. Também mostrou a ação do mecanismo da identificação como forma de laço amoroso. Tais contribuições deram margem a novos olhares de Freud sobre a cultura, principalmente em "Psicologia de grupo e a análise do eu" ([1921] 1996) e em "O mal-estar na civilização" ([1930] 1996).

Em Psicologia de grupo, Freud defendeu que "os laços libidinais são o que caracteriza um grupo" (Freud, [1921] 1996: 111). O amor, Eros, é entendido como fator civilizador por transformar o egoísmo em altruísmo e suavizar a hostilidade pelo outro. Os impulsos hostis, no entanto, precisam ser direcionados a algum alvo. Daí a hostilidade dos membros de um grupo contra aqueles que dele não fazem parte.

Egoísmo e hostilidade são vistos como inimigos da vida em comum. Ora, estes temas nos são familiares quando lembramos as neuroses narcísicas. Foi do narcisismo que surgiu a íntima relação entre o amor-próprio e a hostilidade pelo outro, o qual perturba a constância e autossuficiência do eu (Freud, [1915] 1996). O conflito cultural entre egoísmo e altruísmo é, portanto, o desdobramento do conflito entre narcisismo e amor pelo outro; entre libido do eu e libido de objeto. Estes conceitos, por sua vez, tiveram suas raízes na reflexão de Freud sobre as afecções narcísicas.

Em "Psicologia de grupo" ([1921] 1996), quando Freud investiga o modo como se formam os laços amorosos entre os membros do grupo, chega à conclusão de que são laços por identificação, possibilitada pela percepção do laço comum com o líder. O líder é uma figura idealizada que ocupa o lugar do ideal do eu dos membros do grupo. As noções de identificação e ideal do eu em "Psicologia de grupo" são marcas das afecções narcísicas como matriz clínica de referência para Freud. Foi a melancolia que pôs em destaque o papel do amor narcísico, mantido pela identificação. Já a noção de ideal do eu havia sido introduzida em referência às psicoses, como herdeiro do narcisismo infantil.

As neuroses narcísicas também influenciaram questões éticas presentes em "O mal-estar na civilização" ([1930] 1996), já explorado sob a ótica das problemáticas obsessivas. Freud destaca nesse texto a tendência destrutiva do homem, a pulsão de morte, como maior ameaça à unidade da civilização. Tal tendência é característica marcante da melancolia. Nenhuma outra afecção proporcionou a Freud perceber tamanha destrutividade: os melancólicos chegam muitas vezes a se matar. Na melancolia, a hostilidade que deveria ser conduzida diretamente ao objeto é dirigida ao eu, estando este identificado com o objeto. O melancólico esvazia-se e sucumbe por ter que lidar com a destrutividade dentro de si, tal como, na civilização, as pessoas perdem uma parcela de felicidade por não poderem exteriorizar a agressividade, que fica circunscrita aos limites do si mesmo.

Apesar de na neurose obsessiva também ocorrer esse retorno da agressividade ao eu, vemos em seu sofrimento as marcas do erótico sob a forma de sadismo, possibilitado pela regressão à fase sádico-anal. Na melancolia, embora o supereu também tenha prazer sádico, há, por outro lado, a forte presença da destrutividade aniquiladora que parece não estar ligada ao erotismo, algo mais próximo da crueza da pulsão de morte. Na verdade, as contribuições éticas da melancolia e da neurose obsessiva para o texto "O mal-estar na civilização" ([1930] 1996) não são excludentes, mas complementares.

Além disso, existe, segundo Freud ([1930] 1996), um "supereu cultural" surgido das impressões deixadas pelos grandes líderes, tal como o supereu individual surge da autoridade parental. É a melancolia a pista principal de Freud para a existência do supereu, apesar de ele já ter se insinuado na clínica da neurose obsessiva pelo papel da consciência moral. Foi com a melancolia que Freud observou melhor a presença do agente crítico que assume a posição de carrasco, cuja função é punir o eu; daí o passo para a noção de supereu. Assim, quando Freud lança a ideia de um supereu cultural severo, ele traz à tona a problemática ética colocada pela melancolia. Da mesma forma que o melancólico precisou sofrer em sua pele a hostilidade que não pôde exteriorizar, pela ação cruel do supereu, a sociedade sofre pelos mandamentos do supereu cultural.

Por fim, quando Freud remete ao supereu cultural a tarefa de fazer cumprir os ideais sociais, está falando do ideal do eu descoberto no contato com as afecções narcísicas. Esse ideal trouxe à tona a problemática ética da continuidade entre o psiquismo e o mundo exterior, de modo que os ideais sociais se confundem com os individuais.

Vemos que as problemáticas éticas trazidas pela matriz clínica das neuroses narcísicas permitiram a Freud destacar o papel do egoísmo, da hostilidade ao outro e da destrutividade na vida em civilização, além de reservar ao laço amoroso, sob o modelo da identificação, a função de evitar a desintegração social.

 

Considerações finais

Este trabalho procurou demonstrar o quanto as matrizes clínicas de Freud – a histeria, a neurose obsessiva e as afecções narcísicas – direcionaram as discussões éticas presentes nos seus ensaios centrais sobre a cultura. Cada matriz clínica possibilitou a Freud destacar diferentes caracterizações da cultura, pondo determinadas questões éticas em evidência – a renúncia sexual, a consciência moral, o laço amoroso, o egoísmo, a destrutividade.

Em sua prática clínica, marcada pela singularidade, Freud inevitavelmente se depara com os valores da sociedade e com uma questão irredutível que se impõe ao psicanalista: como estar à vontade num mundo marcado por exigências éticas se os desejos de cada um apontam para caminhos que as ultrapassam ou infringem? Daí o interesse de Freud em expandir seu olhar para a cultura, a formação grupal, a religião, as origens da civilização e da moral. Não seria possível pensar uma clínica desvinculada das questões éticas que perpassam determinada cultura num certo momento histórico. O que significa que não daria para descolar o sujeito do contexto moral em que vive e dos tipos de relações que tece ao seu redor.

Poderíamos de fato assinalar, tal como vem sendo proposto por alguns estudiosos da interface psicanálise e cultura, que o pensamento freudiano efetuou o apagamento da distinção entre cultural e individual4. O próprio Freud aponta, em "Psicologia de grupo e análise do eu" ([1921] 1996), que não há diferença entre o funcionamento psíquico do indivíduo e do grupo, já que todas as relações tecidas por alguém – com os pais, irmãos, objetos de amor – podem ser vistas como fenômenos sociais. Também a sociedade pode ser vista como um indivíduo, ideia presente no seguinte questionamento freudiano: "não temos nós justificativa em diagnosticar que, sob a influência de premências culturais, algumas civilizações, ou algumas épocas da civilização [...] se tornaram 'neuróticas'?" (Freud, [1930] 1996: 146).

Mesmo no narcisismo primário, quando a criança ama apenas a si própria, há uma relação social, pois ela passa a introjetar os objetos fontes de prazer e expulsar no outro o que lhe é desagradável (Freud, [1915] 1996). Freud vai apagando os limites entre indivíduo e cultura e, por meio deste caminho, entre as questões que apareciam em sua clínica e aquelas presentes na cultura.

Mas talvez seja mais importante indicar em que medida esse entrelaçamento entre prática clínica e reflexão ética desloca o olhar freudiano do sujeito interiorizado, base da psicologia praticada no final do século XIX, para uma leitura da experiência subjetiva na qual a problematização moral, o julgamento moral desta experiência, parece fundamental. Isso talvez nos permita arriscar a afirmação de que o sujeito tomado por Freud em sua clínica é menos o sujeito psicológico que o sujeito marcado por uma perspectiva ética, a qual considera o seu descentramento e o interroga sobre os determinantes de sua ação.

Podemos levantar a discussão: embora Freud não se ocupe diretamente em pensar o sujeito – tal como fez Lacan, com a ideia de sujeito do inconsciente –, nota-se, nas entrelinhas de sua obra, que tal sujeito estaria vinculado a questões éticas e não a questões psicológicas, que sugeririam a existência de uma essência.

Como procuramos mostrar ao longo deste trabalho, Freud efetuou uma ligação íntima entre clínica, cultura e ética. Há aqui indicações de que o sujeito em sofrimento, sobre o qual Freud se debruçou desde o início e que lhe permitiu construir o saber psicanalítico, seria, então, um sujeito ético5, cujo sofrimento está diretamente vinculado aos modos possíveis de existência, determinados historicamente, e às formas de regulação dos laços sociais, portanto regulação também dos laços afetivos e dos investimentos libidinais. Sujeito que se debate sobre as razões do seu ato e se vê determinado por um desejo que o identifica, mas do qual não tem sequer consciência.

Freud vinculou a psicopatologia ao cenário social, cortando laços com as noções de degenerescência e hereditariedade. Retirou o foco de um psiquismo inadaptado e deficitário para o funcionamento social, em que tanto a sociedade como um todo quanto os indivíduos em particular apresentariam conflitos e desarranjos em seus modos de funcionamento.

Dessa forma, é difícil dizer que Freud pensou um sujeito puramente psicológico, dotado de uma essência sexual de matriz biológica. Não só os grandes temas da psicologia, como a percepção e a vontade, escaparam ao seu interesse, como ele deslocou o dito verdadeiramente psíquico da consciência para o campo do inconsciente, colocando no centro da sua investigação a categoria de desejo inconsciente como determinante último do nosso agir; vinculado, portanto, ao nosso ethos.

Ao invés desse sujeito visto pela psicologia de sua época e circunscrito à consciência, o sujeito é tomado, na obra freudiana, numa perspectiva ética. É nesse sentido que nos dedicamos a explorar como tal perspectiva se faz presente na clínica. Freud não iria ao exame da cultura se lhe interessasse pesquisar um sujeito psicológico. O que via na clínica só encontrava legitimidade quando se articulava ao funcionamento social, não se restringindo a um suposto psiquismo que funcionaria independentemente daqueles elementos.

É nesse sentido que o sexual importaria a Freud como noção que permite estender o sujeito para além de um funcionamento psicológico autônomo, um sujeito em relação. As noções da psicologia clássica, como memória, percepção e inteligência, se esgotam em âmbitos neuropsicológicos; já a sexualidade tira o psíquico do registro neuronal, aproximando-se de uma metapsicologia sem correspondente orgânico, energias e intensidades mais próximas da bruxaria, como afirmava o próprio Freud, e que só fazem sentido por se dirigirem aos objetos, sejam os pais, os grupos, a sociedade. O sexual leva ao encontro com o outro, à elaboração de tramas fantasmáticas que povoam o psiquismo.

A pulsão de vida é uma noção que vai mais longe. Ao contrapor-se à tendência de morte, a vida aparece como um trabalho psíquico de elaboração que não passa sem a mediação do outro. Birman (1988) aponta que a pulsão de vida é a inscrição da pulsão de morte no universo da representação, o que passa pelo crivo da palavra e, portanto, pela mediação simbólica proporcionada pela alteridade. A ligação da pulsão à representação é correlata da ligação com o outro e é o amor, o sexual, que está no cerne dessa ligação. O sujeito freudiano seria esse sujeito que se insere entre os planos corporal, psíquico e social por meio do campo do sentido, da simbolização, do laço com o outro.

Além disso, o sujeito da psicanálise seria marcado pelo descentramento (Birman, 2003), o que o afasta das concepções da psicologia clássica e da filosofia do sujeito por derrubar a supremacia da consciência, do eu e do registro das representações. A noção de sujeito descentrado leva-nos a reforçar a hipótese de que o elemento central da experiência subjetiva e, portanto, da problematização do sujeito, fundamental para o entendimento da experiência clínica em Freud, é a dimensão ética.

 

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Notas

1 Trabalho realizado com auxílio do PAIRD (Programa de Auxílio à Integração de Docentes e Técnicos Administrativos Recém-Doutores às Atividades de Pesquisa – UFS).

2 Neste sentido, o presente estudo não se propõe a explorar as concepções antropológicas e sociológicas da cultura, nem a visão filosófica da moral ou da ética. Tais conceitos são utilizados tal como aparecem na obra freudiana. Há muitos trabalhos que trazem a interlocução entre o campo psicanalítico e a filosofia, incluindo a filosofia moral e a ética. Entre eles, sugerimos: Assoun, P.-L. (1978), Birman, J. (1994, 2003, 2010), Rajchman, J. (1993), Junqueira, C. (2006).

3 Para os conceitos de ética e moral, segundo a tradição filosófica, recomendamos: Lalande (1996) e Foucault (1995).

4 Sobre isto, ver: Mezan (2006), Birman (1994; 2010), Aragão et al. (1991).

5 Esta expressão está sendo utilizada com a função de se contrapor ao sujeito psicológico. Ela se refere a um sujeito pensado na relação com o outro, marcada por questões éticas que determinam sua ação no mundo e a constituição de si (Birman, 2010).

 

 

Recebido em 27 de outubro de 2009
Aceito para publicação em 14 de fevereiro de 2011

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