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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.24 no.2 Rio de Janeiro dez. 2012

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Considerações sobre violência e verdade no mundo contemporâneo

 

Considerations for violence and truth in contemporary

 

 

Oswaldo França Neto

Departamento de Psicologia, UFMG, Minas Gerais, Brasil. E-mail: oswaldofranca@yahoo.com

 

 


RESUMO

Freud associa ao supereu a palavra, que se impõe feroz, sem sentido, instituindo com sua lei insensata o campo da cultura. Nessa concepção, alguma forma de violência estaria na gênese do sujeito e da verdade que o constitui. Se para Lacan a palavra é a morte da coisa, rompendo na criança qualquer possibilidade de reencontro com aquilo que a satisfaria, é esta mesma palavra que estabiliza, ou fixa, a errância disruptiva do real, tornando-nos seres de cultura. A democracia capitalista ocidental, segundo Alain Badiou, se propõe um mundo átono, sem pontos de tensão em que uma decisão tenha que se colocar na forma da palavra. Se esse poder instaurador veiculado pela palavra nos constitui como sujeito de uma verdade, ao rejeitar a existência de sujeitos nossa contemporaneidade se condena à fruição de um gozo sem sentido, que se reatualiza continuamente sob as mais variadas formas.

Palavras-chave: verdade; sujeito; violência; destruição; contemporaneidade.


ABSTRACT

Freud associates the following with the super-ego and the word - something that is imposed by ferocity, without meaning, built upon the field of culture upon insensible laws. In this conception, some form of violence is within the genre of the subject and the truth that it constructs. If, for Lacan, the world is the death of the thing, a break within the child of any possible re-connection with the thing that would bring satisfaction - it is this world that stabilizes, or fixates, a disruptive error of the real, making us beings of culture. Western capitalist democracy, according to Alain Badiou, proposes an atonal world, devoid of points of tension where a decision must be put in the form of a word. If establisher this power conveyed by the word places us as the subject of a truth, upon rejecting the existence of subjects, our modernity condemns us to the development of a meaningless enjoyment, continually re-shaping itself in a variety of ways.

Keywords: truth; subject; violence; destruction; modernity.


 

 

Para que uma unidade qualquer se constitua, é necessária uma exclusão originária. O matemático Bertrand Russell (1872-1970) nos mostrou que o conjunto de todos os conjuntos é impossível. O Todo é irrepresentável. Para que possamos fazer Um de um universo qualquer é necessário que excluamos do campo seu ponto de inconsistência. Ou seja, a unificação de um campo só é possível por meio do "esquecimento" daquilo que denuncia sua paradoxal e impossível consistência. Algo tem que ser cortado na carne, passando a ex-sistir (existir fora), para que uma unificação possa se processar. Essa expulsão originária é a necessária violência que se encontra na gênese de qualquer cultura.

Freud (1933/1976), nas "Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise", na representação gráfica que ele então propõe para a segunda tópica, posiciona o supereu em continuação ao que em 1923 (Freud, 1923/1976) tinha colocado como receptor acústico. É íntima a relação desse imperativo feroz e sem tréguas com a palavra. O supereu é a imposição da fala, uma expressão sem sentido, violenta, que instaura o império da palavra. A partir dessa agressividade primordial, a mãe, nosso Todo originário, estará para sempre perdida, tornando-nos escravos da palavra. Algo de uma violência, assim, estaria na gênese do sujeito, na gênese da civilização. Em "Totem e tabu" Freud (1913/1976) nos apresenta o surgimento da cultura a partir de um assassinato originário. Com a morte do pai da horda, o lugar de interdição da mãe é substituído por um totem, marca simbólica de uma perda introjetada. Perdida a mãe, tornada a partir de então um significante como outro qualquer, vemo-nos agora com a difícil tarefa de dar tratos a um excesso errante, inapreensível pela palavra. Se a localização do excesso é impossível, não nos resta, no entanto, outro caminho que não seja o de tentar cerni-lo de alguma forma. Trata-se de tentar fazer existir de forma imanente, localizada, uma pura errância não significantizável - uma ex-sistência, nos termos de Lacan. Citando Miller, do depósito disponível de palavras vazias e comuns aos seres falantes, fruto da "primeira subtração de gozo feita pela sua conversão em significantes", uma segunda subtração "é necessária pelo fato de que o significante não esgota o todo do gozo" (Miller, 1993, p. 4). De uma fala vazia de sujeito há que haver a assunção de uma palavra plena, fruto dessa segunda subtração, que nada mais é do que uma localização impossível, ou uma "localização deslocalizada" (Badiou, 2010) de um excesso de gozo não significantizável.

A grande questão é como operacionalizar para que dessa extração constitutiva um sujeito possa se colocar, ou seja, que uma palavra plena se faça presente. Se para se constituir o campo da realidade é necessária a extração de algo fundamental, que passa a existir como excesso em relação a uma unificação a duras penas alcançada, esse excesso, por ser a parte faltante de uma suposta completude originária, torna-se causa de todos os movimentos. Com sua necessária inapresentação, sob pena da desconstituição de um corpo que só se tornou possível pela exclusão daquilo que o fragmentaria, o excesso passa a ser signo da verdade que serve de solo para os desejos de um sujeito. Estes, verdade e sujeito, remetidos ao inconsciente, só podem existir como furo na consciência, já que presentificariam o que teve que se tornar inexistente para que a realidade pudesse existir. O preço a se pagar para que o campo da realidade e a consciência ganhem consistência é, assim, o esquecimento do sujeito e de sua verdade, que passam a existir como furo. Se quisermos dar voz a um sujeito, devemos viabilizar a impossível tarefa de fazer existir dentro aquilo que necessariamente deve existir fora para que qualquer dentro possa consistir como um corpo unificado. Se optarmos pela vida, perdemos a verdade; se optarmos pela verdade, perdemos a vida e com ela também a verdade. Poderíamos dizer que essa era a grande questão de Freud e Lacan: como fazer existir algo que só pode ex-sistir. Na opção pelo campo unificado da consciência, opção por uma vida de palavras vazias, nada nos diferenciaria dos animais. Só nos restaria a preservação de nossos corpos, que é o que, no final das contas, defende o humanismo com sua "Declaração dos Direitos Humanos". Uma vida assim, sem sujeito, é possível, mas será que vale a pena ser vivida?

Essa é uma das grandes questões que movem Alain Badiou. Em seu livro Logiques des mondes (Badiou, 2006), além de estabelecer aquilo que daria consistência lógica a qualquer mundo, ele tenta formalizar como a verdade, ponto que necessariamente tem que se manter como exclusão para que qualquer mundo exista, possa se preservar e perseverar. Para manter viva alguma coisa ao longo do tempo, é preciso objetivá-la, corporificá-la, possibilitando-lhe atuar e se preservar no mundo. Mas ao corporificarmos o que em princípio se apresenta como sendo da ordem da verdade, mesmo que esse corpo se mantenha em estado de exclusão em relação ao social, dentro dos próprios limites de seu corpo ela deixaria de ser exclusão, ou seja, deixaria de ser verdade. Deparamos-nos com uma impossibilidade constitutiva: ou corpo, ou verdade. Se escolhermos o corpo perdemos a verdade, se escolhermos a verdade perdemos os dois.

Podemos encontrar aí a grande discussão referente ao passe proposto por Lacan (1967/2003). Se Freud ao longo de sua vida fez enormes esforços em institucionalizar a psicanálise, visando com isso preservá-la ao longo do tempo, Lacan se esmerou em tentar constituir um corpo que não implicasse constitucionalmente no esquecimento de sua verdade, sendo o passe sua derradeira proposta para lidar com a impossibilidade da profissão do analista. O que estava em questão era como nomear alguém como psicanalista sem que o efeito imediato dessa nomeação fosse a perda da verdade do que se pretendia nomear. Ao se dar à palavra "analista" uma função predicativa, inserindo-a no sistema de classificações, ela passa a fazer parte do comércio de bens, perdendo com isso seu lugar deslocalizado, singular, tornando-se uma particularidade. O embate de Lacan contra a tendência natural de toda instituição a entrar no registro dos bens e dos interesses levou-o a dissolver sua escola em 1980, quando posições já estabelecidas se mantiveram contra, desvirtuando ou recusando o passe e a vacilação da hierarquia e da fixação dos bens que ele carreia. A verdade, por principio, não pode tornar-se predicativa, não pode deixar de ser inclassificável, sob pena de "esquecer-se" como tal.

 

A verdade do sujeito

Trabalhando o texto sobre a Verneinung de Freud, Lacan nos lembra da "verdadeira revolta [...] que experimentava Freud diante da violência que a palavra pode comportar" (Lacan, 1975/1983, p. 71). A palavra, para o psicanalista francês, é a morte da Coisa.

Nesse texto de 1925, Freud fala de uma Bejahung, ou Urbejahung (afirmação primordial), que denota uma inscrição, união, na qual o "Um" se constitui. Freud nos fala também do juízo que ele separa em juízo de atribuição e de existência, uma mesma função que se realiza em dois tempos. O que está em discussão é o dentro e o fora, o eu e o não-eu. A inscrição significante comporta uma Ausstossung aus dem Ich (expulsão do eu) que "constituiria o real na medida em que ele é o domínio que subsiste fora da simbolização" (Lacan, 1954/1998, p. 390). Opera-se a seguir a denegação, ou o "não" da consciência, que seria o "sucessor" (Nachfolger) dessa operação de expulsão (Freud, 1925/1976). A denegação é a própria negatividade da palavra. É a assunção de que nos tornamos seres de representação, em um registro que, por ser outro, torna-nos disjuntos do que a partir de então se apresenta como sendo do registro da exclusão.

A Bejahung, portanto, implica uma inscrição - inscrição significante - e uma expulsão, esta última anterior logicamente à Verneinung, campo da representação, onde algo que ex-siste (dentro) se objetifica como palavra, como "não", ou como negativa dessa ex-sistência. A Bejahung, ao excluir algo, corta-o na própria carne, que passa a existir como furo para que ela possa existir como traço.

Ao entrar no mundo simbólico, o preço que a criança paga é o rompimento com qualquer possibilidade de união com aquilo que a satisfaria. A violência da palavra, estabilizando ou fixando a errância disruptiva do real, é o passo inexorável para que nos tornemos seres de cultura. Essa violência constitutiva é reatualizada, por exemplo, no espaço analítico, sendo ela a via necessária para que o sujeito de uma verdade possa se fazer presente.

Nós, analistas, que trabalhamos essencialmente com o sujeito, não desconhecemos o aspecto violento que um processo analítico pode carrear. Nossa questão não é como eliminar possíveis efeitos desestruturantes da análise, mas como instituir, a partir deles, um sujeito, ou como transformar a irrupção do real em presentificação de uma palavra plena, corporificação impossível da verdade. Enquanto que na palavra vazia, de acordo com a forma pela qual Lacan a trabalha em 1953, o sujeito estaria alienado de sua verdade, já que ele "parece falar em vão de alguém que, mesmo lhe sendo semelhante a ponto de ele se enganar, nunca se aliará à assunção de seu desejo" (Lacan, 1953/1998, p. 255), a palavra plena faz ato. Não que ela se proponha expressar toda a verdade do sujeito, já que há uma fundamental "incompatibilidade do desejo com a fala" (Lacan, 1958/1998, p. 647), mas ela carrearia, de forma enigmática, o que da verdade se presentificaria em um dado momento na assunção de um sujeito.

 

Bartleby de Melville e sua recusa em ser sujeito

Agamben (1995), trabalhando o enigmático personagem principal do livro Bartleby, o escrivão de Herman Melville (1853/2005), ressalta nele a contingência, ou a potência embutida de uma contingência por vir. Bartleby era um escriturário que, a partir de um dado momento, progressivamente passa a "preferir" não mais executar as tarefas que lhe são designadas, até o ponto de não fazer mais nada, tornando-se assim um escrivão que "prefere" não mais escrever. Haveria em Bartleby, com sua desconcertante frase, "I would prefer no to", traduzida para o português por "preferiria não", uma radical recusa às inscrições que o Outro lhe oferece. Como nos lembra Deleuze (1997), há nesta realidade esquiva algo do negativismo da psicose, conferindo a este personagem uma potência muda, uma inércia que desnorteia e "desarticula todo ato de fala, ao mesmo tempo que faz de Bartleby um puro excluído, ao qual já nenhuma situação social pode ser atribuída" (Deleuze, 1997, p. 85). Suas recusas, ao serem explicitadas por meio dessa desconcertante fórmula, retira-o da lógica dicotômica do sim e do não e também da síntese, comprometendo-o com certas hesitações. Bartleby coloca à mostra os enganos e limites das falas e das palavras, furando ou anulando completamente as pretensões esperadas de universalidade da comunicação. Estabelece-se uma zona de indecisão, que descaracteriza o confronto e desarma o advogado, seu patrão, que se sente confuso e impotente para fazer valer o lugar de autoridade. Nessa frase, "que não escreve nada, senão seu poder de não escrever" (Agamben, 1990, p. 43; tradução do autor), apesar de gramaticalmente correta, seu término abrupto ("no to") deixa indeterminado o ato ao qual se refere. Da forma como é utilizada, parece refletir-se sobre si mesma em um movimento circular (I would prefer no to prefer no to...) infindável, no qual o ato resguarda-se de sua efetivação, deixando em aberto a possibilidade ou potência de fazê-lo ou não. Não se trata, aos olhos de Agamben, de uma pura passividade ou desistência, mas de uma espécie de decisão de não decidir pela qual o sujeito se resguarda do passo que o comprometeria.

Ao citar Bartleby no livro Logiques des mondes, Badiou (2006) vê nele uma traição ao sujeito. Se Bartleby se mantém inclassificável, fugindo estrategicamente do confronto, do embate direto com o Outro, por meio de seu desconcertante "Preferiria não", faltaria porém a ele, aos olhos de Badiou, o passo seguinte a essa posição de exclusão que ele tão bem sustentou. Não há neste enigmático personagem a objetivação de sua verdade, afirmação fundadora que abriria ou possibilitaria para si a explosão de efeitos que o furo que sua recusa imprimiu no Outro possibilitaria. Bartleby persiste na imobilidade, que acaba por culminar em sua morte por inanição. Para Badiou, ao se fixar em uma pura recusa ao Outro, negando a afirmação (objetivação) da verdade de sua desalienação, esse personagem representaria uma traição à existência do sujeito. Tratar-se-ia, em Bartleby, da negação de uma fundação, persistindo-se infundado.

Para Badiou (2006), estaria aí, nessa falta de objetivação da verdade, todo o problema da contemporaneidade ocidental. Nosso mundo democrático capitalista, pelo menos na forma como tem se operacionalizado majoritariamente, tem medo da verdade, fazendo todo o possível para impedir que ela e o sujeito que lhe corresponde se objetivem no mundo. Tentativa esta que exige um trabalho incessante, já que

uma verdade, tal como um sujeito nela formaliza o corpo ativo em um mundo determinado, não se deixa dissolver em seu ser genérico. Há uma irredutível insistência de seu aparecer, o que quer também dizer que ela toma um lugar entre os objetos do mundo (Badiou, 2006, p. 46; tradução do autor)1.

 

Nossa contemporaneidade e suas formas de violência

Como vimos acima, a verdade, que por definição é universal, é aquilo que se mantém em situação de exclusão a um processo de unificação. Só pode apresentar-se como verdade de um mundo aquilo que comporta o elemento faltante constitutivo de sua unidade. Ou seja, a verdade de um determinado mundo, para se apresentar, o faz a partir da presentificação daquilo que foi excluído para que ele adquirisse consistência. A verdade, nesse sentido, carreia em si uma faceta potencialmente agressiva, ou irruptiva, já que seu surgimento em si seria a presentificação daquilo que deve necessariamente manter-se na inexistência para que o mundo se preserve consistente. O sujeito e sua verdade, assim, todas as vezes em que se produzem como efeito, carreiam a perigosa subversão do que se apresenta como instituído.

Mas, como dissemos antes, enquanto excesso irrepresentável nada obriga que uma verdade se presentifique no campo de uma forma eficaz e se operacionalize por meio de um sujeito. Para que tal aconteça esse excesso errante tem que ser fixado por uma palavra inclassificável, ou uma localização deslocalizada, segundo Badiou (2010).

Podemos agora voltar à questão levantada acima e tentarmos discernir as principais vias contemporâneas franqueadas a esse excesso. Por quais caminhos nossa cultura faculta que o excesso se manifeste e quais as possibilidades que nos são abertas, se é que elas existem, para que de alguma forma possamos localizá-lo e venhamos a produzir como efeito um sujeito?

No livro Le siècle, Badiou (2005) propõe que o século XX foi marcado pela paixão pelo real. Partindo do princípio da existência de uma necessária vinculação entre gozo e sujeito, e na expectativa de fazer existir o sujeito a qualquer preço, esse século, em dolorosos momentos, por caminhos que o filósofo francês nomeou por "via destrutiva", prontificou-se a experienciar o puro momento da irrupção, tentando perseverar no instante em que a forma é rompida e o real se presentifica. Seria a tentativa de fazer existir institucionalmente o que necessariamente deve manter-se como ex-sistindo para que a unidade se preserve. Os dois ícones dessa via na civilização ocidental foram Stalin e o nazismo. Ambos se prontificaram a institucionalizar a pura irrupção do real, arvorando-se capazes de forçar a predicação do que é inclassificável. A institucionalização do excesso por meio de sua predicação forçada, caso desses dois emblemáticos representantes da via destrutiva, não passa de um engodo pelo qual a verdade e o sujeito são os primeiros a serem esquecidos.

Menos exuberante do que a primeira via citada acima, tivemos, no século XX, outra tentativa importante de fazer existir o sujeito por meio da paixão pelo real. Nomeada por Badiou (2005) como "via subtrativa", ela também se pautaria na tentativa de localização do excesso (única forma possível para que de uma verdade possamos produzir um sujeito), porém sob a paradoxal forma de uma localização deslocalizada, de um elemento que, apesar de se apresentar, não se deixa predicar por nenhuma das classificações existentes. Nessa via, a destruição deixaria de ser a tônica, passando a verdade a apresentar-se a partir de uma diferença mínima, não predicável, que deslocaria discretamente os nomes de sua boa localização, forçando uma reinscrição do que se encontrava estabelecido.

Do século, porém, restaram como lembrança pregnante as desastrosas tentativas da via destrutiva. Em um movimento defensivo com relação a elas, o final do século XX transmutou-se no oposto do que teria sido sua paixão principal, marcando-se a seguir pelo temor a qualquer presentificação do excesso e pela tentativa de inviabilizar a possibilidade de sua objetivação. Nosso mundo democrático, na forma como se operacionaliza atualmente, se propõe átono, sem pontos de tensão (Badiou, 2006), ou sem pontos em que qualquer decisão tenha que se colocar. Se os pontos de tensão são foracluídos, a violência com que temos que agora nos haver são violências disjuntas do sujeito, puro gozo sem fantasma. Trata-se de uma agressividade que se dá diretamente no corpo, sem que o menor sujeito se coloque.

A grande questão para a psicanálise é como viabilizar, a partir desse potencial irruptivo da verdade, seu desdobramento sob a forma de um sujeito produtivo, o que só é possível por meio de uma deslocalização do que se encontra localizado. Nossa contemporaneidade reconhece essa possibilidade? Ela se dispõe a reconhecer a existência de sujeitos?

Se a agressividade da psicanálise está correlacionada aos destinos da palavra (e entendamos palavra aqui como sendo aquela que dá voz a um sujeito), a democracia capitalista, pelo menos da forma como ela se experiencia quase que hegemonicamente no ocidente, propala a morte da palavra, a persistência da agressividade em seu puro aspecto de gozo, sem que um sujeito dela possa advir. A ideologia do capitalismo é goze na substituição infinita dos objetos, o que em outros termos significa Viva sem palavras, ou Viva sem sujeito.

Quando a democracia capitalista propõe como ideologia a máxima Viva sem Verdade (correlato da frase Viva sem sujeito), promete a ilusão de ser o sistema que vai se preservar na ausência da agressividade e da violência. Para tal, ela deve manter na sombra, não importa a qual preço, aquilo que teve que ser excluído para que o sistema se constituísse.

Não se trata aqui de uma apologia da violência, mas do reconhecimento de que a verdade, no seu caráter geneticamente subvertedor, carreia em si a questão da violência. Se o sujeito necessariamente exige na sua constituição a subversão da forma e o aparecimento do novo, até que ponto nos é útil tentar lidar com a violência tomando como base determinações fixas ou avaliações morais preestabelecidas? O trabalho com o menor infrator, por exemplo, que é um dos ícones dos excluídos de nossa sociedade, nos coloca continuamente essa questão. Uma das primeiras constatações é o fato frequente de eles em nada se mostrarem afetados por qualquer tipo de sentimento de culpa pelo ato que cometeram. A presença de culpabilidade é em geral referência para pressuposição jurídica de imputabilidade. Como nos lembra Célio Garcia, a "situação ideal desde sempre considerada pela Filosofia e pela Doutrina Jurídica seria a coincidência entre responsabilidade civil e responsabilidade moral" (Garcia, 2002, p. 322). O autor de um crime tende a ser considerado inimputável e, portanto, não susceptível de cumprir pena, quando não é capaz de entender que o ato cometido é ilícito, incapacidade esta atestada pela ausência de sentimento de culpa.

Cyro Marcos da Silva (1997, citado por Garcia, 2002, p. 322), ao aliar sua experiência de juiz com sua atividade atual como psicanalista, fala de uma responsabilidade ética:

Na neurose, a responsabilidade é um determinante ético: é a possibilidade que o neurótico tem de sair de sua posição paralisada, entre culpa e irresponsabilidade. [...] A ética da psicanálise o leva a ocupar outro lugar na divisão, ou seja, não mais dividido entre culpa e irresponsabilidade, mas entre, sim, responsabilidade e aquilo que lhe determina. Paradoxo ético!

Vemos a culpa sair de cena a partir de uma outra postura ética. De acordo com Garcia (2002), o fato de os jovens infratores com frequência não se mostrarem receptivos a aceitar o que chamamos de culpa neurótica não implica que não sejam capazes de falar sobre seu ato. Apesar de no momento do acting out o sujeito estar ausente, "sua responsabilidade como sujeito por vezes só é assumida após a realização do delito" (Garcia, 2002, p. 327). O ato cria o sujeito, o que nos leva novamente a pensar em uma responsabilidade não necessariamente atrelada a uma moral preestabelecida e seu correlato, a noção de culpa. Para a psicanálise, independentemente de considerá-lo ou não inimputável aos olhos do sistema judiciário, desresponsabilizar o jovem infrator seria desconhecê-lo como sujeito de seu ato, cavando um fosso entre o delinquente e qualquer possibilidade de intervenção terapêutica.

O estatuto que uma agressividade qualquer vai adquirir depende do lugar que passará a ocupar e de seu potencial de subjetivação. O ato que constitui um sujeito, por seu aspecto necessariamente subvertedor, pode vir a se marcar como portador de um caráter destrutivo. Porém é essa mesma subversão que potencialmente pode carrear a palavra plena, aquela que fixa o excesso e possibilita seu desdobramento significante. Nossa contemporaneidade, traumatizada pelos efeitos devastadores que a paixão pelo real no século XX em alguns momentos presentificou, preferiu cercar-se de todas as proteções possíveis quanto a qualquer emergência da verdade, "esquecendo" com isso a existência de sujeitos.

Passar a pensar em responsabilização no lugar de culpabilização talvez seja um bom início para nos instrumentalizar com relação a esses excessos agressivos contemporâneos, fixados no corpo e disjuntos da palavra.

 

Referências

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Recebido em 03 de janeiro de 2012
Aceito para publicação em 18 de junho de 2012

 

 

Nota

1 "Une vérité, telle qu'un sujet se formalise le corps actif dans um monde déterminé, ne se laisse pas dissoudre dans son être générique. Il y a une irréductible insistance de son apparaître, ce qui veut aussi bien dire qu'elle prend place parmi les objets d'un monde" (Badiou, 2006, p. 46).

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