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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.25 no.2 Rio de Janeiro jun. 2013

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Relações possíveis entre desencadeamento psicótico e implante coclear: reflexões a partir do contexto clínico francês

 

Possible relations between psychotic episode and cochlear implants: reflections from the clinical context in france

 

Posibles relaciones entre desencadenamiento psicótico y los implantes cocleares: reflexiones desde el contexto clínico francés

 

 

Tereza Pinto

Université de Paris Diderot - Paris 7, Paris, França

 

 


RESUMO

O presente artigo é o resultado da experiência da autora no chamado "Polo Surdez" do Centro Hospitalar Sainte-Anne (Paris, França), serviço hospitalar de saúde mental que oferece acompanhamento psicológico para pacientes psiquiátricos surdos adultos. Alguns desses pacientes, sem história psiquiátrica anterior, chegam ao Polo apresentando uma descompensação psicótica que intervém após a implantação de uma prótese coclear, o que suscita a questão da relação entre o implante e o desencadeamento da psicose. A autora discute a hipótese segundo a qual a idealização médica da "cura" da deficiência auditiva não leva muitas vezes em consideração o fato de que a própria surdez possa representar a base identitária estabilizadora de um sujeito cuja estrutura subjetiva seria psicótica. Nesse caso, o implante coclear, extraindo o sujeito do universo e da cultura próprios aos surdos, poderia transformar-se no fator que faz vacilar o ego de suplência do sujeito, levando ao desencadeamento de sua psicose.

Palavras chave: psicose; surdez; suplência; implante coclear; psicanálise.


ABSTRACT

This article is the result of the author's experience in the "Deafness Pool" (Pôle Surdité) of the Centre Hospitalier Sainte-Anne (Paris, France), mental health service hospital that offers psychiatric counseling for deaf adults. Some of those patients, without previous psychiatric history, arrive at the Pool featuring psychotic episode, which appears after an implantation of a cochlear implant. This point interrogates the relationship between the implant and the onset of psychosis. The author discusses the hypothesis that the medical idealization of healing hearing loss doesn't often consider that deafness itself may represent the basis for a stabilized identity for a subject whose psychic structure would be psychotic. In this case, the cochlear implant, taking the subject off of his own universe and the deaf culture, could become the factor that induces the onset of his psychosis by destabilizing his supplementation ego.

Keywords: psychosis; deafness; supplementation; cochlear implant; psychoanalysis.


RESUMEN

Este artículo es el resultado de la experiencia del autor en el "Polo Sordera" del Centro Hospitalario Sainte-Anne (Paris, Francia), unidad de salud mental que proporciona tratamiento para pacientes psiquiátricos adultos sordos. Algunos de estos pacientes, sin antecedentes psiquiátricos, llegan al Polo presentando una descompensación psicótica que interviene después de la implantación de una prótesis coclear, lo que plantea la cuestión de la relación entre el implante y el desencadenamiento de la psicosis. El autor analiza la hipótesis de que la idealización médica de la "cura" de la pérdida de audición no tiene en cuenta el hecho de que la propia sordera puede representar la base de la estabilización de la identidad de un sujeto cuya estructura subjetiva sería psicótica. En este caso, el implante coclear, extrayendo el sujeto del universo y de la cultura específica a los sordos, podría convertirse en el factor que hace vacilar el ego de suplencia del sujeto, lo que lleva a la aparición de su psicosis.

Palabras clave: psicosis; sordera; suplencia; implante coclear; psicoanálisis.


 

 

Introdução

O presente artigo é o resultado da experiência da autora no chamado "Polo Surdez" do Centro Hospitalar Sainte-Anne (Paris, França), serviço hospitalar de saúde mental que oferece acompanhamento psicológico em linguagem de sinais para pacientes psiquiátricos surdos adultos. Alguns desses pacientes, sem história psiquiátrica anterior, chegam ao Polo apresentando uma descompensação psicótica que intervém após a implantação de uma prótese coclear, o que suscita a questão da relação entre o implante e o desencadeamento da psicose. Tendo a linha de pesquisa essencialmente voltada para a clínica da psicose e, mais especificamente, para a noção de suplência segundo a orientação psicanalítica, a autora discute a hipótese segundo a qual a idealização médica da "cura" da deficiência auditiva não leva muitas vezes em consideração o fato de que a própria surdez possa representar a base identitária estabilizadora de um sujeito cuja estrutura subjetiva seria psicótica. Nesse caso, o implante coclear, extraindo o sujeito do universo e da cultura próprios aos surdos, poderia transformar-se no fator que faz vacilar o ego de suplência do sujeito, levando ao desencadeamento de sua psicose.

A deficiência auditiva conta, atualmente, com técnicas eficazes de reparação da audição e de uma consequente melhora da comunicação oral. Dentre essas técnicas, o implante coclear é o que obtém os sucessos mais radicais no auxílio para que o surdo acesse o mundo sonoro e, desde sua aparição em 1957, sua tecnologia evoluiu de forma importante e sua indicação foi progressivamente difundida. No contexto francês, tal difusão não deixará de levantar polêmicas e será criticada quanto ao seu caráter aparentemente sistemático, fato que representará também uma crítica aos critérios de seleção dos "candidatos" ao implante. Em princípio, tais critérios, ainda que presentes em teoria, parecem faltar em rigor sobretudo no que diz respeito à condição psicológica ou, eventualmente, psicopatológica do paciente, como no caso de pacientes psicóticos que não apresentam fenômenos ditos típicos.

Ora, sabe-se que muitos casos de psicose não se manifestam por esses fenômenos que se consideram típicos dessa patologia, como alucinações ou ideias delirantes. Para que um diagnóstico seja realizado independentemente dos fenômenos observáveis, o clínico deve apoiar-se sobre uma orientação que possa justamente desvincular tais fenômenos da escuta e que possa assim lhe oferecer os meios para detectar a psicose para além da tipicidade esperada. Seguindo uma orientação psicanalítica lacaniana, pode-se justificar teoricamente e verificar-se clinicamente a existência de tais casos, chamados "psicose sem desencadeamento" (hors déclenchement) ou "psicose com suplência", dependendo dos autores. Sabe-se igualmente que tais casos se mantêm num certo equilíbrio que pode ser desestabilizado por intervenções que obriguem um remanejamento psíquico para o qual o sujeito pode não ser capaz. Tal impasse pode transformar-se em desencadeamento de fato da psicose que se mantinha estável até o momento. Dentre os muitos casos observados no Polo Surdez, puderam-se isolar dois fatores de risco que forçam o sujeito a se reestruturar após o implante coclear: a passagem de um sistema semiótico predominantemente visual a um sistema predominantemente auditivo e a reconstrução identitária proveniente do abandono do significante "surdo" como significante representativo do sujeito.

 

Observações sobre o implante coclear no contexto francês

O implante coclear é um dispositivo de reparação auditiva eletrônico computadorizado composto de dois sistemas: 1) um sistema interno que é introduzido cirurgicamente na cóclea (ouvido interno) no qual constam uma antena e um receptor estimulador ligado às fibras remanescentes do nervo auditivo, no intuito de estimulá-las eletricamente; e 2) um sistema externo, visível, composto de um microfone direcional e de um descodificador que transforma os sons recebidos em sinais que serão transmitidos à parte interna responsável pelos sinais recebidos no nervo. Atualmente, todos os modelos de implante coclear utilizam uma tecnologia eletromagnética para a transmissão transcutânea dos sinais e uma tecnologia multieletrodos (16 a 24, de acordo com o modelo) de estimulação do nervo. Esta última permite uma melhora sensível da qualidade dos sons percebidos, ainda que bem distinta da audição dita normal, que conta com as mais de 40.000 fibras de um nervo auditivo intacto.

O implante coclear é normalmente indicado nos casos de surdez bilateral total ou profunda (perda auditiva de mais de 90 decibéis), sobretudo em crianças apresentando surdez pré-lingual, cujo implante seria feito em idade pré-lingual igualmente; em casos de surdez infantil pós-lingual; e em casos de surdez adquirida em idade adulta. Isso se justifica pelo fato de que uma criança surda implantada em idade pré-lingual pode beneficiar-se do implante para o aprendizado da fala, enquanto o adulto que se torna surdo possui memória auditiva suficiente para retomar o uso da língua falada no período de reabilitação. Adultos apresentando surdez congenital dificilmente recebem a indicação do implante, pois se considera que quanto menos memória auditiva tem o paciente, menor será o rendimento posterior do implante, já que o reconhecimento da fala em meio aberto dificilmente será adquirido apesar da reeducação fonoaudiológica. Alguns casos de surdez severa (perda auditiva entre 70 e 90 decibéis) recebem a indicação do implante, caso o uso de próteses convencionais não apresentem nenhum resultado para a compreensão da fala1. Estudos recentes demonstram, todavia, que adultos apresentando surdez pré-lingual poderiam, contrariamente ao estabelecido anteriormente, beneficiar-se de um implante coclear para uma melhora das interações sociais, o que já representaria também uma melhora significativa da qualidade de vida, mesmo se o desempenho na compreensão das palavras e, sobretudo, das frases continue limitado (Sant'Anna, Eichner, & Guedes, 2008).

No contexto francês, a prática do implante coclear tornou-se frequente, pois ela é apoiada por outra prática, não menos polêmica, a da triagem auditiva neonatal, i.e., diagnóstico precoce de surdez que se faz ainda na maternidade dois dias depois do nascimento do bebê. O argumento para tal prática segue a mesma lógica dos critérios para o implante, pois ela permitiria a detecção da surdez numa fase pré-lingual precoce, o que favoreceria em seguida as preparações para um eventual implante futuro. A polêmica gerada em torno da triagem auditiva neonatal diz respeito ao que alguns membros da "cultura surda" não hesitaram em chamar de eugenismo, fazendo referência ao fato de que se estaria trabalhando para o desaparecimento a termo dos surdos numa busca de perfeição da espécie. A obrigatoriedade da triagem não foi ainda aprovada por lei na França por causa, justamente, da mobilização da comunidade surda contra esse procedimento. Tal ponto de vista parece limitado nas suas apreciações eugenistas, porém a sistematização da triagem e do implante mostra outro limite que questionaria diretamente a prática médica e suas próprias considerações sobre os fatores psicológicos implicados.

Para realizar um implante coclear na França, é preciso que o serviço hospitalar siga um protocolo determinado, chamado "avaliação pré-implantação", que inclui avaliação médica, fonoaudiológica e psicológica para estabelecer se o paciente tem chances concretas de reagir favoravelmente ao implante, seja do ponto de vista anatomofisiológico, seja do ponto de vista psicológico. No entanto, algumas equipes não recorrem a psicólogos ou psiquiatras para a avaliação psicológica já que a presença de um desses profissionais não é obrigatória. Cabe ainda ressaltar que o psicólogo de uma equipe hospitalar responsável pela avaliação psicológica pré-implante possui apenas um papel consultivo, cabendo à equipe de otorrinolaringologia a decisão sobre um acordo ou um veto ao implante. Assim, pode-se esperar que tal avaliação siga um viés no qual o ponto de vista prevalente seja o da reparação de uma deficiência, quando certos pacientes, apesar da demanda, podem não estar preparados para tal reparação2.

Sabendo-se que 90% dos surdos congenitais nascem em famílias de ouvintes, compreende-se facilmente a difusão do implante já que, aliado ao discurso médico reparador, conta-se igualmente com o desejo dos pais em oferecer à sua progenitura pronta reparação de uma deficiência diagnosticada. Para além dos aspectos polêmicos ligados à cultura surda e à batalha que alguns travam para que a comunidade médica deixe de vê-los como deficientes, parece necessário sublinhar a importância dos critérios pré-implantação e a desigualdade com a qual eles são aplicados nos serviços hospitalares franceses.

Obviamente, as condições não são as mesmas se o paciente em questão é uma criança ou um adulto. Normalmente, no caso dos adultos, se o paciente é capaz de sustentar sua demanda, ele pode receber um implante caso não haja contraindicações verificadas pela equipe de otorrinolaringologia. Nesses casos, as apreciações de caráter psicológico são mais flexíveis, pois parte-se do princípio de que um adulto é capaz de um nível de compreensão da situação que não se pode, por exemplo, esperar de uma criança sobretudo se ela ainda é um bebê. Desse modo, adultos apresentando surdez pós-lingual (ou mesmo pré-lingual, dependendo das equipes) podem beneficiar-se do implante coclear com menos restrições que uma criança, cujo desenvolvimento físico e psíquico está em jogo3. Nesse movimento, não é de se espantar que alguns casos psicopatológicos mais sutis passem despercebidos e que, finalmente, uma técnica que deveria trazer qualidade de vida acabe sendo a origem de distúrbios psíquicos. Nos casos de psicoses estabilizadas cujo diagnóstico é delicado, o implante coclear pode provocar um desequilíbrio identitário responsável, em alguns casos, por uma descompensação.

 

Do aprendizado de um novo sistema semiótico

De acordo com estudos diversos sobre os resultados globais do implante coclear, sem especificação de marca, o efeito da percepção da fala seria equivalente, em média, a uma melhora de 28 decibéis dos níveis auditivos (Blamey et al., 2001). No entanto, para que essa percepção se torne compreensão efetiva da fala, existe um longo caminho de reeducação a percorrer. Numerosos testemunhos trazem à tona a estranheza do primeiro contato com a audição, sobretudo para aqueles que nunca a tinham experimentado. Nos primeiros momentos, os pacientes relatam com frequência sensações sonoras indiscrimináveis e muitas vezes invasivas que podem tomar a dimensão de uma experiência traumática4.

Esse hiato experimentado entre percepção e compreensão demonstra a distinção entre a estimulação físico-fisiológica que o implante torna possível e a aquisição da linguagem oral ou o retorno a esse modo de linguagem, quer dizer, à oralização enquanto instrumento de comunicação pelo qual recebemos e enviamos mensagens. Foi sobre esse aspecto que se concentrou a maioria dos estudos cognitivos sobre o implante coclear: tratar-se-ia de determinar neurologicamente os problemas relativos à passagem de um a outro modo linguístico e de talvez encontrar meios de facilitação para essa passagem. Acusou-se assim a linguagem de sinais e os modos de linguagem não verbal em geral de atrofiar certas áreas do córtex cerebral ou de ocupar o lugar que deveria ser ocupado pela linguagem oral, o que tornaria possível uma justificativa de inspiração científica aos insucessos eventuais do desenvolvimento da linguagem oral nos pacientes implantados (Leybaert et al., 2007).

Para favorecer a linguagem oral, esses estudos, e as práticas de reeducação que se seguiram, apostaram no treino de reconhecimento e de repetição de certos fonemas, sobretudo os que causam mais problemas para o implantado: os idênticos em termos de leitura labial (b e p ou ainda g e k). A Língua falada complementada (Lpc)5 é, desse modo, usada para ajudar na identificação de sons, o que demonstra a construção essencialmente visual do mundo significativo e semiótico do surdo. Paradoxalmente, os adeptos da Lpc não a consideram como uma linguagem visual apesar do uso massivo da gestualidade manual.

Ora, no caso de pessoas surdas congenitais ou de surdez adquirida precocemente, ensinar a pronunciar uma consoante ou uma vogal equivale a pressupor que tais pessoas saibam que essas unidades são linguísticas. No entanto, tal passo não é evidente e deve-se ter em mente que um sistema semiótico oral-auditivo não faz parte do sistema ao qual está habituada uma pessoa que nunca (ou quase nunca) ouviu.

Apesar do caos sonoro inicial do qual falam alguns pacientes implantados, o mundo do surdo não é um caos significativo, mesmo para aqueles que apresentam surdez congenital. Ao contrário, pois essas pessoas constroem um sistema específico de compreensão do mundo e de comunicação/interação cuja especificidade consiste na não utilização da língua oral. Significa, evidentemente, estar excluído da grande maioria das interações sociais correntes já que elas são organizadas para e por ouvintes, baseadas assim na linguagem oral e na sua versão erudita, a linguagem escrita. Inclusive, devido à ligação entre língua falada e língua escrita, inúmeros surdos são considerados iletrados funcionais (Guarinello et al., 2009).

As pessoas surdas evoluem então num mundo de significação marcado visualmente, mesmo se não houve aprendizado da língua de sinais. Esta, sem dúvida, facilita a comunicação e as interações sociais, mas não se poderia afirmar que sem o apoio de uma linguagem de sinais sistematizada os surdos estariam numa dimensão qualquer fora da linguagem. Como para todo ser submetido à cultura humana, afirma Lévi-Strauss (1967), a linguagem está presente, os surdos são sujeitos da enunciação como qualquer outro ser de linguagem, com a diferença de estarem inseridos em um discurso predominantemente visual. Não se pode esquecer que a presença de um sujeito da linguagem ultrapassa qualquer deficiência ou inadaptação. A clínica psicanalítica com o sujeito surdo não poderia existir se não se considerasse esse aspecto essencial e infelizmente muitas vezes negligenciado. Lembre-se igualmente do que diz Ernst Cassirer e sua Filosofia das formas simbólicas que defende a ordem simbólica como uma função de "mediação pela qual um sensível é investido de um sentido" (Cassirer, 1923, p. 134), mediação entre o real e suas formas de conhecimento. Obviamente, a surdez não impede o conhecimento do mundo e a interpretação dos fatos.

Existe então a organização de um sistema semiótico próprio à surdez que se aparenta ao que descreve a "semiótica do visual". Essa linha da semiótica de filiação greimasiana não faz do canal visual uma unidade teórica definida de acordo com a utilização de um órgão sensorial, pois seria impossível isolar um tipo somente de sensação numa experiência perceptiva qualquer. Como observa Zinna, "ao invés de fundar um campo na exclusão de um sentido sobre os outros, precisar-se-ia falar de corpus visual como em um conjunto de textos onde o esquema visual é dominante" (Zinna, 2001, p. 8). Ter um domínio visual implica certo número de configurações: fundamentalmente, o texto se desenrola no espaço, obrigando o engajamento de um corpo, e esse texto se servirá das figuras da iconicidade.

A relação entre iconicidade e linguagem de sinais não data de hoje e foi observada sobretudo pelo linguista Christian Cuxac (1993). Ele demonstra como a linguagem de sinais se constitui segundo um sistema coerente que utiliza massivamente a ilusão referencial que, por sua vez, como afirmam Greimas e Courtès, provém de um sistema semiótico de conotações sociais "subjacentes ao conjunto das semióticas" (Greimas & Courtès, 1993, p. 178). No entanto, não se poderia reduzir a organização semiótica de um surdo ao que somente a língua de sinais pudesse oferecer. Tendo ou não o conhecimento da linguagem de sinais, o surdo terá balizado seu terreno semiótico de tal forma que o esquema visual predominará.

Independentemente do aprendizado de uma língua de sinais, o que é preciso sublinhar é a passagem, com o implante coclear, de um sistema semiótico em que prima a iconicidade para outro em que toda e qualquer ilusão referencial é banida pela estrutura do signo linguístico. Este, como o define a linguística saussuriana, é uma unidade composta da reunião de um significante e de um significado enquanto forma. Sabe-se que Saussure define como sendo arbitrária a relação entres essas unidades do signo linguístico. Isso significa que a imagem acústica (no caso do signo falado) de uma palavra como "gato" (ga-to) não possui nenhuma relação de determinação com o bicho pequeno de quatro patas que mia6. O problema de adaptação que surge pode ser assim concebido uma vez que se estabelece que uma das características principais das semióticas visuais é a de se construir em torno de ilusões referenciais.

Por outro lado, se, em um sistema semiótico preciso, uma forma de expressão que não existe faz irrupção, o sujeito que a percebe não poderá saber do que se trata já que ela não estará acompanhada de uma forma de conteúdo7. Ela não será assim investida nem de uma significação dada nem de uma significação suposta. Essa forma desconhecida que se apresenta ao sujeito, no caso do surdo implantado, é o som. Os ouvintes são bombardeados de sons significativos desde o nascimento, de forma que o caos sonoro não é uma realidade de que possam ter experiência, mesmo em presença de uma língua estrangeira. O poder significativo do som, sobretudo do fonema, é tão familiar aos ouvintes que, se eles ignoram o sentido de uma palavra, eles lhe atribuem ainda assim uma significação.

Nas suas Seis lições sobre o som e o sentido, Jakobson (1976) trata dessa significação suposta do som, do vocábulo e das possibilidades infinitas de sentido que ele comporta. Os sons terão uma função primordial na língua falada que será a de marcar uma significação. Em outras palavras, como afirma Jakobson, "desde que certo grupo de fonemas é concebido como palavra, ele busca uma significação". Seria assim uma "unidade semântica em potencial" ou ainda uma unidade semântica portadora da "significação zero". Ora, matematicamente falando, o número zero não é igual à inexistência de qualquer valor, já que ele representa o valor nulo do conjunto vazio (Jakobson, 1976, p. 71).

No que tange à experiência da pessoa surda implantada, cuja organização semiótica passa pela predominância visual, poder-se-ia questionar a pertinência da significação zero dos sons. Se o som é uma experiência radicalmente nova, desconhecida, ela é inesperada, mesmo nos casos nos quais o paciente deseja escutar já que, rigorosamente, ele não sabe do que se trata. Ora, um paciente implantado pode nunca ter tido uma experiência sonora se considerarmos que mesmo adultos surdos pré-linguais podem beneficiar-se do implante; no entanto, ele continua capaz de reunir na sua percepção do mundo seus outros sentidos, compondo um sistema predominantemente visual. Após o implante, esse paciente terá de incluir nessa cinestesia particular um potencial significativo a mais que será aquele representado pelo som. Ainda assim ele precisará aprender que o som serve para significar e que a relação que ele mantém com a significação é profundamente arbitrária.

O potencial psicopatológico do som enquanto unidade significativa aparece igualmente quando o som retira do surdo o pilar que sustentava a construção imaginária de sua identidade. Entrar no mundo da comunicação oral e utilizar para tanto a relação que travam entre si o som e o sentido pode, em alguns casos de psicose, desestabilizar o ego de suplência sobre o qual se apoiaria o sujeito. Isso quer dizer que a própria deficiência pode servir de suporte para a suplência, suporte que seria arrancado com uma intervenção médica feita, em princípio, para o bem do sujeito.

 

Da perda de uma identidade e sua relação com o desencadeamento da psicose

Com a proposta da noção de estrutura clínica, a psicanálise dissocia o diagnóstico psicológico da manifestação mórbida visível que, na psicose, costuma-se chamar de "fenômenos elementares", cujos exemplos mais frequentes são as alucinações e as ideias delirantes. Desde Freud, com as suas noções de fixação e de regressão da libido, há uma tentativa de se separar o fenômeno da estrutura8, o que se torna mais claro com a leitura lacaniana da psicanálise, segundo a qual todo e qualquer diagnóstico deve ser guiado pela estrutura clínica e não somente pela sua manifestação. Observa-se que a tendência de uma prática psiquiátrica baseada em fenômenos visíveis, em "provas", situa-se assim nos antípodas da prática psicanalítica e compreende-se, no mesmo movimento, a razão do repúdio da comunidade psicanalítica à prática do diagnóstico baseado em organogramas de manuais elaborados para esse fim. Ora, alucinações, delírios e outras manifestações mórbidas do gênero não podem ser tomados como específicos da psicose, já que muitos quadros de neurose apresentam os mesmos tipos de fenômenos sem que por isso seja necessário evocar o diagnóstico de psicose9.

A estrutura não é dependente do fenômeno; ao contrário, o fenômeno responde a uma lógica que é determinada pela organização estrutural que ele vem manifestar. Resta compreender como estruturas distintas se constituem e, a partir daí, como a psicanálise poderá propor um tipo inovador de diagnóstico diferencial que será fundamental para a direção da cura enquanto processo engajando um sujeito e não somente como um paliativo sintomático.

Para Lacan, o grande divisor de águas entre as estruturas clínicas será o significante do Nome-do-Pai e a relação que o sujeito conseguirá, ou não, estabelecer com ele. No caso da neurose, a presença do significante do Nome-do-Pai marca a castração operada pela metáfora paterna, ou seja, o Nome-do-Pai veiculado pelo único instrumento capaz de introduzi-lo: o discurso materno. A introdução de um terceiro elemento, separando a díade inicial representada usualmente pelo par mãe-criança, leva o sujeito ao recalque de sua condição de sujeito castrado e à construção do ideal de um Outro que escaparia a essa lei, alimentando a ilusão da exceção, de um sujeito não castrado. A busca da plenitude imaginária reconhecida no Outro para si próprio marcará o percurso do sujeito da neurose que, sem achar um objeto perfeito e um fim definitivo para a sua busca, continuará insistindo no que Lacan chama de "cadeia metonímica do desejo".

A organização estrutural da psicose será bem distinta, pois, nesse caso, o significante do Nome-do-Pai é inoperante. Não há, aqui, a castração que inaugura a falta e a separação das funções estruturais de sujeito e de objeto que se realiza na separação entre o sujeito e a função materna. O psicótico seria assim aquele que permanece colado à função objetal, e é por essa razão que Lacan dirá que ele ocupará o lugar de objeto do gozo do Outro. Essa é a consequência primordial da foraclusão do Nome-do-Pai, termo jurídico que vem designar o fato de que o significante do Nome-do-Pai está fora de circuito e, não tendo entrado em cena no momento devido, não poderá mais ser de algum efeito, está prescrito para todo o sempre. O Outro para o psicótico é então um Outro absoluto, onipresente e onisciente, à imagem da mãe cujo gozo não é limitado pela função paterna. Lacan enfatiza, inclusive, que a importância da função paterna não seria localizada tão somente na castração do sujeito, mas também no fato de que ela implica um Outro materno castrado, desejante, e isso liberaria o sujeito para a construção do seu próprio percurso.

Se a psicose depende da foraclusão do Nome-do-Pai, então essa patologia não pode ser tomada como evolutiva, degenerativa ou outra coisa do gênero. Ela responde a um agenciamento estrutural que implica certas consequências como a identificação maciça do psicótico ao lugar de objeto do gozo do Outro e, igualmente, a falta de um corpo próprio unificado que, por conseguinte, desemboca na esquiva da escolha de uma identidade sexual. Essa identidade refere-se a muito mais do que uma simples indefinição relativa à escolha de parceiros sexuais ou do que as ditas tendências homossexuais na psicose. Ela traz consigo uma forma imaginária de apresentação do sujeito em relação ao outro, participando assim decisivamente do laço social; é o que Lacan denomina como significação fálica. Incapaz de escolher e de afirmar uma imagem que o constitua como um eu (moi) consistente e o represente para o outro, o psicótico se deixa levar por uma infinidade de imagens oferecidas pelo Outro num espelho que o engole.

Tiram-se, a partir desse ponto, duas conclusões: 1) a psicose não é uma patologia que surge, ela é uma condição numa organização estrutural determinada; assim, um indivíduo não se torna psicótico, ele o é, e aqui se introduz a noção de desencadeamento da psicose; 2) o envelope corporal despedaçado do psicótico não permite uma construção imaginária e subjetiva estável, deixando-o suscetível a qualquer tipo de colagem imaginária que possa lhe dar um simulacro de identidade (inclusive sexual) ao mesmo tempo que o sufoca enquanto sujeito.

A noção de desencadeamento é uma noção chave para a teoria psicanalítica da psicose. Ela condensa a concepção de uma estrutura e a pressuposição de um estado relativamente estável desta que perdura até o instante em que a descompensação acontece. Lacan define esse instante como o resultado do encontro entre a falta da significação fálica (Φ0) com o Um-Pai, "um pai real, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito, mas Um pai", que, em posição terceira, tentaria romper com o par imaginário a-a' solicitando o Nome-do-Pai, foracluído, na posição do Outro (Lacan, 1958/1998, p. 584). Ora, o psicótico será incapaz de "tomar a palavra" enquanto sujeito face ao Outro, e forçá-lo a fazê-lo pode precipitá-lo num quadro patológico evidente (Lacan, 1985, p. 285).

O par a-a' é o que pode fornecer ao psicótico o suporte imaginário para que as "muletas imaginárias" sejam capazes de o sustentar numa identificação maciça e não-"dialetizável" que, apesar de o sufocar enquanto sujeito, tornam possível uma forma, ainda que rudimentar, de laço social (Lacan, 1985, p. 231). Esse traço identitário age como um semblante do Nome-do-Pai, algo que estabiliza o sujeito no seu gozo e que o protege da invasão incontrolável do Outro. O equilíbrio da psicose não desencadeada seria mantido pelo que a psicanálise nomeia de suplência10. Ela seria, como sugere Hoffmann, constitutiva de qualquer psicose já que sempre existirá um momento anterior à descompensação (Hoffmann, 2007). Assim, a suplência é o que está presente quando não há desencadeamento, o que pode durar por toda uma existência, fazendo por vezes que a psicose nunca seja diagnosticada. O desencadeamento da psicose, dependendo do encontro com o Um-Pai, decorre de um encontro infeliz que desestabilizaria o equilíbrio até então mantido. Esse equilíbrio frágil se assenta na relação dual com o duplo imaginário, mantendo sempre presente o eixo eu-outro do estádio do espelho. No entanto, como ressalva Quinet (2000, p. 19), essas bengalas imaginárias não conseguem dar ao psicótico apoio suficiente "quando ele tropeça no buraco da significação ausente".

O que se pôde observar no caso de alguns pacientes psicóticos surdos encontrados no Polo Surdez? Esses sujeitos estavam petrificados sob a égide do significante "surdo" e o fato de perdê-lo fez com que tropeçassem e caíssem no abismo da psicose. Por exemplo, J., que chegou ao ambulatório com 18 anos, apresentava uma surdez média congenital e perdeu definitivamente a audição na infância. Ela recebeu um implante coclear aos 14 anos após decisão dos pais, na esperança de curar certos problemas comportamentais da filha que eles ligavam à surdez. J. diz sempre ter ouvido vozes, mas ela guardou em segredo essa informação, sem a ter compartilhado com os pais ou com a equipe médica que nunca percebeu o quadro psicótico antes do desencadeamento. Ela afirma que, em seguida, foi "deixada de lado" pelos amigos, tendo se tornado agressiva, bem como o conteúdo das vozes que continuava a ouvir. "Ser ouvinte veio rápido demais", afirma, "eu não sou uma verdadeira ouvinte, pareço mas não sou". Para compreender tal escolha identitária, e como ela pode de fato pesar na vida de uma pessoa surda, é necessária uma breve incursão no que se chama, de forma corrente, a "cultura surda".

A primeira observação que se faz, e a mais evidente, é a que diz respeito à rejeição radical, por parte dos surdos, do estatuto de deficiente físico. A surdez é assim considerada como uma característica que definiria uma minoria social e não um grupo de deficientes ou incapacitados. É o que se pode verificar na introdução de um artigo de Nídia Limeira de Sá, presente em seu livro Cultura, poder e educação dos surdos: "A despeito de os surdos não terem dúvidas quanto a suas identidades culturalmente distintas, as pessoas não-surdas têm muita dificuldade em admitir que os surdos têm processos culturais específicos, então, muitos continuam a tratar os surdos apenas como um grupo de deficientes ou incapacitados" (Sá, 2006, p. 01). Falar de minoria social, contrariamente à deficiência física, significa considerar o grupo social dos surdos como se consideram negros, índios ou homossexuais. Para reforçar o caráter social da surdez, uma diferença de grafia foi proposta, inicialmente para denominar os surdos que utilizavam correntemente a língua de sinais do seu país. Assim, surdos incluídos nesse caso, ou seja, fazendo parte de uma comunidade social e linguística, seriam designados Surdos, com a primeira letra maiúscula. Quando se tratasse apenas de designar os portadores de uma deficiência fisiológica ou anatômica impedindo em todo ou em parte a audição, usar-se-ia surdos, com a inicial minúscula. Essa iniciativa partiu da Universidade de Gallaudet, em Washington, instituição de ensino fundada em 1864 e destinada aos portadores de deficiência auditiva. Como observa Delaporte, tal astúcia foi logo apoderada pelas elites surdas, que, reivindicando a diferença entre deficientes físicos e surdos, encontrou nessa distinção gráfica uma forma de significar e nomear o sujeito identificado a uma organização cultural precisa (Delaporte, 2002).

Existe uma diferença capital entre as representações sociais e subjetivas ligadas a uma deficiência e as representações ligadas à identificação comunitária que sedimenta uma minoria social. A deficiência está relacionada a uma falha, um defeito, algo que pode eventualmente ser corrigido ou tratado, enquanto a minoria se refere à tolerância (ou à falta dela) partindo do grupo majoritário. Obviamente, a deficiência pode igualmente suscitar rejeição, já que ela implica uma diferença, mas possui um aspecto médico que não está presente nas minorias sociais. É por essa razão que, por exemplo, para grande parte da comunidade médica, a surdez é considerada como uma deficiência e não somente como uma minoria socialmente constituída.

Sem entrar no debate e sem tomar um partido quanto à classificação da surdez como deficiência ou como minoria social, tal concepção médica desemboca no que André Meynard chama de "medicalização da surdez" (Meynard, 2010). Ou seja, estaríamos em face a uma postura que consideraria a surdez como tão somente uma deficiência a ser corrigida, sem levar em conta outros fatores implicados, como, por exemplo, o fato de que o sujeito surdo pode se sentir parte de um grupo social cujo fundamento seria justamente a surdez e os aspectos que a circundam, como, por exemplo, a utilização da língua de sinais. A identificação entre membros de um grupo social determinado, ainda que se apoie sobre uma deficiência física existente, contribui para a formação da identidade de um sujeito. Logo, ela ultrapassa amplamente a deficiência em si. Desse modo, se se parte do ponto já polêmico de considerar a surdez como deficiência, dever-se-ia colocar a questão da identidade do sujeito, de seu desejo quanto a uma mudança eventual nos esquemas identitários sobre os quais ele repousa e de suas condições para elaborar tais mudanças para que elas possam se tornar um ganho efetivo em sua qualidade de vida e não uma dificuldade a mais no seu percurso11.

Aqui se toca no ponto sensível da questão que se tenta abordar neste artigo. A relação médico-paciente foi progressivamente invadida pelo discurso técnico-científico, que foi substituindo o sujeito por um organismo fragmentado escrutado por máquinas. Sendo assim, a medicina contemporânea afastou-se dos problemas subjetivos para se concentrar nas deficiências orgânicas e no que as técnicas poderiam propor no intuito de corrigi-las. Nada surpreendente que, diante de uma deficiência como a surdez, a resposta mais rápida seja aquela que traga como solução possível a reparação da dita deficiência. No entanto, como foi dito acima, nem todos os sujeitos serão aptos para enfrentar mudanças radicais em suas bases de identificação, muitos sofrerão com essa tarefa e precisarão de muito mais apoio psicológico do que os ideais otimistas da reparação poderiam prever (Gorog et al., 2009).

Ora, o surdo é um sujeito como outro, por isso ele também pode apresentar quadros psicopatológicos mais sérios. Assim, a situação torna-se mais dramática se o paciente em questão apresentar um quadro psicopatológico grave, como é o caso da psicose. Como se viu, a estrutura psicótica pode manifestar-se por fenômenos mais ou menos típicos de descompensação, mas pode também se estabilizar e não apresentar tais fenômenos. É então da responsabilidade do clínico perceber a estrutura para além de seus fenômenos observáveis. Disso depende a direção da cura em todos os sentidos que esta possa tomar.

Evidentemente, existe uma questão ética de importância maior que paira sobre o problema dos implantes cocleares realizados em pacientes surdos psicóticos. A ética de um profissional que se considere representante verdadeiro de um saber e que se invista da função de aplicação desse mesmo saber, sem considerar os parâmetros subjetivos implicados nas situações particulares, não é em nenhum caso a mesma de outro que parta do ponto contrário, considerando antes de tudo a situação subjetiva que, assim definida, só poderá ser particular. No caso de uma psicose, com qual autoridade poderíamos decidir, no lugar de um paciente, que a solução deste não é a adequada em nome de uma suposta norma? Como se poderia sustentar uma clínica que, em nome de um organismo idealizado, desconsidera o sujeito de quem ela deveria tratar? Então, não se poderia, de forma precipitada, afirmar com veemência que a solução para todo e qualquer sujeito surdo seria a correção do problema. A primeira coisa a fazer seria, justamente, verificar se a surdez, caso a caso, é mesmo um problema ou se é uma parte da solução. A subjetivação do implante será assim tributária da posição subjetiva, como será toda e qualquer experiência do sujeito.

Para alguns pacientes psicóticos que se encontram no Polo Surdez do CHU Sainte-Anne, a surdez era claramente uma base imaginária favorecedora de uma identidade que, por sua vez, contribuía para a existência de um laço social determinado que se desfez com a implantação. Viu-se brevemente como a cultura surda pode criar o espaço necessário para que uma identificação massiva se faça. Observa-se que tal identificação pode ser o apoio imaginário que oferece ao psicótico uma saída estabilizadora, uma suplência à foraclusão do Nome-do-Pai, suplência do simbólico pelo imaginário. Sendo assim, é absolutamente necessário ao clínico, nesse contexto, trabalhar com um referencial teórico que possibilite uma avaliação diagnóstica para além dos fenômenos observáveis, para que posições subjetivas particulares como essas possam ser detectadas e que se evitem consequências catastróficas para o sujeito, apesar de se ter aproximado do ideal de um organismo perfeito.

 

Notas

1 O National Institutes of Health Consensus Development Conference Statement de 1995 aconselha a implantação nos surdos severos que tiveram um índice de reconhecimento de frases faladas menor do que 30%, mesmo auxiliados por aparelhos. Cf.: http://consensus.nih.gov/1995/1995CochlearImplants100html.htm. Esses critérios são seguidos tanto no Brasil quanto na França (Bento, Sanchez, & Neto, 1997).

2 Como exemplo, pode-se citar o sítio internet do "Centre d'information sur la surdité et l'implant cochléaire" que publicou um documento informativo de divulgação no qual se vê declarado que a avaliação psicológica pré-implantação pode não ser realizada por um psicólogo ou psiquiatra mas por um profissional da equipe de otorrinolaringologia. Ainda, a revista francesa especializada em fonoaudiologia Ortho-Magazine publicou um número dedicado ao implante coclear em 2007 no qual, entre outras coisas, apoia-se massivamente a extensão dos critérios de indicação do implante (Dumont, 2007).

3 Pode-se verificar tal prática na seguinte passagem: "No que toca às entrevistas [com adultos], elas são na maioria das vezes realizadas pela equipe de fonoaudiologia. O psicólogo intervém mais raramente do que no caso da criança; algumas vezes vários membros da equipe procedem aos interrogatórios". Os autores do relatório não consultam um psicólogo para a avaliação psicológica pré-implantação, esta sendo realizada pelo fonoaudiólogo (Osta & Gahide, 2010).

4 Testemunhos como o de L., adulta surda congenital implantada com a idade de 34 anos em um grande hospital parisiense são frequentes. Seu desejo de ter um implante foi concomitante ao nascimento de seu filho, ouvinte. Ela dizia querer ouvir seu filho chamá-la de "mamãe". No entanto, a experiência do implante foi traumática, a ponto de L. pedir para que desligassem o aparelho externo e ela somente o coloca em ocasiões que considera especiais. Ela diz: "O implante [...] foi necessário aprendermos a conviver, eu e ele. Precisava iniciar o implante, isso se faz por computador, mais é demorado, demorou 45 minutos. Só depois é que poderíamos começar [...]. Mas o que queria dizer que podíamos começar? Começar o quê? Então eles ligaram o implante, foi uma gritaria na minha cabeça. Eu comecei a chorar, eu estava aterrorizada, eu chorava. O médico disse imediatamente, 'tudo bem, tudo bem, vamos parar' e eles desligaram. Que alívio quando eles o desligaram... Eu não estava pronta pra isso, eu não estava pronta".

5 A "língua falada complementada" (Langue Parlée Completée - Lpc) é um meio gestual utilizado pelos educadores oralistas para apoiar a compreensão da fala caso a leitura labial não seja possível. Trata-se do que no Brasil se chama "língua falada sinalizada", que não é o mesmo que a língua de sinais.

6 Lembre-se que, para Saussure, a característica fundamental da linguagem residiria na oposição e na diferença e não em uma unidade significativa que poderia ser produzida. Foi Saussure mesmo quem explicitou a importância das oposições para a construção do sentido (Saussure, 1972).

7 Forma da expressão e forma do conteúdo são definições propostas pelo linguista dinamarquês Hjelmslev no intuito de dar mais precisão aos termos significante e significado, respectivamente. Sua contribuição foi capital para a linguística estrutural pois reforça o caráter formal da linguagem (Hjelmslev, 1971).

8 Lembre-se do que já dizia Freud em 1933 em sua conferência intitulada "A dissecção da personalidade psíquica": "achamo-nos familiarizados com a noção de que a patologia, na medida em que aumenta e torna mais grosseiro, pode chamar a atenção para condições normais que de outra maneira não perceberíamos. Ali onde ela nos mostra uma ruptura ou uma fenda pode haver normalmente uma articulação. Se lançarmos um cristal no chão ele se quebra, mas não arbitrariamente; ele se parte conforme suas linhas de separação em fragmentos cuja delimitação, embora invisível, é predeterminada pela estrutura do cristal." (Freud, 1933/2010, p. 194).

9 Jean-Claude Maleval é o autor de um longo trabalho clínico sobre as ditas loucuras histéricas [folies histériques], no qual ele discute o fato de que a presença de delírios e alucinações não seriam necessariamente um critério para o diagnóstico de psicose. Sendo assim, mesmo diante de tais manifestações, o diagnóstico de neurose histérica poderia ser cogitado no casos discutidos por ele. Maleval afirma então: "não pensamos que seja preciso, como gostariam alguns, de reservar esse termo [delírio] a manifestações psicóticas [...] por que não se poderia então evocar o delírio da histérica? Além do mais, Freud, Breuer e os grandes clínicos franceses não hesitavam em fazê-lo" (Maleval, 1991, p. 66).

10 Lacan utiliza a expressão "compensação" pelo sinthoma "da carência paterna" (Lacan, 2005, p. 94).

11 R. frequenta o Polo Surdez. Ela é uma senhora de 78 anos, surda pós-lingual, que recebeu um implante coclear quando tinha 68 anos com o objetivo de melhorar sua percepção de sinais de perigo. A percepção dos sons, diz, "não mudou grande coisa na sua vida", mas permite que ela ouça "barulhos" que ela pode "interpretar" sob um modo delirante. Assim ela compreende a mensagem dizendo: "Irene quer me matar". Ela comenta: "eu vivi com alguém e agora é a namorada dele que quer me matar... Ela vivia no prédio, eu reconheço a voz dela". Até então, R. Não tinha nenhuma história psiquiátrica, seu desencadeamento sendo assim tardio e pós-implante.

 

Referências

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Recebido em 15 de março de 2012
Aceito para publicação em 24 de agosto de 2012

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