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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.26 no.2 Rio de Janeiro dez. 2014

 

Editorial

 

 

Este número da Revista Psicologia Clínica traz discussões sobre algumas psicoterapias e sobre problemáticas da infância em seus mais diversos aspectos. Composto por 12 artigos divididos em duas seções, uma temática e outra livre, o volume 26.2 traz também contribuições de dois autores internacionais, como vimos fazendo nos últimos números.

Abrindo a seção temática e envolvendo a discussão sobre intervenções na infância, Paula Lampé Figueira e Luciana Vieira Caliman assinam o artigo Considerações sobre os movimentos de medicalização da vida, no qual realizam uma análise da relação entre os saberes biomédico e pedagógico na construção da concepção de infância normal/anormal. Nas duas últimas décadas, o investimento em pesquisas que investigam o funcionamento cerebral tem ampliado significativamente o conhecimento cientifico das interações entre o físico e o psicológico e sustentado fortemente a cultura somática. Nesse processo, diagnósticos psiquiátricos se tornaram dispositivos importantes na explicação e intervenção dos processos de escolarização considerados problemáticos. No percurso teórico investigado, destaca-se como a combinação entre as ciências biomédicas e a educação marcou e tem marcado as práticas de intervenção sobre os problemas enfrentados pelas crianças ao ingressarem na escola.

A seguir, mais especificamente sobre a formação de psicoterapeutas de TCC, o artigo Instrumento de apoio para a primeira entrevista em psicoterapia cognitivo-comportamental, de Sheila Giardini Murta e Sheila Giovana Morais Rocha, apresenta um instrumento para uso por estagiários de Psicoterapia Cognitivo-Comportamental na primeira sessão individual. O instrumento é apresentado na forma de uma lista de checagem, contendo aspectos a serem abordados no decorrer da sessão, além de questões abertas sobre a vivência emocional e autoavaliação do desempenho na sessão. Também são discutidos achados de pesquisa em psicoterapia que fundamentam o instrumento e sugeridos estudos para avaliação de seu potencial didático na formação de psicoterapeutas.

Também versando sobre psicoterapia, mas com um viés psicanalítico, o artigo Reflexões sobre holding e sustentação como gestos psicoterapêuticos, de Clarissa Medeiros e Tania Maria José Aiello-Vaisberg, se insere em um conjunto de pesquisas que indicam que mudanças clínicas significativas, consistentes e duradouras podem ser alcançadas quando o paciente pode usufruir de uma experiência emocional de sustentação. O texto objetiva contribuir para uma compreensão mais profunda e detalhada deste delicado modo de ação psicoterapêutica, abordando-o à luz de dois fenômenos: o de experiência completa e o da oferta do tempo. Articulado ao redor de um estudo de caso, apresentado sob forma de narrativa transferencial e reconsiderado no contexto de interlocução com o pensamento de Winnicott, o artigo permite concluir que este tipo de trabalho clínico não se funda no domínio da técnica e sim no cultivo, por parte do terapeuta, de um posicionamento existencial de reconhecimento das necessidades do outro, vale dizer, num registro ético.

Também com referencial psicanalítico, mas retomando a questão das problemáticas da infância, o artigo seguinte, A criança como sujeito e como objeto entre duas formas de investigação do abuso sexual, de Luciana Piza e Sonia Alberti, aborda o tratamento que vem sendo conferido ao tema do abuso sexual pela sociedade contemporânea e propõe uma contraposição a partir da teoria psicanalítica, especialmente no que se refere à sexualidade infantil. Partindo do princípio de que a criança é sujeito desejante, portanto sujeito de suas escolhas, conscientes ou inconscientes, as autoras interrogam a atual tendência à sua objetalização no âmbito jurídico, psicológico e, até mesmo, em alguns textos psicanalíticos, enfatizando uma importante diferença entre estes discursos. Baseadas fundamentalmente nas obras de Freud e de Lacan, mas também nas observações de alguns psicanalistas que reafirmaram, nos últimos anos, uma posição ética da Psicanálise diante do sujeito criança, com seu desejo e suas possibilidades de gozar, as autoras posicionam-se na contramão de uma lógica moralizante, normalizadora e higienista, que a objetaliza mais ainda.

Também envolvendo a questão de abusos na infância, Giovanna Marafon, Estela Scheinvar e Maria Lívia do Nascimento, no artigo intitulado Conflitos enquadrados como bullying: categoria que aumenta tensões e impossibilita análises, debatem o enquadramento de certas relações em uma categoria nomeada bullying e sua emergência no contexto brasileiro, pensando-a como uma prática contemporânea que atravessa sobretudo a escola e que alcança outros estabelecimentos de atendimento à criança e ao adolescente como os conselhos tutelares. As autoras analisam a lógica penal inscrita nessa prática identitária, sustentada nos fundamentos do Estado de Direito, que define funções para os especialistas e alimenta a criação de leis, e concluem com a constatação do ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos: o bullying se inscreve na lógica da norma, como diz Foucault, própria das artes de julgar.

Em seguida, Nathalia T. C. Campana, Isabel C. Gomes e Rogério Lerner, no Contribuições da Clínica da Parentalidade no atendimento de um caso de obesidade infantil, discutem as contribuições que a clínica da parentalidade pode trazer para o tratamento da obesidade infantil, a partir de recortes de um caso clínico. Para tanto, apresentam o conceito de parentalidade, sua derivação clínica e questões da contemporaneidade que interferem no processo de se tornar pai e mãe. A interpretação do material clínico revelou que o comportamento de comer compulsivo da criança estava relacionado à fragilização parental, em acordo com os dados da literatura. Assim, trabalhar no contexto da clínica da parentalidade pode favorecer a melhora do sintoma na medida em que liberta a criança de um legado inenarrável e fortalece tanto o lugar subjetivo da criança quanto as funções parentais. Além disso, nos casos em que for necessário, pode contribuir para a construção de uma demanda para terapia familiar.

Retomando a discussão sobre psicoterapias, particularmente a psicanalítica, o artigo Registros de sessão terapêutica: relato, gravação ou transcrição? Considerações sobre as diferenças entre os registros, de Milena da Rosa Silva, Eduarda Duarte de Barcellos, Lívia Fração Sanchez, Denise Steibel, Paula de Paula Fernandes, Paula von Mengden Campezatto, Lisiane Geremia e Regina Pereira Klarmann, examina distintas formas de registro de sessões de psicoterapia psicanalítica, realizando um levantamento das diferenças e especificidades do registro em áudio, da transcrição e do relato pela memória. A fonte de informações é oriunda de três sessões consecutivas de um tratamento de uma jovem de 19 anos, as quais foram analisadas qualitativamente por um grupo de pesquisadores formado por psicanalista, psicólogos-psicoterapeutas e estudantes de psicologia. A principal diferença encontrada foi a existência, no relato da terapeuta, de contextualizações e sentimentos contratransferenciais que davam vivacidade ao material. A experiência de ouvir a gravação foi considerada cansativa pelos pesquisadores, porém trouxe a possibilidade de escutar o tom da voz e perceber aspectos afetivos da relação entre terapeuta e paciente. As autoras estabeleceram considerações sobre os conteúdos presentes nas transcrições e ausentes nos relatos e concluíram que a essência do material permanecia a mesma, embora ele fosse transformado pela experiência da terapeuta.

Por fim, fechando esta seção também com referencial psicanalítico, o artigo Escritas de si mesmo: os adolescentes e seus blogs, de Elisa Aires Rodrigues de Freitas e Luiz Carlos Avelino da Silva, discute a adolescência como uma etapa da construção da identidade e o papel que os diários íntimos eletrônicos vêm adquirindo nos processos de elaboração. Seu objetivo foi investigar tais vivências, descrevendo as funções que as escritas em blogs assumem na vida dos adolescentes. Foram analisados os blogs de quatro adolescentes segundo um referencial psicanalítico e concluiu-se que os blogs podem funcionar como espaço de elaboração para pensar e conhecer as experiências emocionais de modo análogo ao espaço potencial teorizado por Winnicott.

A cortina rasgada: o cinema de Alfred Hitchcock e a teoria da imagem em Sigmund Freud, de Karla Patricia Holanda Martins, Débora Passos de Oliveira e Maria Celina Lima Peixoto, abre nossa seção livre. O artigo parte da premissa de que o suspense, tal como representado na obra do cineasta Alfred Hichtcock, figurabiliza um modo de funcionamento do aparelho psíquico análogo àquele demarcado no modelo freudiano. Ao articular o cinema de Hitchcock à dimensão da imagem em Freud, as autoras evidenciam determinada autonomia do registro imagético na teoria freudiana: se a práxis psicanalítica tem na linguagem seu aporte fundamental, não se pode esquecer que a imagem também produz efeitos psíquicos, sobretudo ao exceder o registro da linguagem. Tendo isto em vista, desloca-se o ponto de vista de usar a psicanálise como instrumento teórico para pensar o cinema em direção a uma perspectiva em que a imagem fílmica pode oferecer visibilidade aos processos psíquicos conhecidos apenas pelos seus efeitos.

Na sequência, o artigo internacional INECO Frontal Screening: um instrumento para avaliar as funções executivas na Depressão, dos autores portugueses Daniela Nunes, Luís Monteiro e Emanuela Lopes, avalia as funções executivas em doentes com depressão, analisando a relação entre a gravidade da depressão e o desempenho do funcionamento executivo e verificando a sensibilidade e especificidade do INECO Frontal Screening (IFS) comparativamente com a Behavioural Assessment of Dysexecutive Syndrome (BADS). 50 participantes com depressão e 35 participantes pertencentes ao grupo de controle, de ambos os gêneros, foram avaliados através do IFS e da BADS. Os participantes com depressão apresentaram um funcionamento executivo deficitário comparativamente ao grupo de controle tanto no IFS como na BADS e o aumento da gravidade da depressão fez-se acompanhar por um maior comprometimento do funcionamento executivo. O IFS demonstrou-se tão sensível e específico quanto a BADS na detecção da disfunção executiva em doentes com depressão. Este estudo sugere que o IFS é um instrumento breve, sensível e específico para avaliar as funções executivas na depressão.

Também na área de avaliação psicológica, o artigo Subjetividade contemporânea: narcisismo e estados afetivos em um grupo de adultos jovens, de Flávia Nedeff Langaro e Silvia Pereira da Cruz Benetti, investigou características de narcisismo, depressão, ansiedade, desesperança e autoestima em 350 jovens adultos universitários. Para tanto, utilizou o Inventário de Ansiedade de Beck (BAI), a Escala de Desesperança de Beck (BHS), o Inventário de Depressão de Beck-II (BDI-II), a Escala de Rosenberg e o Inventário de Personalidade Narcisista (NPI). A análise dos dados foi realizada através de estatística descritiva e inferencial, seguidas do teste t de Student, correlações e Anova para identificar diferenças de médias entre grupos. Como resultado, obteve-se uma correlação positiva entre narcisismo e autoestima, entre ansiedade e depressão e entre depressão e desesperança. Por outro lado, encontrou-se uma correlação negativa entre ansiedade e desesperança e entre depressão e autoestima.

Fechando esta seção, o artigo internacional em língua estrangeira, Desafios de um debate entre psicanálise e neurociências sobre imagens cerebrais, de Rémy Potier, examina algumas possíveis interações entre as neurociências e psicanálise. O objetivo é especificar as particularidades da investigação psicanalítica sobre a tecnologia, especificamente a respeito de imagens do cérebro, e questionar suas premissas básicas. Levando-se em conta todos os aspectos deste procedimento médico, o autor propõe que uma abordagem interdisciplinar permite definir os limites de cada campo de saber, mantendo a singularidade das posições epistemológicas em jogo. A hipótese de um "novo inconsciente", desenvolvida por Lionel Naccache, também é discutida e testada pela experiência clínica. O autor argumenta que um diálogo entre a psicanálise e as neurociências parece especialmente frutífero se procurarmos delimitar de forma inequívoca e precisa de seu campo e seus métodos exatos.

Por fim, a resenha escrita por Jô Gondar apresenta o livro de Prado de Oliveira, O sentido da amizade em Ferenczi: uma contribuição à clínica psicanalítica.

 

Monah Winograd
Andrea Seixas Magalhães
Esther Arantes

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