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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.26 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2014

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Reflexões sobre holding e sustentação como gestos psicoterapêuticos

 

Reflections on holding and sustainment as psychotherapeutic gestures

 

Holding y sustentación como gestos psicoterapéuticos

 

 

Clarissa MedeirosI; Tania Maria José Aiello-VaisbergII

IUniversidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
IIUniversidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil

 

 


RESUMO

O presente estudo se insere em um conjunto de pesquisas que indicam que mudanças clínicas significativas, consistentes e duradouras podem ser alcançadas quando o paciente pode usufruir de uma experiência emocional de sustentação. Estabelece como objetivo contribuir para uma compreensão mais profunda e detalhada deste delicado modo de ação psicoterapêutica, abordando-o à luz de dois fenômenos: o de experiência completa e o da oferta do tempo. Articula-se, em termos metodológicos, ao redor de um estudo de caso, que é apresentado sob forma de narrativa transferencial e reconsiderado no contexto de interlocução com o pensamento de D. W. Winnicott. Esta démarche investigativa permite concluir que este tipo de trabalho clínico não se funda no domínio da técnica e sim no cultivo, por parte do terapeuta, de um posicionamento existencial de reconhecimento das necessidades do outro, vale dizer, num registro ético.

Palavras-chave: psicanálise; psicoterapia; D. W. Winnicott; intervenção; holding.


ABSTRACT

This study is part of a series of research works, which indicate that meaningful, solid and lasting clinical changes can be obtained when the patient can benefit from an emotional experience of sustainment. The study sets the aim of contributing with a deeper and more detailed understanding of this delicate sort of therapeutic action, by approaching it in the light of two phenomena: the whole experience and the offer of time. In methodological terms, the research is structured on a case study, which is presented in the form of a transferential narrative and reconsidered in the context of a dialogue with D. W. Winnicott's thought. This investigative procedure allows for the conclusion that this type of clinical work is not based on the therapist's technical mastering, but in the cultivation of an existential positioning of recognition of the other person's needs, in other words, under an ethical register.

Keywords: psychoanalysis; psychotherapy; D. W. Winnicott; intervention; holding.


RESUMEN

El presente estudio se inserta en un conjunto de pesquisas que indican que cambios clínicos significativos, consistentes y duraderos pueden alcanzarse cuando el paciente puede disfrutar de una experiencia emocional de sustentación. Establece, como objetivo, contribuir para una comprensión más profunda y detallada de este delicado modo de acción psicoterapéutica, abordándolo a la luz de dos fenómenos: el de experiencia completa y el de la oferta de tiempo. Se articula, en términos metodológicos, alrededor de un estudio de caso, que es presentado bajo la forma de narrativa transferencial y reconsiderado en el contexto de interlocución con el pensamiento de D. W. Winnicott. Esta démarche investigativa permite concluir que este tipo de trabajo clínico no se fundamenta en el dominio de la técnica sino en el cultivo, por parte del terapeuta, de un posicionamiento existencial de reconocimiento de las necesidades del otro, es decir, en un registro ético.

Palabras clave: psicoanálisis; psicoterapia; D. W. Winnicott; intervención; holding.


 

 

O holding, conceito apresentado originalmente pelo psicanalista inglês D. W. Winnicott, vem se tornando cada vez mais presente nas comunicações entre psicólogos, educadores e outros profissionais da área da saúde. O interesse por este tema cresce proporcionalmente aos desafios encontrados nas problemáticas humanas contemporâneas, sofrimentos e adoecimentos peculiares, dificilmente passíveis de alívio mediante intervenções explicativas acerca das condutas. O holding, concebido como intervenção, é visto como contrapartida a tais procedimentos clínicos explicativos voltados para insights e autoconhecimento (Aiello-Vaisberg, 2003).

Nesse contexto, propomos a presente investigação, que se articula ao redor do estudo de um caso a partir de narrativa transferencial, elaborada segundo estrita observância do método psicanalítico (Aiello-Vaisberg, Machado, Ayouch, Caron, & Boune, 2009), com o objetivo de discutir e detalhar psicanaliticamente dois aspectos do que chamaremos sustentação à continuidade de ser, gesto clínico inspirado no conceito winnicottiano de holding. Permitimo-nos usar o conceito de continuidade de ser sem restringi-lo apenas às fases iniciais do desenvolvimento emocional, referindo-nos, algumas vezes, à expressão continuidade dramática do viver diante de pacientes posicionados num registro mais amadurecido, ligado a seu percurso biográfico. Pensamos que a experiência de continuidade de ser que pode ser vivida pelo bebê que é pura sensibilidade está na base da experiência de continuidade de ser ou de continuidade dramática do viver em outros momentos da vida.

Após breve introdução sobre esse conceito e o uso do termo sustentação, apresentaremos a narrativa de experiência clínica vivida por uma de nós no contexto de um serviço público de saúde mental na cidade de São Paulo. A partir de conversas entre teoria e prática, adotando Winnicott como interlocutor privilegiado, buscamos discutir a sustentação como gesto psicoterapêutico favorecedor de mudanças clínicas significativas e duradouras, ancorado no ser e fazer do psicanalista.

 

Holding e sustentação

Ao enunciar o conceito de holding, Winnicott define-o a partir de diferentes pontos de vista. Encontramos uma primeira definição como fase do desenvolvimento emocional primitivo (Winnicott, 1960/1990), chamada de "fase de holding", correspondente ao período de cuidados com o lactente. No mesmo trabalho, há a explicação do conceito como conjunto de cuidados maternos físicos e psicológicos dispensados ao bebê humano no período logo posterior ao seu nascimento. É possível compreender também o holding como provisão ambiental suficientemente boa, o ambiente de holding, o que lança o conceito para além da figura materna e traz a noção de cuidado de modo a abranger outros fatores implicados no início da vida do bebê que não a mãe concreta: pai, avós, médicos, grupos sociais, momento histórico e político.

A tradução do termo para segurar ou sustentar guarda sua origem nos cuidados concretos com o bebê, que necessita estar fisicamente seguro, contido e psicologicamente acolhido ou sustentado para desenvolver-se de maneira satisfatória. Ao mesmo tempo, Winnicott relaciona o holding com outros conceitos fundamentais criados a partir de sua experiência clínica, tais como a noção de ilusão, continuidade de ser e integração. A sustentação física e psicológica do bebê, alcançada pela devoção sensível da mãe suficientemente boa que atende as necessidades da criança através de sua presença viva, confiável e pontual teria como consequências naturais as experiências de ilusão, continuidade de ser e o desenrolar de movimentos integrativos.

Uma breve aproximação da maneira como Winnicott apresenta o conceito que procuramos aprofundar poderia nos levar a concluir ingenuamente que o holding está relacionado ao vínculo mãe-bebê, restringindo-se, portanto, ao trabalho com crianças ou pacientes clinicamente regredidos. Ao contrário, ele próprio amplia sua ideia ao tecer a analogia entre a relação mãe-bebê e o vínculo analista-paciente em situações de análise em que o manejo de setting é a intervenção fundamental.

Uma interlocução criativa com a obra de Winnicott, reunida a experiências clínicas diferentes daquelas vividas por ele, permite admitir que o holding fundamenta um ser e fazer essencial na clínica contemporânea, não ficando restrito ao cuidado com crianças, psicóticos ou pessoas em situação de regressão à dependência. Nesse sentido, julgamos ser importante assumir algumas diferenciações em relação ao pensamento winnicottiano, respeitando o extremo valor de suas contribuições e também o espírito universitário, enquadre no qual realizamos nossas pesquisas. Ancorados num olhar psicopatológico relacional, podemos afirmar que toda e qualquer pessoa necessita sentir-se sustentada ao longo de toda sua vida, variando a forma e a intensidade desta sustentação, uma vez que a condição humana apresenta uma instabilidade jamais completamente resolvida pela maternagem suficientemente boa inicial.

A partir de experiências clínicas e estudos teóricos, pensamos que sustentar um paciente em sua continuidade de ser mantém importante relação com o fenômeno de ilusão descrito por Winnicott, assim como os fenômenos de handling e apresentação de mundo. Winnicott (1945/1982) descreve holding, handling e apresentação de mundo como fenômenos básicos de uma maternagem suficientemente boa, favorecedora da constituição do self do bebê. O holding é, neste artigo, colocado como a sustentação física e psicológica nos braços e na subjetividade materna, o que favorece a constituição do bebê como unidade; o handling é descrito como o manuseio corporal da criança nas atividades de troca, banho, favorecedor da personalização ou localização do self num corpo próprio; a apresentação de mundo seria o fenômeno responsável pela possibilidade de o bebê criar o mundo a partir de sua apresentação em pequenas doses, o que favoreceria a experiência do self num tempo e espaço compartilhados.

Para Winnicott, a adaptação suficientemente boa da mãe às necessidades do bebê favorece que a criança viva tula atirando-a no chç desfazia da espoutros jogos com ela, e um s, tais como asma e convulstelectual do paciente sobre sua cona ilusão de onipotência, isto é, o objeto lhe é apresentado no momento em que surge a necessidade de maneira o mais sintônica possível com ela. Desta forma, o bebê vive a ilusão de criar o objeto a partir de si mesmo e vai, criativamente, construindo o mundo ao seu redor e integrando aspectos de seu próprio self.

Para além do universo infantil, compreendemos que a sustentação da continuidade de ser do paciente, seja ele criança ou adulto, tenha recebido ou não o diagnóstico psicopatológico de um sofrimento dito psicótico, promove o alívio de sofrimentos e pode evitar o adoecimento emocional. Favorecido pela intervenção psicoterapêutica, o paciente sustentado mostra-se capaz de, com seu próprio potencial criativo, integrar, revisitar e inaugurar aspectos de si mesmo que se encontravam antes dissociados ou não-vividos. Assim, encontramo-nos numa relação em que um mundo passa a ser construído criativamente, sem a necessidade de explicações intelectualizadas. Mergulhamos numa intensa experiência emocional com o paciente, capaz de despertar contratransferencialmente sentimentos que vão do ódio à comoção. Manter-se presente, vivo e real é a principal tarefa do analista, que, a partir desta condição, é profundamente afetado pelo viver do paciente e realiza uma escuta, um gesto, uma espera sintônicos com o mundo que vai paulatinamente sendo criado pela dupla.

Para refletirmos mais profundamente sobre a sustentação como fazer inspirado no conceito de holding, mas que direcionamos para além dele, gostaríamos de apresentar uma narrativa clínica que irá iluminar dois aspectos de nossa discussão: a experiência completa e a oferta do tempo.

 

Narrativa clínica: Ágata e o dia em que não ventou

Ágata era uma senhora já bastante idosa, de origem oriental. O primeiro contato com sua história se deu através de uma ficha médica em contexto hospitalar, que solicitava avaliação psicológica e indicava ocorrência recente de um acidente vascular cerebral (AVC). Há algumas semanas, Ágata ficara internada devido a fortes dores de cabeça e vômitos que se revelaram um AVC de pouca gravidade e que não deixara sequelas motoras. A família e o neurologista, no entanto, desconfiavam de um estado confusional ou até demencial que pudesse ter sido deflagrado com o incidente.

Foi trazida pelos filhos para a consulta, mas quem entrou na sala na primeira entrevista foi uma de suas filhas. A moça diz, muito preocupada, temer que a mãe tenha enlouquecido. Há poucas semanas, Ágata havia expulsado de casa o marido com quem vivia há várias décadas, informando aos filhos que moraria sozinha a partir de então. Quando questionada sobre os motivos de tal ato, dizia apenas:

__ Porque hoje não estava ventando.

Os filhos compartilharam com o pai a falta de entendimento e o aparente absurdo daquela decisão. Não queriam que ela vivesse só, pois temiam que pudesse estar perdendo a razão. Perguntando em que poderia ajudá-los, a psicoterapeuta ouve da filha o pedido para que conversasse com Ágata e descobrisse o que havia acontecido. Seus filhos achavam que ela poderia conversar mais facilmente com uma psicóloga, pois não gostava de incomodar a família com seus problemas. Alguém precisava descobrir se Ágata estava louca.

Inicialmente, a psicóloga tem dúvidas em relação à maneira mais apropriada de intervir e quase encaminha Ágata para outro ambulatório de psicologia a fim de realizar uma avaliação neuropsicológica específica. Porém decide primeiramente receber Ágata sozinha. Muito pequena e muito tímida, ela quase desaparece na cadeira. A analista não consegue imaginar aquela pessoa como uma mulher que expulsa o marido de casa. Explica honestamente o pedido que lhe havia sido feito pela família e Ágata sorri. A psicóloga diz não esperar que ela lhe conte mais do que dissera a eles, mas que estaria disponível para qualquer coisa em que pudesse ajudá-la. Ágata pergunta:

__ Você tem tempo?

Diante da resposta afirmativa, começam longas conversas...

Ágata decide narrar a história da imigração de sua família. Fala detalhadamente do sofrimento enfrentado por ela, os pais e irmãos para se adaptarem ao novo país, à língua difícil que falamos, ao clima quente demais, ao trabalho árduo e à diferença cultural. Explica os costumes de seu país, comparando-os ao da psicóloga, narrando inúmeras situações em que sua contenção e timidez a excluíram de experiências que ela gostaria muito de ter vivido com as brasileiras. Achava lindo o Carnaval, mas nunca encontrara permissão para ir a um baile local. Lembra de ter ido à praia uma única vez com sua família de origem e arrepende-se de não ter tido a ousadia de tirar os sapatos para sentir a areia e a água do mar. A dupla segue por algumas sessões conversando sobre a imigração, enquanto os filhos da paciente esperam um posicionamento com ansiedade.

Ágata começa a contar sobre o dia em que seu noivo chegou de navio. Ela não o conhecia, mas já estava tudo arranjado. Apressa-se a explicar que não achou ruim, pois a aparência do rapaz lhe agradava. Mas a vida de casada lhe traria surpresas bem menos prazerosas. Autoritário e violento, o marido de Ágata a agredia e humilhava diariamente. As conversas passam a discorrer sobre estes sofrimentos e o temperamento sereno e resignado que a teria levado a suportar o casamento durante tantos anos. Ela acreditava que as agressões aconteciam por ciúme, uma vez que era muito procurada por outras moças do bairro buscando seus serviços de costura. Julgava que o marido talvez achasse tais condutas necessárias. Ágata parece conformada com seu destino e aprende, aos poucos, a ignorar o marido, refugiando-se em atividades culinárias que passa a descrever com cuidado. Ele a ofendia, mas ela se concentrava em cortar peixes tão fininhos que deixava de se importar. Se ele puxasse seus cabelos, ela os prendia e ia enfeitar doces minuciosamente.

Com o nascimento dos filhos, as agressões físicas cessam, mas objetos de Ágata desaparecem, os xingamentos aumentam e sua solidão e desamparo passa a ser preenchida com o cuidado esmerado das crianças. Na frente dos filhos, não era humilhada pelo marido.

Mergulhada na história de Ágata, a analista começa a vislumbrar a possibilidade de motivos muito justos para sua decisão de romper o casamento, mas ainda teria que dar à dupla mais tempo...

O crescimento das crianças tira de Ágata seu refúgio e as agressões físicas voltam a acontecer. A paciente apresenta então um encantador mundo de criação de flores, que se torna sua nova atividade de devoção. Explica detalhadamente como plantar orquídeas, descreve a estufa que gostaria de ter com rosas brancas, tão boas ouvintes. Comovida com a solidão da paciente, a psicóloga pergunta se ela jamais havia dito a alguém algo sobre sua condição. Ela afirma que conversara com a mãe no passado e que fora aconselhada a suportar docilmente os maus-tratos, pois os maridos eram assim.

A vida de Ágata segue entre roseiras, chutes, primaveras, arranhões, até a recente internação no hospital, quando passara mal. O esposo viera visitá-la algumas vezes, mas foram as filhas que se revezaram no acompanhamento diário. Ágata acreditava que seu marido não gostou nem um pouco do fato de seu neurologista ser homem e jovem. Voltando para casa, as agressões se interromperam, talvez pelo receio do marido de provocar-lhe outro mal-estar mais grave.

Um dia, na época de florescimento de algumas orquídeas raras, Ágata sai para o quintal de manhã e, para seu horror, dezenas de vasos dessas orquídeas estão quebradas e esparramadas pelo chão. Um silêncio tenso se faz entre paciente e analista e não é preciso perguntar o que houve com os vasos. Ágata, inteiramente lúcida e serena, diz:

__ Não estava ventando.

A psicóloga sente um ódio intenso pelo marido de Ágata, percebendo-se agitada. A paciente nota seu estado emocional e rapidamente pede:

__ Entenda, meus filhos não devem saber que o pai é um monstro.

A analista sente vontade de gritar e chorar, mas, conhecendo a história de Ágata, compreende e cala-se. E agora? A analista diz o que está sentindo e explica que têm um problema, pois a família está muito preocupada e precisa ser tranquilizada. Pede que Ágata esteja presente quando tiver que falar com os filhos dela e ela concorda.

No dia da primeira conversa com os filhos de Ágata, a psicóloga diz claramente que podem se tranquilizar. Frente às perguntas e dúvidas, não poderia deixar de pedir, torcendo para que a resposta deles fosse também afirmativa:

__ Vocês têm tempo?

A partir daí, outra longa conversa acontece entre a psicoterapeuta, Ágata e seus filhos, na tentativa de apresentar-lhes a lucidez da mãe, sem invadi-los com as atitudes do pai. A analista pergunta se a paciente já contara a história de sua origem à família e Ágata, por sua vez, inicia novamente a narrativa, com ainda mais detalhes. Nomes de tios, segredos de alcova, brincadeiras de criança são compartilhadas, mas nada é dito sobre o marido e pai.

A psicóloga pergunta como viam o casamento dos pais e cada um, para surpresa de Ágata, fala de sentimentos de temor pelo bem-estar da mãe e distanciamento do pai, que aprenderam a respeitar e cuidar, mas de quem pouco conseguiram aproximar-se. Acham que a mãe não era feliz, mas sentia-se segura com o marido. Percebiam não haver troca de carinhos, mas achavam que isso se devia à cultura oriental tradicional. Começam a conversar sobre o que faz os casais felizes. Os filhos casados respondem, os solteiros imaginam, Ágata opina que deve ser o amor. Quando a analista lhe pergunta se havia amor em seu casamento, ela, com ar de quem compreendeu a intenção, sorri e responde que sim, amor suficiente para preservar o marido e ela mesma de uma vida infeliz. A filha chora e diz que ela não precisa viver com o marido se não quiser, pois está velha e tem que aproveitar a vida. Ágata balança a cabeça concordando e diz que isso poderia ser bom.

A analista brinca com eles dizendo não ver loucura alguma naquela situação, apenas um casal que tinha conflitos e tentava resolvê-los de maneira a machucar o menos possível a família. No final deste percurso, os filhos articulam a possibilidade de levar a mãe a uma viagem, pois ela sempre tivera o sonho de conhecer a Amazônia ou o Pantanal. Sustentariam sua vontade de morar sozinha enquanto isto fosse possível e um deles se disponibiliza a acolher o pai em sua residência. Na despedida, Ágata entrega para a psicóloga um envelope branco e esta beija seu rosto. Dentro do envelope, pétalas de flores e um cartão escrito em outra língua, que a paciente traduz dizendo significar amizade.

Pouco mais de um ano depois, a psicóloga é procurada pela filha de Ágata, que informa sobre o falecimento da mãe e pede uma breve conversa. A analista a recebe, achando que a moça gostaria de conversar mais sobre Ágata. Mas, para sua surpresa, escuta um pedido de ajuda em função de agressões que a filha vem sofrendo de seu esposo há muito tempo, situação insustentável que, acreditava a moça, precisava ser mantida em segredo...

 

Sustentação e experiência

O processo psicoterapêutico vivido com Ágata permite pensarmos na possibilidade de ocorrência de mudanças existenciais sem que explicações interpretativas precisem ser formuladas para a paciente. Winnicott (1994, p. 376), ao comentar o trabalho de outra terapeuta, afirmou que "na psicoterapia, [...] tem-se de deixar espaço para a melhora clínica que é sólida e permanente, mas, contudo, irrelacionada com o insight". Transformações significativas foram experimentadas no vínculo terapêutico, apontando para uma experiência mutativa que dispensou estratégias de abordagem puramente intelectualizadas, apoiando-se em uma dança de sentimentos transferenciais e contratransferenciais. Podemos afirmar que o manejo desses sentimentos constituiu-se como sustentação de uma experiência completa, favorecendo a integração de aspectos fundamentais do self de Ágata.

Winnicott (1941/1982) expõe com originalidade a ideia de intervenção psicoterapêutica não-interpretativa favorecendo mudanças no posicionamento existencial de pacientes, explicitando sua crença em que o valor da terapia está na experiência e não necessariamente no conhecimento. No que chamou de observação de bebês numa situação estabelecida, tratava crianças com diferentes sintomas, tais como asma e convulsões, recebendo-as em seu consultório e proporcionando uma "lição de objeto": fazia vibrar um depressor de língua e aguardava que a criança pudesse viver uma experiência completa de relação com aquele objeto. Segundo suas observações, esta situação abrangia um período de hesitação na aproximação do objeto, uma fase de fruição, na qual a criança tomava a espátula, colocava-a na boca ou realizava outros jogos com ela, e um último momento de desinteressar-se, em que a criança se desfazia da espátula atirando-a no chão ou simplesmente passando a ignorá-la. Crianças com problemas no desenvolvimento emocional apresentavam dificuldades no fluir desta experiência. A presença cuidadosa de Winnicott ao sustentar diversas vezes este jogo na consulta pediátrica, aguardando o gesto da criança, respeitando seu ritmo com confiança em seu potencial criativo, mostrou-se intervenção mutativa capaz de favorecer o restabelecimento de um desenvolvimento saudável. Através da sustentação à continuidade de ser, vislumbramos a possibilidade de alguém viver uma experiência criada por si e que tem começo, meio e fim, o que constitui fator importante de integração do self.

Na narrativa apresentada, Ágata reencontra a própria história quando sua narrativa é ouvida por si mesma e por um outro que parece sofrer também uma transformação em seu posicionamento nas sessões, saindo de uma posição, relacionada aos objetos subjetivos, para tornar-se interlocutor, e para quem é possí possjetos subjetivos para tornar-se interlocutor com quem se troca e para quem vel intervir concretamente no desfecho da biografia de Ágata. Para criarmos ou encontrarmos sentidos possíveis na experiência clínica apresentada, pode ser útil uma aproximação maior dos sentimentos contratransferenciais despertados ao longo destes encontros. Quando afirma ter tempo e coloca-se disponível para a paciente, a analista intuitiva e sensivelmente se posicionava de modo a favorecer um espaço que, mais tarde, pareceu raro ou inédito nas experiências emocionais de Ágata: o de usar alguém. No início desta relação, a psicóloga ficava em silêncio, apenas quebrado por algumas perguntas que desejava fazer não por falta de clareza ou de dados nas histórias narradas pela paciente, mas por uma curiosidade espontânea que a deixava completamente absorvida pela biografia da paciente. Seus relatos eram tão vivos e presentes que a psicóloga chegava a conseguir imaginar ou sentir o gosto de suas comidas ou o som desafinado de uma das crianças ao tentar reproduzir uma canção na língua materna. Tinha a sensação de estar absorvida pelo mundo de Ágata e, às vezes, questionava-se por qual razão a paciente a havia eleito para contar suas histórias ao invés de se calar como havia feito com a família. Com o passar do tempo, os encontros passaram a trazer outras sensações, desta vez com matizes de estranhamento e indignação que tornavam a analista uma interlocutora afetada, mas não inteiramente mergulhada na narrativa. A psicóloga tinha uma crítica, não feita em voz alta, ao posicionamento de Ágata em seu casamento, embora compreendesse sua situação de mulher imigrante submetida a uma realidade concreta bastante impactante. A diferenciação surgia na dupla de maneira mais explícita. O posicionamento da analista se modifica nas sessões, possivelmente numa dança com os sentimentos transferenciais de Ágata. A paciente parece criar sua analista primeiramente como objeto subjetivo para, paulatinamente, permitir que esta se torne um outro, uma interlocutora. Este movimento pode ser experimentado quando há sustentação do ciclo hesitação, fruição e desprendimento, favorecendo a integração.

Partindo do princípio de que a sustentação é intervenção favorecedora de uma continuidade de ser que leva à integração, o que estaria Ágata integrando neste seu acontecer humano? A experiência clínica vivida com a paciente permite pensar que Ágata traz para os encontros a esperança de colocar em movimento uma questão fundamental em sua vida: a crueldade. As vivências de submissão, humilhação, violência teriam se iniciado com o casamento? Qual a maneira de Ágata lidar com sua condição de imigrante? Há quanto tempo a paciente estaria se submetendo a uma realidade concreta não criada por ela? Teria Ágata sentido ódio? A pessoa que se coloca diante da analista e da família com aparente serenidade e recolhimento parece buscar através de um movimento transferencial a oportunidade inédita de sair da posição de vítima sem necessariamente transformar-se em agressor. Neste contexto, é possível compreender por que delatar o comportamento do marido não faria sentido em sua história. Ágata precisava encontrar o novo, um terceiro posicionamento que lhe apresentasse a opção de não se submeter ou violentar, integrando sentimentos de amor e ódio. Curiosamente, a ação de expulsar o marido de casa não desempenha, por si só, papel integrador na história de Ágata, possivelmente pela ausência de sustentação vivida na solidão de sua recusa a continuar sendo violentada. A ação de Ágata pode vir a se transformar em gesto espontâneo ao ser compartilhada com um outro, encontrando no acolhimento a descoberta ou criação de sentidos que, apesar de já se encontrarem presentes em seu viver, precisavam ser integrados criativamente por ela como próprios e legítimos.

 

Sustentação e o tempo

Sustentar outro ser humano no tempo diz respeito a uma qualidade de vínculo que toma a experiência inter-humana uma narrativa e não uma informação. O viver autêntico é marcado por uma temporalidade que não obedece sempre a uma organização cronológica ditada pelos calendários e relógios, mas por um ritmo que demanda sincronia com o outro para que o encontro seja suficientemente bom, isto é, seja vivido como algo satisfatório, vital e pleno de sentido.

Dessa maneira, a sustentação no tempo tem íntima relação com a experiência mencionada anteriormente da espátula apresentada por Winnicott (1941/1982) aos bebês durante a consulta pediátrica. A possibilidade de viver uma experiência completa que contemple hesitação, fruição e desapego é favorecedora da constituição e do movimento dialético da integração de aspectos do self, acontecendo quando a pessoa pode vir a ser sustentada no tempo.

Sustentar na clínica implica em convidar o paciente a viver o tempo da experiência, abrindo-se sem pressa ou urgência para uma narrativa verbal e corporal ancorada na transferência. Deixar de lado a enumeração de informações ou a coleta de dados sobre o outro a fim de tirar conclusões intelectuais é fundamental para que a experiência de sustentação e cuidado possa acontecer verdadeiramente, favorecendo que, a partir da espera e da confiança do analista no potencial criativo do paciente, o passado, o presente e o vir a ser daquela pessoa possam entrar em movimento integrador, em direção a uma experiência de si como continuidade de ser. Quando sustentados no tempo, podemos viver na transferência experiências completas de hesitação, fruição e desapego, além de, gradativamente, afastarmo-nos de um olhar dissociado que busca medir, contar, enumerar informações sobre si mesmo a serem entregues e não narradas ao outro.

Nesse sentido, a apresentação de uma escuta pautada no interesse genuíno, na possibilidade de se deixar afetar e criar pela paciente e de aturar a própria ansiedade e urgência parecem constituir os alicerces da sustentação clínica. Paralelamente, é apresentado a Ágata um enquadre grupal em que ela é auxiliada a se comunicar com a família de maneira a não se submeter à angústia ou curiosidade dos filhos sobre sua intimidade. Ouvir a mãe narrar as histórias da família acaba por constituir a prova de sua lucidez. Admitir seu amor pelo marido e o desejo de separar-se dele inaugura um posicionamento ético na vida de Ágata, restituindo sua dignidade e alegria de estar com outros.

Podemos afirmar que a sustentação da experiência emocional de Ágata no tempo se constitui através da criação de um mundo de memória, compreendida aqui não como memória representacional, mental, mas como experiência corporal viva, dramática e dinâmica, que traz a oportunidade de vivenciar o já supostamente vivido com um sentido inédito e transformador. Para a paciente, narrar sua história acaba por levá-la a revisitá-la e apropriar-se de aspectos de si mesma a partir de um novo posicionamento ético que deixa de lado a violência e a submissão. Gonçalves Filho (1988) refere-se à memória como trabalho, o que lhe confere poder de transformação. Relembrar, pois, não é um processo passivo e intelectualizado em direção ao passado, mas portal que se abre e dá passagem ao homem em suas potencialidades, realizadas ou não. Para além das informações biográficas de sua história, Ágata pôde encontrar-se com seus anseios e com sua própria integridade, ocupando então um novo posicionamento existencial. A escuta atenta da narrativa da paciente abre as portas para ouvir além da história, dando voz a sua necessidade. Compreender do que Ágata necessita para sua continuidade de ser possibilita oferecer-lhe tempo e atitudes que vão ao encontro de seu movimento transferencial: de objeto subjetivo a interlocutora, sua analista, pode ser, ao mesmo tempo, destruída e preservada no momento de despedida. A experiência da paciente possui começo, meio e fim, de maneira que esta deixa de precisar da analista e dos atendimentos, podendo encerrá-los com um gesto próprio.

Compreendemos que tal mudança não está situada no campo apenas conceitual ou do pensamento, abrangendo a pessoa do psicoterapeuta em sua totalidade, afetando-o em seu existir de maneira ampla. Assim, como nos lembra Winnicott (1962/1990) ao falar sobre os objetivos do tratamento psicanalítico, é tarefa do analista manter-se vivo, bem e desperto no encontro com seu paciente, exercício crucial que não deve ser entendido de maneira ingênua. Winnicott reflete a respeito da importância da pessoa real do analista para que o processo psicoterapêutico possa ter êxito, ressaltando qualidades desse trabalho que o tornam necessariamente vinculado à autenticidade e ao interesse genuíno de quem o pratica. Nesse sentido, oferecer tempo ao paciente da maneira como propomos aqui consiste em uma doação pessoal do analista de seu tempo concreto de vida para uma outra pessoa. A sustentação não pode ser compreendida como procedimento meramente técnico resumido em um fazer bem, mas como um posicionamento do analista diante do acontecer humano que orienta seu gesto, sua escuta, sua espera e sua devoção a compreender a necessidade do outro, configurando uma clínica ancorada em bases antes éticas que técnicas. Se brincarmos com a metáfora segundo a qual a vida seria um cata-vento, cabendo aos analistas favorecerem que seus pacientes consigam girá-lo e experimentá-lo, podemos afirmar que o homem se afasta do adoecimento à medida que consegue girar o cata-vento de sua própria vida num gesto espontâneo. Ágata não estava conseguindo fazê-lo, talvez por acreditar que seu gesto e o movimento da vida necessariamente machucariam alguém.

 

Referências

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Recebido em 04 de novembro de 2012
Aceito para publicação em 07 de setembro de 2013

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