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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.27 no.2 Rio de Janeiro  2015

 

SEÇÃO LIVRE

 

O sujeito da psicanálise e o sujeito da ciência: Descartes, Freud e Lacan

 

The subject of psychoanalysis and the subject of science: Descartes, Freud and Lacan

 

El sujeto del psicoanálisis y el sujeto de la ciencia: Descartes, Freud y Lacan

 

 

Ingrid Vorsatz

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Partindo da problematização proposta por Lacan acerca do sujeito da psicanálise enquanto o correlato antinômico do sujeito da ciência moderna, procura-se destacar os elementos que constituem o cerne de sua argumentação. O sujeito da ciência emerge da démarche cartesiana conhecida como o cogito no momento em que o procedimento metodológico da dúvida encontra seu ponto de basta numa asserção insofismável: "sou". O sujeito da psicanálise, suposto ao inconsciente (das Unbewusste), inferido por Freud a propósito do elemento duvidoso do sonho, é tributário do procedimento cartesiano. A certeza é o ponto para o qual convergem os encaminhamentos de Descartes e Freud. Mas, enquanto o primeiro recua e institui Deus como garante da verdade, o fundador da psicanálise avança exortando o sujeito a se responsabilizar por aquilo que advém como injunção inconsciente. Do lado do discurso da ciência o sujeito é um elemento alheio ao plano dos enunciados que visam recobrir a totalidade do real - que, de resto, resiste a uma apreensão exaustiva. Recolhido pela psicanálise, esse elemento subtraído da ordem de razões, resto fecundo, tem como dever garantir o campo em relação ao qual se encontra subsumido, numa torção causal que faz ressaltar o estatuto ético do conceito maior (Grundbegriff) estabelecido por Freud.

Palavras-chave: psicanálise; ciência moderna; desejo; sujeito; ética.


ABSTRACT

Considering Lacan’s statement on the subject of psychoanalysis as the correlative in antinomy of subject of science, this paper discusses its major elements. The subject of science comes out due to Descartes’ demarche known as the cogito where his methodological doubt procedure founds its own limit through the assertion "I am". On the other hand, the subject of psychoanalysis, supposed to Unconscious, is inferred by Freud due to the vagueness regarding the elements which compounds dreams and attributing it to unconscious thoughts, derives from the Cartesian procedure as both are led to a point of certainty. Therefore certainty is the turning point to which Descartes’ and Freud’s formulations converge. But as the first withdraw and states God as the guarantor of truth, Freud steps forward urging the subject to take responsibility on the Unconscious injunctions. Which leads to the ethical status of the Unconscious as it depends on the subject decision to guarantee the psychoanalytical field.

Keywords: psychoanalysis; modern science; desire; subject; ethics.


RESUMEN

Examinando la proposición de Lacan que considera el sujeto del psicoanálisis como el correlato antinómico del sujeto de la ciencia, buscase destacar los elementos que constituyen el cerne de su argumentación. El sujeto de la ciencia emerge de la démarche cartesiana conocida como el cogito en el momento en lo cual la duda metódica encuentra su punto de basta: "soy". El sujeto del psicoanálisis, supuesto al inconsciente (das Unbewusste), inferido por Freud a propósito del elemento dudoso del sueño, es tributario del procedimiento cartesiano. La certidumbre es el punto hacia el cual convergen los pasos de Descartes y de Freud. Pero mientras lo primero ceja y instituye un Dios bueno y veraz garantizando la verdad, el fundador del psicoanálisis avanza exhortando el sujeto a convertirse en responsable hacia la determinación inconsciente. De acuerdo con el discurso de la ciencia, el sujeto es el elemento ajeno al plan de los enunciados, que pretende recubrir la totalidad del real. Recogido por el psicoanálisis, ese elemento sustraído del orden de razones, residuo fecundo, tiene como deber garantizar el campo hacia el cual si encuentra dependido, subvirtiendo la causalidad y resaltando lo estatuto ético del concepto fundamental (Grundbegriff) establecido por Freud.

Palabras clave: psicoanálisis; ciencia moderna; deseo; sujeto; ética.


 

 

A relação entre psicanálise e ciência é problematizada, com Lacan, a partir de um termo comum: o sujeito. Esse elemento é o ponto de convergência entre psicanálise e ciência moderna. No entanto, essa parece ser uma convergência assintótica, uma vez que se trata de correlacionar uma e outra em antinomia, pois é preciso considerar o sujeito enquanto o elemento que se define por sua exclusão interna ao campo da ciência, de acordo com as relevantes indicações fornecidas por Lacan (1965/1998).

Desde a perspectiva lacaniana, a ciência moderna é um discurso inaugurado por meio da démarche cartesiana conhecida como cogito. O sujeito da ciência faz sua entrada no mundo através da extração de uma certeza em disjunção à ordem de razões instituída pela dúvida metódica.

Apesar de Freud não ter problematizado a questão do sujeito, é em relação a esse ponto - a certeza - que Lacan faz convergir os encaminhamentos de Descartes e o de Freud, estabelecendo entre ambos uma homologia de determinação. Em relação a Descartes, a certeza é o elemento insofismável, extraído da dubitação metodológica. Quanto a Freud, é justamente em relação ao elemento impreciso, indistinto, contido no sonho - em suma, duvidoso -, que ele afirma a existência de um pensamento inconsciente.

Se, no entender de Lacan, ambos partem do fundamento do sujeito da certeza, aí cessa a homologia de determinação por ele assinalada. O passo seguinte de Descartes será instituir um Deus não enganador, garante da verdade. Em direção diametralmente oposta, Freud convocará o sujeito (e não o Eu) a tomar lugar onde "Isso era", garantindo a dimensão inconsciente enquanto instituinte de uma ordem de verdade estruturalmente parcial, uma vez que se encontra na estreita dependência deste passo ético: Wo es war, soll Ich werden (Freud, 1933 [1932]/1976a, p. 102).

 

Psicanálise e ciência

Freud aborda a relação entre ciência e psicanálise sob um ângulo próprio, consoante sua preocupação em assegurar um estatuto científico à psicanálise, sobretudo por duas razões: a primeira porque temia que esta pudesse ser considerada uma prática obscurantista pela comunidade científica de sua época; a segunda razão era evitar que fosse considerada uma Weltanschauung como o eram a religião, a magia e, em certa medida, a própria ciência. Por um lado, negava à psicanálise o estatuto de uma Weltanschauung, pois a seu modo de ver esta caracteriza uma construção totalizante que visa responder a todos os problemas da existência. Por outro lado, Freud acalentava a ideia de que a psicanálise pudesse se alocar sob a égide da Weltanschauung científica - no seu entender, naquilo que esta proporciona um conhecimento parcial dos fenômenos, e a cujas proposições ele creditava um caráter de incompletude, uma vez que se encontram sempre sujeitas à retificação. Apenas nesse sentido poderíamos atribuir a Freud certo cientificismo, posto que depositava confiança no ideal de ciência, embora não partilhasse a convicção de uma ciência ideal (Milner, 1996, p. 28-31). Com efeito, Freud afirma que:

A Weltanschauung da ciência [...] também supõe a uniformidade da explicação do universo; mas o faz apenas na qualidade de projeto, cuja realização é relegada ao futuro. [...] O progresso do trabalho científico é o mesmo que se dá numa análise. Trazemos para o trabalho as nossas esperanças, mas essas devem necessariamente ser contidas (Freud, 1933 [1932]/1976b, p. 194-211, grifo do original).

Já com Lacan a relação entre psicanálise e ciência será abordada sob um novo prisma:

A psicanálise não é uma Weltanschauung nem uma filosofia que pretende dar a chave do universo. Ela é comandada por uma visada que é historicamente definida pela elaboração da noção de sujeito. Ela coloca esta noção de maneira nova, reconduzindo o sujeito à sua dependência significante (Lacan, 1964/1988, p. 78, grifo nosso).

De acordo com Lacan, é em torno da noção de sujeito definida historicamente - a saber, por seu advento no cogito cartesiano - que as relações entre psicanálise e ciência podem ser traçadas. O sujeito é o ponto de convergência - e também de disjunção, conforme veremos adiante - entre ambas. A interrogação de Lacan parte do ponto zero da ciência moderna - que ele localiza no momento inaugural da démarche cartesiana conhecida como cogito - em relação ao qual situa o surgimento do sujeito. Ao postular o sujeito da psicanálise como síncrono do sujeito da ciência ele afirma uma aporia que, no entanto, admite que é preciso sustentar: "Dizer que o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência talvez passe por um paradoxo" (Lacan, 1965/1998, p. 873).

O sujeito da psicanálise não decorre de uma noção que se apresenta sob diferentes modos no decurso dos sucessivos desenvolvimentos conceituais internos ao campo da filosofia, sofisticando-se (ganhando novos atributos, perdendo outros tantos) a cada nova formulação. O sujeito da psicanálise também não é tributário do sujeito do conhecimento ou ainda da representação. Tampouco se trata do homem, caso em que seria o sujeito da antropologia, menos ainda do indivíduo, sujeito da sociologia. Não é em relação às ciências humanas que Lacan situa o sujeito da psicanálise, mas em relação ao advento da ciência moderna (que ele denomina "A" ciência), vale dizer, a ciência propriamente dita: "Que é impensável, por exemplo, que a psicanálise como prática, que o inconsciente, o de Freud, como descoberta, houvessem tido lugar antes do nascimento da ciência no século a que se chamou século do talento, o XVII [...]" (Lacan, 1965/1998, p. 871).

No cosmos aristotélico antigo, hierarquicamente ordenado segundo o critério de valor, não há lugar para o inconsciente e seu sujeito, pois caracteriza um mundo em que não há falta - tudo se encontra em seu devido lugar. O conhecimento da natureza (physis) é uma espécie de protociência que se ordena a partir da descrição dos fenômenos tais como eles podem ser apreendidos pelos sentidos, e a linguagem apenas descreve um mundo que é como deve ser. Koyré, historiador da ciência e da filosofia, afirma sobre o cosmos grego, concepção de mundo finito que vigorou até a alvorada da modernidade:

O Cosmo helênico, O Cosmo de Aristóteles e da Idade Média, é um mundo ordenado e finito. Ordenado no espaço, do mais baixo para o mais alto em função do valor ou da perfeição. Hierarquia perfeita, em que os próprios lugares dos seres correspondem ao grau de sua perfeição. Escala que vai da matéria para Deus. [...] Porque nesse Cosmo todas as coisas têm o seu lugar (determinado segundo o grau de valor) e estão todas animadas de uma tendência para o procurarem e nele repousarem. Descobrir essas tendências naturais é do que a física [aristotélica] se ocupa. [...] Num tal mundo, feito para si, senão completamente à sua medida, o homem encontra-se na sua morada (Koyré, 1963/1992, p. 46, grifos do original).

A modernidade introduz um descompasso na ordem cósmica fechada e hierarquizada pulverizando-a numa miríade de pontos infinitesimais, que passam então a constituir o universo tornado infinito pelo advento da ciência. Isto é, através da matematização do espaço geométrico empreendida por Descartes e também pela fundamentação - ontológica e, em seguida, metafísica - levada a cabo por ele, tornando possível o estabelecimento de um critério de verdade na ciência. Nesse espaço aberto e infinito introduzido pelo discurso científico o homem já não se encontra em sua morada, pois a própria morada desapareceu e o homem passa a desconhecer a sua medida. A ciência não dá lugar ao homem, mas ao sujeito - elemento que, por sua vez, escapa às suas malhas, vindo a ser recolhido pela psicanálise.

A ciência moderna introduz um corte nessa esfera orientada pela ideia de perfeição; por seu intermédio o sujeito se introduz no mundo. Esse corte - que advém pelo encaminhamento cartesiano conhecido como cogito - é também o modo pelo qual o sujeito surge, certeza extraída do encaminhamento da dúvida metódica (Lacan, 1964/1988, p. 38-40). A nova ciência constitui uma linguagem - a matemática - por meio da qual o real é apreendido. Embora o esforço da ciência seja o de domesticar o real - capturando-o integralmente por intermédio de seu discurso -, este resiste em função de seu caráter inassimilável (Lacan, 1964/1988, p. 57). Por sua vez, o sujeito também escapa à malha da demonstração uma vez que ele é o furo que permeia a trama dos enunciados constituídos pelo discurso científico. Esse é o caráter propriamente antinômico do sujeito em relação à ciência; não obstante, ele é tributário de seu advento. Cabe, portanto, interrogar o paradoxo.

Eis um primeiro aspecto do paradoxo: se a ciência constitui um discurso pelo qual o sujeito é passível de ser suturado, como compreender a afirmação paradoxal que diz que o sujeito da psicanálise não é outro senão o sujeito da ciência?

O segundo aspecto do paradoxo deve-se ao fato de que a ciência moderna é fundada no momento em que o cogito cartesiano é inicialmente formulado; logo, ela é tributária do desejo de Descartes, considerando que um conceito fundamental (Grundbegriff) - aquele que funda um novo campo - advém a expensas do desejo de um sujeito, de uma enunciação que constitui propriamente o conceito maior, fundador. Desse modo, o cogito poderia ser considerado como o conceito fundamental da ciência moderna. É por intermédio do cogito cartesiano que o sujeito faz sua entrada no mundo; consequentemente, sujeito e ciência são síncronos, ou seja, o cogito funda, a um só tempo, a ciência e seu sujeito. Tomando por base a proposição de Lacan, de que modo é possível compreender o fato de que Descartes funda a ciência, cuja operação, por sua vez, tende a elidir a dimensão de enunciação a que deve sua origem?

Procuraremos encaminhar as questões pertinentes ao primeiro aspecto do paradoxo, retomando primeiramente aquela que diz respeito ao momento inaugural do cogito. Por que razão Lacan localiza no interior do encaminhamento cartesiano o surgimento do sujeito? Ele não hesita em atribuir ao sujeito da psicanálise uma origem, e essa origem é propriamente cartesiana. Mas, a nosso ver, o termo "origem" não remete apenas ao momento histórico no qual o cogito cartesiano se inscreve (embora não possa ser considerado sem referência a este). Se o próprio Lacan acentua o caráter fundador do desejo na constituição de um conceito fundamental, Grundbegriff (Lacan, 1964/1988, p. 16-17), então a questão da origem pode ser legitimamente considerada por meio dessa referência: "[...] pôr em questão a origem, isto é, por qual privilégio o desejo de Freud tinha podido encontrar, no campo da experiência, a porta de entrada. [...] Retornar a essa origem é absolutamente essencial [...]." (Lacan, 1964/1988, p. 19, grifo nosso).

Lacan articula a questão da origem ao desejo de Freud, no que ele inferiu o conceito de inconsciente a partir de fenômenos triviais, marcados pelo caráter de tropeço, descompasso, desalinho em relação à consciência. Por outro lado, também situa a origem do sujeito da psicanálise não na substância pensante (res cogitans) cartesiana, mas no passo inaugural de Descartes. Assim, é em referência ao desejo de Descartes que podemos supor a origem do sujeito, pois é no momento inaugural do cogito que ele emerge enquanto tropeço em relação à ordem de razões, ponto de certeza que faz obstáculo ao encaminhamento da dúvida. O sujeito surge da démarche cartesiana conhecida como o cogito, sob a forma de uma certeza insofismável. Quanto a esse ponto, Lacan sublinha:

Com o termo sujeito - é por isso que o lembrei uma origem - não designamos o substrato vivo de que precisa o fenômeno subjetivo, nem qualquer espécie de substância, nem qualquer ser do conhecimento em sua patia, segunda ou primitiva, nem mesmo o logos que se encarnaria em alguma parte, mas o sujeito cartesiano que aparece no momento em que a dúvida se reconhece como certeza (Lacan, 1964/1988, p. 122, grifos nossos).

Vemos que o sujeito não é aquele do conhecimento - não é tributário do logos nem tampouco seu pathos -, bem como não é o vivente, menos ainda o ser, mas tem sua origem em um momento muito preciso: aquele do cogito cartesiano em que a dúvida se reconhece como certeza, formulação que aponta para a antinomia constituinte por meio da qual o sujeito faz sua emergência. Retomemos, brevemente, os termos em que o cogito é formulado.

 

O sujeito da ciência: a démarche cartesiana

Descontente com os saberes de sua época que reputava como incertos, Descartes está em busca de uma certeza sobre a qual erigir algo de sólido nas ciências. Do encaminhamento da dúvida, através do qual deita por terra tudo aquilo que lhe parecia pouco confiável, desse encaminhamento levado ao seu paroxismo advém o indubitável: ao colocar tudo em dúvida, desde a existência dos objetos do mundo até a sua representação pelo pensamento (incluindo a sua própria existência), algo se impõe em um outro registro que não o da refutação do saber: Dubito, cogito, ergo sum. No interior da dúvida, isto é, sob o seu domínio, mesmo que pense falsos pensamentos e deles possa duvidar, ao duvidar não posso duvidar que penso e que duvido, e nesse exato momento uma certeza se impõe: "sou". Da dúvida resulta impossível chegar a uma verdade, exceto por uma passagem de nível, uma decalagem por onde se introduz o sujeito no átimo em que Descartes é constrangido a concluir: "sou". Essa certeza advém em disjunção ao encaminhamento da dúvida, que havia colocado em suspenso tudo o que se encontra referido à ordem do saber, ordem propriamente ontológica ("o que é?"). O que advém sob a forma do sum não é uma resposta na ordem do ser ("sei que sou, mas não o que sou"), mas um corte com esta mesma ordem. Algo se impõe como impossível de duvidar, sobre o qual não é possível afirmar nada além do próprio sum. Lacan destaca a dimensão de certeza presente no cogito, seu caráter pontual, descontínuo, evanescente. De acordo com a sua proposição, a certeza é tributária do desejo de Descartes. Vejamos como ele conduz a sua argumentação:

O que é que procura Descartes? É a certeza. Tenho, diz ele, extremo desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso - sublinhem desejo - para ver claro - no quê? - em minhas ações, e caminhar com segurança nesta vida. Não se trata aí de coisa completamente diferente da visada do saber? [...] Se noto isto [...] é porque Descartes mesmo sublinha que sua biografia, seu encaminhamento, é essencial para a comunicação de seu método, do caminho que ele achou para a verdade (Lacan, 1964/1988, p. 210-211, grifos do original).

Em seu comentário sobre o Discurso do método, Lacan destaca que a posição (subjetiva) de Descartes é essencial, pois dela deriva o caminho (método) e o encontro com a verdade, uma certeza com valor de verdade para o sujeito Descartes. Digamos que é porque o filósofo moderno não cede de seu desejo "de distinguir o verdadeiro do falso, para caminhar com segurança nesta vida" (Descartes, 1637/2001, p. 13-14), que ele se depara com um ponto indubitável no encaminhamento do cogito. Descartes não se ocupa com o que é possível saber, mas em como agir - lembrando que "agir é arrancar da dúvida a própria certeza" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 88). Se a certeza emerge justamente da argumentação posta em marcha pela dúvida metódica, o faz em disjunção a esta; portanto pertence a registro distinto daquele da argumentação (dúvida metódica) é conduzida. Assim, podemos considerar que do corpo dos enunciados brota uma enunciação - que, como tal, remete ao sujeito - enquanto algo que fura, corta, destaca-se da visada do saber. O sum advém como um ponto indubitável, ponto de basta na metonímia da dúvida; porém, na medida que é apenas um ponto, dele não decorre um campo de saber, mas um campo que se perde, conforme afirma Lacan a propósito do campo psicanalítico (Lacan, 1964/1988, p. 122). Logo, é preciso novamente retornar ao início, ao encaminhamento da dúvida - e retomar os termos do cogito - para que a certeza torne a se apresentar de forma pontual, escandida: Dubito, cogito, ergo sum. A esse respeito, Lacan afirma: "A certeza não é, para Descartes, um momento que se possa ter por assentado uma vez que foi atravessado. É preciso que ele seja, de cada vez, por cada um, repetido. É uma ascese. [...] É, propriamente, a instauração de algo de separado" (Lacan, 1964/1988, p. 212).

Assim, o cogito caracteriza uma experiência que deve ser atravessada não de uma vez por todas, mas a cada vez, da mesma forma que seus termos devem ser retomados por cada um que se disponha a empreender o percurso. Consideramos que este "algo de separado" está relacionado à emergência do sujeito enquanto elemento que irrompe a título da pulsação temporal caraterizada pelo sum, ponto de basta na espiral da dúvida. O segundo termo da proposição ("sou") destaca-se do primeiro termo ("duvido, penso"), pois advém em disjunção e não em solução de continuidade em relação a ele. O cogito cartesiano não caracteriza um silogismo; tampouco se trata uma dedução estritamente lógica, a despeito do uso do conectivo "logo" (ergo). Do encaminhamento da dúvida algo se destaca a título de um elemento alheio ao encadeamento das razões - não obstante, dele extraído: "sou" (sum). Elemento heterogêneo à cadeia pela qual é engendrado, significante barrado, o "sou" testemunha a certeza indubitável arrancada à dúvida hiperbólica, presença do sujeito em queda. Se Lacan não hesita em atribuir a origem do sujeito da psicanálise justamente a esse momento é porque nele o sujeito comparece em sua dimensão própria: corte, furo, ruptura.

Descartes não apenas expõe a sua metodologia de trabalho, mas convoca o leitor a trilhar o caminho realizado por ele (é esse o significado de "método", etimologicamente: caminho percorrido), a partilhar uma experiência. É possível encontrar na experiência cartesiana uma ressonância com a experiência analítica, e até mesmo com o próprio encaminhamento de Freud. Isso não quer dizer que o encaminhamento do filósofo seja analítico, mas que podemos destacar nele a presença de algo que, a nosso ver, faz com que Lacan situe ali o surgimento do sujeito. Esse "algo" é o desejo pelo qual Descartes é movido, o modo pelo qual conduz o seu encaminhamento ou método, e a formulação do cogito que, em seu momento inaugural, testemunha um assentimento forçoso já que uma certeza se impõe (e não se deduz) do encaminhamento da dúvida.

Lacan percebe no encaminhamento de Descartes algo inédito: no interior do pensamento algo se destaca - por certo é pensamento, mas um pensamento sui generis, que se impõe a Descartes pelo encaminhamento da dúvida enquanto "desfilamento de um rechaço de todo saber" (Lacan, 1965/1998, p. 870). Trata-se de um pensamento tout court, sem predicado ou atributo; numa palavra, pensamento sem qualidade. A esse pensamento sem precedentes, ao sum considerado em termos de um pensamento sem qualidade, Lacan assimila o pensamento inconsciente inferido por Freud: o ponto de convergência é a certeza que se impõe (a Descartes e a Freud, respectivamente). Esta não é objeto de argumentação dubitativa, implica numa convicção íntima irrefutável. Vejamos então o que Lacan põe em destaque a propósito dessa questão:

O termo maior, com efeito, não é verdade. É Gewissheit, certeza. O encaminhamento de Freud é cartesiano - no sentido de que parte do fundamento do sujeito da certeza. Trata-se daquilo de que se pode estar certo. [...] Não estou certo, tenho dúvidas. [...] Ora - é aí que Freud enfatiza com toda a sua força -, a dúvida é o apoio de sua certeza. Ele motiva essa dúvida - há justamente ali, diz ele, signo de que há algo a preservar. [...] Mas o que quer que seja, eu insisto é em que há um ponto em que se aproximam, convergem, os dois encaminhamentos, de Descartes e de Freud. Descartes nos diz - Estou seguro, porque duvido, de que penso [...] - Por pensar, eu sou. [...] de maneira exatamente analógica, Freud, onde duvida [...] está seguro de que um pensamento está lá, pensamento que é inconsciente, o que quer dizer que se revela como ausente. É a este lugar que ele chama [...] o eu penso pelo qual vai revelar-se o sujeito. Em suma, Freud está seguro de que este pensamento está lá, completamente sozinho de todo eu sou, se assim podemos dizer, - a menos que, este é o salto, alguém pense em seu lugar (Lacan, 1964/1988, p. 38-39, grifos do original).

Assim, Lacan destaca a homologia entre os encaminhamentos de Descartes e de Freud, pois apesar de trilharem caminhos tão diversos se aproximam à medida que tocam o mesmo ponto: aquele que, partindo da dúvida, encontra a certeza. Descartes se deixa conduzir pela dúvida a mais radical e de seu interior extrai um ponto indubitável, sum; Freud, a propósito do sonho, isto é, dos elementos do texto do sonho em relação aos quais duvida - ali onde o sonho é nebuloso, impreciso, ambíguo -, não vacila: supõe a existência de um pensamento inconsciente. O ponto que Lacan destaca do encaminhamento cartesiano, "o eu penso pelo qual vai revelar-se o sujeito" (Lacan, 1964/1988, p. 39, grifo do original), é homólogo ao pensamento inconsciente postulado por Freud. Tomando a liberdade de reformular a frase de Lacan, poderíamos dizer que os termos são intercambiáveis: "o eu penso/Isso pensa pelo qual vai se revelar o sujeito". Essa é a homologia de determinação sublinhada por Lacan (1964/1988, p. 47): o sujeito se revela através da certeza, e também de um termo comum: o pensamento (sem qualidade). Retomemos então o desenvolvimento freudiano a partir do qual ele elabora a sua argumentação:

A dúvida sobre se um sonho ou alguns de seus pormenores foram corretamente relatados é mais uma vez um derivativo da censura onírica, da resistência à penetração dos pensamentos oníricos à consciência. Essa resistência não foi exaurida nem mesmo pelos deslocamentos e substituições que ocasionou; persiste sob a forma de dúvida presa ao material que foi permitido passar. Se um elemento indistinto do sonho é atacado pela dúvida, temos uma indicação segura de que estamos tratando com um derivativo comparativamente direto dos pensamentos oníricos proscritos (Freud, 1900/1972, p. 550, grifo nosso).

A dúvida é signo da resistência, que, por sua vez, é índice da presença do pensamento onírico. Ainda que soe paradoxal a ouvidos mais atentos, Freud afirma com todas as letras que o pensamento é a matéria-prima do sonho, isto é, que o inconsciente (Isso) pensa. Se o sonho pensa1 enquanto a consciência encontra-se adormecida, então algo - o inconsciente - pensa em seu lugar, à sua revelia. Freud não hesita em afirmar que há pensamento inconsciente (uma vez que o inconsciente não é desrazão, mas tem razões que a própria razão desconhece). Quanto a esse ponto, afirma de modo radical que "as mais complicadas realizações do pensamento são possíveis sem a assistência da consciência" (Freud, 1900/1972, p. 631). Assim considerado, o pensamento não é uma função psíquica tributária da consciência, isto é, pensar não constitui uma prerrogativa desta já que no sonho há pensamento; tampouco o pensamento (onírico ou inconsciente) é um pensamento menor, portanto desqualificado, mas um pensamento sem qualidade. É o ponto comum dos encaminhamentos cartesiano e freudiano, pois o cogito apenas diz que sou, sem dizer o que sou (isto é, sem emitir juízo de atribuição, mas, sim, de existência) e o pensamento onírico do sonho não é pensado por aquele que dorme e sonha, mas Isso pensa.

Considerar a existência de um pensamento inconsciente é, aparentemente, uma contradição em termos. Mas é também supor o próprio pensamento enquanto disjunto da consciência: "[...] se existe pensamento no sonho [...], então o pensamento não é o que dele diz a tradição filosófica; principalmente, ele não é um corolário da consciência de si" (Milner, 1996, p. 34). Mas se trataria do mesmo pensamento em ambos os casos? O pensamento onírico (inconsciente) não é da mesma ordem do pensamento qualificado: este é um derivado da consciência ao qual se atribui as propriedades de julgamento e suputação (Milner, 1996, p. 59). O pensamento inconsciente obedece ao funcionamento do processo primário, que não é regido pelo princípio de não contradição e tampouco está submetido à dimensão temporal cronológica. Portanto, não perece nem julga, mas institui uma verdade em relação à qual o sujeito deverá tomar lugar: "É que a uma nova verdade não podemos contentar-nos de dar lugar, porque é de assumir nosso lugar nela que se trata." (Lacan, 1957/1998, p. 525).

Quanto a esse pensamento sem qualidade, este é o elemento de disjunção entre o pensamento e a consciência, ponto de opacidade no interior do próprio pensamento. Não obstante, ainda é pensamento; portanto, o sujeito (do inconsciente) é o correlato necessário a esse pensamento não qualificado, isto é, disjunto da consciência de si. No sonho, quem pensa o pensamento inconsciente se o eu (a consciência) dorme? O sonho é pensamento, mas não há um pensador: Isso (Es) pensa - e cabe ao sujeito advir nesse lugar - relembrando a exortação freudiana Wo es war, soll Ich werden. Se o texto do sonho é impreciso e o sonhador vacila Freud, entretanto, não o faz, situando no ponto de dúvida uma certeza: Isso pensa.

Homologamente, também é possível considerar o cogito cartesiano como um pensamento sem qualidade. Descartes também extrai uma certeza - concluindo "sou" - da própria vacilação da dúvida. Esse sum também é um pensamento disjunto de todo e qualquer atributo ou qualidade, pois não diz quem sou (Descartes, homem, animal racional), nem o que sou (pensamento, sonho, ser, substância). Com efeito, se o cogito é pensamento, trata-se de um pensamento que se impõe praticamente à revelia de Descartes e pode ser formulado em termos de um pensamento sem qualidade. Apenas compreendido desse modo pode-se dele derivar um sujeito (não uma consciência) já que esse pensamento não é pensado por alguém, ou seja, por um eu (Descartes), mas o sujeito advém sob a forma de um pensamento sem qualidade, que se apresenta disjunto de (um) si mesmo ou consciência de si: sum.

Para Lacan a certeza é o denominador comum dos encaminhamentos de Freud e Descartes, e em relação a esta (a certeza) - ponto de opacidade desprovido de toda e qualquer qualidade - ele a considera de ordem ética: "[...] um momento em que ele [Freud] sente a coragem de julgar e concluir. Aí está algo que faz parte do que chamei seu testemunho ético" (Lacan, 1964/1988, p. 43). O que é afirmado a respeito de Freud também poderia ser aplicado a Descartes, pois num dado momento de seu encaminhamento, tragado pela dúvida mais radical, ele - por um salto - é levado a concluir: "sou". Assim, a nosso ver, também o cogito pode ser considerado um "testemunho ético", pois de acordo com Lacan este pode ser formulado em termos de "coragem de julgar e concluir". Entretanto, é preciso não confundir coragem com bravura, feito heroico ou proeza, mas considerar a coragem como o ato pelo qual o sujeito se desprende daquilo que o arrima (Czermak, 1991, p. 39-40). Tudo pode servir de arrimo, inclusive a dúvida; a coragem em sua dimensão ética destacada por Lacan implica em não recuar, acatando a determinação que se impõe à revelia do sujeito: não ceder do desejo (Lacan, 1959-1960/1988, p. 382-385).

Apenas a título de ilustração, é possível traçar um paralelo entre o relato com que Descartes apresenta o seu Discurso do método e a maneira de Freud conduzir a sua exposição na "Interpretação dos sonhos", que ele expõe numa carta a Fliess datada de 06 de agosto de 1899:

A coisa está planejada segundo o modelo de um passeio imaginário. No começo, a floresta escura dos autores (que não enxergam as árvores), irremediavelmente perdidos nas trilhas erradas [em Descartes, o saber escolástico e seus doutores]. Depois, uma trilha oculta pela qual conduzo o leitor [a dúvida metódica] - meu sonho exemplar com suas peculiaridades, pormenores, indiscrições e piadas de mau gosto [a descrição do método] - e então, de repente ["sou"], o planalto com seu panorama e a pergunta: em que direção você quer ir agora? (Masson, 1986, p. 366).

São enormes as diferenças entre o filósofo Descartes e Freud, o psicanalista; contudo, se há algum ponto em comum, este pode ser encontrado na posição em que ambos se sustentam, pois cada um, a seu modo, se encontra afinado com o desejo que o move. O trecho destacado na carta de Freud termina com uma pergunta2 que pode ser tomada como uma convocação ao sujeito, já que convida cada um a empreender uma escolha e trilhar seu próprio caminho.           

Abordando a questão por outro viés, vemos que o fundamento do sujeito da certeza é o corte, pois tanto em relação a Descartes quanto para Freud esta (a certeza) advém em ruptura com o encaminhamento anterior (a dúvida); logo, é corte com a dúvida, interrompendo seu fluxo argumentativo. É também por intermédio de um corte que surge um conceito fundamental (Grundbegriff), isto é, o conceito é o próprio corte que assim funda o (novo) campo. Sobre essa candente questão, vejamos o que diz Lacan:

Eu lhes falei do conceito de inconsciente, cuja verdadeira função é justamente estar em relação profunda, inicial, inaugural, com a do conceito de Unbegriff - ou de Begriff do Un original, isto é, o corte. Esse corte, eu o liguei profundamente à função do sujeito como tal. [...] É justo que pareça novo que eu tenha me referido ao sujeito, quando é do inconsciente que se trata. [...] tudo isto se passa no mesmo lugar, no lugar do sujeito que - da experiência cartesiana, reduzindo a um ponto o fundamento da certeza inaugural - tomou um valor arquimédico se é que foi esse o mesmo ponto de apoio que permitiu a direção inteiramente outra que tomou a ciência, nominalmente a partir de Newton (Lacan, 1964/1988, p. 46, grifos do original).

O conceito de Unbegriff seria a própria formulação do absurdo, pois como postular o conceito do não conceito? Entretanto, Lacan o faz a propósito do inconsciente, subvertendo o sentido da partícula privativa (Un), de negação, em função de corte. Begriff do Un original, conceito de corte: no limite do conceito brota o inconceitual enquanto conceito da falta (das Unbewusste), conferindo um estatuto ético ao conceito de inconsciente (Lacan, 1964/1988, p. 37). O conceito de Unbegriff (não conceito) seria o próprio inominável - se Lacan não tivesse a ousadia de nomeá-lo: Unbewusste, assim como seu termo homólogo, sujeito. Lacan situa o sujeito (cartesiano e também freudiano) reduzido a um ponto de certeza: sum, inconsciente. Assim, o sujeito comparece em sua função de corte - "função do sujeito como tal" (Lacan, 1964/1988, p. 46) - no interior da experiência cartesiana, aquela que Lacan situa no momento inaugural do cogito. O corte que o sujeito é constitui o ponto comum dos encaminhamentos de Freud e Descartes; mas, em seguida, os caminhos se separam.

De uma parte, Lacan radicaliza a problemática articulada por Freud através da formulação do inconsciente (das Unbewusste), fazendo do corte que esse conceito introduz (assim como a dimensão de corte com a dimensão conceitual) o próprio conceito de corte, ou ainda conceito da falta - em outras palavras, o Begriff do Un. De outra parte e tomando a direção inversa, Descartes funda a ciência moderna (inaugurada por um passo solidário ao que posteriormente foi empreendido por Freud, extraindo a certeza do encaminhamento da dúvida) e cimentando a fenda ao constituir um ponto de apoio "arquimédico", sólida fundação de seu próprio edifício: desse modo, a ruptura inaugural, emergência do sujeito, é concretizada no ser. Não obstante, Lacan afirma o ponto de convergência entre os encaminhamentos cartesiano e freudiano:

Freud afirma-o [o inconsciente] constituído, essencialmente, não pelo que a consciência pode evocar, estender, discernir, fazer sair do subliminar, mas pelo que lhe é, por essência, recusado. E como é que Freud chama isto? Com o mesmo termo com que Descartes designa o que chamei há pouco seu ponto de apoio - Gedanken, pensamentos. Há pensamentos nesse campo para além da consciência, e é impossível representar esses mesmos pensamentos de outro modo que não dentro da mesma homologia de determinação em que o sujeito do eu penso se acha em relação à articulação do eu duvido (Lacan, 1964/1988, pp. 46-47, grifo nosso).

Não é pela visada do saber que Descartes chega a uma certeza; ao contrário, uma vez o saber tendo sido atravessado pela dúvida, uma certeza irrompe em descontinuidade com seu encaminhamento. Da dúvida levada ao paroxismo cai uma certeza: o sujeito comparece na dimensão de queda que lhe é intrínseca, sum. Aí situado - ainda que pontualmente - não há como duvidar. O "sou" não é um pensamento, ou ainda, não se trata uma conclusão lógica por intermédio de um pensamento qualificado. Esse pensamento sem qualidade, pensamento puro - isto é, purificado de todo e qualquer atributo, mas não puro pensamento - é análogo àquele que Freud extrai do texto do sonho quando se depara com um ponto nebuloso, inexato, sobre o qual a dúvida incide. É também em relação a esta que Freud extrai a sua certeza, quando afirma que há ali um pensamento inconsciente, sem conteúdo (representacional), isto é, sem qualidade. Eis a homologia de determinação entre o encaminhamento de Freud e o de Descartes (Lacan, 1964/1988, p. 39).

 

O sujeito da psicanálise: correlato antinômico do sujeito da ciência

O sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência uma vez que ambos partem do mesmo fundamento: a certeza. Não se trata então de negar ao momento inaugural do cogito o estatuto de pensamento, mas de conferir-lhe a sua especificidade: pensamento sem qualidade, índice do sujeito, ponto comum entre os encaminhamentos cartesiano e freudiano. Afirma Lacan: "Não digo que Freud introduz o sujeito no mundo, pois é Descartes quem o faz. Mas direi que Freud se dirige ao sujeito para lhe dizer o seguinte, que é novo - Aqui, no campo do sonho, estás em casa. Wo es war, soll Ich werden" (Lacan, 1964/1988, p. 47, grifo do original).

Podemos então considerar que ambos os encaminhamentos - de Descartes e de Freud - partem do fundamento do sujeito da certeza, isto é, têm na certeza enquanto conceito (em seu estatuto de corte, disjunção) o seu fundamento (Grundbegriff). Mas desse momento em diante os caminhos se separam: o encaminhamento de Freud é ético porque diante da certeza ele não cede de seu desejo, fundando o inconsciente enquanto conceito fundamental do campo psicanalítico. Já Descartes recua da certeza inicial e fundadora, substancializa o sujeito e passa da certeza à verdade, invocando em relação a esta última a garantia de Deus. Dessa forma, malgrado seu testemunho inicial, o passo seguinte de Descartes é dado no sentido de promover uma espécie de apagamento da incidência do cogito enquanto corte, decalagem, ruptura, fazendo desse sujeito - digamos - in status nascendi uma substância pensante (res cogitans). O que leva Lacan a dizer:

Quando Descartes inaugura o conceito de uma certeza que se manteria por inteiro no eu penso da cogitação, [...] poder-se-ia dizer que seu erro é crer que isso é um saber. Dizer que ele sabe alguma coisa dessa certeza. Não é fazer do eu penso um simples ponto de desvanecimento. (Lacan, 1964/1988, p. 212, grifo do original).

É notável que Lacan afirme que Descartes inaugura o conceito de uma certeza. Como conceito, esta é um Grundbegriff, uma vez que cava no real. O conceito fundador de um campo é sempre salto, precipitação no vazio, sulco, marca da incidência do desejo, emergência do sujeito: assim, o conceito de certeza constitui o fundamento do sujeito. A certeza enquanto conceito opera um corte por onde se introduz o sujeito. Podemos então dizer que o sujeito é certo (no sentido de "certeiro"), vale dizer, não duvidoso - ele é o fundamento da certeza porque ele é (e não pensa); ele é onde não pensa (que é) e quando pensa (duvida) não é. Esse é o momento inaugural do encaminhamento de Descartes (Dubito, cogito, ergo sum): certeza pontual, sulco no real, surgimento do sujeito. Contudo, enquanto descontinuidade, esse passo não vai por si, e por isso precisa ser mais uma vez retomado, exigindo o sujeito em ato (ético) de modo a garantir, a posteriori, aquilo que o causa. Lacan adverte que Descartes recua de sua posição fundadora já que não dá lugar ao sujeito enquanto ponto de desvanecimento, ancorando-o no ser: "sou uma coisa que pensa, que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina e também que sente" (Descartes, 1641/2000, p. 45-46), isto é, fazendo dele uma substância pensante: res cogitans. O empreendimento de sutura do sujeito vai caracterizar a ciência moderna.

Assim, encontramos em Descartes as duas faces da ciência (e seu sujeito): aquela do corte pelo qual emerge um elemento heterogêneo à cadeia dubitativa (a ciência enquanto corte incide sobre a esfera perfeita do cosmos, pulverizando-o, e a emergência do sujeito por intermédio de uma enunciação); de outra parte, a que promove a sutura do sujeito (através da sua substancialização). Aqui se encontra o núcleo da antinomia constitutiva, pois Descartes faz surgir o sujeito, mas não lhe dá voz - porque se ocupa em dar-lhe consistência, fundamentando-o no ser; apenas Freud, por escutar o sujeito, o fará. A ciência moderna e o sujeito surgem a um só tempo, por intermédio do encaminhamento cartesiano, mas os termos se articulam em oposição recíproca: onde vige o discurso da ciência - e é este o discurso que vigora desde então até os nossos dias, são tempos modernos, os nossos -, o sujeito encontra-se ausente. Em contrapartida, o sujeito comparece nos interstícios desse discurso, ou dizendo de forma mais acurada, ele é o furo, a fenda, o corte que, por sua emergência pontual, escande o discurso da ciência. A antinomia se condensa na própria locução "sujeito da ciência": não há sujeito fora do discurso da ciência moderna (não há sujeito antes de seu advento, tampouco há um sujeito natural), assim como não há sujeito na ciência (na vigência cerrada desse discurso). Consequentemente, é legítimo propor: há o sujeito da ciência, mas não há sujeito na ciência.

Desse modo, desde a ótica da psicanálise, o campo científico poderia ser considerado como aético3, uma vez se situa fora da referência fundadora ao desejo e, portanto, à enunciação que se encontra na sua própria origem. A problemática ética não é interna ao campo da ciência. Entretanto, embora a marcha da ciência prossiga de forma implacável em seu esforço de sutura, o sujeito resiste e subsiste. Diz Lacan:

A lógica moderna [...] é, de modo inconteste, a consequência estritamente determinada de uma tentativa de suturar o sujeito da ciência e o último teorema de Gödel mostra que ela fracassa nisso, o que equivale a dizer que o sujeito em questão continua a ser o correlato da ciência, mas um correlato antinômico, já que a ciência mostra-se definida pela impossibilidade do esforço de suturá-lo (Lacan, 1965/1998, p. 875).

Com efeito, o esforço da ciência consiste na tentativa de suturar o sujeito, mas esse esforço se revela impossível de realização plena em decorrência de seu próprio estatuto, já que o sujeito se caracteriza justamente por ser o elemento que se subtrai a toda tentativa de apreensão integral. O sujeito não é ser, nem substância, nem ente, mas em virtude de sua homologia ao inconsciente é corte, escansão, fenda, rachadura no edifício da ciência.

Retomando o primeiro aspecto do paradoxo que consiste em afirmar o sujeito da psicanálise como o próprio sujeito da ciência - como afirmá-lo se o discurso da ciência pretende justamente suturar o sujeito? -, é possível propor um encaminhamento para o impasse, considerando que o paradoxo se sustenta em antinomia. Malgrado os esforços da ciência em suturá-lo o sujeito escapa dado o seu estatuto conceitual - tanto em virtude de sua homologia ao inconsciente como conceito da falta, quanto porque enquanto elemento da estrutura da linguagem ele é apenas aquilo que um significante representa para outro significante.

A linguagem científica por excelência (a matemática) também porta uma dimensão significante já que seus enunciados se formulam literalmente; sabemos que a enunciação é algo que emerge na ordem do enunciado, e não fora dela; a enunciação não é uma positividade em si mesma, mas a escansão que fura o plano do enunciado. Não há enunciação "pura" assim como não há desejo "puro" - este se articula no plano da demanda, em relação ao qual subjaz a título de ausência. A enunciação constitui, através de sua emergência, o furo, a escansão, o intervalo no nível do enunciado, fazendo com que o discurso da ciência não resulte inteiramente cerrado.

A própria história da ciência atesta que é sempre por intermédio de um sujeito causado pelo desejo - no caso, o cientista - que uma enunciação se faz pelo surgimento de um conceito, fundamental. Contudo, enquanto discurso, a ciência promove o esquecimento de seu passo fundador: "[...] a ciência, se a examinarmos de perto, não tem memória. Ela esquece as peripécias em que nasceu uma vez constituída, ou seja, uma dimensão de verdade, que é exercida em alto grau pela psicanálise" (Lacan, 1965/1998, p. 884).

A ciência despreza a verdade do desejo como se este fora um elemento inaproveitável que, por essa razão, pode ser descartado enquanto resto (Sbano, 1999). Assim, descarta o desejo, a enunciação - e, por conseguinte, também o sujeito - e preserva o saber. Em seus primórdios, a ciência se desembaraçou da verdade deixando-a aos cuidados de Deus, nomeadamente (por Descartes) o seu garante. A psicanálise, no entanto, não esquece a dimensão da verdade que se encontra em sua própria origem - a fundação do campo psicanalítico através da formulação de seu Grundbegriff, o inconsciente - pois é preciso renunciar à ideia de que a cada verdade corresponde o seu saber (Lacan, 1965/1998, p. 883). Se o sujeito é o correlato antinômico da ciência, podemos considerar, homologamente, a verdade como o correlato antinômico do saber. A verdade se encontra em disjunção ao saber, já que é parcial, e não verdade absoluta, última ou primeira. Conforme vimos, o campo da psicanálise não se constitui de uma vez por todas - ao contrário, se constitui em perda - de modo que a questão da verdade como fundadora do campo se recoloca a cada vez.

Partindo de um ponto comum - a certeza inaugural e fundadora de Descartes e Freud que emerge sob a forma de um pensamento sem qualidade -, o campo da ciência e o da psicanálise tomam direções diametralmente opostas, pois a primeira resguarda o saber e não se ocupa da verdade, enquanto que a segunda a recoloca em cena, aquela Outra. Sobre esse ponto, diz Lacan:

É aqui que se revela a dissimetria entre Descartes e Freud. Ela não está de modo algum no encaminhamento inicial da certeza fundada do sujeito. Ela se prende a que, nesse campo do inconsciente, o sujeito está em casa. E é porque Freud lhe afirma a certeza que se faz o progresso pelo qual ele muda o mundo para nós. Para Descartes, no cogito inicial [...] o que visa o eu penso no que ele bascula para o eu sou, é um real - mas o verdadeiro fica de tal modo de fora que é preciso que Descartes em seguida se assegure, de quê? - senão de um Outro que não seja enganador e que, por cima de tudo, possa garantir só por sua existência as bases da verdade, possa lhe garantir que há em sua própria razão objetiva os fundamentos necessários para que o real mesmo de que ele vem de se assegurar possa encontrar a dimensão da verdade (Lacan, 1964/1988, p. 39, grifos do original).

Assim, a certeza comparece no momento inicial do cogito como um real indubitável: sum. Mas o passo seguinte de Descartes é buscar uma garantia para a verdade e ele encontra uma solução deixando-a nas mãos de Deus, de um Deus sumamente bom e veraz, não enganador. Desse modo, o sujeito - que surge em seu estatuto real - é ancorado no ser, e a verdade passa a ser garantida por Deus. Já em relação ao sujeito da psicanálise, a verdade é a sua causa; portanto, cabe a ele garantir, por própria sua perda, por sua elisão, o campo do inconsciente ao qual se encontra submetido: Wo es war, soll Ich werden.

Quanto ao segundo aspecto do paradoxo da questão, que considera o sujeito da psicanálise como o próprio sujeito da ciência, o que soa paradoxal da afirmação de Lacan deve-se ao fato de que ele também afirma que a ciência - sobretudo a lógica moderna - é a tentativa (ainda que malfadada) de suturar o sujeito (Lacan, 1965/1998, p. 875). Vejamos suas implicações.

A ciência moderna implica no estabelecimento de uma linguagem universal e universalizante - a saber, a matemática -, operando segundo o modo combinatório uma vez que o número não mais remete a uma entidade ideal (Número), mas comparece em sua dimensão de letra. A linguagem matemática é um discurso à medida que formula enunciados logicamente articulados sob a forma de equações, proposições e axiomas; no entanto, esse discurso se articula de forma acéfala, pois não remete a quem diz e tampouco se dirige a um sujeito. Não há dimensão de enunciação presente nessa linguagem, há apenas enunciados. Não obstante, é linguagem e como tal é significante, mas apenas à medida que sua estrutura de base é literal - trata-se do jogo significante em sua forma estritamente combinatória. A ciência soletra sem, no entanto, nomear, e ademais pretende soletrar a totalidade do real, recobri-lo inteiramente por intermédio de seus enunciados. Esse discurso é obturante do sujeito, posto que sem intervalo e sem resto. No limite, o mecanismo posto em jogo pelo discurso da ciência é o da foraclusão do sujeito4 (Lacan, 1965/1998, p. 889).

O desenvolvimento repentino, prodigioso, da potência do significante, do discurso que surge das pequenas letras das matemáticas, e que se diferencia de todos os discursos até então sustentados, torna-se uma alienação suplementar. Em quê? No fato de tratar-se de um discurso que nada esquece. É por isso que ele se diferencia da memorização primeira que prossegue em nós sem que saibamos, do discurso memorial do inconsciente cujo centro está ausente, cujo lugar é situado pelo ele não sabia que é propriamente o sinal da omissão fundamental onde o sujeito vem situar-se. O homem aprendeu, num dado momento, a lançar e a fazer circular, no real e no mundo, o discurso das matemáticas que, este, não teria procedimento a menos que nada fosse esquecido. Basta que uma pequena cadeia significante comece a funcionar baseada nesse princípio para que as coisas continuem exatamente como se funcionassem sozinhas [...] (Lacan, 1959-1960/1988, p. 287, grifo do original).

É importante ressaltar que Lacan destaca uma "alienação suplementar" a propósito do discurso da ciência. Assim, não se trata de compreender essa alienação em um sentido pejorativo ou ainda crítico (como se fosse algo a ser superado) e tampouco de negar que há uma alienação em jogo - no caso da ciência, ela implica numa alienação a mais. Mas a que ela vem se acrescentar? À alienação posta em causa pela própria estrutura da linguagem, no que esta constitui uma das operações de causação do sujeito: este é um efeito da estrutura, resultado de uma operação simbólica5. Assim, à alienação enquanto fato de estrutura o discurso da ciência vem sobrepor outra, que o aliena da primeira, constituinte - essa alienação suplementar se caracteriza pelo fato de que a ciência nada esquece. Sabemos que a estrutura da linguagem é marcada por uma falta, isto é, o campo da linguagem é incompleto, barrado, e por esta razão um sujeito advém a partir dessa falta - "sinal da omissão fundamental onde o sujeito vem situar-se" (Lacan, 1959-1960/1988, p. 287). O discurso da ciência, ao contrário, pretende constituir um campo sem intervalo, logo, sem possibilidade para que o sujeito possa vir a se inscrever enquanto elemento subtraído, ausente. O discurso da ciência é, assim, a própria sutura da hiância do inconsciente, único "lugar" (fora do espaço, Outra cena) onde um sujeito pode advir.

O paradoxo é, dessa forma, constitutivo: a ciência moderna - e o seu discurso - é fundada por uma enunciação de Descartes; ao mesmo tempo é esse discurso que empreende, a posteriori, a fagocitose da enunciação que o constitui. Assim, em seus enunciados, a ciência se empenha em apagar o traço do desejo que se encontra na sua própria origem: "[...] é que a ciência, como estrutura de saber, incorpora, em seu enunciado, a própria enunciação que o produziu." (Rocha, 1999, p. 136). Esse traço é o próprio sujeito.

 

O resto fecundo da operação da ciência

Ao acompanhar o encaminhamento proposto por Lacan, chegamos, então, não à solução do problema, mas à depuração que constitui o seu cerne: "o sujeito em questão continua a ser o correlato da ciência, mas um correlato antinômico, já que a ciência mostra-se definida pela impossibilidade de suturá-lo" (Lacan, 1965/1998, p. 875). Portanto, a operação da ciência resulta na sutura e na abolição do sujeito; mas esta caracteriza uma finalidade (não intencional, bem entendido) que não chega a ser plenamente alcançada, sendo permanentemente relançada, pois embora o sujeito seja o termo correlato à ciência, essa correlação se faz em antinomia. Vale dizer, a antinomia consiste justamente na impossibilidade de consecução do projeto da ciência, pois o sujeito é o elemento que escapa a essa apreensão integral que seu discurso pretende realizar.

É possível, então, considerar que o sujeito escapa ao ideal científico de total recobrimento do real em virtude de seu próprio estatuto conceitual. Vale dizer, o sujeito enquanto efeito da estrutura do significante vem redobrar a hiância causal do conceito de inconsciente, das Unbewusste, lacuna que se inscreve em falta (Lacan, 1964/1988, p. 146). Esse resíduo descontínuo da operação significante - uma vez que é a própria linguagem que o coloca (mesmo a linguagem matemática opera a partir de uma falta cuja notação é o zero) revela-se impossível de ser eliminado. "Sujeito" seria, assim, a notação dessa impossibilidade, notação que indica a subtração desse elemento, sem atribuir-lhe um estatuto ontológico. Se a pretensão do discurso científico é soletrar a totalidade do real por meio de seus enunciados, esse discurso parece desconhecer que é no plano do enunciado que uma enunciação pode irromper, uma vez que ambos - enunciação e enunciado - pertencem ao registro da linguagem e, portanto, derivam dessa estrutura primordial: "Tudo surge da estrutura do significante" (Lacan, 1964/1988, p. 196). Ou seja, é nos interstícios do plano do enunciado que uma enunciação pode emergir, cavando, através de sua emergência, esses mesmos interstícios. Desse modo, podemos supor que o sujeito é antinômico à ciência uma vez que ele é o retorno incessante da ruptura, da falta, do corte. Se o discurso da ciência (ou seu ideal) consiste na tentativa de sutura do sujeito - em outras palavras, em constituir um corpo de enunciados articulado de tal forma a não permitir nenhum intervalo - o sujeito é o real que retorna escandindo, rasgando esse corpo, malogrando, a cada vez, a consecução do projeto científico.

Curiosamente, ao dizer que a ciência se define pela impossibilidade do esforço de suturar o sujeito, Lacan (1965/1998, p. 875) propõe uma definição de ciência no mínimo surpreendente. A linguagem da ciência é matemática, letras que se articulam em enunciados, isto é, fórmulas e equações, sem lugar para a enunciação. As letras que constituem os enunciados matemáticos (com o advento da ciência, essa se torna a linguagem por excelência) se articulam sem menção, ou ainda, sem necessidade de recorrer a quem diz, isto é, sem sujeito (na verdade, ninguém diz - elas se articulam logicamente), e também sem endereçamento, já que não se dirigem especificamente a alguém. O discurso da ciência se caracteriza por uma sintaxe implacável. Vale dizer, nos enunciados do discurso da ciência o sujeito - enquanto a própria dimensão de enunciação - é aquilo que se encontra ausente. Talvez fosse melhor dizer que o sujeito se presentifica como ausência, falha, furo, mas essa é uma formulação delicada, uma vez que o propósito da ciência - ou ainda o seu ideal - é o de ser um discurso que venha recobrir todo o real, sem deixar restos.

Se o empreendimento da ciência é, em última instância, o de suturar o sujeito, essa tentativa revela seu limite e o sujeito sempre retorna. Assim, o sujeito é essa "presença" absolutamente peculiar, puro traço que o discurso da ciência tenta, em vão, apagar. Os esforços da ciência revelam-se baldados e a antinomia é, portanto, constituinte: o sujeito é síncrono do corte perpetrado pela ciência, corte pelo qual ela se constitui enquanto a ciência (moderna) e através do qual o próprio sujeito emerge. A ciência encontraria aí o seu limite uma vez que "mostra-se definida pela impossibilidade do esforço de suturá-lo" (Lacan, 1965/1998, p. 875). Por conseguinte, o sujeito da psicanálise é este: o que se constitui através do passo que inaugura a ciência moderna e em antinomia com seu discurso.

A partir de sua emergência no momento inaugural do cogito cartesiano o sujeito fica, desde então, à espera, en souffrance6, até que Freud venha resgatá-lo, trazendo-o de volta para a sua morada: o inconsciente.

Há o sujeito, que está aí esperando desde Descartes. Ouso enunciar, como uma verdade, que o campo freudiano não seria possível senão certo tempo depois da emergência do sujeito cartesiano, por isso que a ciência moderna só começa depois que Descartes deu seu passo inaugural. É desse passo que depende que se pudesse chamar o sujeito de volta para casa, no inconsciente [...]. É preciso, para compreender os conselhos freudianos, partir desse fundamento de que é o sujeito que é chamado - o sujeito da origem cartesiana (Lacan, 1964/1988, p. 49-50).

O sujeito da ciência surge do encaminhamento cartesiano enquanto certeza com valor de verdade, disjunto do encaminhamento do saber posto em derrisão através da instituição da dúvida. Nessa medida, o momento inaugural do cogito pode ser considerado como um testemunho ético. Essa disjunção é o "ponto de ruptura por onde dependemos do advento da ciência. Nada mais temos, para conjugá-lo, senão esse sujeito da ciência" (Lacan, 1965/1998, p. 883). Desse modo, o sujeito se conjuga com a ciência (não há sujeito antes de sua entrada no mundo) mas o faz em antinomia, pois não pode haver sujeito na vigência cerrada de seu discurso. A tentativa da ciência é a de sutura do sujeito - e nesse empreendimento ela se vai tornando cada vez mais eficiente e sofisticada - mas, baldados os seus esforços ele retorna, como o lixo retorna nas enchentes (Sbano, 1999, p. 6).

É desse resto tornado fecundo pela escuta de Freud que a psicanálise se ocupa. Se Lacan tem razão quando afirma que "a escória é o resto extinto" (Lacan, 1964/1988, p. 129), a abolição do sujeito pelo discurso da ciência resultaria - se exitosa - na escória da (nossa) "humanidade". E a promessa científica poderia ser formulada nos termos da advertência contida em um de Los Caprichos de Goya: "El sueño de la razón produce monstruos".

 

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Notas

1 Vale dizer, não se trata de "um mundo arcaico de vastas emoções e pensamentos imperfeitos", como acreditava Havelock Ellis (citado em Freud, 1900/1972, p. 629).
2 Que remete ao Che vuoi?, interpelação quanto ao desejo assinalada por Lacan.
3 Não se pretende (des)qualificar o discurso da ciência (por exemplo, afirmando que ele seria antiético), mas dizer que, enquanto discurso, prescinde - mais do que isso, suprime - (d)a enunciação fundadora de seu próprio campo.
4 O conhecimento científico aplicado produz tecnologia, que por sua vez é capaz de engendrar, no limite, algo que poderia ser qualificado de "inteligência artificial" - como, por exemplo, o computador, que é capaz de realizar operações complexas a partir de uma estrutura binária. Assim, a ciência pode, no limite, produzir uma "com-ciência", mas quanto ao desejo ela nada quer saber.
5 Para maiores esclarecimentos remetemos o leitor ao Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, no qual a questão é amplamente tratada por Lacan, sobretudo nas lições XVI e XVII (cf. Lacan, 1964/1988, p. 193-217).
6 Na dupla acepção da expressão em francês: no padecimento de sua própria elisão e também como se diz de uma mercadoria que não foi resgatada.

 

 

Recebido em 01 de maio de 2015
Aceito para publicação em 11 de agosto de 2015

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