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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.28 no.2 Rio de Janeiro  2016

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Clivagem traumática e processos de simbolização

 

Traumatic cleavage and symbolization processes

 

Clivaje traumático y procesos de simbolización

 

 

Renata MelloI; Regina HerzogII

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

O presente trabalho se propõe investigar o modo específico de funcionamento psíquico diante do excesso pulsional, a partir da noção de clivagem em sua dimensão traumática. Inscrita na reviravolta conceitual dos anos 20, a clivagem ganha essa referência a um transbordamento pulsional. Partimos do pressuposto de que as ações da clivagem recaem sobre as experiências psíquicas que não alcançaram o status de representação. Discutimos a possibilidade de se pensar os processos de simbolização para além do universo representativo, examinando as formas de insistências dos aspectos clivados da subjetividade.

Palavras-chave: clivagem; trauma; excesso pulsional; processos de simbolização.


ABSTRACT

The purpose of this paper is to investigate how the psychic apparatus reacts specifically to drive overload from the standpoint of cleavage, in its traumatic dimension. Established during the conceptual turnaround of the 20s, cleavage gains this reference to drive overflow. We begin with the assumption that cleavage actions fall upon psychic experiences that did not achieve representation status. We discuss the possibility of thinking symbolization processes beyond the representative universe, examining the ways in which cleaved aspects of subjectivity persist.

Keywords: cleavage; trauma; drive overload; symbolization processes.


RESUMEN

El presente trabajo se propone a investigar el modo específico del funcionamiento psíquico delante del exceso pulsional, a partir de la noción de clivaje en su dimensión traumática. Inscrito en la inversión conceptual de los años 20, el clivaje traumático se adjudica esta referencia a un desbordamiento pulsional. Partimos de la presunción que las acciones del clivaje recaen sobre las experiencias psíquicas que no alcanzaron el status de representación. Discutimos la posibilidad de pensarse los procesos de simbolización para más allá del universo representativo, examinando las formas de persistencia de los aspectos clivados de la subjetividad.

Palabras clave: clivaje; trauma; exceso pulsional; procesos de simbolización.


 

 

Por mais difícil que tenha sido a vida de uma pessoa, por mais objetivas que tenham sido suas frustrações e decepções, é preciso que, em um momento ou outro, o indivíduo tome consciência de que isto é de sua propriedade. Sua propriedade de transformar os dados de dentro e de fora para criar algo que é seu psiquismo.
André Green, 1990.

Sabemos que o divórcio entre a força pulsional e seus possíveis representantes psíquicos traz uma problemática para a questão dos processos de simbolização com a qual se defrontam a teoria e a experiência psicanalíticas nos dias de hoje. A impossibilidade de ligação simbólica da pulsionalidade coloca em xeque a função simbolizante do psiquismo por meio da qual as experiências psíquicas podem ser metabolizadas. Não por acaso, portanto, as sintomatologias contemporâneas, que encerram os ditos sofrimentos narcísicos e estados limites, tais como os adoecimentos psicossomáticos e hipocondríacos, os ataques de ansiedade e pânico, as hiperatividades e as compulsões mais diversas, têm em comum, justamente, a rubrica da efração psíquica. É possível reconhecer, ainda, como o mal-estar vem se apresentando, cada vez mais, no registro do corpo, da ação e das intensidades, contrapartida do excesso que transborda no psiquismo, desafiando os recursos simbólicos do sujeito.

No âmbito dessas considerações, interessa-nos investigar o modo específico de funcionamento psíquico diante do excesso pulsional, a partir da noção de clivagem traumática (Verztman, 2002). Inscrita na reviravolta conceitual dos anos 20, a clivagem ganha essa dimensão na referência a um transbordamento pulsional. Partindo do pressuposto de que as ações da clivagem recaem sobre as experiências psíquicas que não alcançaram o status de representação, pretendemos investigar a possibilidade de se pensar os processos de simbolização para além do universo representativo. Para tanto, vamos valorizar as formas de insistências dos aspectos clivados da subjetividade, atualizadas de modo alucinatório ou agido, no sentido de favorecer sua integração psíquica. Sustentamos a hipótese de que o impacto sensório-motor perceptivo das experiências precisa ser transformado em representantes psíquicos através do trabalho de simbolização, repercutindo, sobremaneira, na relação que o sujeito estabelece com a sua própria história. Após essa incursão teórica na problemática da clivagem e dos processos de simbolização, acreditamos estarmos mais aptos para refletir sobre as condições necessárias para a instauração de um dispositivo analítico com função simbolizante.

 

A clivagem diante do excesso pulsional

O termo em alemão Spaltung, para o qual se adota o equivalente clivagem, obedece a um longo caminho de desenvolvimento conceitual na obra freudiana, sendo utilizado desde a invenção do inconsciente, passando por variações tais como "clivagem da consciência" ou "clivagem psíquica", até assumir a especificação Ichspaltung, designada como a divisão do eu, no âmbito da reflexão sobre o fetichismo e as psicoses. Nos últimos escritos de Freud, a saber, "Esboço de psicanálise" (1940a [1938]/1996) e "A divisão do ego no processo de defesa" (1940b [1938]/1996), a divisão do eu pela ação da clivagem se institui como um procedimento de defesa válido sob a influência experiências traumáticas. Diante do traumático, portanto, a "natureza sintética" dos processos do eu pode sofrer uma série de alterações, permitindo, então, a coexistência de duas correntes contrárias, uma capaz de acatar a realidade e outra que a nega taxativamente. Configura-se, assim, uma "fenda no eu, a qual nunca se cura, mas aumenta à medida que o tempo passa (Freud, 1940b [1938]/1996, p. 293).

Sustentando o sentido freudiano de corte na operação psíquica da clivagem, vamos investigar a noção de clivagem enquanto defesa privilegiada diante do excesso pulsional com base na perspectiva ferencziana. Para Ferenczi (1990, p. 64), a clivagem é uma das principais consequências da vivência de uma "dor sem conteúdo de representação". Vamos utilizar, especialmente, a concepção desenvolvida por Roussillon (1999), a qual descreve a clivagem como o processo que divide a subjetividade entre uma parte representada e outra não representável. Convém precisar que tal concepção se distancia, em certa medida, da clivagem evocada por Freud (1940b [1938]/1996), que circunscreve a divisão do eu entre duas cadeias representativas opostas.

De acordo com Roussillon (1999), a clivagem corresponde a um processo de defesa paradoxal através do qual o sujeito sobrevive psiquicamente ante a ameaça de transbordamento pulsional pelo corte da subjetividade. É importante ressaltar que o aspecto paradoxal se deve ao fato de que o eu se cliva de uma experiência vivida e ao mesmo tempo não constituída como uma experiência do eu, o que suporia que ela tivesse sido representada. Nas palavras de Roussillon (1999, p. 20; tradução nossa): "de um lado a experiência foi ‘vivida’ e então deixou ‘traços mnêmicos’ do que foi experimentado e ao mesmo tempo, de outro lado, ela não foi vivida e apropriada como tal". Instaura-se, assim, uma dissociação entre um eu que tudo sabe e nada sente e um eu que sente e nada sabe, ou ainda, uma cisão entre o afeto e a objetividade do mundo (Ferenczi, 1933/1992). Dessa perspectiva, as partes que foram clivadas se encontram à espera de processos de simbolização para alcançar uma integração no psiquismo.

A clivagem traumática se inscreve na reviravolta conceitual dos anos 20, marcada, fundamentalmente, por "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1996) e "O ego e o id (Freud, 1923/1996), a partir da qual começa a ser possível considerar algo para além do registro das representações psíquicas e do princípio do prazer. O conceito de pulsão passa a ser relativizado para além de uma referência exclusivamente sexual e a autonomia do campo quantitativo da pulsão, indicada por Freud (1915/1996) em "Pulsões e suas vicissitudes", assume a sua radicalidade. Até então, preponderava no pensamento freudiano a certeza da ligação originária entre a força pulsional e seus representantes, de forma que a pulsão era necessariamente inscrita no registro da representação como pulsão sexual. Tal certeza, contudo, começa a ser relativizada em prol de um redimensionamento da concepção do trauma, a partir de experiências que se apresentam a despeito do princípio de prazer.

O reconhecimento da extensão dos fenômenos repetitivos não reduzíveis seja à realização de desejo, seja à obtenção de satisfação, isto é, a repetição de situações que engendram sofrimento psíquico, institui a emblemática "compulsão à repetição" (Freud, 1920/1996). As situações dolorosas que não se curvam ao princípio do prazer, tais como os sonhos traumáticos ou as brincadeiras infantis que atuam a ausência materna, caso do ilustre jogo fort-da, repetindo-se insistentemente em uma tentativa de dominação, supõem a existência de algo "além" do princípio do prazer. Diante disso, Freud reconsidera, então, a sua dominância a priori, indicando condições necessárias para a sua vigência. Torna-se indispensável, portanto, um esforço constante de ligação da pulsionalidade no plano representacional, caso contrário o excesso pulsional se estabelece, produzindo efeitos traumáticos. Dessa perspectiva, "não há mais possibilidade de impedir que o aparelho mental seja inundado com grandes quantidades de estímulos; em vez disso, outro problema surge, o problema de dominar as quantidades de estímulos que irromperam, e de vinculá-las no sentido psíquico" (Freud, 1920/1996, p. 40).

Nesse contexto, a concepção de trauma recebe, então, uma reconfiguração na obra freudiana. O trauma deixa de ser identificado exclusivamente com a ameaça de retorno das representações sexuais recalcadas para se afirmar como excesso pulsional, ou seja, irrupção de quantidades de excitação incontrolável no psiquismo. Sob essa perspectiva, uma experiência se constitui como traumática quando a exigência de trabalho imposta ao psiquismo excede sua capacidade de ligação. Dito de outro modo, o que confere à quantidade um valor de efração é a impossibilidade de ligá-la, ou seja, quanto menor a capacidade de vincular o influxo de energia, mais violentas serão as consequências psíquicas (Freud, 1920/1996). Os efeitos disruptivos do trauma derivam, portanto, da tensão entre a magnitude pulsional e os recursos psíquicos disponíveis, tensão que, no limite, aponta para o colapso do psiquismo. Reportamo-nos aqui às situações arcaicas e às situações limites mais tardias, nas quais o potencial simbólico vacila, colocando em risco a integridade narcísica. Nesses casos, o sofrimento psíquico torna-se equivalente ao irrepresentável, isto é, ao excesso que ultrapassa e fragmenta.

Na linha dessas considerações, acompanhamos Roussillon (1995, p. 1358; tradução nossa), "a clivagem supõe a ação de um ‘além do princípio de prazer/desprazer’, quer dizer, da tentativa e da falha de instauração do seu primado: alguma coisa lhe escapa, o que está na origem de um hiato no funcionamento psíquico". De acordo com o autor, tal hiato responde, precisamente, aos elementos clivados não subjetivados que estabelecem uma desconexão no coração da experiência psíquica, implicando em um desgarramento interior, em termos freudianos, uma "fenda no eu" (Freud, 1940b [1938]/1996, p. 293). A questão reside na impossibilidade de o traumatismo ser representado posta a interrupção dos processos de simbolização, o que inviabiliza a mediação pelo recalque e a vigência do princípio de prazer.

Com isso, o psiquismo passa a funcionar proeminentemente sob compulsão à repetição submetido pela pressão do retorno das partes clivadas. Tal retorno se efetua pelo reinvestimento dos traços das experiências clivadas, material sensório-motor perceptivo, de modo alucinatório ou agido, atualizando o traumático outrora vivido (Roussillon, 1999). Não se trata, então, de um retorno de natureza representativa, passível de comunicação pela linguagem verbal. Engendra-se aí a sensação de uma espécie de dor sem razão, na medida em que não se conta com uma representação da experiência, tornando mais árduos os processos de simbolização.

Ora, com efeito, a clivagem incide no funcionamento do aparelho psíquico levando à construção de núcleos clivados, produzindo como efeito a impressão de não acontecimento do traumático. Contudo, é preciso considerar a permanência de um nível de inscrição arcaica do trauma. Essa consideração acarreta a possibilidade de se pensar uma ordenação psíquica dos fenômenos clivados para além do universo representacional. Isso aponta para a existência de processos de simbolização entre a experiência vivida (arcaica e/ou no limite) e o sentido da experiência, processos que, por sua vez, são indispensáveis para transformar a relação do sujeito com o próprio campo experiencial.

 

Os processos de simbolização na clivagem

Relançando a máxima freudiana de que o sofrimento neurótico do sujeito advém de suas próprias reminiscências (Freud, 1893/1996), nos parece importante avaliar de que ordem é o registro das lembranças que são atualizadas no âmbito da clivagem. Para tanto, há que se levar em conta a perspectiva freudiana de que a memória não se faz presente de uma única tacada, distendendo-se em temporalidade e espacialidade determinadas. Desse modo, vamos abordar os processos de simbolização a partir da transformação das experiências psíquicas por meio dos diferentes níveis de ligação simbólica. Tais níveis comportam uma relação de derivação, mas não de oposição ou exclusão, tendo em vista que a realidade psíquica não apreende de imediato nem uniformemente as experiências, coexistindo, portando, vários níveis de inscrição psíquica. Sendo assim, os processos de simbolização se baseiam em movimentos de transcrição sequencial pelo sistema mnêmico, de acordo com as particularidades da experiência vivida, tais como impacto e frequência. Por esse viés, o trauma implicaria a interrupção desses movimentos em algum ponto.

Seguindo as orientações levantadas pelo "Projeto para uma psicologia científica" de 1895 (Freud, 1950 [1895]/1996), no tocante às modificações dos neurônios diante da ação de fortes excitações provindas de fora, apreciamos o desenvolvimento de uma explicação para a memória. Por analogia, o psiquismo sofreria a ação das experiências vividas, se modificando ao registrar passivamente aquilo ao qual é confrontado. De fato, "todo traço é traço de uma impressão", como salienta Garcia-Roza (2008). O traço seria, então, a forma pela qual a impressão conserva os seus efeitos. Nesse sentido, o traço pressupõe uma inscrição, sendo a memória formada pelo conjunto dos traços. É importante ressaltar que os traços podem estabelecer conexões entre si, o que, precisamente, se designa por associação. Nessas circunstâncias, quando ocorre, por exemplo, simultaneidade ou semelhança de impressões, uma relação associativa se estabelece entre os elementos psíquicos.

No âmbito desses enunciados, retomamos as elaborações memoráveis de Freud contidas na "Carta 52" (Freud, 1896/1996) e "A interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/1996) acerca dos modos de inscrição dos acontecimentos no aparelho psíquico. Na carta referida, Freud propõe que "a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de indicações" (Freud, 1896/1996, p. 281). Ele nos apresenta aí três registros sucessivos das experiências, a saber: a indicação ou signo de percepção como o primeiro registro das percepções, incapaz de se tornar consciente e disposto conforme associações por simultaneidade; os traços inconscientes tomados em relação de causalidade, passíveis de conscientização; e o terceiro são os traços pré-conscientes ligados às representações verbais. Por essa via, então, ocorre a tradução do material psíquico, o que quer dizer que o signo de percepção se transcreve como traço inconsciente que, por sua vez, é transformado em traço pré-consciente. Logo, a transcrição se efetua por meio dos diferentes traços mnêmicos conforme o nível topográfico. Configura-se, assim, a estratificação sucessiva de inscrições e localizações psíquicas.

Vamos agora nos deter na passagem de um registro para o outro, na medida em que ela implica justamente em um trabalho de simbolização das experiências psíquicas. Avançaremos com base nos ensinamentos de Roussillon (1995, 1999, 2012, 2014a) acerca das modalidades de simbolização. Servindo-se da abertura contida na "Carta 52" (Freud, 1896/1996), o autor formula a hipótese de uma tripla inscrição mnêmica indicando três tipos de traços diferentes, mas ligados entre si. Nas suas palavras, "a existência afirmada em 1896 de três traços diferentes da experiência implica então, de fato, a existência de dois tipos de simbolização diferentes: uma primária, outra secundária" (Roussillon, 1995, p. 1479; tradução nossa). Assim, Roussillon (1999) designa "simbolização primária" o processo pelo qual o signo de percepção (traço mnêmico primário) é transformado em traço inconsciente e de "simbolização secundária" o processo pelo qual o traço inconsciente se transforma em traço consciente. A passagem de uma simbolização para a outra implica, portanto, em um percurso de subjetivação da "matéria-prima" da experiência psíquica, aproveitando a expressão utilizada por Freud (1900/1996) ao se referir ao ponto último de regressão nos sonhos.

Tal distinção nos remete, por sua vez, consecutivamente ao que Roussillon (1999) descreve como "traumatismo secundário", cujo processo se desenrola sob a égide do princípio de prazer, e "traumatismo primário", o qual se desdobra em um universo aquém da representação. Nesse sentido, o trauma primário interrompe o processo de simbolização primária e o trauma secundário coloca entraves no processo de simbolização secundária. Para circunscrever melhor tal diferenciação, vamos dialogar com algumas reflexões em jogo no contexto de 1900 e após 1920, na medida em que podemos utilizá-las para nos referirmos às duplas simbolização/traumatismo secundários e simbolização/traumatismos primários, respectivamente. A partir desses contextos, podemos apreender o modelo apresentado em "A interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/1996) com base na regulação do aparelho psíquico pelo princípio de prazer e, mais tardiamente, com a virada dos anos 20, o modelo indicado pela formulação da pulsão de morte, como modelos organizadores do psiquismo. De um lado, a especificidade da realidade psíquica compõe-se de representações de desejos sexuais recalcados, do outro lado, a especificidade implica a existência de magnitudes pulsionais não ligadas.

Diante disso, fica evidente que as ações da clivagem recaem sobre as experiências psíquicas que não alcançaram o status de representação, portanto não passíveis de recalcamento. Nesse sentido, os alicerces conceituais da clivagem encontram um solo mais firme com a possibilidade de se pensar uma simbolização primária e um modo de ordenação psíquica para "além" da representação. Entra em linha de consideração, então, uma série de dados sensório-motores e perceptivos, matéria-prima psíquica antes de ser transformada em representação. Depreende-se daí uma forma de experimentação do mundo não transformada em representação. Podemos dizer que as experiências psíquicas quando clivadas são conservadas em estado "quase" bruto, preservando, assim, em larga escala, suas características originais, tendo em vista a interrupção dos processos de simbolização capazes de transformar o vivido (Roussillon, 1999). Tais experiências, sem grandes repercussões conscientes, sequer constituídas como experiências próprias do sujeito, uma vez não representadas, noticiam-se, especialmente, sob a forma sensório-motora perceptiva. De acordo com Roussillon (2012, p. 37; tradução nossa), "é justamente esta característica que testemunha a dificuldade de sua não integração subjetiva e, ao mesmo tempo, a dificuldade de sua integração atual: ela representa uma forma de arcaicidade que parece estrangeira à subjetividade adulta ou simplesmente posterior". Isso nos obriga a pensar mais detidamente sobre as formas de atualização das experiências clivadas, no sentido de favorecer clinicamente sua integração subjetiva.

 

Insistências clivadas

No magistral artigo "O medo do colapso" de Winnicott (1963/2005, p. 71), é possível encontrar sustentação para abordar "o impensável estado de coisas subjacentes à organização defensiva", avançando no entendimento do que se passa com as experiências que foram clivadas. A reflexão winnicottiana postula que o colapso presente no medo corresponde a um colapso já passado, mas não apropriado subjetivamente. Paradoxalmente, portanto, o colapso aconteceu e não aconteceu. O psicanalista inglês nos adverte que "não é possível lembrar de algo que ainda não aconteceu, e esta coisa do passado não aconteceu ainda, porque o paciente não estava lá para que ela lhe acontecesse" (Winnicott, 1963/2005, p. 74). Cabe retomar que, diante de uma experiência arcaica e/ou limite de transbordamento pulsional, a clivagem se institui como defesa diante do traumático, incidindo na contramão dos processos de simbolização.

Com efeito, o que não encontra meios para ser inscrito nas cadeias de representação irá também retornar, sob uma forma clivada não representativa (Borges & Cardoso, 2011; Roussillon, 2014b). Nesse caso, no lugar do representado, o alucinado e o agido; no lugar do retorno do recalcado, o retorno do clivado. Logo, o vivido traumático clivado, esteja ele ausente, congelado, esquecido ou em negativo, se encontra vivo e à espreita. Dito isso, nos parece evidente a existência de insistências clivadas que buscam retorno pela pressão dos processos de simbolização, repetição simbolizante por excelência, atualizando, assim o traumático. Exiladas e arredias, as experiências clivadas reclamam por simbolização (Pacheco-Ferreira, Mello, & Herzog, 2013). É como se houvesse uma questão deixada pendente, da qual não se tem a mais vaga lembrança (Estellon, 2012). Tais insistências terminam, muitas vezes, por tingir a subjetividade com tons ameaçadores e disruptivos, tal como testemunhamos com a formulação winnicottiana do medo do colapso. Por esse viés, entendemos que se o registro mnêmico das experiências traumáticas foi de natureza representativa, a sua insistência – retorno do recalcado – se fará via representações, mutatis mutandis; se o registro foi de natureza sensório motora perceptiva, a sua insistência – retorno do clivado – se fará via expressões sensíveis. Nesse sentido, o traumatismo se repete necessariamente com o colorido reminiscente.

Servindo-nos do modelo da experiência primária de satisfação, no tocante ao alívio das tensões decorrentes do acúmulo de quantidade, podemos acompanhar como se instaura a dinâmica alucinatória constituinte da insistência das experiências traumáticas. Lançando mão do discurso freudiano manifesto tanto em "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1950 [1895]/1996) quanto em "A interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/1996), compreendemos que, quando o estado de necessidade surge, procura-se a satisfação inaugural através do reinvestimento da imagem mnêmica do objeto que proporcionou satisfação inicialmente. Isso acontece porque a imagem-lembrança da satisfação se liga à imagem-lembrança do objeto de satisfação (Garcia-Roza, 1991), configurando, assim, a busca alucinatória pela satisfação conforme os moldes da satisfação de outrora, desde sempre perdida.

Colocando essas considerações em perspectiva, apreendemos que a alucinação consiste no investimento dos vestígios mnêmicos (Freud, 1950 [1895]/1996), o que implica certo modo de atualização da memória. Sendo assim, a insistência das experiências traumáticas se encontra intrinsecamente relacionada ao formato das impressões mnêmicas que serão reinvestidas. Nessa medida, levando em conta o caráter alucinatório dos processos psíquicos, podemos entrever um retorno alucinatório através das representações, tal como Freud propõe em 1895, mas também pelas vivências sensoriais, cinestésicas, visuais, auditivas. Em se tratando de traumatismos primários, então, as infiltrações do passado não seriam ocasionadas em função do reinvestimento alucinatório do desejo, mas, sobretudo, pelo registro do corpo, da ação e das intensidades, como por exemplo, nos adoecimentos psicossomáticos e hipocondríacos, ataques de ansiedade e pânico, hiperatividades e compulsões diversas (Maldonado & Cardoso, 2009; Birman, 2006). Marca-se aí uma diferença entre as maneiras pelas quais se pode sofrer de reminiscências, dando expressão a uma memória de natureza representativa e/ou a uma memória de natureza sensível. Em relação a esta última, Botella (2011) refere-se como "memória sem lembranças", pois, em relação às experiências não representadas, se tornaria inviável o registro por traços mnêmicos representativos. De acordo com suas proposições, tratar-se-ia de marcas memoriais dos traumas não revividas por recordações, mas, precisamente, através do material perceptivo. Certamente, a ausência de conteúdo representado não quer dizer ausência de acontecimento psíquico (Botella & Botella, 1992).

A nosso ver, afirmar a existência de uma outra ordem de reminiscências, em detrimento das representações, implicada nos processos de simbolização primária nos permite a abertura para um campo de expressão multissensorial dos fenômenos psíquicos. Com isso, podemos vislumbrar acesso aos estados clivados, através do material sensório-motor perceptivo, tão ressonantes no psiquismo quanto o conteúdo recalcado. Para tanto, convém prestigiar outras dimensões subjetivas e recapitulações históricas por meio das quais a noção de clivagem ocupa um lugar de destaque. Efetivamente, diante de sofrimentos psíquicos classicamente neuróticos não se faz necessária a distinção entre conteúdo representado e não representado, pois o campo de batalha se institui na relação entre os representantes. Porém, com relação aos sofrimentos psíquicos tributários do transbordamento pulsional, situados além da representação, nos parece importante pensar em um aporte analítico que vai do sensível para o sentido e não apenas da representação para o sentido (Gondar, 2010). Do ponto de vista clínico, caberia em meio ao campo das narrativas verbais mais ou menos em operação, se permitir contagiar, especialmente, por uma narrativa gestual, motora, rítmica, sensorial, na medida mesma em que elas também narram sobre o vivido do sujeito (Andrade, Mello, & Herzog, 2012). Com efeito, tais poeiras narrativas configuram-se como brechas para o contato com os psiquismos clivados.

 

Considerações finais

Não nos restam dúvidas quanto à existência de determinados limites para os processos de simbolização e integração subjetiva. De fato, não existem meios de sabermos a priori o que permanecerá no campo do não representado ou sem porto seguro reflexivo e o que poderá ser relançado subjetivamente revestindo-se com outros símbolos. Ainda que não seja possível recapitular as histórias passadas por inteiro, Freud nos autorizou a tarefa de invenção mediante a construção de verdades históricas (Freud, 1937/1996). Certamente, convém não perder de vista a importância da abertura do campo experiencial, via de atribuição de sentido e vitalidade para as experiências do existir.

Valendo-se do nosso conhecimento acerca da natureza associativa do funcionamento psíquico, legado freudiano fundamental, algo necessariamente se produz na contingência dos encontros afora, mesmo com fraca força de vinculação representativa. Considerando que os traumatismos primários estão mais suscetíveis às formas de expressão psíquica no plano sensório-motor perceptivo, um bom livro, uma sessão de cinema, o desamparo alheio, uma caminhada cotidiana, a perda de um ente, uma canção, um dia de sol, uma sensação déjà vu, um movimento em falso, uma observação fortuita, um encontro analítico são passíveis de exercer reverberação associativa, despertando o vivido clivado, repondo em curso os processos de simbolização. Isso implica pensar que o excesso pulsional registrado, sobretudo, no corpo e na ação começa a conquistar novos domínios simbólicos. Admitindo que a clivagem traumática implica em experiências apartadas da subjetividade, vislumbram-se aí a potência de múltiplas ligações simbólicas no funcionamento do psiquismo.

 

Referências

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Recebido em 05 de fevereiro de 2015
Aceito para publicação em 04 de março de 2016

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