SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 número1Atravessar desertos - psicanálise e utopia índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.29 no.1 Rio de Janeiro  2017

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Trajetórias conjugais e a construção das violências

 

Marital trajectories and the construction of violences

 

Trayectorias maritales y la construcción de la violencia

 

 

Gláucia R. S. Diniz

Professora Adjunta da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil

 

 


RESUMO

Relações interpessoais são marcadas por paradoxos do afeto: a mesma pessoa que ama pode causar danos à parceira. Esses paradoxos desafiam os campos da psicologia e da terapia familiar. Os objetivos desse artigo são: 1. Entender a presença de várias formas de violência nas relações conjugais e familiares com base em perspectiva sistêmica e de gênero; 2. Apontar os impactos das violências para a saúde física e mental; 3. Discutir brevemente aspectos importantes da postura de profissionais que atuam em serviços voltados ao atendimento de mulheres em situação de violência.

Palavras-chave: casamento; terapia familiar; violência; gênero.


ABSTRACT

Interpersonal relationships are marked by affective paradoxes: the same person that loves can be violent towards ones partner. These paradoxes challenge the fields of psychology and of marriage and family therapy. The objectives of this article are: 1. To understand the presence of many forms of violence in marital and family relationships from both a gender and systemic perspective; 2. To point out the impacts of violence in both physical and mental health; 3. To discuss briefly the approach that professionals who work in domestic violence services must have to help women who live in violent relationships.

Keywords: marriage; family therapy; violence; gender.


RESUMEN

Las relaciones interpersonales están marcadas por paradojas del afecto: la misma persona que ama puede causar daño a la pareja. Estas paradojas desafían los campos de la psicología y de la terapia familiar. Los objetivos de este artículo son: 1. Comprender la presencia de diversas formas de violencia en las relaciones de pareja y familia basado en la perspectiva sistémica y de género; 2. Señalar los impactos de las violencias sobre la salud física y mental; 3. Apuntar brevemente algunos aspectos importantes de la postura de trabajo de los profesionales que actúan en los servicios para la atención de mujeres en situación de violencia.

Palabras clave: pareja; terapia familiar; violencia; género.


 

Relações interpessoais são marcadas por paradoxos do afeto. Seja no contexto conjugal ou familiar, a mesma pessoa que ama e é capaz de cuidar pode, de um momento para outro, ferir com palavras e atos de agressão que venham resultar em danos permanentes e até mesmo em morte. Compreender tais paradoxos do afeto e suas manifestações constitui um desafio para os campos da pesquisa e da clínica em psicologia e terapia conjugal de familiar.

Problematizar a presença de várias formas de manifestações de violências nas relações interpessoais e sociais torna-se, portanto, tarefa fundamental. A conduta violenta emerge a partir de uma combinação complexa de fatores históricos, culturais, sociais, econômicos, institucionais, interacionais, familiares, pessoais. Falcke, Oliveira, Rosa e Betancur (2009, p. 81) apontam:

A violência conjugal é um dos fenômenos de maior relevância no âmbito da psicoterapia familiar e da saúde pública em geral, pois, além dos danos físicos e psicológicos que ocasiona, tanto nos parceiros como nos filhos que convivem com as agressões no cotidiano da família, necessita de um grande número de ações articuladas para a prevenção e tratamento.

As autoras ressaltaram no texto que naquele ano, no Brasil, as estimativas indicavam que 29% das mulheres relataram ter sofrido violência física ou sexual de seus companheiros pelo menos uma vez na vida; destas, 16% classificaram a agressão como violência severa, por serem chutadas, arrastadas pelo chão, ameaçadas ou feridas com qualquer tipo de arma.

Falcke, Oliveira, Rosa e Betancur (2009) apontaram também que

as consequências da violência sofrida são preocupantes, na medida em que a violência doméstica e o estupro são a sexta causa de morte ou incapacidade física em mulheres de 15 a 44 anos, ou seja, mais do que todo tipo de câncer, acidentes de trânsito e vitimização em situações de guerra (Falcke, Oliveira, Rosa, & Betancur, 2009, p. 82).

O fato é que cerca de 35% das enfermidades e queixas médicas das mulheres se devem à presença de violência nas relações conjugais. As autoras ressaltam que esses dados denunciam uma realidade preocupante.

As relações conjugais e familiares marcadas pela presença de violências são pautadas pela presença de silêncio e segredo; revelam uma dicotomia entre o público e o privado e mostram uma tendência comum a minimizar, banalizar, naturalizar e psicopatologizar a vítima, o agressor, assim como a dinâmica relacional. A complexidade e multiplicidade de formas, contextos e dinâmicas relacionais violentas revelam também os preconceitos em torno do pedir ajuda.

Cabe ressaltar também que a presença de mitos e estereótipos culturais afetam as percepções acerca da violência e, de modo especial, a violência conjugal e familiar. Existe uma tendência das pessoas a pensarem que a violência ocorre predominantemente fora de casa e que a casa é um lugar seguro. Outra ideia frequente é a de que o autor de violência é um perverso, bandido ou tarado e que suas ações ocorrem em função de uma atribuição simplista de causalidade, muitas vezes relacionada à bebida, ao estresse e ao desemprego. Existe ainda uma tendência à culpabilização da mulher devido a uma visão prevalente na cultura que vê a mulher como precipitadora, facilitadora e coadjuvante na situação de violência.

Guerra (2004) aponta que o número de mulheres vítimas de violência doméstica e sexual no Planeta Terra é maior do que o número de vítimas em todos os conflitos armados. Ressalta que a violência doméstica constitui a maior causa de ferimentos femininos em todo o mundo e é a principal causa de morte de mulheres entre 14 e 44 anos.

Reportagem recente da jornalista Bárbara Ferreira dos Santos, divulgada na Revista Exame datada de 28 de outubro de 2016, nos revela dados que nos ajudam a atualizar esse cenário. O título da reportagem é: “Em 5anos, violência no Brasil mata mais que a guerra na Síria”. A autora revela estatísticas que indicam que entre 2011 e 2015 o Brasil teve um total de 278.839 assassinatos – dado que indica que uma pessoa foi morta a cada nove (9) minutos no país, o que representa uma média mensal de 4.647,3 vítimas de acordo com o FBSP – Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os dados abarcam situações de homicídio doloso, latrocínio (roubo seguido de morte), lesão corporal seguida de morte, e morte decorrente de ações policiais. Formas de violências domésticas não são mencionadas especificamente. De todo modo, esses dados revelam que no Brasil uma pessoa é assassinada a cada nove minutos. A autora aponta que na Síria, entre março de 2011 e novembro de 2015, a guerra causou 256.124 mortes de acordo com estimativas da Agência da ONU. A reportagem mostra que, tanto no nível público quanto privado, vivemos em um contexto social marcado pela presença de várias formas de violência.

A Lei Nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, promulgada pela Presidência da República em 2006, definiu em seu texto os vários tipos de violência que podem estar presentes em qualquer relação intima de afeto, independente de coabitação e de formalização, e instituiu as ações cabíveis para a proteção de mulheres. O Artigo 7º da referida lei define que os tipos de violência são: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Cabe ressaltar que a violência psicológica inclui a violência verbal.

A violência física está relacionada a condutas que afetam a integridade física e a saúde corporal de mulheres. Scaffo e Farias (2011) apontam que a violência física costuma ser a que chama mais atenção por causa das marcas que deixa e pelo fato inaceitável de gerarem debilidades, mutilações e até a morte. Os autores apontam que essas marcas, ao ficarem cravadas no corpo, deixam uma memória permanente e visível do ato. Ressaltam, por outro lado, que a ausência de marcas não significa que esse tipo de violência seja menos intenso e corrosivo.

A violência psicológica engloba condutas que causam danos emocionais; diminuição da autoestima; prejuízos e perturbações ao pleno desenvolvimento físico, emocional e social. É comum a presença de condutas que visem degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de mulheres através do uso de ameaças, constrangimentos, humilhações, manipulações, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir. Companheiros costumam ainda utilizar outros meios que possam causar prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (Presidência da República, 2006).

A violência sexual inclui condutas que constranjam mulheres e as forcem a presenciar, a manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante o uso de intimidações, ameaças, coações ou uso da força. Inclui também condutas que induzam mulheres a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade; que as impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que as force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, por meio do uso de coação, chantagem, suborno ou manipulação (Presidência da República, 2006).

A violência patrimonial é entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer as necessidades de mulheres e de seus filhos. Por fim, a violência moral é definida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (Presidência da República, 2006).

Diniz (2011) argumenta que raramente uma forma de violência ocorre de maneira isolada. A violência física, por exemplo, é na maioria das vezes acompanhada de violência verbal e psicológica. O importante é reconhecer que todas as formas de manifestação da violência deixam marcas. Algumas dessas marcas, quer seja de natureza física, quer seja de natureza emocional e/ou moral, ficam para sempre. As múltiplas formas de violências conjugais e intrafamiliar podem ser vistas como reflexo do patriarcalismo – caracterizado pelo exercício da autoridade do homem sobre mulher e filhos no contexto familiar.

É importante ressaltar que esse lugar do masculino como depositário de autoridade e superioridade não é “natural” – foi construído socialmente ao longo da história e imposto institucionalmente. O fato é que a estrutura patriarcal produz o assujeitamento de mulheres às necessidades do homem e da família: ao primeiro ela deve obediência; e à instituição familiar deve dedicação e sacrifício sem medidas. Nesse contexto as mulheres aprendem a se sacrificar e tendem a perder sua autonomia para se tornar um ser para os outros (Diniz, 2011).

Essas manifestações de violência são marcadas por parâmetros masculinos de conduta incorporados por homens e mulheres, referendados no contexto do patriarcado, que são preservados através da organização, divisão de papéis e funções que estrutura a vida conjugal e familiar.

Saffioti (1999, 2003) argumenta que a sociedade foi construindo ao longo da história conjuntos de regras modeladoras de seres humanos em homens e mulheres, mas deu primazia ao masculino. Ressalta, no entanto, que a construção social do sistema sexo-gênero transcende as noções de patriarcado e androcentrismo. Nesse contexto, Saffioti argumenta sobre a importância de “se meter a colher em briga de marido e mulher” uma vez que as manifestações de violências ocorrem predominantemente no contexto domiciliar e não podem ser vistas como um ato isolado. Tais violências tendem a ser banalizadas, uma vez que ocorrem em um contexto social em que as mulheres ainda são consideradas “inferiores”, ou seja, elas não têm o mesmo status social, poder e direitos que os homens.

Diante desse cenário, cabe perguntar: quais são os efeitos e a importância dos discursos sobre os papéis dos homens e das mulheres, suas semelhanças e diferenças, sob os relacionamentos afetivos – seja no namoro ou no casamento, na família e na sociedade? Qual a importância da inclusão de uma perspectiva de gênero para a compreensão das violências? Qual o papel de fatores como poder, autoridade, hierarquia, impunidade presentes na vida pública sob a experiência da vida privada? Essas e outras questões não podem passar despercebidas e precisam ser problematizadas nos contextos marcados pela violência.

O fato é que toda forma de violência presente nas relações entre homens e mulheres e entre pessoas do mesmo sexo (H-H/M-M) constitui uma manifestação da violência de gênero. É nosso entendimento que a diferenciação entre os termos sexo e gênero é fundamental para a compreensão de questões relacionadas à construção da subjetividade, aos papéis atribuídos a cada sexo no casamento e na família, à inserção social de homens e mulheres e à própria estruturação da sociedade. Gênero diz respeito, portanto, à construção dos papéis, funções e lugares sociais atribuídos a um e ao outro sexo. A inscrição do masculino em um lugar de superioridade e poder e do feminino em um lugar de inferioridade e subserviência contribui para a manutenção de homens e mulheres em lugares polarizados que sustentam e promovem desigualdades e diferenças.

Cabe destacar que não há um perfil que defina quem são os homens que agridem mulheres com quem mantêm ou mantiveram relacionamentos íntimos. Qualquer homem – independente de raça, classe social, nível de escolaridade e tipo de inserção no mercado de trabalho pode vir a ser autor de violências conjugais. É importante mencionar isso porque tende a prevalecer no senso comum uma visão recorrente e estereotipada de que se trata de homens que se enquadram na tríade alcoolismo, pobreza e baixa escolaridade.

Alguns pontos em comum compartilhados por homens autores de violências conjugais são: eles têm pouco ou nenhum antecedente criminal; manifestam tendência a adotar concepções sexistas; a ter baixa expressão emocional e a privilegiar um discurso racional; e têm tendência a negar, minimizar e justificar seus comportamentos violentos. Outros dois pontos que merecem atenção são a presença de obsessão pelo controle do comportamento da mulher e o fato de as manifestações de violência serem seletivas ao núcleo familiar Diniz (2011).

Na década de 1990 organizações não governamentais brasileiras começaram a se interessar por entender a realidade de homens autores. Importante ressaltar que os programas voltados ao atendimento de homens autores busca ajudá-los a compreender suas experiências de vida, suas características individuais e os fatores que possam contribuir para a pessoa se tornar um homem autor de violência (Lima & Buchele, 2011).

Uma dimensão importante da dinâmica relacional violenta é que tanto as mulheres vítimas quanto os homens autores tendem a justificar, minimizar ou mesmo negar a ocorrência das violências. No caso de mulheres apresentarem queixa em delegacia, muitas vezes essa queixa é retirada em função de pressões e ameaças do parceiro, ou por medo de ocorrerem “doses” ainda maiores de violência. Cabe mencionar ainda o medo de expor detalhes da intimidade conjugal e familiar para pessoas estranhas; o medo de ser desvalorizada ou estigmatizada, e também o medo de ser cobrada e culpabilizada, associado ao medo de não ser compreendida e de não receber apoio.

Uma pergunta frequentemente ouvida em palestras sobre violência doméstica é “O que faz com que mulheres permaneçam com homens que as maltratam?”. A questão é relevante e merece atenção. Em primeiro lugar é muito importante não emitir julgamento de valor em relação ao comportamento de permanecer na relação por parte da mulher, seja ele fruto de escolha ou motivado por chantagem, pressão ou medo. Cabe lembrar que violência é “uma” dimensão da relação. Toda conjugalidade é complexa e envolve múltiplas dimensões.

A mulher pode decidir permanecer na relação em função da presença de sentimento de lealdade, amor, apego e união para com o cônjuge; sentimento de dependência; sentimento de proteção e preocupação com o impacto da denúncia sobre outros membros da família e em função do medo da desintegração da família. Cabe considerar ainda o equilíbrio entre os benefícios da relação e os custos da violência.

As manifestações de violência envolvem ciclos repetitivos. A teoria do Ciclo da violência formulada por Walker (1994) delineia as seguintes fazes: 1. Período de aumento da tensão, que geralmente é precedido por um processo de corte e sedução. Nesse momento a mulher pressente que algo está errado e pode tentar utilizar uma série de estratégias para acalmar o parceiro. Tal comportamento é motivado pela ideia de que a mulher é capaz de controlar o comportamento violento do homem. Lamentavelmente esse não é o caso – dificilmente uma mulher

é  capaz de evitar a fase de explosão da violência. Essa fase de tensão é seguida pela fase do ataque – ou seja, o momento de ocorrência de incidente agudo de violência. Posteriormente vem a fase da “Lua de Mel”, marcada por um período de falta de tensão, constrição e tentativa de reparação.

Soihet (1997) propôs uma outra tese – a de que mulheres que vivem em contextos de violência vão ao longo do tempo fazendo uma incorporação da lógica da violência. De acordo com a autora, passado o momento de dor extrema, é   possível que a mulher “esfrie a cabeça” e comece a buscar na lógica patriarcal internalizada as justificativas e explicações para o ato violento. Decorre daí a tendência tanto do homem quanto da mulher de minimizar, negar, tentar esquecer, mentir sobre o comportamento. Ademais, o parceiro tende a prometer e a mulher tende a acreditar que a manifestação de violência foi acidental e não vai acontecer de novo.

A repetição e a permanência desse ciclo trazem consequências para a saúde física e mental das mulheres e dos demais familiares, em especial os filhos. No tocante à saúde física os incidentes de violência podem envolver lesões corporais graves: socos, tapas, chutes, amarramentos, espancamentos, estrangulamentos; queimadura de seios e genitália: quebradura de vértebras e de outros ossos do corpo; podem também envolver danos cerebrais.

Pedrosa, Diniz e Moura (2016) apontam que a violência é uma experiência que afeta a saúde das pessoas e precisa ser inserida na agenda nacional de Saúde Pública, por se tratar de problema grave que afeta as taxas de morbidade e mortalidade. Elas ressaltam ser importante criar estratégias que tragam as mulheres agredidas para os serviços públicos e as acolham de forma humanizada. Mulheres em situação de violência costumam ter receio de pedir ajuda e muitas vezes as próprias dificuldades de acesso aos serviços e a falta de preparo dos servidores para acolher e lidar com a situação de violência podem constituir outro obstáculo ao atendimento.

A médica sanitarista Carmen Simone Grillo Diniz em artigo de 1997 já ressaltava que é frequente a violência piorar durante a gravidez e o puerpério. Nessa fase existe maior incidência de trauma físico dirigido ao abdômen que podem ter as seguintes consequências: 1. Descolamento da placenta; 2. Partos prematuros; 3. Perda da capacidade de gerar filhos; 4. Infecções; 5. Fraturas de pélvis; 6. Fraturas fatais; 7. Rotura prematura de membranas e órgãos.

Além de afetar a integridade corporal, as manifestações de violência afetam a saúde mental, ou seja, o estado psíquico e emocional da pessoa; o senso de identidade, de segurança e abala profundamente a confiança nos outros. Grande parte das mulheres que vive conjugalidades marcadas pela presença de violências experienciam sintomas de estresse pós-traumático, ou seja, medo e ansiedade generalizados; sentimento de evitação e de constrição afetiva. É comum a presença de dúvidas em relação à competência e eficácia pessoal; presença de sentimento de impotência aprendida; baixa autoestima e autoconceito.

Dados de estudos realizados por organismos internacionais OMS, OEA (2012) apontam que de 40 a 70% de mulheres no mundo afirmam já ter sofrido alguma forma de violência por parte de seus parceiros. Tal fato coloca a violência entre as 10 principais causas de morte de mulheres em todo o mundo. Lamentavelmente, o estresse e desgaste causado pelas manifestações de violência faz com que a cada cinco anos, mulheres percam um ano de vida em função da violência.

Profissionais que trabalham no campo da violência doméstica precisam estar atentos aos impactos das histórias de violência e refletir sobre sua postura profissional. Nesse contexto torna-se fundamental fazer um autoexame das atitudes e ideias pré-concebidas sobre a violência; tomar cuidado com a linguagem que utilizam e evitar fazer uso de ideias pré-concebidas, rótulos, desqualificações, julgamentos. É preciso examinar sua filosofia de vida, ideias, crenças e valores sobre “bem” e “mal”; explorar ideias e tabus sobre gênero – ou seja sobre o que significa ser homem e ser mulher e suas implicações nos contextos relacionais. Por fim, é fundamental examinar as próprias experiências de dor e os medos e temores em relação às várias formas de violência.

Cabe aos profissionais que atuam nessa área estarem atentos aos próprios valores, posicionamentos e dilemas em relação a questões de sexo e gênero. É fundamental que reflitam criticamente sobre as teorias e práticas atentando para as mensagens que elas contêm, ou seja, as maneiras como elas reproduzem mitos, estereótipos e valores culturais que reforçam situações de discriminação de gênero, poder e privilégio entre homens e mulheres. O importante é não reforçar e justificar a adoção de posturas violentas.

A conjugalidade violenta tem uma marca: ela pode causar muitos danos na forma de lesões físicas e psicológicas permanentes. Como se isso não bastasse, o assassinato acaba, infelizmente, terminando precocemente com a vida de muitas mulheres. Nesse contexto, quando outras medidas falham, a morte realmente separa (Diniz, 2011, p. 15).

Diante desse contexto, pesquisas e reflexões sobre a dinâmica conjugal violenta têm, portanto, relevância acadêmica e social.

Monteiro e Souza (2007, p. 26) são contundentes ao afirmarem: “A violência conjugal se manifesta no cotidiano de algumas mulheres como fato repetitivo, cruel, por vezes naturalizado”. Diante dessa realidade, o fato incontestável é que as manifestações de violência, entre elas a violência conjugal, nos colocam questões e desafios. Transcendem o pessoal e afetam a condição humana em uma sociedade complexa, marcada por paradoxos do afeto e em constante processo de transformação.

 

Referências

Brasil, Presidência da República. (2006). Lei Nº 11.340 – “Lei Maria da Penha”.         [ Links ]

Diniz, G. R. S. (2011). Conjugalidade e violência: reflexões sob uma ótica de gênero. In Terezinha Fères-Carneiro (Org.), Casal e família: conjugalidade, parentalidade e psicoterapia (p. 11-26). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Diniz, G. R. S. (2012). Até que a vida – ou a morte – os separe: análise de paradoxos das relações violentas. In Terezinha Feres-Carneiro (Org.). Casal e família: transmissão, conflito e violência (p. 191-216). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Guerra, C. (2004). Violência conjugal e familiar: alguns dados do mundo, Brasil, Minas Gerais e Uberlândia. Brasília: CEFEMEA.         [ Links ]

Lima, D. C., & Büchele, F. (2011). Revisão crítica sobre atendimento a homens autores de violência doméstica e familiar contra as mulheres. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 21( 2), versão on-line, ISSN 1809-4481.         [ Links ]

Monteiro, C. F. de S., & Souza, I. E. de O. (2007). Vivência da violência conjugal: fatos do cotidiano. Texto e Contexto - Enfermagem, 16(1), 26-31.         [ Links ]

Falcke, D., Oliveira, D. Z., Rosa, L. W., & Bentancur, M. (2009). Violência conjugal: um fenômeno interacional. Contextos Clínicos, 2(2), 81-90.         [ Links ]

Organização Mundial da Saúde – OMS. (2012). Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher: ação e produção de evidência. ISBN 978-92-75-71635-9. Recuperado de <http://www.who.int/eportuguese/publications/pt/> em 15/10/2016.

Pedrosa, C. M., Diniz, C. S. G., & Moura, V. G. A. L. (2016). Construção de uma política intersetorial e interinstitucional para o enfrentamento da violência como um problema social. Ciencia & saúde coletiva, 21(6). Recuperado de <http://www.scielosp.org/pdf/csc/ v21n6/en_1413-8123-csc-21-06-1879.pdf> em 15 out. 2016.         [ Links ]

Saffioti, H. I. B. (1999). Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo em Perspectiva, 13(4), 82-91.         [ Links ]

Saffioti, H. (2003). Violência estrutural e de gênero – Mulher gosta de apanhar. In Programa de Prevenção, assistência e combate à violência contra a mulher. Diálogos sobre a violência doméstica e de gênero: construindo políticas públicas. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.         [ Links ]

Santos, B. F. dos (2016). Reportagem “Em 5 anos, violência no Brasil mata mais que a guerra na Síria”. Revista Exame (datada de 28 de outubro de 2016).         [ Links ]

Scaffo, M. F., &Farias, F. R. (2011). A transmissão dos protocolos de gênero como dispositivo de submissão feminina à violência conjugal. Florianópolis: Revista Internacional Interdisciplinar Interthesis, 8, 134-159.         [ Links ]

Soihet, R. (1997). Violência simbólica. Saberes masculinos e representações femininas. Revista Estudos Feministas, 5(1), 7-29.         [ Links ]

Walker, L. E. A. (1994). Abused women and survivor therapy. Washington: American Psychological Association.         [ Links ]

 

 

Recebido em 30 de outubro de 2016
Aceito para publicação em 15 de março de 2017

Creative Commons License