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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.29 no.1 Rio de Janeiro  2017

 

SEÇÃO LIVRE

 

Metas de socialização e práticas educativas de mães de crianças com câncer: um estudo comparativo com mães de crianças sem diagnóstico de doença

 

Socialization goals and educational practices of mothers of children with cancer: a comparative study with mothers of children without diagnose of disease

 

Metas de socialización y las prácticas educativas de madres de niños con cáncer: un estudio comparativo con madres de niños sin diagnostico de enfermedad

 

 

Joana Lezan Sant’AnnaI; Deise Maria Fernandes Leal MendesII

IDoutoranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIProfessora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Metas de socialização e práticas educativas constituem importantes temas na pesquisa recente em diferentes subáreas da Psicologia. Informam a respeito de aspectos relevantes da parentalidade e do desenvolvimento de crianças. O presente trabalho visou aprofundar o estudo sobre tais metas e práticas a partir de situações de vida particularmente difíceis, como uma doença crônica de filho(a). Comparou dados de mães cujos filhos estão em tratamento oncológico com os de mães de crianças saudáveis. Participaram deste estudo 20 mães de crianças de três a cinco anos que estavam em tratamento no Instituto Nacional de Câncer e 20 mães de crianças da mesma idade, saudáveis, todas residentes no Rio de Janeiro. Foram aplicados instrumentos de coleta de informação sociodemográfica e sobre metas de socialização, e realizada entrevista semiestruturada para investigar práticas educativas. Verificou-se que as metas de socialização das mães de crianças em tratamento oncológico apresentaram diferenças em relação às outras mães, no sentido de valorizarem mais características individualistas (bem-estar, desenvolvimento pessoal) do que sociocêntricas (bom comportamento, exercício de papéis sociais). Quanto às práticas educativas, identificou-se tendência das mães de crianças em tratamento oncológico a adotarem mais práticas coercitivas em situações ligadas ao tratamento e mais práticas indutivas em outras situações.

Palavras-chave: câncer infantil; metas de socialização; práticas educativas.


ABSTRACT

Parental socialization goals for their children and the practices adopted to achieve these goals constitute an important theme in recent research in Social Psychology. This study aims to further study on the impacts of complicated life situations on these goals and practices. It compares mothers whose children are undergoing cancer treatment with mothers of healthy children. The study accessed 20 mothers of children from three to five years that were undergoing cancer treatment at the National Cancer Institute and 20 mothers of children in the same age interval without disease diagnosis, all residents in the city of Rio de Janeiro. Instruments were applied to collect socio-demographic information and data about socialization goals and semi-structured interviews were conducted to investigate educational practices. It was found that the socialization goals of mothers of children undergoing cancer treatment are different from those of the other mothers in the sense of valuing more individualistic (welfare, personal development) than sociocentric treats (good behavior, exercise of social roles). As for the educational practices, it identified a tendency of mothers of children undergoing cancer treatment to adopt more coercive practices when facing the need of medical interventions and more inductive practices in other situations.

Keywords: pediatric cancer; socialization goals; educative actions.


RESUMEN

Metas de socialización de madres para sus hijos y prácticas adoptadas para lograr estas metas constituyen importante tema de investigación en Psicología Social. Este estudio objetiva investigar los impactos de situaciones de vida complicadas en estos objetivos y practicas. Compara madres de hijos en tratamiento del cáncer con madres de niños sanos. Incluye 20 madres de niños de tres a cinco años sometidos a tratamiento contra el cáncer en el Instituto Nacional del Cáncer y 20 madres de niños de la misma edad sin diagnóstico de enfermedad, todos residentes en Río de Janeiro. Cuestionarios se aplicaron para recopilar información sociodemográfica y datos sobre objetivos de socialización y entrevistas semi-estructuradas se llevaron a cabo para investigar las prácticas educativas. Se encontró que los objetivos de socialización de las madres de los niños sometidos a tratamiento contra el cáncer son diferentes de los de las otras madres en el sentido de valorar más características individualistas (bienestar, desarrollo personal) que sociocéntricas (buena conducta, ejercicio de roles sociales). En cuanto a las prácticas educativas, se identificó una tendencia de las madres de niños sometidos al tratamiento a adoptar prácticas más coercitivas cuando enfrentan necesidad de intervenciones médicas y prácticas más inductivas en otras situaciones.

Palabras clave: cáncer infantil; metas de socialización; prácticas educativas.


 

Introdução

Metas de socialização têm sido tradicionalmente um tópico de estudo da Antropologia. Mais recentemente, contudo, tornaram-se também relevantes para a Psicologia, em função do reconhecimento de sua importância e impacto no desenvolvimento da criança. O interesse no tema cresceu com a valorização do papel da cultura no desenvolvimento de indivíduos (Harkness et al., 2010), consubstanciado na relação entre as trajetórias de desenvolvimento individuais (perspectiva micro) e o ambiente sociocultural onde esses indivíduos vivem (perspectiva macro).

As metas de socialização se referem a como os pais desejam que seus filhos sejam no futuro e àquilo que eles esperam que sua criação ajude a promover em seus filhos. Keller (2012) afirma que metas de socialização capturam os ideais do grupo cultural com relação ao que priorizam como resultado do desenvolvimento, isto é, como modo ideal de ser dentro de um ambiente sociocultural particular. Concretizam-se em objetivos a longo prazo que os pais projetam para seus filhos e que influenciam as práticas de cuidado destes com suas crianças.

Tais objetivos podem ser variados e são específicos do ambiente sociocultural dos pais. Diversos estudos foram conduzidos no sentido de avaliar as metas de socialização em diferentes contextos. Harwood, Schöelmerich, Ventura-Cook, Schulze e Wilson (1996), por exemplo, avaliaram metas de socialização de pais nas populações anglo-americana e porto-riquenha e identificaram influência da cultura e da classe socioeconômica destes países, encontrando na cultura o aspecto mais relevante.

Nesse estudo, os autores propuseram uma classificação para as metas de socialização que foi utilizada neste estudo. Foram propostas as categorias de autoaperfeiçoamento, autocontrole, emotividade, expectativas sociais e bom comportamento, que vêm sendo usadas em estudos brasileiros e internacionais com esse foco investigativo (Seidl-de-Moura et al., 2008; Ng, Tamis-LeMonda, Godfrey, Hunter, & Yoshikawa, 2012).

A categoria autoaperfeiçoamento está relacionada ao desenvolvimento nos planos pessoal, profissional e interpessoal. A categoria autocontrole refere-se à capacidade da criança de conter seus impulsos negativos, tais como agressividade, ciúmes ou ganância excessiva. A categoria emotividade diz respeito à capacidade da criança de desenvolver intimidade emocional, amar e ser amada. A categoria expectativas sociais refere-se à capacidade da criança de obedecer a regras sociais, como trabalhar e seguir normas e leis. Por fim, a categoria bom comportamento refere-se à capacidade da criança de futuramente desempenhar bons papéis (como ser bom pai e boa mãe) e ter maneiras polidas.

Como parte dos resultados obtidos, Harwood et al. (1996) observaram que a população anglo-americana apresentou metas de socialização consideradas mais individualistas, com valorização do senso de autonomia e escolha pessoal, apresentando escores mais elevados para autoaperfeiçoamento e autocontrole. Já para porto-riquenhos, as metas mais sociocêntricas, com maior valorização da relação interpessoal, associada a escores mais altos para expectativas sociais e bom comportamento.

Estudos transculturais desenvolvidos por Keller (2012) também discutem metas de socialização como fontes de diferentes trajetórias de desenvolvimento do self, com modelos que valorizam a autonomia e/ou a interdependência. Segundo esses modelos, pode ocorrer o desenvolvimento de um self mais autônomo e independente, com foco nas qualidades pessoais, características relacionadas ao autocontrole e competitividade, ou o desenvolvimento de um self interdependente, que prioriza as relações sociais, a cooperação e a harmonia. Para a autora, essas duas dimensões, de autonomia e interdependência, estão presentes em todas as sociedades como necessidades humanas universais, porém em variadas proporções.

Os pressupostos que orientam essa concepção teórica são os de que os valores e características da cultura forjam as metas de socialização de cuidadores que, por sua vez, impactam o desenvolvimento da criança. Destaca-se, no entanto, que existem variações e diferentes gradações tanto em termos de sociedades mais individualistas ou mais sociocêntricas, quanto em termos de desenvolvimento de selves mais autônomos ou mais interdependentes (Harwood et al., 1996; Keller, 2012).

A influência do ambiente sociocultural nas metas de socialização se reflete ainda nas práticas de cuidado e interações entre pais e crianças (Harkness et al., 2010). Além do impacto das metas de socialização no desenvolvimento dos filhos, as práticas de cuidado parentais parecem influenciar significativamente o desenvolvimento infantil (Harkness et al., 2010). Segundo Vieira et al. (2010), mudanças nas metas de socialização envolvem longos processos e demoram muito a acontecer, ficando, por isso, muito mais enraizadas do que no caso de práticas de cuidado ou práticas educativas.

Do repertório de comportamentos parentais privilegiam-se neste estudo as práticas educativas. Essas práticas parentais podem ser agrupadas em duas grandes categorias distintas, segundo Piccinini, et al. (2003): as indutivas e as de força coercitiva. Ambos os tipos de prática têm por função comunicar à criança a forma correta que se espera com que ela se comporte. Os pais atuam, portanto, nessas práticas, como agentes de socialização dos seus filhos (Marin et al., 2013), cabendo salientar que elas assumem forma e função associadas a significados compartilhados culturalmente. Assim, práticas educativas consideradas inadequadas em certos contextos socioculturais podem ser aceitas e consideradas benéficas em outros. Essa classificação de categorias foi empregada no estudo aqui apresentado.

Seguindo Piccinini et al. (2003), as práticas indutivas (ou positivas) caracterizam-se por buscar atingir um objetivo disciplinar indicando para a criança as consequências do seu comportamento. Já as coercitivas (ou negativas), caracterizam-se pela aplicação direta da força, incluindo punição física, privação de privilégios e afeto ou uso de ameaças. Em contexto brasileiro, urbano, no sul do país, por exemplo, estudado por Sapienza, Aznar-Farias e Silvares (2009), as práticas de caráter indutivo encontraram-se associadas ao desenvolvimento de padrões de comportamento considerados ajustados, competência social e cooperação, enquanto as de força coercitiva tenderam a estar relacionadas a problemas de comportamento.

Para além do impacto da referência cultural, as práticas educativas, segundo Marin et al. (2013), embora tenham grande influência da geração anterior, são influenciadas também por características da criança e dos pais. Um estudo de Wang, Chan e Lin (2012) mostrou que, embora as metas de socialização influenciem as práticas educativas, há momentos em que essas práticas não condizem com as metas parentais. É mencionada como exemplo a situação em que a criança tirava notas baixas na escola, e mesmo os pais que possuíam metas de socialização de autonomia, que os autores referem correlacionarem-se com práticas indutivas, apresentaram práticas coercitivas, como induzir culpa nos filhos, ou recusar amor, como forma de forçá-los a realizar os desejos parentais.

Com base nas evidências trazidas por esses estudos e em reflexões a partir delas, é possível pensar que, além do ambiente sociocultural e de características da criança e de seus pais, algumas situações de vida podem influenciar de forma significativa tanto metas de socialização, quanto práticas educativas. Nossa hipótese é a de que a vivência de uma doença como o câncer, em uma criança, cria uma circunstância nova e de tal modo impactante que afetará as metas de socialização e práticas educativas dos pais.

O câncer ou neoplasia é uma doença provocada pela multiplicação desordenada de células que dão origem a tumores ou substituem as células normais de um ou mais órgãos, prejudicando suas funções (Andrea, 2008). Considera-se existir uma combinação de uma mutação genética com algum fator ambiental desencadeante (radiações ionizantes, raios-X, radioterapia etc.). Devido à dificuldade de identificação de uma causa para o câncer, várias fantasias em torno de sua etiologia são criadas, muitas vezes causando sofrimento para pais e crianças com a doença. É comum associações da doença com julgamentos relacionados a causas morais ou psicológicas, gerando culpa nos pais ou na criança, que passam a imaginar que de alguma forma provocaram a doença.

Apesar de apresentar um alto índice atual de cura, o tratamento do câncer é muito custoso, passando o paciente por procedimentos invasivos e dolorosos e tendo sequelas temporárias ou definitivas importantes. Além disso, é demorado, levando em média de seis meses a dois anos. Segundo Long e Marsland (2011), o câncer afeta toda a organização familiar, mas isso é mais intenso no caso do câncer infantil, no qual muitas vezes o sofrimento psíquico dos cuidadores é ainda maior do que o do doente. A atitude dos pais influencia diretamente o processo de enfrentamento da criança e o mesmo ocorre inversamente (Sanjari, Heidari, Shirazi & Salemi, 2008).

Segundo Moreira e Angelo (2008), a mãe é identificada como a principal fonte de suporte e quem geralmente assume o cuidado da criança com câncer. A alteração nos seus planos de vida e a transição de ser mãe de uma criança que ela conhece como saudável para ser mãe de uma criança com câncer requer uma redefinição de sua própria identidade e do papel de mãe. A vivência da experiência do câncer e a inserção em uma instituição de tratamento cria a necessidade de ajustamentos comportamentais para a criança e sua mãe, criando circunstâncias que, especula-se, influenciarão suas metas e práticas parentais.

As mães de crianças com câncer passam, com seus filhos, por tratamento médico prolongado, envolvendo episódios de internação hospitalar, exposição a procedimentos médicos invasivos e a incômodos protocolos de quimioterapia antineoplásica. Além disso, há vivências de ansiedade, dúvidas, medos e perdas.

A enfermidade crônica na infância pode afetar profundamente a percepção das mães acerca do desenvolvimento de seus filhos, bem como a forma como a disciplina é introduzida e conduzida na vida da criança. Foi identificada uma tendência nas mães de crianças com doença crônica a utilizar com menor frequência práticas consideradas coercivas, tais como limites e castigos (Picci-nini et al., 2003). Além disso, verificou-se a presença de infantilização, contato excessivo e inibição do desenvolvimento de comportamentos de autonomia do filho em mães de crianças com câncer (Herman & Miyazaki, 2007; Zebrak & Isaacson, 2012). Comportamentos de superproteção e permissividade pelos pais que têm muitas vezes medo de estabelecer limites, acreditando que tornarão os filhos mais tristes e poderão prejudicar ainda mais a sua condição médica, também foram encontrados em pais de crianças com doenças crônicas (Gon, Gon & Zazula, 2013). Parece que o sistema de cuidados parentais é modificado em função das dificuldades em lidar com sentimentos de impotência em proteger o filho dos procedimentos dolorosos, originando maior permissividade (Kohlsdorf & Costa Junior, 2012).

As práticas educativas podem ser, portanto, modificadas dentro da situação da doença oncológica e podem trazer implicações importantes para o desenvolvimento da criança. No entanto, em extensa revisão da literatura a respeito de dificuldades vivenciadas pelos cuidadores de crianças em tratamento onco-hematológico, em publicações de 1999 a 2009 (Kohlsdorf & Costa Junior, 2012), verificou-se que o tema das práticas educativas é ainda muito pouco abordado.

Um importante aspecto do estudo de práticas educativas é o da influência destas na reação das crianças à doença e ao tratamento. Foi observado, por exemplo, que a capacidade dos pais de fazer humor e distrair seus filhos foi relacionada à diminuição do estresse das crianças. Por outro lado, pedidos de desculpas, afirmações empáticas, elogios ou críticas foram associadas com o aumento do estresse das crianças em situação de dor (Barros, 2010).

Pais confortadores foram capazes de reduzir significativamente o nível de estresse de crianças em situações novas, enquanto pais superprotetores deixaram as crianças mais medrosas com relação a situações novas (Kertes et al., 2009). Evidências também indicaram maior cooperação de crianças com os procedimentos invasivos e menos estresse quando a intervenção dos pais era mediada por profissionais que ajudavam estes pais a diminuir sua própria ansiedade (Johnston et al., 2012).

A partir dos resultados de investigações e discussões apresentadas, conclui-se que, além da cultura e de variáveis do contexto social, certas situações e experiências marcantes e prolongadas de vida podem impactar as metas de socialização e as práticas educativas dos cuidadores. Na revisão da literatura, não foram identificados estudos sobre metas de socialização de mães com filhos acometidos de doença crônica e apenas alguns poucos estudos foram encontrados sobre práticas educativas nessa circunstância específica, o que indica carência de pesquisas que cubram essa lacuna, especialmente as voltadas para a situação particular de crianças em tratamento oncológico.

Argumenta-se aqui pela importância de investigações sobre as metas de socialização e das práticas educativas de mães de crianças com câncer, para melhor entender-se como a situação de um filho com essa doença crônica repercute nas etnoteorias parentais e práticas dos cuidadores e, por consequência, no desenvolvimento das crianças. Nesse sentido, o presente trabalho tem por objetivo investigar as metas de socialização e práticas educativas de mães de crianças de três a cinco anos, residentes na cidade do Rio de Janeiro, em tratamento oncológico com vistas à cura, e compará-las com as de mães de crianças consideradas saudáveis.

Uma das hipóteses investigadas foi a de que mães de crianças com câncer têm metas de socialização mais sociocêntricas do que mães de crianças sem doença diagnosticada, e com menor prioridade para autonomia, principalmente no médio prazo. Tal hipótese está baseada em resultados de estudos que indicam que mães de crianças com doença crônica, particularmente com câncer, apresentaram tendência a inibir comportamentos de autonomia e a superproteger seus filhos, estimulando a dependência (Gon, Gon & Zazula, 2013).

Outra hipótese testada foi a de que mães de crianças com câncer adotam estratégias de ação para atingirem suas metas de socialização diferentes das adotadas por mães de crianças sem doença diagnosticada. Isso se daria em decorrência de mudanças nas metas e em decorrência de modificações gerais no comportamento dessas mães, com maior tendência à superproteção e infantilização dos filhos, observadas em alguns estudos (Piccinini et al., 2003). Hipotetizou-se, ainda, que mães de crianças em tratamento oncológico diferem das demais mães nas suas práticas educativas, no sentido de adotarem práticas mais permissivas e menos coercitivas. Como apontado por Kohlsdorf e Costa Junior (2012), essas mães, devido a dificuldades em lidar com sentimentos de impotência em proteger o filho, teriam maior dificuldade de definir limites e responsabilidades.

 

Metodologia

Participantes

Participaram deste estudo 20 mães de crianças de três a cinco anos que estavam em tratamento oncológico no INCA (na fase crônica, por pelo menos três meses, com vistas à cura) e 20 mães de crianças na mesma faixa etária sem problemas de saúde diagnosticados.

As médias de idade das mães participantes de cada um dos dois grupos foram próximas, sendo, para as de mães de crianças que não tinham diagnóstico de doença, em torno de 34 anos (M=34,4; DP=4,65) e, para as mães do INCA, em torno de 32 anos (M=32,1; DP=5,36). A maioria das mães do primeiro grupo possuía pós-graduação (55%), seguido por ensino superior (ES) incompleto (25%), ES completo (10%) e ensino médio (EM) completo (10%). Já as mães do INCA apresentaram, em sua maioria EM completo (40%), seguido por ensino fundamental (EF) completo (15%), EF incompleto (15%), EM incompleto (10%), ES incompleto (10%) e ES completo (10%). Com relação ao estado civil, as mães que não eram do INCA estavam na maioria absoluta casadas ou em união estável (95%), apenas uma mãe (5%) era solteira. Já no INCA, houve maior variação na amostra, sendo 45% casadas ou em união estável, 35% solteiras e 20% separadas.

As crianças tinham média de idade de 54 meses nos dois grupos (M=54,05; DP=11,39, para as sem diagnóstico; e M=54,80; DP=8,50, para as que estavam em tratamento no INCA). A distribuição por sexo no primeiro grupo mostrou a mesma proporção de meninos e meninas, e no grupo em tratamento no INCA uma proporção maior de meninas (60%). Com relação ao tempo que cada mãe passava com seu filho, as mães do INCA relataram passar o dobro de tempo com seus filhos (M=15,2 h/dia) do que as mães que não eram do INCA (M=7,6 h/dia).

Instrumentos

Para a realização da pesquisa foram utilizados os seguintes instrumentos: formulário de identificação, formulário de dados sociodemográficos, questionário de metas de socialização. No formulário de identificação foram informados: nome e data de nascimento da mãe e da criança, e dados para contato. No formulário de informações sociodemográficas foram solicitados: idade da criança e, para a mãe, o nível educacional, estado civil e quantas horas por dia ficava com o filho.

O questionário de metas de socialização foi definido a partir do questionário SGI – Socialization Goals Interview, desenvolvido por Harwood (1992), e adaptado e usado em outros estudos (Harwood et al., 1996; Seidl-de-Moura et al., 2008). O estudo aqui apresentado buscou obter as metas de socialização das mães em relação a seus filhos, em longo prazo e num futuro mais próximo (em 10 anos), através de três questões que investigaram o que as mães desejavam para o futuro dos seus filhos e a forma como elas achavam que essas expectativas seriam atingidas. Foram formuladas as seguintes questões: “Que qualidades você desejaria que seu filho(a) tivesse daqui a cerca de dez anos?”; “Que qualidades você desejaria que seu filho(a) tivesse como adulto?”; e “O que você pensa que pode fazer para que ele(a) possa desenvolver essas qualidades”.

Entrevista

A entrevista realizada com as mães seguiu o seguinte roteiro:

1)   Conte uma ou mais situações recentes vividas por você, digamos nas últimas semanas, em que foi difícil lidar com seu(ua) filho(a) e diga o que você fez em tais situações.

2)  Ouça algumas situações fictícias que vou apresentar para você. Após ouvir cada uma delas, responda, por favor, às seguintes perguntas:

Essa situação já ocorreu com você? Se sim, como você lidou com ela e o que sentiu? Se não, procure imaginar que ela tenha ocorrido e diga como você agiria e o que acha que sentiria.

Situação 1: Seu(ua) filho(a) se joga no chão, fazendo birra e chorando alto quando é contrariado por você, que não fez o que ele(a) queria.

Situação 2: Seu(ua) filho(a) não quer tomar uma vacina porque diz que vai doer muito.

Situação 3: Seu(ua) filho(a) acha que fez algo errado e que você vai ficar desapontada com ele(a) e por esse motivo está evitando falar com você.

 

Procedimentos

Os contatos com as possíveis participantes que eram mães de crianças com câncer foram feitos no ambulatório e enfermaria de Pediatria do INCA, tendo-lhes sido fornecidas informações sobre a pesquisa e seus objetivos. Havendo concordância na participação, foi acertada data para a realização de uma entrevista, além da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e aplicação dos instrumentos indicados acima. O mesmo procedimento ocorreu com as mães de crianças saudáveis, sendo que estas foram contatadas através de indicações de pessoas conhecidas e membros do grupo de pesquisa de que fazem parte as autoras deste estudo.

Coleta dos dados

Além da aplicação dos instrumentos mencionados foi realizada uma entrevista, que, para as mães com filhos em tratamento oncológico, se deu no INCA e, para as demais, em local de sua preferência. A entrevista visou avaliar as práticas educativas das participantes, e se deu segundo o roteiro mencionado. As questões foram baseadas em pesquisa realizada por Piccinini et al. (2003).

Análise de dados

As respostas à primeira e à segunda perguntas do questionário de metas de socialização foram analisadas com base nas categorias definidas por Harwood et al. (1996) e por Leyendecker, Lamb, Harwood e Shölmerich (2002), e adaptadas para estudos com população brasileira por Seidl-de-Moura et al. (2008). Tais categorias incluem: autoaperfeiçoamento, autocontrole, emotividade, expectativas sociais e bom comportamento. As respostas à terceira pergunta foram analisadas pelo método de análise de conteúdo temático-categorial (Oliveira, 2008), baseado na análise de conteúdo de Bardin. A partir de leitura flutuante do material, foram definidas as categorias educar e orientar (pelo exemplo pessoal, explicação verbal e medidas disciplinares), incentivar autonomia (incentivar independência, delegar atividades do dia-a-dia), manter proximidade pessoal (fazer-se presente, expressar amor e carinho) e prover recursos externos (financeiros, socioculturais - proporcionar experiências e oportunidades consideradas positivas para a vida e desenvolvimento; familiares – prover ambiente familiar considerado como saudável). Com relação à entrevista, as respostas à

Questão 1 e às situações na Questão 2 foram analisadas através das categorias adaptadas com base no estudo de Piccinini et al. (2003), que se dividem em práticas indutivas e coercitivas.

Análises estatísticas também foram implementadas, utilizando-se o teste de Mann-Whitney para: (1) comparação entre as metas de socialização dos dois grupos de mães (as de longo e médio prazos), a fim de testar a hipótese de que mães de crianças com câncer têm metas de socialização mais sociocêntricas do que mães de crianças sem doença diagnosticada; (2) contrastar os dados das mães de crianças em tratamento oncológico com os das demais quanto às estratégias de ação para atingirem as metas de socialização; (3) verificar possíveis diferenças quanto às práticas educativas, testando se mães de crianças sem doença diagnosticada utilizariam mais práticas coercitivas que mães de crianças com câncer.

Procedimentos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Protocolo 26680414.1.0000.5282), e pelo Comitê de Ética do INCA (Protocolo 26680414.1.3001.5274).

 

Resultados e discussão

A primeira parte das análises realizadas visou avaliar a existência de diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos de mães com relação a suas metas de socialização. Com isso, foi possível analisar tendências para o que Harwood et al. (1999) chamaram de tendência mais individualista (maior valorização da automaximização e do autocontrole) ou mais sociocêntrica (maior valorização das expectativas sociais e do bom comportamento).

Como pode ser visto na Tabela 1, nas metas de socialização a médio prazo verificou-se que há uma presença maior de metas de automaximização (tendência individualista, de autonomia) para as mães do grupo INCA quando comparadas com as mães do grupo NÃO-INCA (U=315,50; p<0,05). Com relação às expectativas sociais e à emotividade, cuja maior presença considera-se indicar o prevalecimento da tendência sociocêntrica, verificou-se que estas foram significativamente mais presentes no grupo NÃO-INCA do que no grupo INCA (expectativas sociais: U=112,00, p<0,05; emotividade: U=108,50, p<0,05). Já quanto às categorias de autocontrole e bom comportamento não foram observadas diferenças significativas entre os dois grupos. A longo prazo, não houve diferença significativa entre os grupos quanto a nenhuma das categorias de metas de socialização.

 

 

A maior valorização da automaximização pelas mães do grupo INCA não era um resultado esperado, mas pode ser melhor compreendida examinando as respostas das mães ao questionamento feito a respeito de suas metas de socialização. Para a pergunta “Como você deseja que seu filho seja daqui a 10 anos?”, algumas das respostas obtidas foram: mãe A: “Saudável, continuasse saudável.”, mãe B: “Primeira coisa que eu gostaria que ela tivesse: saúde, com certeza saúde.”, mãe C: “Uma criança saudável, né? Isso que eu quero.”, e mãe D: “Que esteja bem, com saúde (se Deus quiser), livre dessa doença, que ela já está (em nome de Jesus).”. De um total de vinte respostas (20 mães), em treze houve referência à saúde, no grupo INCA, e nenhuma no grupo NÃO-INCA, o que parece condizente com a situação vivida. Assim, percebe-se a grande preocupação que o grupo INCA mostra com a saúde e o bem-estar físico, um aspecto contemplado na categoria automaximização.

A compreensível preocupação com a saúde pode ser vista como razão para elevação do escore da categoria automaximização, o que parece justificado pela apreensão por que essas mães passam, devido à doença de seus filhos. Isso converge com o que a literatura aponta, como pode ser visto no estudo de Silva et al. (2002), em que os autores relatam preocupação frequente dos pais de crianças com câncer com a integridade física e psicológica dos seus filhos.

É interessante notar também que esse aspecto tenha aparecido de modo mais intenso nas metas a médio prazo. Parece fazer sentido que as mães de crianças com câncer tenham foco maior em sua preocupação quanto ao bem-estar físico dos filhos nos anos seguintes, que são os que envolvem o tratamento e controle do quadro até a efetiva liberação do paciente. Para um momento mais distante, pensando nos filhos já adultos, em que podem estar levando em consideração já estarem curados, esse efeito no escore da categoria de automaximização não foi encontrado.

Os resultados indicaram, ainda, menor priorização de valores sociocêntricos, ao ter-se encontrado menor indicação de metas relacionadas às expectativas sociais e à emotividade, por parte das mães do INCA. Tal situação parece coerente com o fato de que essas crianças parecem se tornar prioridade para outras pessoas, especialmente os membros da família, em um fenômeno de centralização na criança, relatado por Silva et al. (2002), o que pode levar a metas mais voltadas para tendências individualistas em relação a tais crianças. Adicionalmente, é possível considerar que o risco de morte da criança torna seu bem-estar de extrema relevância para os pais, levando-os a reivindicar para o filho em risco uma situação de excepcionalidade, a par de toda a preocupação com a família e consciência social. Essa situação pode ser ilustrada pela fala da mãe G: “A gente que é mãe deseja tudo de bom. A gente não sabe o que pode acontecer daqui pra frente”.

Foram também objeto de interesse desse estudo as estratégias de ação adotadas pelas mães para alcançar suas metas de socialização. Nesse aspecto, identificou-se maior uso da estratégia de educar e orientar por parte das mães do grupo NÃO-INCA (M= 0,36, DP= 0,19) do que das mães do grupo INCA (M= 0,21, DP= 0,20), (d= 0,15; p<0,05). Para as outras categorias não foram encontradas diferenças significativas, como pode ser visto na tabela 2.

 

 

O maior uso da estratégia educar e orientar por parte do grupo NÃO-IN-CA e a ausência de diferenças significativas nas outras categorias são evidências que remetem ao que argumentam Kohlsdorf e Costa Junior (2002). Estes autores discutem a dificuldade das mães de crianças com câncer de lidarem com suas dificuldades emocionais e, ao mesmo tempo, ajudarem seus filhos a lidarem com as próprias, o que pode dificultar o uso da estratégia de educar e orientar. Sendo uma categoria de estratégias que envolve mais reflexão do que ação relativamente às outras três (incentivar autonomia, manter proximidade pessoal e prover recursos externos), pode ser mais difícil para mães sobrecarregadas emocionalmente. Além disso, por envolver requisitos como ter atitudes no sentido de dar limites à criança e impor respeito e obediência, pode significar uma dificuldade adicional para as mães do INCA.

Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos no que se refere às práticas educativas (tabela 3). Esse resultado não confirmou os achados de Piccinini et al. (2003), de uma tendência no grupo de mães de crianças sem doença crônica a utilizar com maior frequência do que mães de crianças com doença crônica práticas consideradas assertivas, tais como limites e castigos. Essa dissonância pode ser pensada em termos da diversidade de noções e valores culturais existentes entre os dois contextos em que foram realizados o presente estudo e o estudo mencionado. Pode ser também considerada como possível condição explicativa para tal diferença o tipo de patologia da criança, já que neste estudo são consideradas crianças em tratamento oncológico e no de Piccinini et al. (2003) doenças crônicas em geral.

 

 

Outras evidências trazidas pelo estudo de Piccinini et al. (2003) mostraram que pais de crianças com doenças crônicas apresentaram dificuldades em lidar com seus filhos, manifestando comportamentos por vezes conflitantes. Estes achados talvez ajudem a entender os resultados para práticas coercitivas nas mães do grupo INCA. Pode ser que, em função da situação ou das circunstâncias envolvidas, a frequência de práticas coercitivas seja mais baixa, como relatado em outros estudos (Kohlsdorf & Costa Junior, 2012; Piccinini et al., 2003), em alguns momentos, mas não em outros, como se percebe na experiência da primeira autora em seu trabalho no INCA.

A ausência de diferença estatisticamente significativa entre os grupos de mães deste estudo no que concerne a práticas educativas pode indicar um esforço das mães do INCA em educar seus filhos da mesma forma com que se educa qualquer criança, como pode ser visto na fala de uma das mães quando diz: “Trato como uma criança normal, se tiver que brigar eu vou brigar, se tiver que bater, dar uma palmadinha, eu vou dar, entendeu? E faço com que ele saia do chão”.

Outra possível explicação para a adoção desse tipo de prática é que, no caso do câncer, as mães se inclinam, ainda que a contragosto, a recorrer a práticas coercitivas por desejarem assegurar a plena submissão das crianças ao tratamento, fator essencial para alcançar a cura. Johnston et al. (2002) mostraram quão alta é a ansiedade dos pais de crianças internadas durante os procedimentos invasivos aos quais a criança precisa ser submetida durante tratamento, levando-os muitas vezes a intervenções disciplinares mais “duras”, de modo a tentarem assegurar que a criança colabore com os procedimentos.

Nesse sentido, a mãe A, por exemplo, disse: “Eu digo que ela tem que tomar. Infelizmente não tá ao alcance dela escolher, ela precisa, ela tem que tomar. Muitas vezes eu seguro à força”. A mãe D também usa a coerção física e coloca em pauta também o seu sofrimento: “Seguro ele, dão a injeção, depois eu converso. Choro junto com ele”. A mãe G apresenta uma fala bem parecida: “Eu deixo fazer. Eu deixo continuar o tratamento. Tem um agora, quando ela toma, eu seguro ela”. A mãe S reforça a fala das demais: “Eu dou mesmo assim. Toda vez é uma gritaria. Ela diz: ‘– Por favor, não.’ ... Converso com ela, que é pro bem dela. ...

‘Dói mais na gente do que neles’”.

Esse motivo para adotar atitudes coercitivas pode estar contrabalançando, estatisticamente, a presença do comportamento geral menos coercitivo previsto. Uma das mães do INCA apresentou uma fala condizente com o que a literatura traz, ao apontar a dificuldade dos pais na imposição de limites aos filhos (Kohl-sdorf & Costa Junior, 2012). Indicando que em algumas mães essa dificuldade também está de certa forma presente e precisa ser considerada, a mãe diz: “Eu não sei o que fazer, porque ela está doente, ela está passando por essa situação. Porque, quando a criança tem saúde, ela faz birra, você pega, bota de castigo, tira as coisas: ‘você não vai ver televisão, tá de castigo’. Agora, quando a criança está limitada em cima de uma cama fazendo birra, o que você faz? Você não sabe o que fazer. Eu não sei”.

Destaca-se ainda o desencontro entre metas e práticas, pois embora tenham apresentado metas a médio prazo mais voltadas para a autonomia, as mães de crianças com câncer não tiveram mais práticas indutivas do que as outras mães, o que seria condizente com resultados do estudo já citado de Wang, Chan e Lin (2012). De acordo com estes autores, nem sempre as práticas parentais condizem com suas metas. Nesse estudo, pais que possuíam metas de socialização de autonomia, que os autores referem correlacionarem-se com práticas indutivas, apresentavam práticas coercitivas quando seus filhos tiravam notas baixas.

Foi avaliada, ainda, a influência de características sociodemográficas das participantes nos fenômenos pesquisados. Quanto ao sexo da criança e a escolaridade da mãe, parece haver influência dessas variáveis nas metas de socialização, nas estratégias de ação e nas práticas educativas. Foram encontrados maiores escores para mães de nível de escolaridade superior em quase todas as categorias nas metas de socialização, nas estratégias de ação e nas práticas educativas, principalmente no grupo NÃO-INCA. Ressalva-se, quanto à escolaridade, que a amostra pode apresentar viés de prevalência já que houve preponderância de níveis mais altos neste grupo.

Cabe destacar que houve exceções a esse achado, como ocorreu na categoria de emotividade, para metas de socialização a longo prazo, e de práticas indutivas, na questão da situação livre e de medo, e coercitivas, na situação livre. O grupo INCA não foi afetado do mesmo modo em seus resultados, havendo, inclusive, maiores escores para o uso de práticas indutivas (nas situações de resposta livre e de medo) em mães com nível de escolaridade mais baixo.

Níveis mais elevados de escolaridade estavam associados a maiores escores nas categorias de metas de socialização de tendência mais sociocêntrica, a médio ou longo prazos. O mesmo fenômeno foi verificado com a estratégia de ação proximidade pessoal, para os dois grupos, estratégia esta que também pode ser relacionada a uma tendência mais sociocêntrica. A única categoria que parece de tendência mais individualista e que também obteve maiores escores em níveis de escolaridade mais altos foi a estratégia incentivar autonomia para o grupo NÃO-INCA. Pode-se especular que mães com maior escolarização privilegiam a interdependência e proximidade entre as pessoas, valorizando também, no caso das que não estão vivendo a situação de um câncer no(a) filho(a), a autonomia da criança.

Com relação ao sexo, houve maior valorização de metas de tendência sociocêntrica para meninos (expectativas sociais a médio e longo prazo no grupo NÃO-INCA) e de práticas coercitivas (situação de raiva no grupo NÃO-INCA), o que parece compatível com a condição de saúde da criança. Para meninas, houve maior valorização de metas individualistas (automaximização a longo prazo em ambos os grupos) e de estratégias de ação ligadas a esta tendência (incentivar autonomia no grupo NÃO-INCA e prover recursos no grupo INCA). Esses achados sugerem que as mães privilegiam a autonomia em suas filhas, talvez como reflexo das transformações na sociedade atual com a conquista de novos espaços pelas mulheres.

Analisando as diferenças entre as mães do INCA e do grupo NÃO-INCA, dentro dos subgrupos de sexo da criança e escolaridade da mãe, cabe destacar os resultados referentes ao nível médio de escolaridade, em que se encontra o maior percentual de mães do grupo INCA. As mães do INCA com ensino médio são as que apresentaram maior frequência de valorização de metas a médio prazo de bom comportamento, de estratégias de ação de manter proximidade pessoal e de práticas coercitivas. A maior valorização do bom comportamento e de manter proximidade pessoal eram resultados já esperados, ligados à valorização de metas sociocêntricas e à necessidade das mães de crianças em tratamento oncológico de estarem sempre próximas fisicamente de seus filhos (Dunn et al., 2010). A valorização das práticas coercitivas, no entanto, não era esperada, e como já discutido, pode estar ligada ao desgaste emocional e físico ao qual as mães estão submetidas e à necessidade de fazerem com que seus filhos se submetam a procedimentos invasivos e dolorosos.

 

Considerações finais

Muito embora os dois grupos de mães não tenham apresentado diferenças significativas quanto a suas metas de socialização a longo prazo, encontrou-se diferença significativa entre eles para as metas de socialização a médio prazo. Desse modo, o grupo de mães NÃO-INCA apresentou maiores tendências sociocêntricas e o grupo do INCA maiores tendências individualistas, contrariamente às hipóteses que haviam sido formuladas. Encontrou-se também diferença significativa entre os grupos no que diz respeito às ações voltadas para o atingimento das metas de socialização, havendo maior uso da estratégia de educar e orientar por parte das mães do grupo NÃO-INCA.

Pode-se pensar que tal estratégia de ação está também relacionada a tendências sociocêntricas, por tratar-se de uma estratégia que visa o bom comportamento e que busca passar valores e princípios, dar limites à criança, e impor respeito e obediência. Parece mais voltada, portanto, para uma tendência sociocêntrica, como apresentada em maior medida pelo grupo NÃO-INCA.

Não foram identificadas diferenças entre os dois grupos nas práticas educativas, como era de se esperar, segundo a literatura. Assim, embora tenham apresentado metas a médio prazo mais voltadas para a autonomia, as mães de crianças com câncer não tiveram mais práticas indutivas do que as outras mães.

Essa falta de aderência entre metas e práticas pode ser pensada em termos das exigências de um tratamento oncológico e da necessidade dos procedimentos invasivos e de como podem ser vistos pela mãe como mais importantes do que a vontade da criança, constituindo uma condição que promova a utilização de práticas coercitivas. Nesse caso, as mães oscilariam entre práticas mais indutivas e práticas mais coercitivas, estas últimas ligadas principalmente ao apoio ao tratamento.

Em linhas gerais, acredita-se que os objetivos do estudo tenham sido alcançados e produzidos resultados que ajudam na compreensão das metas de socialização e práticas educativas de mães de crianças em tratamento oncológico.

Entende-se que estes resultados possam oferecer subsídios para a criação de programas de intervenção dirigidos a mães vivendo essa situação.

Uma limitação do estudo decorre de as amostras colhidas para os dois grupos terem composição bastante diversa no que diz respeito à escolaridade da mãe. Isso ocorreu principalmente porque as mães do INCA, talvez por este ser um hospital público, são, em grande parte, de classe social mais baixa e nível educacional também mais baixo. Já as mães de crianças sem diagnóstico de doença foram contatadas através de indicações de membros do grupo de pesquisa de que fazem parte as autoras e tinham, em sua maioria absoluta, o ensino superior completo.

Concluindo, considera-se que este trabalho inicia uma linha de investigações acerca das metas de socialização e práticas educativas de mães de crianças com câncer que necessita ter continuidade. Pretende-se dar seguimento a ela com investigações voltadas para o aprofundamento de questões levantadas a partir dos resultados deste estudo como, por exemplo, os que mostraram que não havia, globalmente, diferença significativa no emprego de práticas educativas coercitivas entre os dois grupos de mães. Seria também oportuno que se pudesse ouvir um número maior de mães com perfis sociodemográficos diferenciados. Com novas pesquisas, acredita-se ser possível elucidar questões levantadas a partir dos resultados obtidos com este estudo.

 

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Recebido em 29 de outubro de 2015
Aceito para publicação em 15 de fevereiro de 2017

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