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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.29 no.1 Rio de Janeiro  2017

 

RESENHA

 

Escutas para o corpo

 

Listens for the body

 

Escuchas para el cuerpo

 

 

Betty Bernardo Fuks

 Professora Adjunta da Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 

Resenha do livro: Joana de Vilhena Novaes e Junia de Vilhena (Orgs.). Que corpo é este que anda sempre comigo? Corpo, imagem e sofrimento psíquico. Curitiba: Appris, 2016, 322 p.

Os desafios que se apresentam para algumas áreas do conhecimento humano convocadas a pensar questões que incidem sobre o corpo não são simples. Nos dias atuais parece ser inevitável que cada uma delas se depare com a falência do sujeito em relação às suas próprias experiências subjetivas, uma vez que ele próprio se encontra subjugado aos critérios de certeza do Outro: “Cuide de seu corpo e desfrute do gozo hedonista!”, “Extirpe seu órgão que pode vir adoecer e desfrute da crença de vencer a morte!”. Estes são alguns dos imperativos de nossa cultura, fontes de práticas corpólatras oriundas da ideologia da imagem do corpo “magro e sarado”, assim como das práticas perversas de combate à finitude da vida, ao inelutável da morte.

Joana Novaes e Junia de Vilhena, conhecidas pela luta permanente em pensar o sofrimento psíquico a partir da experiência e do rigor teórico com que abordam as questões descritas acima, lançaram recentemente uma coletânea de textos que, em seu conjunto, apresentam uma visão multifacetada e interdisciplinar do corpo. Deve-se reconhecer que, em meio à crescente tentativa de vigilância dos corpos através da ideologia apoiada nos avanços das ciências biológicas, um livro-testemunho de que algo escapa à escravização das formas corporais impostas na atualidade merece saudações. Sobretudo porque as organizadoras, na escolha dos vinte textos, partiram do princípio da urgência de abrir os horizontes para uma discussão que ultrapasse o campo da batalha instaurada em torno da temática do corpo.

Abrindo o livro, em “Trauma: entre o corpo e psiquismo”, Ana Maria Rudge traz uma análise riquíssima do conceito freudiano de trauma e, em seguida, remete o leitor à urgência de a psicanálise permanecer como clínica do um a um, meio pelo qual o analista escuta o “corpo estranho” incrustado no psiquismo – a memória da experiência traumática que se repete literalmente. Em “A potência do belo” Auterives Maciel traz uma discussão importante sobre a estética filosófica de Nietzche como base de sua critica ao modelo coercitivo do ideal atual de beleza. O artigo de Barbara Sordi e Ana Cleide G. Moreira, “A invenção da noção biológica de corpo e o sofrimento psíquico de mulheres”, percorre os meios pelos quais a invenção moderna de identidade feminina e do corpo biológico produz seus efeitos nefastos, ainda hoje, diretamente no corpo da mulher, aprisionando-o no lugar de objeto de desejo e de consumo masculino.

Na sequência, os textos de Catherine D’Esprat-Pequinot “O fenômeno do Body art do thigh gap e dos selfies sextos” e Celine Masson, “O fenômeno do Body art do thigh gap e dos selfies sextos”, convidam o leitor a mergulhar na questão do corpo como instrumento e objeto da arte contemporânea. Logo a seguir, servindo-se da arte cinematográfica para pensar as relações possíveis entre paixão e amor, Ieda Tucherman, em “Refletindo no escurinho do cinema: novos corpos, outras imagens”, discute os novos valores que marcam o nosso tempo: beleza, juventude e performance.

“A automutilação e a dimensão da alteridade”, de autoria de Isabel Fortes, apresenta ao leitor uma rede conceitual bastante rigorosa a partir da qual a autora sustenta suas elaborações acerca do sintoma da automutilação que se faz, cada vez mais, presente em nossos tempos. Joana Novaes traça um interessante percurso de investigação sobre maternidade e alimentação em “Empanturrados de afeto, envergonhados da fome: corpo, maternidade e obesidade infantil”. Em seguida, Junia de Vilhena e seu grupo de pesquisa, Alessandro Bacchinni, Bruna Madureira, Carlos Mendes Rosa, Igor Francês, Mônica Vianna, Nélia Mendes e Rebecca Alcici, nos convidam a pensar, durante a leitura de “Sobre palavras engolidas e corpos inflamados”, a relação que a bulimia e a anorexia mantêm com o empuxo à satisfação que o atual estágio da civilização oferece, através de inúmeros objetos de consumo, como saída para todo e qualquer tipo de mal-estar.

Lendo “Tempos do envelhecer... corpo, memória e transitoriedade”, texto de Junia de Vilhena, Carlos Mendes Rosa e Joana Novaes, o leitor se depara com questões que incidem sob o envelhecimento em uma cultura que sistematicamente tenta foracluir o valor simbólico da morte. “Entrelaçamentos psíquicos e corporais na psicossomática”, de Kátia Tarouquella Brasil e Francisco Martins, reafirma, na exposição de um caso clínico, o campo interdisciplinar como indispensável às investigações sobre o corpo. A precisão da escrita do artigo “Corpo, beleza e angústia”, de Maria Anita Carneiro Ribeiro e Elisabeth da Rocha Miranda, desvela o ponto em que o corpo habitado pela linguagem é invadido pela angústia real que desintegra nossa imagem de um corpo unificado.

“Não quiseste sacrifício nem oblações. Deste-me, porém, um corpo”, de Maria Clara Bingemer apresenta alguns textos bíblicos e místicos da teologia cristã e através deles leva o leitor a pensar o corpo em nossa sociedade plural e diversificada. Maria Helena Fernandes extraiu da experiência clínica o material que dá corpo ao artigo “A construção do corpo na anorexia das meninas”: as evidências do ideal imagético e a amplitude do mecanismo da recusa na anorexia e na bulimia. Em seguida, também a partir da experiência, Maria Helena Zamora, no ensaio “De tatuagens corpos, peles e cores”, une histórias reais, narrativas de testemunhas e estudos científicos, oferecendo ao leitor um farto material para escutar o corpo do adolescente excluído do convívio social. “Corpo: natureza e expressão”, de Monah Winnograd, traz ao leitor uma discussão fecunda sobre o conceito psicanalítico de corpo pulsional, o corpo que não é da mesma ordem do corpo simbólico, do corpo imaginário, e tampouco se confunde com o corpo biológico, dado que é da ordem do irrepresentável.

“No ventre da cadeia: corpos possíveis no sistema penitenciário feminino do Rio de Janeiro”, de Neilza Barreto, introduz a noção de “corpo-ventre” para pensar o fenômeno de apropriação e reconhecimento de si em mulheres encarceradas, em função da ideia da maternidade como possibilidade de legitimidade possível dentro do contexto carcerário, Ricardo Pocinho, João Pedro Gaspar, Pedro Belo e Natália Leandro, no artigo “Solidão, quando o corpo entra em silêncio”, procuram encontrar os níveis de solidão subjetiva em idosos institucionalizados e no domicílio. Fruto de uma pesquisa, “Os saberes funcionais e poderes estéticos na maturidade feminina”, de Selma Felerico, demonstra que a produção de sentido presente nos alimentos funcionais é comandada por saberes estéticos e midiáticos dirigidos à mulher. Finalizando, “Corpo e antropologia: um ponto de vista”, artigo da antropóloga Tânia Dauster, apresenta questões epistemológicas que envolvem a forma pela qual a temática do corpo vem sendo investigada em sua área de trabalho, desde o trabalho pioneiro de Marcel Mauss, segundo o qual a sociedade molda o corpo através de ações simbólicas, até os dias de hoje, quando Thomas Csordas o reinterpreta enquanto fonte de existência e experiência no mundo.

Resta dizer, ao finalizar esta resenha, que, a meu ver, a intenção de Joana Novaes e Junia de Vilhena ao colocar para os autores a questão que deu origem ao título do livro no interrogativo – Que corpo é esse que anda comigo? –, foi a de

lhes provocar o desejo de escrita sobre algo que não cessa de sujeitá-los a escutar: a língua do corpo. A língua capaz de fazer fracassar os discursos que pretendem tudo explicar sobre as relações do sujeito com seu próprio corpo (Laurent, 2006). Na contracorrente desses discursos, cada vez mais presente no terceiro milênio, o livro se inscreve na série de testemunhos de autores que incluem o real diante do qual se põem a escutar e interrogar o que está sendo dito para fazer emergir um não-dito. Essa filiação das organizadoras à psicanálise certamente foi o que as induziu a convocar profissionais de outros campos do saber a dizer, em linguagens específicas, algo sobre o corpo que investigam.

 

Referências

Laurent, E. (2006). O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contracapa.         [ Links ]

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