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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.29 no.2 Rio de Janeiro  2017

 

SEÇÃO LIVRE

 

Espiritualidade e brasilidade na clínica etnopsicológica

 

Spirituality and Brazilianness in ethnopsychological clinic

 

Espiritualidad y brasilidad en la clínica etnopsicológica

 

 

Fabio Scorsolini-CominI

IProfessor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM)

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo é discutir de que modo a espiritualidade e a brasilidade podem ser incorporadas na clínica etnopsicológica. Trata-se de um estudo de caso amparado na abordagem qualitativa de pesquisa, a partir do processo psicoterápico realizado com um idoso em um espaço terapêutico construído em um terreiro de umbanda do qual é frequentador. O corpus de análise é formado por transcrições das sessões e por relatos elaborados após os atendimentos, que compuseram duas vinhetas clínicas. Na primeira vinheta, o participante evoca constantemente elementos como retidão de caráter, coragem e respeito à natureza como sendo marcas transmitidas pela sua origem indígena. Na segunda vinheta, a frequente menção a uma profecia espírita desvela a necessidade de ser ouvido e compreendido em termos de seus valores e crenças, notadamente em família. A clínica etnopsicológica, prenhe da brasilidade que atravessa mitos, crenças e aspectos da espiritualidade mestiça que constituem o povo brasileiro, pode ser evocada para compreender o pedido de ajuda e, mais do que isso, acompanhar o participante na travessia de seu processo psicoterápico. Acolher a espiritualidade, portanto, passa pela necessidade de incluir elementos da brasilidade que atravessam práticas, saberes e crenças transmitidos pela coletividade.

Palavras-chave: psicoterapia; etnopsicologia; espiritualidade; umbanda.


ABSTRACT

The aim of this study is to discuss how spirituality and Brazilianness can be incorporated into ethnopsychological clinic. It is a case study supported in qualitative research from the psychotherapeutic process conducted with an elderly in a therapeutic space built in Umbanda yard which is goer. The analysis corpus consists of transcriptions of meetings and reports prepared after the calls, who composed two clinical vignettes. In the first vignette, the participant constantly evokes elements as uprightness of character, courage and respect for nature as marks transmitted by their indigenous origin. In the second vignette, the frequent mention of a spirit prophecy reveals the need to be heard and understood in terms of their values and beliefs, especially with family. The ethnopsychological clinic, pregnant with Brazilianness running through myths, beliefs and aspects of the mixed spirituality that make up the Brazilian people, may be invoked to understand the request for help and, more than that, accompany the participant in crossing his psychotherapeutic process. Welcome spirituality, therefore, is the need to include Brazilianness elements crossing practices, knowledge and beliefs transmitted by the community.

Keywords: psychotherapy; ethnopsychology; spirituality; Umbanda.


RESUMEN

El objetivo de este estudio es analizar cómo la espiritualidad y la brasilidad se pueden incorporar en la clínica etnopsicológica. Es un estudio de caso apoyado en la investigación cualitativa del proceso psicoterapéutico llevado a cabo con un anciano en un espacio terapéutico construido en un centro de Umbanda. El corpus de análisis consiste en transcripciones de las sesiones y informes elaborados después de las sesiones, que compusieron dos viñetas clínicas. En la primera viñeta, el participante constantemente evoca elementos como rectitud de carácter, valor y respeto por la naturaleza como marcas transmitidas por su origen indígena. En la segunda viñeta, la frecuente mención de una profecía espírita revela la necesidad de ser escuchado y entendido en sus valores y creencias, especialmente con la familia. En la clínica etnopsicológica, la brasilidad a través de mitos, creencias y aspectos de la espiritualidad del pueblo brasileño, pueden ser invocadas para comprender la solicitud de ayuda y, más que eso, acompañar al participante en el proceso psicoterapéutico. Para incorporar la espiritualidad es necesario incluir elementos de la brasilidad en las prácticas, conocimientos y creencias transmitidas por la comunidad.

Palabras clave: la psicoterapia; etnopsicología; la espiritualidad; Umbanda.


 

 

O modo como a clínica psicológica tem se aberto às questões da espiritualidade tem sido cada vez mais discutido nos meios científicos, embora esse movimento não represente necessariamente um desenvolvimento ou incremento no que se refere às investigações sobre esse tema veiculadas na ciência psicológica. Isso pode ser ilustrado com as raras referências que tratam de intervenções clínicas nas quais o espaço da espiritualidade é acolhido, valorizado e compreendido como um elemento que constitui o humano. Predominam estudos que buscam resgatar de que modo a atuação em Psicologia pode se constituir como um locus para o acolhimento da dimensão da espiritualidade relacionada à promoção de bem-estar e de saúde mental (Freitas, 2012), em uma perspectiva na qual os elementos espirituais e religiosos são apresentados como constituintes não apenas da subjetividade, mas também associados a aspectos históricos, culturais e sociais.

No campo específico das psicoterapias, observa-se um crescente interesse em discutir de que modo os elementos da espiritualidade podem ser acolhidos no espaço clínico e relacionados especificamente à saúde mental (Peres, Simão, & Nasello, 2007). Em alguns casos, aspectos da espiritualidade e da religiosidade são apresentados como variáveis que explicariam a mudança em psicoterapia e a significativa melhora em casos anteriormente tratados sob outras abordagens e enfoques (Lee, Zahn, & Bauman, 2014; Pargament, Lomax, McGee, & Fang, 2014; Tuck, & Anderson, 2014). Ao valorizar a repercussão da incorporação da espiritualidade no espaço psicoterápico, abre-se a oportunidade de relacionar os possíveis benefícios desse diálogo para o tratamento de diversas psicopatologias. Essa discussão atravessa não apenas a consideração da espiritualidade do cliente, considerada como algo constituinte do aparelho psíquico e das experiências de vida, mas também a do psicoterapeuta, formado não mais a partir de um ideal higienista e positivista, de questionável neutralidade, para alguém que também deve recuperar seus conhecimentos culturais que atravessam a sua prática profissional (Neubern, 2013).

O contexto brasileiro é rico em manifestações culturais e religiosas frequentemente evocadas em situações de cura e de busca de ajuda (Freitas, 2012). A prática espiritual brasileira possui um importante resultado psicológico, ou seja, se bem acolhidos, os elementos espirituais disponíveis no espaço discursivo e no universo de práticas e crenças brasileiras relacionadas ao sagrado podem possuir um efeito terapêutico (Bairrão, 2004). O saber clínico deve estar aberto à escuta de elementos místicos, por vezes sutis, tais como mitos, crendices que se cravam nas experiências populares como sinônimos de cura, de transformação, de mudança psicológica. Isso equivale a dizer que o contexto nacional oferece um repertório amplo de elementos e conhecimentos espirituais incorporados em práticas sociais como as de benzeção (Marin, & Scorsolini-Comin, 2017), de passes espirituais e até mesmo de rituais de cura, de modo que podemos falar em uma brasilidade das práticas espirituais (Bairrão, 1998).

A umbanda, considerada uma religião mestiça por reunir elementos advindos do candomblé, do catolicismo e do espiritismo kardecista, além de signos relacionados à constituição miscigenada do brasileiro – povos indígenas, negro africano e branco europeu –, é um arcabouço teórico e prático no qual essas manifestações culturais, históricas e sociais encontram assentamento e ressonância (Concone, 1987; Macedo, & Bairrão, 2011; Pagliuso, & Bairrão, 2011). Nos rituais da umbanda é frequente o emprego de ervas, chás, banhos, defumações e toda uma gama sígnica, que nos remete à interface entre homem e natureza, de utilização desses elementos naturais para a cura, o desenvolvimento pessoal e a abertura de caminhos (Leal de Barros, & Bairrão, 2010). Assim, pode-se afirmar que a umbanda corporifica, em certa medida, os apontamentos acerca do processo de formação nacional apoiado não em uma base racial homogênea, mas na constituição de uma cultura nacional, uma brasilidade mestiça (Freyre, 1933/1999), a partir do encontro de diferentes povos e nações em uma relação de complementaridade entre si (Costa, 2001). A brasilidade enquanto unidade da diversidade refere-se, portanto, à constituição de um caráter nacional.

Pesquisar o universo da umbanda é, portanto, abrir-se a esses sentidos mestiços que contam acerca da brasilidade, noção essa que também caracteriza muitas das práticas e preceitos espirituais que circulam em nosso imaginário social. Esse imaginário é também recuperado pela umbanda a partir do seu culto a espíritos ligados à natureza, a saberes relacionados a situações históricas e sociais da constituição do povo brasileiro, entre outras questões culturais (Rotta, & Bairrão, 2012). Assim, por representar uma religião genuinamente brasileira, a umbanda envolve uma espiritualidade fortemente ligada aos elementos da brasilidade, recuperando marcas culturais como a herança escravocrata, o extermínio dos índios e mesmo a necessidade de incorporação dos elementos católicos advindos de nossos colonizadores europeus (Bairrão, 2003; Bastide, 1973; Concone, 1987).

A partir desses pressupostos, quando aproximamos a espiritualidade da prática da psicoterapia no contexto brasileiro, é preciso considerar a brasilidade que constitui e define esses elementos que podem estar presentes na oferta de uma ajuda psicológica. Estes podem estar representados em menções a aspectos materiais e imateriais que atravessam o modo como o divino aparece em rituais de cura, em benzeções e determinadas crenças transmitidas socialmente e através das gerações. Tendo esse panorama de referência, o objetivo deste estudo de caso é discutir de que modo a espiritualidade e a brasilidade podem ser incorporadas na chamada clínica etnopsicológica, ou seja, em uma prática psicológica desenvolvida em um contexto comunitário institucional e atenta ao modo como as práticas culturais atravessam e constituem os saberes em saúde.

 

Método

Tipo de estudo

Este estudo está amparado nas disposições éticas para pesquisas envolvendo seres humanos e sua realização foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem do autor. Trata-se de um estudo de caso (Stake, 2000) amparado na abordagem qualitativa de pesquisa, a partir da relação estabelecida entre pesquisador e pesquisado no contexto de um atendimento psicoterápico desenvolvido no referencial etnopsicológico. Entre os pressupostos do estudo de caso está a necessidade de que a experiência particular destacada conserve uma relevância em termos de sua aplicação ou ressonância para outros estudos e práticas. Podem ser priorizados elementos específicos do caso que apontem para novos conteúdos ou mesmo para um maior arcabouço teórico dentro de um modelo de referência. O emprego do estudo de caso neste relato de experiência se justifica pelos poucos e esparsos estudos sobre as comunidades religiosas de terreiro sob a égide do apoio psicológico ofertado às pessoas em instituições religiosas (Alves, & Seminotti, 2009; Scorsolini-Comin, 2015a, 2015b) e tendo como olhar teórico a etnopsicologia (Devereux, 1972; Laplantine, 1994; Macedo, Bairrão, Mestriner, & Mestriner Júnior, 2011; Pagliuso, & Bairrão, 2011).

Experiência analisada

A experiência retratada refere-se ao processo psicoterápico realizado com um idoso, ficticiamente identificado como Antunes, em atendimento há cerca de seis meses em um espaço terapêutico construído em uma comunidade de terreiro de umbanda localizada na região periférica de uma cidade de médio porte do interior do Estado de São Paulo. Esse terreiro tem sido investigado em diferentes estudos e atualmente oferece um espaço específico no qual são realizados atendimentos psicoterápicos a cargo de um psicólogo e pesquisador que atua na comunidade. São atendidas demandas da própria comunidade (médiuns e familiares), assim como de pessoas que frequentam o terreiro para consultas e passes. Os atendimentos psicoterápicos são agendados e ocorrem, normalmente, às sextas-feiras, gratuitamente, em uma abordagem psicoterápica integrativa que mescla elementos do aconselhamento multicultural, da etnopsicologia e da abordagem centrada na pessoa (Rogers, 2001; Scorsolini-Comin, 2015a, 2015b). A inclusão desse espaço psicoterápico na comunidade de terreiro revela o modo como o saber clínico tem atravessado as fronteiras dos atendimentos privados, promovendo a assunção de espaços de promoção de saúde e de acolhimento psicológico em instituições diversas, a exemplo das religiosas, como expresso neste estudo de caso. Os atendimentos psicológicos não se relacionam à religião, mas estão abertos ao acolhimento da espiritualidade na psicoterapia, caso essa seja uma demanda trazida pelos clientes. O modo como esses atendimentos são organizados já foram divulgados em alguns estudos (Scorsolini-Comin, 2014a, 2014b, 2015b).

Procedimentos de coleta e análise dos dados

Em termos do corpus analítico deste estudo, o mesmo é formado por registros das sessões de atendimento psicoterápico ocorridas ao longo dos seis primeiros meses de intervenção. Com a autorização do participante, alguns atendimentos são audiogravados e posteriormente transcritos na íntegra e literalmente para posterior análise. Além disso, são realizados registros e reflexões do psicoterapeuta a cada atendimento, buscando narrar eventos específicos de cada sessão, bem como impressões e particularidades desses encontros. Todos esses registros coletados até o presente momento (transcrições e relatos das sessões) foram lidos e analisados minuciosamente em termos do objetivo do presente estudo, a partir do referencial etnopsicológico. Para apresentação dos resultados e discussão do caso, foram construídas duas vinhetas clínicas intituladas "O filho do índio velho" e "A escuta da profecia", analisadas em sequência. A fim de preservar o relato do caso e a relação estabelecida entre o cliente (participante) e o psicoterapeuta (pesquisador), os resultados serão apresentados em primeira pessoa.

 

Resultados e discussão

Breve descrição do caso

Antunes é um senhor magro, alto, branco, calvo, de cerca de 70 anos de idade, bastante ativo, casado e pai de dois filhos, tendo um neto recém-nascido. Expressa-se muito bem e está sempre bem vestido, mostrando elegância em seu modo de falar e de se comportar. Mostra-se bastante sistemático e atento a detalhes, gosta de horários e possui uma excelente memória. Apesar de sua pouca instrução formal, mostra-se muito inteligente e possui muitos conhecimentos, por exemplo em história e geografia, tendo facilidade para se recordar de eventos, datas e informações gerais. Suas principais fontes de informação são livros e telejornais. Gosta muito de ler, principalmente literatura espírita.

Em nosso primeiro encontro, afirma que foi diagnosticado com depressão há alguns anos, mas que já estava curado. Atualmente tinha muita ansiedade em situações sociais, dizendo ter medo de viajar sozinho e ter problemas intestinais, como diarreia. Em seu relato, esses "problemas" só ocorriam no período da tarde, pois pela manhã ele conseguia realizar as suas atividades normalmente. Inicialmente, seu relato era bastante confuso, permeado por muitos detalhes, como datas e horários, bem como reminiscências do passado. Muitas vezes ele se perdia em seu próprio relato, haja vista que ele se preocupava em sempre datar os acontecimentos e detalhar ao máximo as situações pelas quais havia passado. Estava aposentado, mas sempre trabalhou muito, inclusive desde criança. Assim que ficou adulto, passou a trabalhar viajando pelo país, notadamente nas décadas de 1960 a 1980, período no qual ele pôde conhecer todos os estados brasileiros. Os relatos acerca dos lugares que conheceu é frequente em todos os atendimentos.

Destaca frequentemente que as pessoas o associam a alguém que ficou parado no tempo ou que fala apenas do passado. Destaca que o passado é o grande responsável pelos eventos que ocorrem no presente, de modo que não se atentar a isso é desconsiderar a importância de nossas tradições herdadas e transmitidas ao longo dos anos. São frequentes as menções aos seus parentes e conhecidos já falecidos, a pessoas que fizeram parte da sua juventude e a um período de sua vida no qual ele era mais ativo e mais empoderado, o que emerge em falas acerca de seu trabalho como viajante. Destaca a importância de seus ancestrais, notadamente do pai, como grande influenciador em seu modo de ser e no modo de abordar o mundo.

Primeira vinheta: o filho do "índio velho"

Por vezes, o espaço da psicoterapia é utilizado por Antunes para aplacar a sua solidão e ter um espaço em que possa falar e ser ouvido sem reservas ou julgamentos. Como ele mesmo diz, "gosto de vir aqui e conversar com você". Quando não tenho outro atendimento após o seu horário, ele com recorrência tenta aumentar o período da sessão, trazendo novos elementos e outras histórias que precisam ser narradas. Percebo que, apesar de ele conviver com muitas pessoas e ter uma família grande e que reside próxima a ele, frequentemente se sente solitário, pois não encontra com quem conversar, notadamente em termos do que gosta de falar, dos assuntos que tem desejo de explorar. Por essa razão, destaca que gosta de conversar com pessoas que considera "instruídas" e que tenham "algo a acrescentar".

Sempre comenta que possui muitos amigos, que já conversou com professores universitários de renome, médicos e pesquisadores, e que eles sempre destacavam a sua inteligência e sabedoria conquistadas ao longo do tempo. Em uma dessas passagens, depois de contar a sua história para um grupo de pesquisadores, comenta que um professor de uma universidade de muito prestígio na cidade havia comentado com os estudantes presentes que ele havia se formado na "UniV", uma anedota para a chamada "Universidade da Vida", em alusão às suas experiências acumuladas ao longo do tempo, já que ele não havia cursado o ensino superior. Antunes mostra-se satisfeito por ser lembrado por essas pessoas e por ter sempre algo importante a compartilhar.

Também é frequente a menção à sua retidão moral, algo que afirma ter herdado do pai, a quem ele identifica como sendo o "índio velho" devido à sua origem indígena. Este era muito bravo e tinha valores rígidos que transmitia aos filhos. Nunca mencionou o nome do pai, sempre se referindo ao chamado "índio velho", homem de poucas palavras e que apenas olhava para as pessoas com seriedade e já demonstrava o que sentia ou pensava. Relata que não mantinha proximidade física com o pai, havendo raras expressões corporais de carinho e cuidado. Por vezes, Antunes afirma que também gosta de ficar em silêncio, fazendo apenas um olhar de reprovação para as pessoas, tal como fazia o seu pai quando contrariado.

A imagem do "índio velho", detentor de prestígio social e retidão moral, remete à mística dos caboclos, entidades cultuadas no panteão umbandista (Bairrão, 2003; Rotta, & Bairrão, 2012). Os caboclos são espíritos das matas, muitos deles identificados como índios que sofreram a perseguição dos portugueses e foram exterminados, mas que conservaram a sabedoria dos antepassados, motivo pelo qual atuam em trabalhos de cura, por exemplo. Os caboclos possuem semblante mais austero durante as incorporações, frequentemente associados com espíritos mais sérios e "fechados", possuindo uma fala mais direta e "certeira". Essa conexão entre o "índio velho" e a atribuição de determinadas características de personalidade é compreendida no imaginário religioso brasileiro em uma alusão ao modo como os indígenas são evocados em situações nas quais os saberes da natureza se fazem necessários, por exemplo em trabalhos de cura realizados em terreiros de umbanda. Nesse sentido, Bairrão (2004) explora a matriz de constituição social do brasileiro com sua ressonância nas práticas espirituais observadas em nosso país:

O exterminado, o morto vítima de genocídio, por exemplo, volta como espírito modelo de valentia e de identificação a ser seguido por todos. Sobrevive nos corpos dos prováveis descendentes seus e de seus algozes e a sua tribo encontra uma simbólica solução de continuidade, graças à adoção de uma inúmera prole espiritual, ao fato de espiritualmente ele retornar da morte para ter "filhos de fé" (Bairrão, 2004, p. 199).

Assim, o "índio velho" vem associado à sabedoria acumulada ao longo das diferentes gerações, em respeito ao ancião, aos membros mais velhos da comunidade, trazendo também marcas de superação e de coragem diante dos desafios. Atualmente Antunes ocupa essa posição em sua família, sendo um dos membros mais antigos e que deveriam, pela sua lógica, ser ouvidos, valorizados e respeitados. No entanto, em sua experiência nem sempre isso ocorre, o que pode ser notado pelo modo como a esposa por vezes negligencia o seu modo de pensar e como os filhos tomam decisões sem consultá-lo ou desconsiderando as suas orientações e prescrições. A "negligência" com o idoso aparece no modo como a sua família parece não ouvi-lo ou desconsiderar o conteúdo de seu discurso. Ao tentar trazer aos membros mais novos a sabedoria do passado, frequentemente é associado a alguém preso ao tempo, que não se renovou. Antunes mostra-se sedento por novas informações e conhecimentos, mas, ao mesmo tempo, evoca a necessidade de reverenciar o passado e a sabedoria construída ao longo dos anos.

Antunes queixa-se não apenas de não ser ouvido, mas destaca estar cansado e, muitas vezes, não querendo nem falar, apenas olhando com reprovação, tal como fazia o seu pai. A sua queixa principal era de ficar ansioso diante de eventos sociais, sempre na parte da tarde, e ter diarreia. Essa diarreia incontrolável ocorrera algumas vezes. Ele investigou clinicamente essa queixa e descobriu que não possui qualquer problema de saúde, motivo pelo qual suspeita que seja uma ansiedade sua. Desde que iniciamos os atendimentos ele não teve mais diarreia. É um senhor muito ativo, faz várias atividades, sobretudo na parte da manhã. Mesmo não passando mal à tarde, tem receio disso acontecer, por exemplo, dentro de um ônibus, motivo pelo qual ele prefere ficar em casa no período vespertino.

Esse seu recolhimento, embora não possua uma justificativa médica plausível, mostra a sua ambivalência diante do "índio velho" do qual afirma ser herdeiro. Isso porque Antunes sempre fora destemido e conhecera todos os estados brasileiros em uma época de maiores riscos, de estradas inadequadas e de precários aparelhos de comunicação, por exemplo. Fora um explorador, um jovem entusiasta, assim como um índio jovem e com todo um mundo por descobrir. Isso se revela quando ele comenta sobre como a esposa o conquistou, por exemplo. Disse que fora "laçado" por ela, pois era filho de "índio bravo" e não se ligava facilmente a alguém. Disse que a esposa foi conquistando seu coração aos poucos, até que se casaram.

Com o passar dos anos, no entanto, viu-se cada vez mais recluso, diminuindo a intensidade das viagens e passando a trabalhar em um escritório. Com a aposentadoria, passou a ficar mais tempo em casa, dedicando-se à leitura. Por alguns anos, revelou ter recebido o diagnóstico de depressão, tendo se tratado e se curado da doença. Pelos relatos, sempre fico com a impressão de que Antunes ajudou muitas pessoas, mas que atualmente poucos são os que o ajudam. Daí a sua preocupação com os parentes e as frequentes tentativas de estabelecer contato com eles, ainda que os mesmos não demonstrem interesse em restabelecer o contato. Antunes se responsabiliza pela diáspora da família extensa, mas, ao mesmo tempo, não mostra tanto a preocupação com a integração de sua família nuclear, ou seja, esposa, filhos e neto. Ainda assim, valoriza muito a família, as tradições e o modo como esses membros contribuem para a perpetuação de modos de ser e de ver o mundo.

Em termos de saúde, frequentemente relata problemas para dormir e preocupações com gripes e resfriados. Faz exames com certa frequência e sempre costuma investigar qualquer quadro que ele considere anormal. Relata estar muito emagrecido, o que é visivelmente perceptível. Em algum momento do seu relato sobre esse emagrecimento, relembro da história da cachorra Baleia, presente no livro "Vidas secas", de Graciliano Ramos (2001) e a utilizo em minhas reflexões sobre o atendimento como forma de compreender aquele cliente. A cachorra Baleia, na narrativa graciliana, era humanizada. Apesar do nome, era bem emagrecida pela seca e estava com raiva, motivo pelo qual seu dono, Fabiano, resolveu sacrificá-la. Ainda assim, Baleia manteve a todo tempo a sua humanidade e sua dignidade. Ao narrar a morte da cachorra, Graciliano Ramos (2001, p. 91) faz a seguinte imagem dela:

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

Antunes era bem magro e esguio, mas depois de algumas semanas de atendimento relata que havia engordado meio quilo. Mostra a calça e diz que o cinto não mais a segura. Sempre fora magro, mas agora estava mais. Mas estava meio quilo mais gordo naquela semana. Não sabe se isso se deve à balança, mas eu disse que poderíamos acreditar na balança essa semana, pois ganhar peso, no caso dele, era um sinal de saúde. Antunes mostrava a sua resistência e sua altivez mesmo diante de quadros sucessivos de pequenos adoecimentos. Ele também me contou sobre sua cachorrinha, que tinha feito uma cirurgia e estava melhor. Antunes mostra-se de uma aparência frágil, o oposto do que se espera de um "índio bravo". Na verdade, era muito difícil entender que o índio bravo, a exemplo do seu pai, estava envelhecendo e isso envolvia uma série de limitações de natureza física, mas outras tantas possibilidades, como a questão da sabedoria acumulada ao longo do tempo. De fato, Antunes possui uma retidão de caráter que ultrapassa seu semblante franzino e senil. Em sua mente sempre vívida, ele pode ser o índio bravo, o guerreiro, o desbravador de tantos sertões secos. Fazendo uma releitura sobre a Baleia de Graciliano Ramos, é lícito afirmar que não era seca a vida. A vida de Antunes era densa e precisava ser compartilhada, "escutada", a exemplo do que se realizava no espaço de sua psicoterapia.

As questões do seu envelhecimento apareciam esvanecidas pelos relatos frequentes acerca dos conflitos entre gerações. O fato de eu ser bem mais jovem que Antunes também expunha o fato de que ele estava falando a uma pessoa mais nova, que vinha de uma geração que ele criticava. Por essa razão, acredito que, muitas vezes, tenhamos também entrado em conflito, ele sempre querendo me convencer de que a atual juventude estava fadada ao fracasso e eu tentando apresentar a atual geração com alguns pontos positivos para sua reflexão, aspectos que ele parecia negligenciar em seu discurso. Era importante que eu oferecesse alguns contrapontos aos seus argumentos. Essa começava a ser a sua queixa, de que as pessoas não mais conversavam com ele, pois ele sempre falava do passado. Assim, ele preferia não conversar mais, notadamente com as pessoas da sua casa (esposa e filhos), pois elas não o compreendiam.

A queixa de seus parentes sobre ele ser profundamente ligado ao passado pode encontrar ressonância no fato de que está no pretérito o tempo que ele considera áureo em sua vida, tempo este associado ao vigor, à vitalidade, às descobertas, atividades profissionais intensas, aos desbravamentos geográficos que ele afirma ter vivenciado. No acontecer da psicoterapia, no entanto, essas vozes do passado se atualizavam no Antunes que se apresentava no presente, de modo que os eventos do passado eram importantes para que se compreendesse aquele senhor naquele momento. Segundo Ancona Lopez (2009, p. 15), os "acontecimentos clínicos são fluídos e passageiros, simultaneamente subjetivos e objetivos, unificam passado, presente e futuro, estão presentes e ausentes, são tangíveis e intangíveis, verdadeiros e falsos, são paradoxais. Por essa razão, o terapeuta trabalha no aqui e no agora, no espaço vivencial que se estabelece nessa relação peculiar". No aqui agora da psicoterapia, Antunes era um cliente cujo passado tinha que ser ouvido e incorporado às suas experiências presentes. Ora, se os eventos passados ainda delineavam suas posturas atuais e eram constantemente revisitados, esse tempo paradoxal era também propositor do Antunes que poderia se redescrever e se modificar a partir daquela escuta.

Buscava trazer a esse cliente o fato de que as mudanças observadas através das gerações tinham aspectos considerados ruins, que muitas coisas iam se perdendo, mas que outras emergiam e poderiam ser igualmente positivas, trazer aspectos novos. Ele sempre destacava o lado ruim das tecnologias, a exemplo dos celulares, da internet e dos computadores, descritos por ele como "nocivos", tanto que se afastava ao máximo desses recursos em seu cotidiano. Como exemplo, destacou em um atendimento o fato de a empresa do seu filho ter sido invadida por hackers. Esse assunto tornou-se mais recorrente na mídia nas semanas após esse relato, dando-me a impressão de que Antunes estava mesmo com a razão em determinados modos de ser.

Essa "concordância" apontava para o fato de que, para compreendê-lo, era necessário que eu o aceitasse como ele era. A aceitação positiva incondicional destacada por Rogers (2001) traz a necessidade de acreditar que o cliente tem potencialidades para se desenvolver, crescer e amadurecer, sempre em busca de sua atualização. Não se tratava, pois, de concordar com o conteúdo de sua fala, por vezes muito rígida e até mesmo preconceituosa com o que era novo, mas de escutar o seu posicionamento com o respeito necessário, com a consideração que envolve o fato de aceitar que ele tem a sua razão, o seu sentido, a sua justificativa para se posicionar dessa forma.

Concordar com Antunes não era dizer que ele estava certo, mas era aceitar a possibilidade de que o seu relato era válido e que precisava ser ouvido e valorizado, tal como ele reclamava às gerações de sua família. No espaço terapêutico, essa escuta poderia promover a aceitação de seu modo de ser, o que era potente para o seu movimento de mudança e também para a sua própria escuta acerca do que ele rechaçava, ou seja, do que era novo, jovial, moderno, tecnológico, diferente. Tratava-se, pois, de uma dupla aceitação: aceitar o posicionamento do cliente para que ele também pudesse aceitar os posicionamentos que se distanciavam do seu modo de entender a vida.

Segunda vinheta: a escuta da profecia

Antunes trouxe em alguns atendimentos a queixa de que os seus vizinhos estavam fazendo muito barulho e que ele não conseguia mais dormir. Ele era vizinho de um terreiro de candomblé e frequentemente fazia comentários depreciativos em relação a essa religião, como se ela estivesse preocupada apenas com dinheiro. Dizia assim: "esta semana não teve trabalho, a crise deve estar afetando eles também". Os trabalhos desse terreiro e a conversa de seus frequentadores até a madrugada acabavam incomodando Antunes, cuja parede do quarto ladeava com a cozinha da instituição, aumentando a sensação de desconforto em relação aos ruídos.

Ao trazer essa queixa, avento a possibilidade de que ele converse diretamente com o dirigente do terreiro, a fim de que as conversas possam ser feitas em outro cômodo ou, então, encerrarem-se mais cedo, a fim de não prejudicar o seu descanso. Antunes revela certo receio de conversar com esse dirigente, afirmando que não sabe com quem está lidando. Percebo nessa fala um receio que atravessa o espaço discursivo construído popularmente em torno do candomblé, de um imaginário de ressalvas em torno de seus praticantes, algo próximo a um medo dos possíveis "efeitos" de algum "feitiço" sobre ele (Hofbauer, 2011; Prandi, 1990).

Antunes reluta e afirma que não irá se queixar com o seu vizinho, mas não verbaliza esse seu medo ou reserva em relação à religião de matriz africana. Como afirmado por Bairrão (2004, p. 200), a "a espiritualidade brasileira proporciona um precioso e profundo autorretrato psicológico e social do brasileiro", motivo pelo qual a tentativa de afastamento de Antunes insere-se na consideração de um imaginário popular que associa o candomblé a eventos considerados ruins e a uma magia que se direciona ao mal, ao satânico, ao que é marginalizado e demonizado por outras tradições religiosas. Com medo de receber alguma ressonância negativa, sobretudo espiritual, ao expor a sua insatisfação com a vizinhança, Antunes prefere o silêncio, ainda que não consiga mais dormir. A escuta desse evento obviamente não pode ser compreendida por uma análise cartesiana dos fatos, mas justamente atenta a movimentos que "pairam" no universo da clínica etnopsicológica, como nos alerta Bairrão (2004, p. 200):

Pode ser de grande valia para psicoterapeutas [...] aprendam a decifrar pequenos sinais que são uma "caligrafia" brasileira do espiritual, a fim de darem conta de revelações das "naturezas arcaicas" dos sujeitos que os procuram e de níveis de comunicação que de outra maneira passariam despercebidos.

Apesar de estarmos fazendo os atendimentos em um terreiro de umbanda, Antunes parecia desconsiderar essa matriz africana e compreendia o candomblé como sendo uma religião muito distante do seu universo. Parecia, por vezes, desconsiderar sua profunda imersão no universo religioso e de relação com o divino. Ele já havia frequentado centros espíritas e terreiros de umbanda, o seu filho mais velho frequenta semanalmente um terreiro de umbanda e a sua esposa é uma das dirigentes de um centro espírita kardecista próximo à sua residência. A espiritualidade estava fortemente marcada em suas frequentes menções às orações diárias, por exemplo, bem como pelo fato de se dedicar à leitura de obras espíritas que o interessavam.

Frequentemente cita um livro psicografado pelo famoso médium Chico Xavier, de autoria atribuída ao espírito Emmanuel. Nesse livro, Emmanuel profetiza que no ano de 2019 haverá um momento de "revisão" na humanidade. Em julho de 2019 ocorreria o que Antunes chama de "um ultimato" a todas as pessoas. Ainda segundo a sua leitura, esse momento colocará em xeque as pessoas vaidosas, as que não são humildes e as que só pensam em acumular fortunas. Em outras palavras, 2019 seria o prazo máximo para que as pessoas mostrassem amadurecimento espiritual, o que se concretizaria em atitudes de respeito pelo outro, abnegação, recusa da vaidade e atitudes caritativas, por exemplo.

Buscando referências sobre essa fala recorrente nas sessões, encontro que o jornal Folha Espírita, em maio de 2011, trouxe uma revelação feita em 1986, pelo médium Francisco Cândido Xavier a Geraldo Lemos Neto, fundador da Casa de Chico Xavier de Pedro Leopoldo (MG) e da Vinha de Luz Editora, de Belo Horizonte (MG), sobre o futuro reservado ao planeta Terra e a todos os seus habitantes nos próximos anos. De acordo com essa profecia, 2019 seria uma data limite para que a humanidade demonstrasse a sua capacidade de conviver com seus "irmãos", professando valores ligados à espiritualidade, ao amor, à caridade e ao respeito ao próximo. No trecho dessa entrevista, podemos observar:

Nosso Senhor deliberou conceder uma moratória de 50 anos à sociedade terrena, a iniciar-se em 20 de julho de 1969, e, portanto, a findar-se em julho de 2019. Ordenou Jesus, então, que seus emissários celestes se empenhassem mais diretamente na manutenção da paz entre os povos e as nações terrestres, com a finalidade de colaborar para que nós ingressássemos mais rapidamente na comunidade planetária do Sistema Solar, como um mundo mais regenerado, ao final desse período. [...] Segundo a deliberação do Cristo, se e somente se as nações terrenas, durante este período de 50 anos, aprendessem a arte do bem convívio e da fraternidade, evitando uma guerra de destruição nuclear, o mundo terrestre estaria enfim admitido na comunidade planetária do Sistema Solar como um mundo em regeneração (Ventura, 2015, § 7).

Essa profecia atribuída ao espírito de Emmanuel é recorrente nos atendimentos a Antunes, notadamente associada às suas experiências atuais em família. Ele utiliza essa menção para destacar o modo como as pessoas estão indo na contramão do que se esperava delas em termos espirituais. Isso fica exemplificado quando se mostra inconformado com crimes frequentemente divulgados na mídia, com catástrofes naturais e até mesmo com fatos do noticiário local evocados por ele nos atendimentos. Ele se coloca como alguém que tenta seguir à risca esses ensinamentos tratados na profecia, criticando a sua família pelo fato de os seus membros estarem diferentes com o passar do tempo, estarem mais ligados a esse enriquecimento e ao esvaziamento dos ensinamentos dos espíritos e de Deus. Sendo assim, ele tenta alertar os parentes de que estão na contramão do que sugere o espírito de Emmanuel, evocando a profecia como algo que irá ocorrer de qualquer modo.

O caráter profético da revelação, no entanto, não aponta para uma catástrofe, mas para uma advertência. Antecipando essa advertência, Antunes assume a função de zelar para que as pessoas se desenvolvam espiritualmente e passem a praticar valores espirituais considerados mais evoluídos e adequados. No seu âmbito familiar, demonstra que seus parentes pouco se preocupam com essa profecia, mas que já foram suficientemente esclarecidos acerca da mesma, tanto pelo fato de frequentarem um centro espírita kardecista quanto pelas suas frequentes menções a essa psicografia.

Em uma clínica etnopsicológica (Bairrão, 1998; Laplantine, 1994; Scorsolini-Comin, 2014b), para além de qualquer questionamento acerca da cientificidade de uma profecia ou das possibilidades concretas de esta se realizar, deve-se ponderar sobre o modo como o seu conteúdo baliza as atitudes de Antunes, em um meio essencialmente religioso e atento à espiritualidade. Ao acolher esse registro na psicoterapia, Antunes sente-se valorizado em seu repertório de conhecimentos e informações mas, acima disso, é convidado a refletir de que modo esses saberes corporificam-se na sua experiência cotidiana e nas suas relações familiares. Ao ouvir as repercussões possivelmente negativas acerca dessas revelações em família, pode promover uma leitura e uma escuta mais palatável sobre a profecia na qual acredita, repensando suas próprias atitudes.

Em um determinado atendimento, quando mencionava novamente a profecia, afirma que, caso a humanidade não passe positivamente por esse "ultimato" em 2019, dar-se-á início a um período de uma muita penúria, o que pode durar até 2057. Ao me dizer isso, eu afirmo em tom descontraído: "nossa, então não há mais solução, vai dar tudo errado mesmo". Ele concorda comigo e, depois, parece ficar mais sereno, talvez pensando que aquelas revelações seriam taxativas ou deterministas demais. Não sei se, de fato, Antunes realmente acredita nas previsões que profere ou se isso é uma forma de ele se fazer ouvido, de criar um repertório que desperta a atenção dos interlocutores. Isso porque nem mesmo a sua esposa e seus parentes kardecistas parecem estar muito preocupados com essas revelações ou com o teor que orienta as suas recomendações. De qualquer forma, não nos cabe julgar o teor teológico da profecia, mas sim suspender nosso juízo moral (Rogers, 2001), bem como nossos questionamentos acerca da veracidade ou concretude dessa crença (Bairrão, 2004).

Transpondo essas questões para o contexto da psicoterapia e do vínculo terapêutico, tenho tentado ouvir Antunes com cuidado e atenção, a fim de empatizar com o seu discurso e compreender, de fato, a sua ressonância no modo como ele se estrutura psiquicamente. Ele gosta de falar em tom de profecia, como se estivesse prevendo algo, como se o herdeiro do "índio velho" revelasse ao psicoterapeuta o destino próximo. O que ocorre, muitas vezes, é que ele é muito bem informado e consegue fazer afirmações que, no final, acabam mesmo acontecendo. Não porque seja uma previsão, mas porque seja algo natural e até mesmo esperado.

Tenho tentado entender que Antunes precisa ser ouvido, talvez por isso mesmo ele volte toda semana, certo de ser acolhido naquele espaço de tempo. E tenho absorvido e concordado mais com as suas narrativas, talvez tentando trazer alguns contrapontos para sua reflexão. Tenho tentado ouvi-lo, de fato. Essa escuta genuína é atravessada pela necessidade de compreender de que modo essa profecia acaba sendo cravada em sua existência não como algo que irá ocorrer, mas como uma situação que orienta o seu modo de ser e de comportar. O teor da profecia não é a realização da mesma, mas um pedido para que as pessoas ouçam seus conselhos, suas considerações e recomendações. No contexto familiar isso se torna ainda mais notável, uma vez que a menção à profecia atribui aos seus registros orais um caráter de autoridade. Não se trata apenas de Antunes pedindo que os familiares se transformem em pessoas melhores e menos vaidosas, seguidores de suas crenças e valores pessoais, mas sim do espírito de Emmanuel, ao qual todos leem em obras kardecistas e demonstram acreditar.

Enquanto psicoterapeuta é importante atentar para essa profecia como demarcadora de um pedido de escuta, assim como ele fazia com os familiares, de uma escuta de diferentes sentidos sobre o ser filho do "índio velho". Abre-se a necessidade de escutar e compreender a espiritualidade que atravessa fortemente suas atitudes, dando contornos aos seus comportamentos e queixas nos relacionamentos interpessoais. Desconsiderar essa dimensão ou naturalizar esses registros é implicar-se em uma prática de pseudoescuta ou de aceitação condicional, o que se distancia de um saber clínico tal como proposto por Neubern (2013) que, frequentemente, evoca a mestiçagem na psicoterapia como recurso para a incorporação da brasilidade que atravessa a constituição do povo que somos e do cliente que nos procura, herdeiro dessas tradições.

A clínica etnopsicológica, prenhe dessa brasilidade, tem se mostrado capaz de oferecer suporte a essas narrativas como as de Antunes e acolhimento a diferentes demandas. Embora não tenha sido o objeto de reflexão neste estudo, também o psicoterapeuta deve confrontar-se consigo mesmo, com aspectos da sua própria formação, seu repertório cultural e seu universo mítico (Scorsolini-Comin, 2014b). Essa ação deflagra a possibilidade de que esse movimento seja tanto enriquecedor como perturbador, ampliando as potencialidades do encontro clínico não mais centrado em uma perspectiva individualista, mas de alcance coletivo, de representação do coletivo étnico e religioso que atravessa os elementos de brasilidade aqui recortados na narrativa do caso. Portanto, há que se promover uma escuta para além da profecia e do que pode ser (re)velado e/ou (des)velado no encontro entre psicoterapeuta e cliente, o que requer desse profissional, na clínica etnopsicológica, constantemente "despir-se de suas vestes ocidentais, permitindo-se ir ao ‘encontro’ desse outro ‘familiarmente desconhecido’" (Macedo et al., 2011, p. 93).

 

Considerações finais

A partir do estudo de caso em retrato, é lícito afirmar que o arcabouço etnopsicológico contribuiu para a compreensão dos elementos da espiritualidade e da brasilidade presentes em um atendimento psicoterápico realizado no contexto de uma comunidade de umbanda. Considerar esses elementos na psicoterapia ultrapassa a possibilidade de uma determinada escuta atenta apenas a esses aspectos e, portanto, enviesada. Tal apreensão permite a incorporação de registros que ultrapassam o espaço clínico e dialogam diretamente com a matriz constitutiva do povo brasileiro. A brasilidade pode ser compreendida nas menções a crenças, práticas e espíritos que estão presentes no panteão umbandista e no contexto de escuta que se prepara para receber clientes com demandas não necessariamente relacionadas à espiritualidade.

Como desafio a essa prática, recupera-se a necessidade de o psicoterapeuta não apenas conhecer esses elementos, mas também o modo como os mesmos se misturam e se diversificam na constituição da subjetividade dos clientes, o que se ancora em aspectos sociais, históricos e culturais que atravessam clientes, psicoterapeutas e o processo de formação mestiça do brasileiro. O saber clínico atento a essa escuta deve promover não apenas o livre acesso a esse universo sígnico, mas também a compreensão crítica desses elementos em um processo de ajuda psicológica, que deve ser constantemente revisitado, questionado e aprimorado. Investir em estudos futuros que não apenas descrevam intervenções pontuais, mas que consigam constituir um rol de saberes e práticas que orientem o fazer do psicoterapeuta é uma atividade premente nesse campo em construção, o que, inevitavelmente, envolve a necessidade de uma maior sistematização e aceitação dessas intervenções no campo da clínica ampliada e dos conhecimentos científicos e profissionais na Psicologia.

 

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Recebido em 11 de novembro de 2015
Aceito para publicação em 05 de maio de 2017

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