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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.29 no.3 Rio de Janeiro  2017

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Separar-se da mãe para tornar-se mãe: a criação do espaço de concepção

 

Separate from the mother to become a mother: the creation of the conception space

 

Separarse de la madre para convertirse en madre: la creación del espacio de concepción

 

 

Lívia Mariane de Sousa SchechterI; Simone PerelsonII

IMestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, especialista em Psicologia Clínica Institucional pelo HUPE/UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIDoutorado em Psychopathologie Fondamentale et Psychanalyse pela Université Paris Diderot e pós-doutorado pela Université Paris Diderot. Professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

O principal objetivo deste trabalho é estabelecer como o processo de separação entre mãe e filha pode se relacionar com a possibilidade de que a filha deseje e conceba filhos. Iniciamos nosso percurso por uma breve retomada da obra de Freud, destacando a descoberta da importância da relação pré-edípica da menina com sua mãe, bem como o enigma sobre o fator que levaria à separação entre as duas. A partir de uma perspectiva intersubjetiva, acrescentamos a essas considerações o papel das representações maternas, com seus efeitos sobre os processos de identificação e constituição narcísica entre mãe e filha. Finalmente, discutimos como a gravidez, ao propiciar uma revivescência da relação pré-edípica da mulher com sua mãe, representa uma oportunidade privilegiada de atualização do processo de separação entre mãe e filha. Buscamos, então, relacionar essa condição à emergência do desejo de ter filhos, distinto da vontade de ser mãe, em que a interdição do incesto não produz efeitos. Essa interdição garante a existência do espaço psíquico necessário à concepção: o espaço potencial de criação.

Palavras-chave: mãe; filha; separação; concepção.


ABSTRACT

The main goal of this work is to establish how the process of separation between mother and daughter can relate to the possibility that the daughter wants and conceives children. We begin our journey with a brief resume of Freud’s work, highlighting the discovery of the importance of pre-oedipal girl’s relationship with her mother, as well as the puzzle on the factor that would lead to the separation between the two. From an intersubjective perspective, we add to these considerations the role of maternal representations, with its effects on the processes of identification and narcissistic constitution between mother and daughter. Finally, we discuss how the pregnancy, while propitiating a revival of pre-oedipal relationship of the woman with her mother, is a prime opportunity to update the process of separation between mother and daughter. Then, we seek to relate this condition to the emergence of the desire to have children, distinct from the will to be a mother, in which the prohibition of incest has no effect. This prohibition ensures the existence of a psychic space that is required for the conception: the potential space of creation.

Keywords: mother; daughter; separation; conception.


RESUMEN

El objetivo principal de este trabajo es establecer cómo el proceso de la separación entre la madre y la hija puede relacionarse con la posibilidad de que la hija quiere y conciba hijos. Comenzamos nuestro viaje con un breve resumen de la obra de Freud, destacando el descubrimiento de la importancia de la relación preedípica de la muchacha con su madre, bien como el enigma sobre el factor que llevaría a la separación entre los dos. Desde una perspectiva intersubjetiva, añadimos a estas consideraciones el papel de las representaciones maternas, con sus efectos sobre los procesos de identificación y constitución narcisista entre madre e hija. Finalmente, se discute cómo el embarazo, mientras propiciando una reactivación de la relación preedípica de la mujer con su madre, es una gran oportunidad para actualizar el proceso de separación entre madre e hija. Por lo tanto, tratamos de relacionar esta condición a la aparición del deseo de tener hijos, distinto de la voluntad de ser madre, en el cual la prohibición del incesto no tiene ningún efecto. Esta prohibición asegura la existencia del espacio psíquico necesario para la concepción: el espacio potencial de creación.

Palabras clave: madre; hija; separación; concepción.


 

 

Na clínica psicanalítica, tornou-se frequente a observação de que o trabalho de análise com muitas mulheres se situa em torno de sua relação com suas mães e suas filhas. Mesmo que existam outras relações importantes na vida dessas mulheres, o vínculo entre mãe e filha apresenta uma especificidade em relação aos demais. A preocupação de que uma não repita a história da outra, além da marcante coexistência entre adoração e ressentimento, se distinguem, por exemplo, do que se passa entre mãe e filho. Em alguns casos, também se destaca a dificuldade que certas mulheres apresentam em se diferenciar de suas mães, muitas vezes reproduzindo em análise o discurso materno quando são convidadas a associar. A questão do trabalho de separação entre mãe e filha, bem como seus impasses, se revela fundamental à compreensão dessa relação, como pôde ser constatado por Freud (1931/2006; 1933/2006). A pergunta não respondida pelo pai da psicanálise nesse contexto – como uma menina se separa de sua mãe? – nos leva a interrogar como uma mãe, por sua vez, se separa de sua filha, situando a questão em uma perspectiva intersubjetiva.

Os casos em que a separação entre mãe e filha se revela problemática nos ajudam, de maneira especial, a compreender que tais impasses se situam no plano narcísico, tendo efeitos sobre a possibilidade de a filha se identificar com a mãe. Tonar-se mulher como a mãe, mas diferente dela, é um desafio nem sempre superável. Na clínica, nos deparamos com a obstinação de certas pacientes em afirmar que não se parecem em nada com suas mães, lançando mão de uma defesa radical frente ao que parece ser uma situação de indiferenciação entre as duas. Vemos que, diante da urgência em se diferenciar de suas mães, certas mulheres permanecem em um jogo de espelhos mortífero, em que a visão do reflexo materno no espelho se torna indesejável, ou até intolerável. Tais defesas apontam para a inexistência de um espaço de separação, em que a filha possa construir sua própria imagem de mulher, com e apesar da mãe. Do ponto de vista intersubjetivo, a dificuldade da filha em se separar também precisa ser interrogada enquanto dificuldade da mãe em se separar. Quais são as especificidades na relação de uma mãe com sua filha? Por que muitas mães apresentam maiores dificuldades para se separar de suas filhas do que de seus filhos?

A importância do vínculo entre mãe e filha se torna ainda mais evidente no contexto da maternidade, quando uma mulher, ao tornar-se mãe, se reaproxima das representações psíquicas da mãe que teve em sua infância. Esse se torna um momento privilegiado de acesso a conteúdos recalcados referentes à relação primária entre mãe e filha, evidenciando possíveis impasses no processo de separação. Tornar-se mãe, como sua mãe, mas diferente dela: a gravidez, com as transformações que impõe ao psiquismo feminino, também representa um momento de atualização do trabalho de separação entre mãe e filha. Na clínica, escutamos de algumas mulheres que a possibilidade de reaproximação com suas mães contribui para que o desejo de ter filhos se torne presente, evocando uma experiência reasseguradora, enquanto, para outras, esse desejo pode estar ausente, por motivos diversos. O desejo de ter filhos pode, ainda, ser inconscientemente recusado, pela ameaça de indiferenciação que representa, surgindo como uma vontade de ser mãe de caráter defensivo, às vezes acompanhada de uma infertilidade sem causa médica conhecida. A possibilidade, para uma mulher, de desejar e conceber filhos se mostra, assim, significantemente relacionada à travessia de uma separação primordial em relação à sua própria mãe. Esse é o percurso que iremos seguir neste trabalho: partindo dos apontamentos iniciais de Freud e passando pelos meandros da questão da separação entre mãe e filha, chegaremos à sustentação da ideia de que, para nascer uma criança, é preciso haver um espaço de concepção no psiquismo feminino, equivalente a um espaço de criação que acolha a diferença.

 

Freud e o enigma sobre a separação entre mãe e filha

A história do percurso teórico de Freud no campo da feminilidade, que culminou na constatação da importância da primeira relação estabelecida pela menina com sua mãe, abrange sua obra desde as primeiras formulações psicanalíticas até seus escritos mais tardios. As primeiras experiências clínicas com as pacientes histéricas tiveram, sem dúvida, grande influência nas considerações tecidas por Freud acerca da sexualidade feminina. A profunda impressão deixada por esses encontros, em que Freud pôde identificar forte vínculo à figura paterna (como no caso Dora), levou-o a considerar inicialmente o papel do pai, mais do que o da mãe, na existência de uma filha. Apesar de já haver declarado desde os "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/2006) que a mãe é o primeiro objeto sexual para ambos os sexos, sendo a amamentação ao seio materno o modelo para toda relação amorosa, Freud não se dá conta do alcance dessa descoberta (Zalcberg, 2003).

Somente a partir de novos casos, mais especificamente o da jovem paranoica (1915/2006) e o da jovem homossexual (1920/2006), Freud passa a dar atenção ao que denominou de complexo materno, situação em que a filha permaneceria vinculada à mãe, não se voltando ao pai ou aos homens, numa continuação da intensa relação estabelecida com sua mãe no início da vida. Assim, a trajetória de Freud no campo da sexualidade feminina se desenvolve em torno do deslocamento da proeminência da figura paterna no destino da mulher para conferir à mãe um lugar de destaque. Esse redirecionamento teórico promovido por Freud preserva, entretanto, o lugar da figura paterna na configuração do triângulo edípico, chamando a atenção para um momento de ligação à mãe que é anterior à constituição do complexo de Édipo (Zalcberg, 2003).

Em "A organização genital infantil" (1923/2006), Freud complementa sua teoria da sexualidade infantil de 1905 e com isso dá os primeiros passos em direção a sua nova posição, que não coloca mais o Édipo feminino como simples espelho do masculino. Discorrendo sobre a fase fálica, ele observa que só pode fazer afirmações em relação aos processos que se passam com os meninos, expressando seu desconhecimento momentâneo sobre as particularidades desse momento nas meninas, que seria, portanto, distinto. As formulações freudianas sobre um complexo de Édipo especificamente feminino podem ser encontradas a partir dos textos "A dissolução do complexo de Édipo" e "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos", de 1924 e 1925, respectivamente.

O caminho para a feminilidade, pelo estabelecimento do complexo de Édipo na menina, estaria na renúncia desta à satisfação fálica obtida com a mãe dos primeiros tempos (a chamada fase pré-edipiana), substituindo a mãe como objeto por uma identificação com ela, e voltando-se ao pai na esperança de obter dele um bebê para compensar sua falta de pênis. Esse movimento da mãe para o pai é justamente uma das tarefas "a mais" – além da renúncia ao prazer clitoridiano – que Freud identifica no desenvolvimento sexual da menina em relação ao que cabe ao menino. Jacques André (1994) comenta que, na passagem da pré-história do complexo de Édipo feminino para o Édipo em si, a ruptura é brutal, bem diferente da continuidade que caracteriza o desenvolvimento psicossexual do menino, que não precisaria mudar o sexo de seu objeto. Para a menina, passar a uma escolha de objeto heterossexual significa abrir mão do vínculo anterior com o objeto materno, do mesmo sexo.

A importância do vínculo pré-edípico que se estabelece entre mãe e filha é justamente a grande descoberta de Freud em seus estudos sobre a sexualidade feminina: "Vemos, portanto, que a fase de ligação exclusiva à mãe, que pode ser chamada de fase pré-edipiana, tem nas mulheres uma importância muito maior do que a que pode ter nos homens" (1931/2006, p. 238). Freud passa a considerar que a intensidade da ligação da filha ao pai sucede um vínculo com a mãe igualmente intenso, do qual herdaria sua força. A ligação à mãe, além de sua intensidade, teve sua duração subestimada por Freud durante muito tempo, mas então ele percebe que algumas mulheres poderiam simplesmente não sair desse vínculo em direção aos homens. O complexo de Édipo feminino positivo passa a ser considerado uma formação secundária à ligação anterior com a mãe: um complexo de Édipo negativo, em que o pai é mero rival. No mesmo sentido, a rivalidade da menina com a mãe não se origina no Édipo, é apenas reforçada nesse momento. Essa rivalidade se relaciona à mudança de objeto efetuada pela menina à sua entrada no Édipo – movimento de separação em relação à mãe que se torna objeto da teorização freudiana.

Freud (1931/2006; 1933/2006) enumera em seus textos dedicados à feminilidade os fatores considerados por ele como responsáveis pelo afastamento da filha em relação à mãe – como a queixa da filha de não ter sido suficientemente amamentada, os ciúmes pelo nascimento de um bebê rival, a frustração pela proibição da masturbação e a inveja do pênis – mas não consegue chegar a uma conclusão sobre o elemento que operaria essa separação entre mãe e filha, que permanece como um enigma para ele. Jacques André (1994), em comentário a essa passagem, questiona: por que Freud encontra tanta dificuldade em decifrar a separação entre mãe e filha? Freud reconhece que não gostava de ser a mãe na transferência, o que o leva, segundo André, a tratar as fantasias femininas associadas a esse momento de separação da mãe de modo parecido com as masculinas – como o exemplo da fantasia de não ter sido suficientemente alimentado. Dentre as hipóteses freudianas para a separação entre mãe e filha, porém, se destaca a existência de uma forte ambivalência da filha em relação à mãe, a quem dedica hostilidade e amor em intensas proporções. Freud não desenvolve essa questão que, de acordo com Jacques André, poderia abrir a discussão sob o ponto de vista intersubjetivo:

O inconsciente materno (e paterno) é a grande ausência desses textos sobre a feminilidade. Os primeiros tempos da vida sexual são tão marcados pela relação inconsciente da mãe com a filha quanto da filha com a mãe; e a questão da ambivalência é inseparável das representações inconscientes maternas (André, 1994, p. 27).

De fato, quando acrescentamos às contribuições freudianas sobre a feminilidade o ponto de vista intersubjetivo, damos um passo além na compreensão do processo de separação entre mãe e filha. Devemos pensar, portanto, não apenas no que leva uma filha a apresentar especial dificuldade em se desvincular de sua mãe, mas também no que torna essa passagem especialmente difícil do ponto de vista materno, levando em conta as representações das duas protagonistas dessa relação.

 

Separar-se da mãe: a ambivalência no jogo de espelhos

O lugar ocupado pela filha nas representações inconscientes maternas é, sem dúvida, essencial à compreensão do processo de separação entre mãe e filha. A imagem que a mãe possui da filha é muito anterior à existência da menina, tendo origem no próprio narcisismo materno. Antes mesmo de engravidar, a mãe já possui representações sobre a futura criança que poderá gerar, seja menino ou menina. Durante a gravidez, ela atribui ao feto um corpo imaginado, integrado e separado e é sobre essa imagem que se depositarão os investimentos libidinais maternos (Alonso, 2008). Essa imagem confere uma primeira identificação à criança: ela é a criança imaginada pela mãe.

O processo pelo qual uma criança assume uma imagem integrada de seu corpo é descrito por Lacan (1949/1998) no contexto do estádio do espelho. A criança, desde muito cedo – Lacan considera que a partir do seis meses de idade –, já é capaz de reconhecer como tal sua imagem diante do espelho. Mas a maneira pela qual a criança assume essa imagem para si é mediada pelo outro, mais especificamente pelo olhar do outro: é preciso que este se coloque entre a criança e a imagem do espelho e lhe diga "é você". Assim, a criança vê em seu corpo uma imagem total e se apossa dessa unidade para situar experiências corporais discordantes (Zalcberg, 2003). Pela imagem e pela palavra do outro a criança faz um elo erótico com seu próprio corpo, o que coloca a imagem que a criança tem de si como uma imagem emprestada ao outro. Desse modo, a imagem corporal da criança não é exclusivamente dela, é dela e do outro, com quem se confunde no plano narcísico.

Inspirado no artigo de Lacan, Winnicott (1967/1975) propõe que o rosto da mãe é um precursor do espelho, colaborando para a constituição do Eu do bebê. Para ele, em uma situação normal, quando o bebê olha para o rosto da mãe é a ele mesmo que ele vê refletido, pois a mãe lhe transmite de volta o que ela acha que está se passando com ele. Assim, a mãe deve funcionar para a criança como um espelho, refletindo o self infantil através de seu olhar. Se a mãe não for capaz de cumprir o papel de espelho para o filho, refletindo a si mesma e não a ele, o bebê terá dificuldades de se encontrar em seu rosto, buscando de algum modo dar sentido ao que observa e lhe parece incompreensível. Nesses casos, poderá tentar predizer o que se passa com a mãe para se defender de sua imprevisibilidade. A constituição posterior da imagem corporal ficará prejudicada pela impossibilidade da mãe de funcionar como um precursor do espelho.

É como uma experiência de júbilo que Lacan (1949/1998) descreve a percepção da imagem corporal unificada pela criança diante do espelho. Essa experiência remete à constituição de um Eu ideal como referido por Freud em 1914, um Eu que representa o narcisismo dos pais projetado sobre a criança. Pelo olhar da mãe, produz-se na criança esse Eu ideal que nada mais é do que um duplo do narcisismo materno, condição do narcisismo primário. Assim, além da imagem de um corpo inteiro e separado para a criança, a mãe projeta sobre ela expectativas quanto à aparência e à personalidade que ela deverá ter, criando para a criança não apenas uma imagem integrada com a qual se identificar, mas uma imagem ideal.

Quando afirmamos que a origem das projeções da mãe sobre seu bebê está no narcisismo materno, isso significa que as experiências da mãe enquanto a filha que foi – e ainda é – concorrerão para a constituição das imagens projetadas sobre a filha que virá. É o que Freud (1914/2004) propõe em seu trabalho sobre o narcisismo, onde afirma que, diante da dificuldade em observar o narcisismo primário nas crianças, podemos conhecê-lo a partir da atitude de pais afetuosos para com seus filhos. Ele supõe que, na base desse comovente amor parental, está a revivescência do narcisismo dos pais, que há muito teve que ser abandonado. Assim, os pais tendem a atribuir todas as perfeições à criança e ignorar-lhe os defeitos; também reivindicam para ela os privilégios aos quais tiveram que renunciar na infância, evitando ainda que ela tenha que passar pelas mesmas restrições às quais foram submetidos. "Sua Majestade, o bebê" – posição outrora ocupada pelos pais – deve agora concretizar os sonhos e aspirações nunca realizados por eles: "o menino se tornará um grande homem e um herói em lugar do pai, e a menina se casará com um príncipe como compensação para sua mãe" (Freud, 1914/2004, p. 98).

As formulações de Freud acerca da revivescência do narcisismo dos pais através dos filhos se referem às crianças de ambos os sexos, mas os exemplos freudianos reservam lugares distintos para um menino ou uma menina na imaginação dos pais (o de grande homem e herói e o de esposa de um príncipe). Haveria diferenças nas expectativas projetadas sobre um filho ou uma filha? É relativamente fácil observar que os pais fazem atribuições de gênero quando recebem a notícia do sexo da criança e passam a transmiti-las por meio da educação: "meninas não brigam", "meninos não choram" (Alonso, 2008). Freud (1933/2006) pensava que apenas com um filho a mãe poderia conseguir uma satisfação completa, realizando através dele tudo que restou de seu complexo de masculinidade. Entretanto, as aspirações de uma mãe em relação a uma filha revelam algo diverso: podemos observar, especialmente na clínica, que as projeções maternas sobre uma menina têm como desdobramento frequente uma confusão entre as duas no plano narcísico, sendo muitas vezes o destino da filha o de alcançar os objetivos que a mãe viu frustrados em sua história pessoal. A origem dessa diferença pode ser atribuída à identidade sexual entre mãe e filha.

Claude Le Guen (1997) observa que a mãe apresenta maior ambivalência em seus sentimentos em relação a uma filha do que a um filho, o que não deve ser compreendido pela diferença anatômica que os distingue, mas pela identidade ou não de seus sexos ao da mãe e pelo modo como a mãe percebe e transmite essa diferença. Enquanto o corpo do filho aponta para uma diferença, projetada sobre seu pênis, o corpo da filha traz uma semelhança que favorece a continuidade. O filho estaria mais protegido da ambivalência materna pela evidência de sua diferença ao proporcionar à mãe a sensação de possuir através dele o "falo glorioso", remetendo-a à dimensão do "ter"; já a filha, pela condição de identidade anatômica com a mãe, a interrogaria enquanto sujeito e enquanto mulher, despertando maior ambivalência ao estabelecer um jogo de espelhos que se remete à dimensão do "ser". Se, para o autor, o que um filho tende a produzir para a mãe é uma satisfação narcísica, aos moldes descritos por Freud em 1933, entre mãe e filha o que pode se configurar é uma identificação narcísica, determinando uma maior violência seja para amar ou para odiar.

Desse modo, o fato de que a filha possui o sexo feminino, como ela, provoca na mãe uma identificação mais maciça sobre ela do que sobre o filho, levando-a a projetar sobre a menina muitas de suas aspirações e frustrações: "Minha filha terá o que eu não tive", "Minha filha não cometerá os mesmos erros que cometi", "Eu sei o que é melhor para ela, afinal também sou mulher e um dia já tive a idade dela". Para Alonso (2008), a especificidade da semelhança sexual favorece que a mãe coloque a filha em continuidade com ela própria, transformando-a em bengala narcísica ou identitária. Se a filha se torna a bengala da mãe, podemos intuir que, para essa mãe, as projeções sobre a filha podem funcionar como defesa contra a elaboração de sua própria condição feminina. A mãe transfere para a filha a responsabilidade de encontrar uma solução para a condição feminina que satisfaça a ambas. Mas não se trata de permitir que a filha tenha o espaço para criar sua feminilidade: diante de projeções tão maciças o espaço para a criação fica muito estreito. Podemos considerar que o resultado do encontro entre essas projeções maternas (nas proporções que elas possam assumir) e os movimentos de separação da filha determina a diferença entre uma separação possível e uma separação impossível entre mãe e filha.

Em certos casos, a falta de espaço entre mãe e filha – que implica em uma diferenciação reduzida do ponto de vista narcísico – pode levar a mãe a retraçar toda a sua vida na relação com a filha, estabelecendo o que Zalcberg (2003) considerou uma apropriação narcísica sobre a menina. Caroline Eliacheff e Nathalie Heinich (2004), de modo parecido, falam da existência de um "abuso narcisista" de certas mães sobre as filhas que se revela uma forma particular de dominação. Trata-se da projeção dos ideais maternos sobre a menina, cujos dons são explorados não para desenvolver seus próprios recursos, mas para satisfazer as necessidades maternas. Por isso, o abuso narcisista não deixa de ser um abuso identitário, já que a filha é colocada em um lugar que não é seu, sendo destituída de sua identidade justamente por quem deveria ajudar a constituí-la. Esse tipo de abuso da mãe sobre a filha pode assumir as formas mais devastadoras, carregadas de depreciações, segredos, culpabilizações e intrusões, mas, dentre elas, a confusão de identidades é a mais sutil e mais temível.

Nesses casos de abuso narcisista, Eliacheff e Heinich (2004) consideram que há uma "patologia do amor materno" em que a mãe exerce um gozo onipotente sobre um ser completamente dependente, de quem espera de volta uma entrega igualmente ilimitada. As autoras identificam por trás do discurso dessas mães – "Nunca se ama demais os filhos!" – um desejo de absorção sem limites do e pelo outro, de investir com um tipo de amor fusional. Nesse contexto, as crianças, por sua total dependência, se tornam os objetos perfeitos para a dominação amorosa, pelo menos temporariamente. Especialmente, as filhas:

Com as meninas, é melhor ainda que com os meninos: a "dominação" materna pode se confortar com uma projeção narcisista sobre uma pessoa semelhante a si, autorizada a se diferenciar apenas na medida em que realize as aspirações insatisfeitas ou recalcadas (Eliacheff, & Heinich, 2004, p. 14).

É preciso ressaltar que o empreendimento materno de realização pessoal através da filha, muitas vezes acompanhado de um grande investimento nas aptidões desta, é percebido de forma geral – e, principalmente, pela filha – como demonstração de amor materno. Nesse contexto, como se queixar de ser tão amada? "Como denunciar um ataque a essa experiência tão imponderável, tão difícil de definir que é o sentimento de ser si mesmo?" (Eliacheff, & Heinich, 2004, p. 41).

Em consonância com as autoras citadas, Zalcberg (2003, p. 170-171) afirma que "o investimento desmesurado por parte de uma mãe é sempre acompanhado de uma falta de amor real, pois o que a mãe ama é sua própria imagem idealizada". Aqui é a própria imagem narcísica que é amada pela mãe, não a criança, pois a imagem idealizada da mãe fica superposta à imagem idealizada da criança. Eliacheff e Heinich (2004) concluem que a falta desse amor tem como consequência para a filha sentimentos de baixa autoestima e demanda insaciável de reconhecimento. Dessa maneira, parece sutil a diferença entre o que foi chamado aqui de amor real de uma mãe por sua filha e o amor narcísico da mãe projetado na menina.

Freud já havia constatado em 1914 (2004) uma diferença quanto às formas assumidas pelas vidas amorosas de homens e mulheres que pode ser esclarecedora. Ele diz que, para todos os seres humanos, estão franqueados dois tipo de escolha de objeto: o primeiro toma como modelo as experiências de satisfação da criança na relação com a mãe, pautando a escolha do objeto na imagem materna; o segundo, ao invés da imagem da mãe, toma a imagem da própria pessoa como modelo, e por isso é dito narcísico. Enquanto o primeiro tipo de escolha de objeto prevalece nos homens, Freud afirma que o tipo narcísico é mais frequente nas mulheres. Segundo este modelo, a pessoa toma por objeto: o que se é, o que se foi, o que gostaria de ser e uma parte de si mesmo. Assim, ele vê para as mulheres uma possibilidade de amor objetal pleno através da maternidade, pois, apresentando-se como parte do corpo da mãe, a criança pode receber parte do narcisismo materno e se tornar o objeto de seu amor. A partir dessas elaborações freudianas, entendemos que o amor de uma mãe por sua criança sempre é, em alguma medida, narcísico, e, se for uma menina, acrescenta-se a esse amor a possibilidade de identificação narcísica mencionada por Le Guen (1997).

Nos casos em que predomina a identificação narcísica, mãe e filha permanecem em uma batalha sem trégua para assegurar suas integridades narcísicas, uma temendo se perder na outra. Podemos imaginar que a hostilidade e a adoração entre mãe e filha, tão visíveis na clínica e fora dela, se devam a esse jogo de espelhos que se perpetua nessa relação: o prolongamento de uma relação de forte ambivalência entre mãe e filha se explica pela impossibilidade de superar completamente a relação especular. Ainda deve ser levado em consideração o fato de que nesse tipo de relação especular há somente dois lugares a serem ocupados em vez de três, implicando em uma exclusão do terceiro. Eliacheff e Heinich (2004) apontam que essa característica define tais relações como incestuosas, tratando-se de um incesto platônico, sem passagem ao ato.

Nesse sentido, Jacques André (2003) assinala que é o interdito do incesto que protege do perigo da indiferenciação dentro de um mesmo corpo familiar, evitando a tendência a transformar os parecidos em idênticos. "É como desejo do idêntico que é preciso definir o movimento incestuoso inconsciente" (André, 2003, p. 13). O desejo incestuoso abole as diferenças entre as gerações, até entre os sexos, e, mais radicalmente, entre sujeito e objeto. O autor completa que por sua condição de consanguinidade, pela identidade sexual e pelo fato de que uma dá à luz a outra o casal mãe-filha representa o máximo do idêntico.

Ainda segundo André (2003, p. 11), na fala de uma de suas pacientes que carrega ódio da semelhança entre mãe e filha – "O pior que poderiam dizer-me é que me pareço cada vez mais com minha mãe" – se encontra um medo de retorno "do mesmo", retorno à indiferenciação. Ele compara o efeito detestável para uma filha de reconhecer sua mãe no espelho ao relato de Freud1 no vagão de trem: a imagem do outro é ele mesmo, ou melhor, a detestável imagem no espelho é o outro e o Eu ao mesmo tempo. De fato, o narcisismo, relativo à imagem de si, se encontra perigosamente próximo da indiferenciação à mãe e, assim, da morte: acontece a essa pessoa que dá a vida de representar também o seu oposto, a morte, através da indiferenciação e da aniquilação do próprio Eu. Nesse sentido, Jacques André (2003) nomeia de "ameaça do idêntico" o perigo de retorno a uma relação indiferenciada entre mãe e filha, face ao qual a ambivalência mostra seu papel separador fundamental.

Diante desse jogo de espelhos, a ambivalência da filha e a ambivalência da mãe se tornam o meio pelo qual as duas afirmam permanentemente suas diferenças, tão valiosas. O amor que uma tem pela outra, mas, especialmente, a hostilidade, marca que nada pode ser como antes, no período em que uma se confundia com a outra. É preciso ressaltar que não só a filha se confunde com a mãe em sua condição de dependência, mas a mãe também se confunde com a filha, perdendo-se nas projeções que lança sobre ela. É justamente o medo de perder-se na filha, semelhante a ela, que desperta maior ambivalência na mãe. Tanto para a mãe quanto para a filha, o ódio presente na ambivalência é uma defesa contra a ameaça de indiferenciação.

Se a separação em relação à mãe se coloca como um processo inescapável para todo sujeito, com peculiaridades que podem tornar a separação de uma filha em relação à mãe mais desafiadora, esse fato terá efeitos sobre a experiência vivida por uma mulher ao se tornar mãe. "O que significa ser mãe de um menino ou de uma menina?". "Será que vou repetir com uma filha as mesmas atitudes que minha mãe teve comigo?". "Como ser mãe como a minha mãe e ao mesmo tempo diferente dela?". O trabalho de separação da filha em relação à mãe, como todo trabalho de separação, nunca se torna completo e passa por atualizações ao longo da vida. Assim, é possível considerar que a maternidade, para uma mulher, convoca a uma nova elaboração da separação em relação à sua mãe: uma experiência de reencontro com os primórdios, da qual poderá nascer um filho ou uma filha e também uma nova mãe.

 

Tornar-se mãe: a criação do espaço de concepção

Já se tornou conhecida, a partir de diversos autores (Winnicott, 1956/2000; Racamier, 1961; Green, 1980/1990; Stern, 1997), a afirmação de que a gravidez conduz a mulher a um processo de intensa transformação. O primeiro a apresentar essa ideia de maneira clara foi Winnicott (1956/2000), em um trabalho intitulado "A preocupação materna primária". O autor considera que, desde o final da gravidez até algumas semanas após o nascimento do bebê, a mãe desenvolve um estado psicológico muito especial, de identificação profunda com o bebê, que lhe permite adaptar-se de forma sensível a todas as suas necessidades. Esse estado, de "preocupação materna primária", raramente é recordado depois de superado, ou, como Winnicott defende, tende a ser recalcado. Trata-se de uma condição organizada que toma temporariamente o poder sobre a personalidade da mãe e seria considerada doentia se não fosse o contexto da gravidez. Para o autor, a mãe saudável é aquela capaz de ingressar no estado de preocupação materna primária, garantindo os cuidados adequados ao bebê, e de se recuperar dele à medida que o bebê passa a exigir menos dela.

André Green (1980/1990), em um sentido muito próximo, afirma que nesse período há uma remodelagem completa das experiências da mulher, de seu vivido e sua relação com o mundo. O foco de suas atenções passa a se direcionar inteiramente para o bebê, bem como sua sensibilidade aos sinais mais imperceptíveis emitidos por ele parece aos outros de caráter quase alucinatório. Green nomeia essa condição de "loucura materna normal", situação em que é aceitável tudo sacrificar pelo outro, buscar ser para o bebê um objeto único e incomparável, como ele é para a mãe. Mas o autor usa essa nomenclatura no contexto de um esforço em diferenciar a loucura da psicose, buscando resgatar a dimensão afetiva e econômica possível a partir do termo "loucura", distinta do caráter estrutural da psicose.

Esse também é o ponto de vista de Paul-Claude Racamier (1961), para quem a gravidez faz a economia psíquica da mulher se orientar gradualmente rumo a um regime narcísico e fusional, centrado em torno do feto. A mãe passa inclusive a se amar mais, pois ela ama indistintamente a si mesma e à criança que porta em seu corpo. Para o autor, o funcionamento psíquico materno se aproxima, de maneira normal e reversível, de uma modalidade "psicótica". Mas, em consonância com Green, esse termo não deve ser compreendido no sentido de uma entidade clínica que reúne sintomas encontrados no adoecimento psicótico, e sim como uma organização particular do Eu e da personalidade. Nesta condição, o Eu se despoja dos mecanismos de defesa próprios à neurose ou à organização anterior para fazer face à nova exigência pulsional. O senso de identidade da mãe se torna mais flutuante e frágil, já que a relação com o objeto se dá aos moldes da confusão entre o Eu e o outro.

Se, a partir desses autores, fica clara a ideia de que a gravidez traz para a mulher uma nova organização psíquica, podemos considerar que a obra de Daniel Stern (1997) dá um passo adiante nessa investigação, nomeando essa nova organização de "constelação da maternidade". Não se trata, para o autor, de uma derivação de outras organizações ou estruturas, como a psicose, mas de uma organização única e completamente normal no contexto da maternidade. De acordo com Stern, essa organização é temporária, mas, enquanto está em curso, se torna o principal eixo organizador da vida psíquica da mãe, relegando a segundo plano outros complexos que governavam a vida psíquica, como o complexo de Édipo. A tríade edípica estabelecida entre a mulher, sua mãe e seu pai é substituída por uma nova tríade sob a constelação da maternidade: mãe, mãe da mãe e bebê. O autor propõe que essa tríade está na base dos três discursos internos que passam a governar a vida da mãe: "o discurso da mãe com sua própria mãe, especialmente com sua mãe-como-mãe-para-ela-quando-criança; seu discurso consigo mesma, especialmente com ela-mesma-como-mãe; e seu discurso com o bebê" (Stern, 1997, p. 161). Stern faz a ressalva de que a constelação da maternidade não é universal nem obrigatória, ainda que a maioria das mulheres a desenvolva.

Vemos, pelas contribuições de Stern, que a nova organização psíquica na qual a mulher é lançada pela experiência da gravidez produz uma aproximação à sua própria mãe. De fato, Freud (1933/2006, p. 132) já havia afirmado, na conferência Feminilidade, que, "sob a influência da transformação da mulher em mãe, pode ser revivida uma identificação com sua própria mãe". Não se trata, para Stern, da mãe edípica rival, mas da mãe enquanto experiência de maternagem vivida pela mulher quando bebê. Nossa hipótese é de que essa aproximação também pode significar o retorno a uma condição em que mãe e filha eram menos diferenciadas, sendo, assim, fonte de angústia.

Nesse sentido, Claire Squires (2003) aponta que a gravidez tem a capacidade de reativar a relação carnal vivida com a mãe dos primeiros tempos, promovendo uma identificação a ela enquanto mãe. A filha, ao se tornar mãe, reviveria o vínculo à sua própria mãe, agora, inversamente, na posição outrora ocupada por esta. Esse retorno a um vínculo tão primário, capaz de trazer de volta elementos há muito tempo recalcados, se explicaria pelo caráter narcísico da experiência da gravidez, com seu investimento no corpo, nos limites da pele, nos cuidados. Mas a gravidez faz com que a mulher reviva não só a ternura, mas também a hostilidade experimentada em seus primeiros tempos de relação com a mãe.

A loucura materna normal traz de volta assim todas as feridas narcísicas antigas, os traumatismos, o luto e a herança transgeracional, acessíveis sob o efeito da suspensão do recalque. Talvez o período de gravidez abra uma janela menos opaca sobre o Inconsciente. As questões da relação mãe-filha serão assim desveladas (Squires, 2003, p. 121).

Associado a esse contexto, a autora afirma que não é incomum o aparecimento de grandes variações de humor, distúrbios passageiros da identidade, fobias e depressões em mulheres que se tornam mães. Por outro lado, essa revivescência de experiências do período pré-edípico pode se tornar ocasião para elaboração dos elementos que retornam, além de um trabalho de separação entre mãe e filha, questão sempre relevante para o psiquismo feminino (Squires, 2003).

Em alguns casos, a evocação de tais experiências primitivas pode fazer com que a perspectiva de gerar uma criança dentro de si não seja tolerada. Para algumas mulheres, um filho pode ser percebido como uma perda do ponto de vista narcísico e um risco de colapso de uma estrutura defensiva arduamente mantida. Para outras, ao contrário, o reencontro com as experiências de cuidado materno vividas nos primórdios pode ser desejado, significando o reencontro com um objeto interno bom, que não ameaça a integridade do Eu. Há ainda os casos em que a experiência de ser mãe é desejada de modo irrenunciável, surgindo como uma exigência a ser atendida, uma angústia a ser aplacada.

O desejo de ter filhos, para além de sua enunciação consciente, comporta uma ambivalência e "está sempre infiltrado de significações inconscientes" (Bydlowski, 2008, p. 19). Freud se refere ao desejo infantil de ter filhos por duas vertentes principais: a primeira, ligada à relação pré-edípica com a mãe, para os dois sexos; a segunda, relacionada ao desejo de ter um filho como substituto do pênis, no contexto do complexo de Édipo da menina. Bydlowski (2008) aponta que a perspectiva clássica da psicanálise costuma privilegiar a visão de que, ao se tornar mãe, a mulher obtém o filho outrora desejado do pai, mas tende a negligenciar a força do vínculo originário à mãe no início da vida e sua influência na filiação.

A primeira forma de expressão do desejo de ter filhos se dá em um momento ainda muito precoce, referido por Freud como a fase fálica para meninos e meninas. No caso das meninas, vimos que se trata de um período em que vigora um vínculo muito intenso à mãe, que permanece produzindo efeitos mesmo depois de recalcado – recalque, aliás, menos efetivo que o masculino. Bydlowski (2008, p. 21) indica que o desejo por um bebê pode corresponder ao anseio da mulher de viver a experiência de maternidade como sua própria mãe, em uma continuidade com ela: "Pelo desejo de um bebê, a mulher dá corpo ao vinculo carnal indestrutível que a une à sua mãe". A autora considera a identificação à mãe confiável dos primeiros tempos algo necessário para que uma mulher possa se tornar mãe. Sylvie Faure-Pragier (1997) parece corroborar essas observações ao afirmar, de outro modo, que muitos dos casos de infertilidade feminina analisados por ela podem ser atribuídos a uma impossível identificação da paciente à mãe.

O desejo de ter um filho como substituto do falo nunca recebido é, sem dúvida, o mais referido nos textos psicanalíticos entre as motivações inconscientes que movem uma mulher a se tornar mãe. Mais do que um desejo infantil, o desejo de ter um filho do pai é alçado por Freud ao estatuto de símbolo da própria feminilidade. Segundo Bydlowski (2006; 2008), o desejo da mulher de ter filhos geralmente se dá pela combinação de três elementos: o primeiro é a identificação à mãe pré-edípica, cujo tipo de vínculo a mulher deseja prolongar na relação com seu bebê; o segundo é o desejo de receber do pai uma criança como a mãe recebeu; e, finalmente, existe o desejo de ter uma criança que encarne o vínculo sexual estabelecido com um homem desejado e atual. O único momento em que Freud parece considerar essa hipótese em sua obra pode ser identificado no texto "As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal":

Podemos certamente nos sentir inclinados a atribuir o desejo por um homem [...] ao desejo por um bebê, já que a mulher com certeza compreenderá, mais cedo ou mais tarde, que não pode haver bebê sem a cooperação do homem. Contudo, é mais provável que o desejo por um homem nasça independente do desejo por um bebê, e que, quando esse desejo desperta, [...] o desejo original de um pênis liga-se a ele, como um reforço libidinal inconsciente. (Freud, 1917/2006, p. 137-138).

Assim, Freud considera nesse texto que o amor de uma mulher por um homem pode nascer desvinculado do desejo feminino de ter uma criança do próprio pai. Somente depois esse desejo infantil reapareceria para se inscrever em outro registro, o do amor por um homem. Freud (1917/2006) menciona que, nas mulheres que não se tornam neuróticas, o amor por um homem pode se dar segundo o tipo objetal, que coexistiria então com o tipo narcísico. Em outros casos, somente um bebê poderia promover a transição do autoamor narcísico para o amor objetal. Com isso, Freud retifica uma de suas posições defendidas em 1914 (2004), segundo a qual as mulheres em geral só poderiam encontrar o amor objetal na maternidade.

É essa a discussão desenvolvida por Maria Elisa Pessoa Labaki (2008), que busca na teoria freudiana um lugar para a maternidade que não se inscreva na neurose. Para a autora, Freud situa apenas na histeria o desejo feminino de ter filhos, assim como só consegue conceber a ausência de desejo de maternidade na homossexualidade. O desejo de ter um bebê seria um sintoma histérico na medida em que expressa o retorno do desejo recalcado na menina de possuir o pênis, então deslocado para o desejo de possuir um bebê. Para a autora, essa posição freudiana implica em considerar uma sexualidade feminina que jamais alcança a organização genital adulta. Nesse contexto, ela se refere ao texto de 1917 como o único que apresenta o desejo de maternidade como uma das vias do erotismo em relação ao homem. Labaki ressalta que é preciso reservar um lugar à maternidade que escape à neurose e possa se inscrever na lógica da diferença sexual.

Essa perspectiva sobre o desejo de ter filhos leva a autora a uma nova discussão, que nos interessa especialmente. De acordo com Labaki (2008), é preciso diferenciar o desejo de engravidar que anima uma mulher daquele que a manterá dedicada a seu bebê. Enquanto a gestação pode ser experimentada por algumas mulheres como o ápice da vivência narcísica, ligada à capacidade de gerar outra vida e de preencher temporariamente a própria falta, o exercício da maternidade é de outra ordem. Após o nascimento, a sensação seria menos a de uma completude narcísica e mais a de uma perda, imposta pela separação a que o parto obriga. Essa separação levaria imediatamente ao início de um trabalho de diferenciação, pois, a partir do nascimento, o que era um se torna dois. Nesse sentido, não existe relação de continuidade entre gestação e maternidade, mas sim de ruptura.

Apesar de considerarmos essa distinção de grande utilidade, podemos fazer a objeção de que essa ruptura não se dá de maneira imediata, e sim a partir de um processo gradual de separação entre mãe e bebê. Logo após o nascimento, o que vigora é o funcionamento psíquico denominado por Winnicott (1956/2000) de preocupação materna primária, no qual as particularidades da mãe são deixadas em segundo plano para que ela se adapte completamente às necessidades do bebê, como já discutimos. Mas, para isso, lembra a autora, a mãe deve conter em si o movimento de separação, permitindo-lhe identificar-se com o bebê. Assim, interessa-nos destacar nas contribuições de Labaki (2008) a ideia de que o desejo de engravidar, de caráter mais narcísico, deve ser distinto do desejo que uma mulher precisa sustentar no exercício da função materna – desejo que a autora define como o de perder, mais do que o de ter. Trata-se de um desejo que privilegia o amor objetal e que permite a emergência da alteridade na criança. "A espera de um filho, durante a gravidez, bem como o investimento de desejo no filho que será adotado, deveria dotar a mãe com esta capacidade de perda da imagem ideal do bebê, sem a qual a criança não se subjetivaria" (Labaki, 2008, p. 282).

Piera Aulagnier (1999), no mesmo sentido, fala da importância de que a mãe separe o corpo real do bebê da imagem antecipada do corpo dele forjada por ela durante a gestação. Essa imagem, por um lado, é fundamental, pois o corpo da criança só pode ser acolhido pela mãe se ela construir uma história para ele, história que contém um "Eu antecipado", que insere a criança em um sistema de parentesco e com isso em uma ordem temporal e simbólica. O Eu da criança só poderá se constituir sobre essa imagem antecipada pela mãe, seu porta-voz. Por outro lado, o investimento da mãe nessa imagem antecipada, para a qual não existe ainda suporte real, implica sempre em um risco: em alguns casos, o corpo com o qual a criança vem ao mundo não encontra correspondência na imagem ideal forjada pela mãe, tornando-se muito estranho para o olhar materno.

Essas formulações nos levam a pensar, mais uma vez, que o investimento da mãe sobre a imagem do bebê que vai nascer, seja aquele que está no ventre ou o que ainda nem foi concebido, possui caráter eminentemente narcísico. Porém, ao final da gravidez e após o nascimento, deve ser iniciado um processo de objetalização dos investimentos maternos sobre o bebê, permitindo a emergência de investimentos de tipo objetal. A grande transformação que se opera de um tipo de investimento a outro é a consideração do lugar da diferença. O investimento de tipo narcísico é aquele em que se ama a criança como se ama a si mesma, enquanto o amor objetal implica em amar o estrangeiro, o diferente, aquele que sempre traz uma surpresa. Não queremos sustentar que o exercício da maternidade, como referido por Labaki (2008), exige uma transição completa do amor narcísico ao objetal. Trata-se mais da possibilidade de emergência do amor objetal ao lado do amor narcísico. O amor narcísico puro pela criança nos remete ao que Eliacheff e Heinich (2004) denominaram de patologia do amor materno: um amor sem limites, em que predomina a confusão entre quem ama e quem é amado, sem espaço para a diferença. Também é um tipo de amor que não coexiste facilmente com o ódio, pois este separa. O amor narcísico exclusivo, portanto, exclui a ambivalência necessária à separação, especialmente entre mãe e filha.

Faure-Pragier (1997, p. 110), nesse contexto, interroga: o que seria então "um verdadeiro desejo de ter filhos?". A autora propõe que, nos casos em que a mudança de objeto da mãe para o pai é problemática para a filha, não se trata tanto do desejo de um filho como filho do pai. Na ausência de uma triangulação suficiente na história da mulher, diz a autora, não parece que a demanda de engravidar exprime "um verdadeiro desejo por um filho nascido do amor de um homem e de uma mulher. Talvez pudéssemos falar de uma vontade de filho [envie d’enfant]" (Faure-Pragier, 1997, p. 111). Vontade que, segundo ela, pode mascarar uma recusa de filho inconsciente, ligada à ocorrência de certos casos de infertilidade. Apesar de Faure-Pragier não fazer distinção clara entre o desejo de ter um filho do pai edípico e o desejo de ter um filho de um homem amado, fica marcada a diferença entre esse desejo por um filho e a "vontade de filho", que não expressa de fato um desejo inconsciente.

Em entrevista a Horstein, Aulagnier parece acompanhar esse ponto de vista:

[...] é necessário diferenciar o desejo de filho com toda a evolução que ele implica: ter um filho da mãe, ter um filho do pai até chegar a desejar um filho do homem que possa dá-lo. Este desejo de filho deve ser diferenciado do desejo de maternidade que é o desejo de repetir em forma especular seu relacionamento com a mãe. Este desejo é catastrófico para a criança. O catastrófico é que para essas mulheres é impossível aceitar o novo" (Hornstein, 1986/1991, p. 367).

Desse modo, há uma distinção importante estabelecida pela autora entre o desejo de filho, de um bebê fruto da relação sexual entre um casal – poderíamos dizer, fruto da diferença – e o desejo de maternidade enquanto tentativa de retorno à relação especular vivida com a própria mãe no início da vida, em que ainda não há lugar para a diferença. Enquanto Aulagnier ressalta que não é o filho que se deseja nesses casos, mas a maternidade, Faure-Pragier aponta para a inexistência de um desejo de fato nessa demanda, que surge sob a forma de uma vontade. Nesses termos, partindo das pontuações das duas autoras, propomos estabelecer uma diferença entre o desejo por um filho e a vontade de ser mãe.

A vontade de ser mãe não se constrói em torno de uma criança imaginada, e sim a partir de uma dificuldade de separação da mulher em relação à própria mãe que encontra na maternidade mais um recurso para se perpetuar. Vimos como a gravidez promove um reencontro da mulher com a relação pré-edípica com a mãe, ou melhor, o estreitamento de um tipo de vínculo que nunca é totalmente recalcado. Essa emergência do vínculo primário à mãe exige do psiquismo da mulher uma reorganização que permita construir a própria maternidade e englobar narcisicamente a criança que chega. A identificação à mãe, considerada por Bydlowski (2008) e Faure-Pragier (1997) fundamental à construção da maternidade, pode, em certos casos, significar uma ameaça de retorno à indiferenciação. Nesses casos, a perspectiva de uma gravidez é vivida inconscientemente como uma ameaça, e a recusa, também inconsciente, da gravidez faz com que a expressão consciente da vontade de ser mãe não seja mais que uma defesa. Assim, nos casos em que a separação entre mãe e filha é precária, há um prejuízo à possibilidade de emergência do desejo de ter filhos, podendo surgir uma vontade de ser mãe de caráter defensivo, que prolonga o aprisionamento da filha ao vínculo primário à mãe. Mas como a dificuldade de separação entre mãe e filha atinge a formulação inconsciente do desejo de ter filhos?

De acordo com Aulagnier (1979), tanto a menina quanto o menino herdam um desejo de ter filhos que lhes é transmitido pelo desejo materno de que eles se tornem também pai ou mãe. Trata-se da projeção sobre os filhos do desejo recalcado na mãe de ter um bebê de seu pai quando era uma menininha edipiana. Ainda segundo a autora, o desejo de ter um filho do pai no Édipo, não realizado, se transforma em desejo de que sua criança tenha um filho. Mas, assim como a mãe não pôde receber um filho de seu pai, pela interdição do incesto, ela também não pode dar um filho a seu filho. Desse modo, o mesmo desejo transmite à criança a mesma interdição: tanto o desejo quanto a interdição se repetem na geração seguinte. Pela transmissão do desejo e da interdição, a mãe prova para si que não realizou o desejo de filho do Édipo, que era incestuoso, e a criança herda também a constatação de que ela não é a realização daquilo que era esperado. Aulagnier considera que, assim, mãe e criança se tornam agentes da repressão um para o outro.

Esse desdobramento tem consequências importantes, pois o desejo materno, transmitido dessa maneira, indica para a criança que há um lugar que deve ficar vago – noção que essa criança também transmitirá para seus filhos. O desejo infantil inicial de ter um filho de sua mãe, segundo Aulagnier (1979), significa o desejo de ter-se a si mesmo, ter e ser ao mesmo tempo, e, portanto, deve ser superado. Ele deve dar lugar ao reconhecimento de que não se pode ter o que se é, só sendo possível almejar objetos substitutivos. Isso se torna possível pela passagem do desejo para o registro edipiano, quando a figura paterna, um terceiro, dá à criança "o dom de ter um filho que ela não pôde ser, mas poderá ter" (Aulagnier, 1979, p. 119). Esse desejo, postergado na infância, poderá ser reapropriado depois, quando o pai e a mãe forem substituídos por outra pessoa. Assim, o desejo materno de que a criança tenha um filho, tal como é enunciado, coloca a mãe no lugar de doadora interditada.

Seguindo as formulações de Aulagnier (1979), podemos considerar que o desejo de ter um filho enquanto um objeto substitutivo, que abre espaço para o amor objetal, tem como base fundamental a transmissão da interdição do incesto. É essa interdição, eixo organizador fundamental do psiquismo, que não produz seus efeitos nos casos em que se apresenta a vontade de ser mãe. Quando o desejo é de reprodução da relação especular com a mãe através da própria maternidade, não há lugar para o terceiro, isto é, prevalece a relação incestuosa primária entre mãe e filha. O desejo de ter filhos só é possível em um modo de funcionamento triangular, em que o filho é outro, um estrangeiro, mesmo que venha do interior do corpo. É o complexo de Édipo que propicia essa organização, mesmo que o terceiro não seja um homem: a travessia do Édipo equivale à inscrição da interdição do incesto, a lei que proíbe mãe e filha de permanecerem em uma relação exclusiva. Essa lei, quando inscrita no psiquismo materno, permite que essa mãe transmita a seus filhos um desejo de ter filhos em que está implícita essa proibição. Isso significa que, para ela, seu filho não representa a realização da relação incestuosa com seus pais, assim como o filho de seu filho não o será. Portanto, a possibilidade de desejar e de conceber filhos está estreitamente relacionada à travessia de uma separação fundamental entre mãe e filha: aquela que as retira da relação exclusiva e incestuosa dos primeiros tempos.

Nesse contexto, Faure-Pragier (1997; 2001; 2003) nos oferece uma articulação interessante entre a existência de um espaço de separação entre mãe e filha e a possibilidade de concepção. Conceber um filho, segundo a autora, exigiria do psiquismo as mesmas capacidades necessárias à concepção de um pensamento original ou uma obra de arte. Essas capacidades não são encontradas em certas mulheres inférteis acompanhadas pela autora, impossibilitadas não só de engravidar, mas de produzir sonhos (sempre "breves e crus") e associações. Ao contrário, seu funcionamento psíquico se caracteriza pela tentativa de controle onipotente sobre sua realidade interna, que se expressa especialmente no setting analítico. Faure-Pragier (1997) situa esse impasse em torno de uma incapacidade de suportar qualquer tipo de passividade, pois esta remeteria à dependência e à submissão à dominação materna. Mais especificamente, há "um movimento de regressão à submissão à mãe onipotente e a luta contra esse desejo pela repressão de toda passividade" (Faure-Pragier, 2003, p. 71). Nesse contexto, surge uma tendência à atividade, expressa como uma substituição do funcionamento representativo pelas atuações (como a demanda incansável por todo tipo de intervenções técnicas para a reprodução assistida), acompanhada de um "narcisismo fálico", ligado menos à inveja do pênis do que à recusa à passividade.

Inspirada em Didier Anzieu, Faure-Pragier (2003) considera que a aceitação passiva de "pensamentos divergentes" é necessária ao surgimento do novo, mas isso também pode se aplicar à aceitação do crescimento de uma criança desconhecida no interior de seu corpo. É preciso aceitar uma certa surpresa que desorganiza as representações anteriores para que surja o novo. Nos casos de "inconcepção", como define a autora, é essa possibilidade que se encontra fora de alcance. Essas pacientes temem o que seria a primeira condição para o trabalho de criação: uma "dissociação parcial" e uma "regressão do Eu, parcial, brusca e profunda" (Faure-Pragier, 2003, p. 73), defendendo-se contra a angústia que esses processos provocariam – angústia de tipo psicótico, ligada à aniquilação, ao despedaçamento, à perseguição. O termo inconcepção assume então um duplo sentido claro:

Conceber uma criança, como conceber um pensamento, supõe a capacidade de abandonar o controle, os princípios conhecidos e o funcionamento ordenado do corpo fisiológico, para deixar ser produzida no interior de si uma subversão desconhecida, de onde emergirá o novo: pensamento, obra ou criança (Faure-Pragier, 1997, p. 75).

Ainda segundo Faure-Pragier (2003), a concepção, tanto de um pensamento ou obra, quanto de uma criança, suporia a capacidade de confiar na qualidade do objeto interno, o que permite assumir o risco da perda de controle que vem com a expansão dos limites narcísicos. Nesse ponto, a autora retoma a discussão que desenvolvemos acerca da reorganização psíquica que a experiência da gravidez provoca na mulher. Bydlowski (2001) havia ressaltado como a existência de um bom objeto interno é fundamental para que a mulher não viva a experiência da gravidez de maneira persecutória. Essa é a condição para que uma nova configuração narcísica se instaure – um "narcisismo englobante", nos termos de Aragão (2004) – permitindo que a criança seja acolhida pelo psiquismo da mãe. Mas, acima de tudo, a possibilidade de conceber supõe um reencontro possível com as representações sobre a mãe pré-edípica, algo que parece se tornar insuportável para certas mulheres.

Nesses casos, diz Faure-Paragier (2003), falta a distância que marca a separação, que favoreceria o espaço do brincar e da criatividade, espaço equivalente ao lugar de concepção. Para a autora (Faure-Pragier, 2001), a mãe ocupa sozinha o espaço psíquico dessas mulheres, impedindo a concepção. É preciso que um vazio psíquico duplique o vazio uterino para que o espaço de concepção se libere (Faure-Pragier, 2003). Esse vazio remete a autora "ao espaço transicional, à capacidade de rêverie da mãe, à possibilidade de estar só em sua presença, a tudo que condiciona a separação entre mãe e filha" (Faure-Pragier, 2003, p. 72).

O espaço transicional, ou espaço potencial, como referido por Winnicott (1971/1975), não é nem o espaço interno, nem o espaço externo; ele é um espaço intermediário, criado a partir do objeto e ligado ao uso que se faz dele. Esse espaço se constitui ao final da fase de fusão ao objeto, em que este passa a ser repudiado como não-Eu. Trata-se do momento em que o bebê passa a separar a mãe de seu Eu e ela começa a sair do estado de preocupação materna primária. Esse momento, que poderia ser definido apenas como um momento de separação, revela-se, para Winnicott, mais complexo. O autor considera que, "com seres humanos, não pode haver separação, apenas uma ameaça dela" (Winnicott, 1971/1975, p. 150), ideia que pode ser associada à capacidade de estar só, que só pode ocorrer a partir da presença materna. Não há separação total, assim como não se fica totalmente só, porque o espaço da separação equivale ao espaço potencial, que, no mesmo ato de constituir-se, é preenchido pelo bebê com a experiência do brincar. Quanto maior tiver sido a confiança no objeto, ligada à experiência de um ritmo reassegurador nos cuidados maternos, maior será o espaço potencial para o bebê.

Na experiência do bebê (da criança pequena, do adolescente e do adulto) mais afortunado, a questão da separação não surge no separar-se, porque, no espaço potencial existente entre o bebê e a mãe, aparece o brincar criativo que se origina naturalmente do estado relaxado. É aqui que se desenvolve o uso de símbolos que representam, a um só e mesmo tempo, os fenômenos do mundo externo e os fenômenos da pessoa individual que está sendo examinada. [...] A confiança do bebê na fidedignidade da mãe e, portanto, na de outras pessoas e coisas, torna possível uma separação do não-Eu a partir do Eu. Ao mesmo tempo, contudo, pode-se dizer que a separação é evitada pelo preenchimento do espaço potencial com o brincar criativo, com o uso de símbolos e com tudo que acaba por se somar a uma vida cultural (Winnicott, 1971/1975, p. 151).

A partir dessa leitura, depreendemos que a possibilidade de usar símbolos que ocupem o espaço deixado pela separação em relação à mãe garante que esse espaço se torne fértil para a aquisição de objetos substitutivos, permanecendo, portanto, sempre preenchido. Não é esse o caso ao se tratar de certas mulheres que não conseguem se liberar da relação exclusiva com a mãe pré-edípica. Nesses casos, o espaço psíquico está ocupado por um objeto único, insubstituível, cuja presença parece aplacar a angústia de separação, mas aprisiona e causa sofrimento. A separação em relação à mãe, sempre parcial, só pode deixar como herança o desejo de ter filhos na medida em que consiga capacitar a criança a investir eroticamente em outros objetos. O desejo de um filho é o desejo do novo, da diferença, de uma relação em que está inscrita definitivamente a marca da perda do objeto primário. Já a vontade de ser mãe, ao não comportar essa marca, se depara com a impossibilidade psíquica de investir novos objetos, pois estes não encontram um espaço fecundo que os acolha.

Com Winnicott, aprendemos que o espaço de separação entre mãe e filha só pode ser sustentado se ali se constituir um espaço de criação – criação que pode se dar a partir de uma infinidade de objetos, vindo a produzir seja uma forma de pensar criativa, uma obra de arte ou até um filho. A criança é um entre tantos objetos que podem ocupar o espaço potencial de uma mulher, nascendo a partir dele. A capacidade de desejar filhos e de concebê-los se aproxima, portanto, da capacidade de brincar, de criar subjetivamente um objeto que está na realidade externa, o que só se torna possível a partir da confiança em um bom objeto interno. Para ter um filho é preciso ter a tranquilidade de que a imagem interna da mãe não é só ameaçadora, mas também protetora, garantia de que é possível aceitar a subversão trazida pelo novo. Conceber um filho é um ato de criação, possível apenas no espaço conquistado pela separação entre mãe e filha.

 

Referências

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Notas

1 No texto "O estranho" (Das Unheimlich), de 1919, Freud relata um episódio em que, viajando de trem em um compartimento particular, um solavanco faz a porta do toalete se abrir e, então, um senhor de idade, de roupão e boné de viagem entra. Freud se levanta para apontar o equívoco desse homem e então compreende, espantado, que o intruso era seu reflexo no espelho da porta aberta. Perturbado, confessa que antipatizou com seu "duplo", que considerou "estranho".

 

 

Recebido em 26 de julho de 2016
Aceito para publicação em 14 de agosto de 2017

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