SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 número3Separar-se da mãe para tornar-se mãe: a criação do espaço de concepçãoEncaminhamento de crianças para atendimento psicológico: uma revisão integrativa de literatura índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.29 no.3 Rio de Janeiro  2017

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

Acolhida e cuidado a crianças e famílias em um serviço de saúde mental infantil

 

Reception and care of children and families in a child mental health service

 

Acogida y cuidado a niños y familias en un servicio de salud mental infantil

 

 

Vania BustamanteI; Rosângela OliveiraII; Nattana Brito RodriguesIII

IProfessora Adjunta do Instituto de Psicologia e pesquisadora do MUSA no Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil
IIPsicóloga e residente em Saúde Mental, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, Brasil
IIIPsicóloga, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil

 

 


RESUMO

Este estudo aborda o trabalho com a família nas práticas de cuidado à saúde mental e o desenvolvimento infantil, tendo como suporte a teoria psicanalítica. Aborda-se a história e as atuais políticas de saúde mental infantil, no marco do Sistema Único de Saúde, com ênfase no lugar em que a família é colocada. Reflete-se sobre as contribuições da psicanálise para as práticas de cuidado à saúde mental na infância, especialmente o aporte de Winnicott e os conceitos de Acolhida (Holmes, 2012) e Cuidado (Figueiredo, 2009). Realizou-se um estudo de caso com frequentadores de um serviço que atende crianças e suas famílias, buscando compreender como ocorreu o processo terapêutico: desde a chegada, através de um encaminhamento, à construção do psicodiagnóstico, a devolutiva oferecida à família e os avanços terapêuticos observados. Os atendimentos foram transcritos e analisados com o método da análise temática. Encontrou-se que a acolhida, eixo central do trabalho terapêutico no serviço estudado, fortalece os vínculos familiares e repercute em uma maior qualidade do cuidado oferecido à criança. Finalmente, são apontados alguns avanços conceituais e seus desdobramentos práticos, que evidenciam a importância de serviços que preencham a lacuna assistencial existente na brecha entre a atenção básica e os serviços de alta complexidade.

Palabras clave: saúde mental; infância; cuidado; psicanálise; família.


ABSTRACT

The present study aims to further the discussion of working with families in the practice of mental health and child development using a psychoanalytical approach. The history and current child mental health policies are reviewed within the context of the public health service in Brazil emphasizing how the family is treated. We also reflect on the contributions psychoanalysis can make in terms of child mental health, especially the contribution of Winnicott and the concepts of Acceptance (Holmes, 2012) and Care (Figueiredo, 2009). Some case studies were carried out involving children and their families attending a centre, looking forward to understand the therapeutic process: since the beginning coming from another institution, the construction of psycho diagnostics, feedback offered to family and therapeutic change observed. Sessions were transcribed and analysed with thematic analysis method. Our results show that reception, the main axis of therapeutic work, strengthens family ties and in turn affects the quality of care offered to the child. Finally, some conceptual advances and their practical application are suggested, addressing the importance of services able to fill the assistance gap among primary care and high complexity mental health services.

Keywords: mental health; infancy; care; psychoanalysis; family.


RESUMEN

Este estudio aborda el trabajo con la familia en el cuidado a la salud mental y el desarrollo infantil, contando con el subsidio teórico psicoanalítico. Se aborda la historia y actuales políticas de salud mental infantil, dentro del Sistema Único de Salud, enfatizando el lugar en que la familia es colocada. Se reflexiona sobre los aportes del psicoanálisis a las prácticas de cuidado a la salud mental infantil, especialmente la contribución de Winnicott y los conceptos de Acogida (Holmes, 2012) y Cuidado (Figueiredo, 2009). Fue realizado un estudio de caso con frecuentadores de un servicio que atiende a niños y sus familias, buscando comprender como transcurrió el proceso terapéutico: desde la llegada por una derivación, la construcción del psicodiagnóstico, la devolución brindada a la familia y los avances terapéuticos observados. Los atendimientos fueron transcritos y analizados con el método del análisis temático. Se encontró que la acogida, eje central del trabajo terapéutico en el servicio estudiado, fortalece los vínculos familiares y la calidad del cuidado ofrecido al niño. Finalmente, se destaca algunos avances conceptuales y sus implicaciones prácticas, que evidencian la importancia de servicios que llenan el vacío asistencial existente entre la atención básica y los servicios de alta complejidad.

Palabras clave: salud mental; infancia; cuidado; psicoanálisis; familia.


 

 

Introdução

A demanda por assistência em saúde mental para o público infantil é crescente. Isso pode ser visto em estudos epidemiológicos que mostram altas prevalências de problemas de saúde mental em crianças e adolescentes e apontam insuficiência na oferta de atenção (Assis, Avanci, Pires, & Oliveira, 2010; Paula, Miranda, & Bordin, 2010). Por outro lado, a tardia inclusão da saúde mental infantil e juvenil na agenda das políticas brasileiras (Couto, & Delgado, 2015) e internacionais está associada ao fato de que os saberes sobre diagnósticos e possibilidades terapêuticas são construções recentes e ainda incipientes (Reis, Delfini, Dombi-Barbosa, & Bertolino Neto, 2010; Couto, & Delgado, 2010).

No Brasil, tradicionalmente, os cuidados em saúde mental de crianças e adolescentes eram realizados por instituições filantrópicas e associações de pais e familiares (Brasil, 2005; Amstalden, Hoffmann, & Monteiro, 2010; Lauridsen-Ribeiro, & Paula, 2013). A criação dos Centros de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência (CAPSI) é expressão da implantação da Reforma Psiquiátrica dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) e constitui a primeira ação efetiva de deslocar o cuidado dessa população para a rede pública. Trata-se de um serviço que, além de oferecer cuidados clínicos a crianças e adolescentes com problemas de saúde mental, também agencia a rede ampliada de atenção – pautada na intersetorialidade e na corresponsabilidade (Lauridsen-Ribeiro, & Paula, 2013). Os atendimentos são prioritários para todos aqueles cuja problemática incida diretamente em prejuízos psicossociais severos (Couto, Duarte, & Delgado, 2008).

Como apontam Lauridsen-Ribeiro e Paula (2013), não cabe apenas aumentar o número de CAPSI para tornar o serviço mais abrangente, mas é necessário, ainda, melhorar a oferta e a qualidade do cuidado em saúde mental para crianças e adolescentes na Atenção Primária à Saúde. Isso porque as Unidades Básicas de Saúde são os serviços onde as crianças e suas famílias comparecem com maior frequência para cuidados diversos, sendo essas ocasiões propícias para abordagens no campo da saúde mental. Esses mesmos autores apontam, também, a importância da inclusão efetiva da família, em especial dos pais, que deve ser obrigatória em toda abordagem e na elaboração dos projetos terapêuticos singulares.

Onocko-Campos (2012) aponta a existência de importantes falhas na atual política pública de saúde mental para crianças, considerando que as intervenções não observam o contexto, a cultura e as redes do sujeito, o que muitas vezes leva à fragilização dos sujeitos e da família. Nesse sentido, a autora argumenta que "[...] não há como atendermos crianças gravemente perturbadas, ou em risco sério de sê-lo, sem acolhermos e trabalharmos também clinicamente com as suas mães, e com seu ambiente" (Onocko-Campos, 2012, p. 143). Portanto, é preciso que serviços de saúde mental, tais como o CAPSI, percebam que "[...] o trabalho com a dupla mãe-filho faz parte das suas tarefas primárias e não é um acréscimo inesperado!" (Onocko-Campos, 2012, p. 143). Por isso, ainda segundo Onoko-Campos, é fundamental que a equipe de profissionais tenha disponibilidade para oferecer um ambiente seguro e acompanhar as reflexões da "mãe", comportando-se de forma semelhante ao que Winnicott denomina função paterna.

Winnicott (1965/2005) é um dos principais psicanalistas a se debruçar sobre a criança e sua relação com o ambiente, pois entende que a subjetividade se constrói nessa relação. Em sua teoria, compreende as possibilidades de desenvolvimento humano a partir de uma tendência inata para o amadurecimento (Rosa, 2009) e destaca os conceitos de função materna e paterna como parte do ambiente que favorece essa tendência. Salienta que cabe à função materna proporcionar a condição de bem-estar à criança, um ambiente favorável para que a criança possa se desenvolver (Winnicott, 1965/2005).

Na fase inicial, a relação mãe-bebê é considerada a mais estruturante do psiquismo do sujeito. Quando existe uma "mãe suficientemente boa" que responde às necessidades primárias do bebê, este, apesar de ainda não poder se identificar com ela, se mantém dependente, por isso, a fase de dependência absoluta (Winnicott, 1965/2005). Esse autor afirma que compete à função materna: apresentar os objetos, sustentar o bebê (holding) e manipulá-lo enquanto é cuidado (handling). Com o amadurecimento do bebê, ele pode suportar falhas maternas e seguir para uma fase de dependência relativa, na qual já não há um alto grau de dependência (Rosa, 2009).

A "mãe suficientemente boa", então, é pensada por Winnicott (1965/2005) como aquela que é sensível às necessidades do bebê e que responde de acordo com elas. No início, haveria, inclusive, (Onocko-Campos, 2012, p. 143) uma preocupação exacerbada com o bebê, a ponto de possibilitar a ilusão de onipotência de que é o próprio bebê quem providencia todo esse bem-estar (Rosa, 2009). Então, se a maternagem não for boa o suficiente para esse bebê, a criança não consegue formar um self verdadeiro ou este permanece oculto por trás de um falso self, onde a criança torna-se uma junção de reações à violação (Winnicott, 1965/2005). Vale destacar que a referência de Winnicott à dupla mãe-bebê não deve ser entendida de um modo literal, mas no sentido de que a criança está sempre com um cuidador, que pode ser a mãe ou não. Isto tende a se diversificar, dada a maior visibilidade que estão tendo os chamados "novos arranjos familiares" (Wagner, Tronco, & Armani, 2011)

O conceito de função paterna em Winnicott, diferentemente da psicanálise tradicional, não se mantém restrito à fase edipiana (Rosa, 2009). O pai servirá de suporte emocional nos primeiros anos de vida do bebê, o que favoreceria um maior envolvimento com a criança. É função paterna estar próximo à mãe, desde a gestação, para que ela possa se dedicar ao cuidado do filho, sustentando a relação dual mãe-bebê (Winnicott, 1945/1993). Em um momento de dependência relativa, o pai ajuda a mãe a sair do estado de preocupação exacerbada com a criança, possibilitando o início da separação entre ela e o bebê e a independência deste (Rosa, 2009).

Em outros momentos, é possível que apareçam características de um aspecto mais duro e severo, que não é uma função paterna interditora na relação mãe-bebê, mas de sustentação para que o amadurecimento advenha desta relação. O "não" pode aparecer para a criança e é por volta desse período que o pai pode ser percebido como um terceiro – diferente da mãe. Essa função está indiretamente ligada ao cuidado do bebê, mas não deixa de ser tão importante quanto a função materna (Rosa, 2009). 

Dentre as formulações winnicottianas, o brincar é bastante caro a este trabalho. Para Winnicott (1971/1975), o brincar é entendido como uma das expressões de uma área intermediária da experiência do sujeito. É o "entre": entre a realidade interna e externa e, desse modo, deve ser uma área livre de contestação. Nesse sentido, o brincar é expressão de uma área intermediária necessária para o desenvolvimento da criança que contribui para a saída da fase de dependência absoluta para a fase de dependência relativa. No início do relacionamento entre a criança e o mundo, tal área exerce função de amparo frente à desilusão das falhas maternas. Sendo assim, o autor destaca que "a criança traz para dentro dessa área da brincadeira objetos ou fenômenos oriundos da realidade externa, usando-os a serviço de alguma amostra derivada da realidade interna ou pessoal" (Winnicott, 1971/1975, p. 76).

Na concepção de Winnicott (1971/1975), o brincar é, em si mesmo, terapêutico, pois abre espaço para a criatividade e, sendo criativo, é possível que o indivíduo descubra o seu self. O brincar, além de ser terapêutico, é primário e próprio da saúde e conduz aos relacionamentos grupais. Pode, também, ser uma forma de comunicação na psicoterapia. Essa é a compreensão que dá suporte ao trabalho que ele denominou de consultas terapêuticas.

Diversos autores (Aiello-Vaisberg, 2003; Rodrigues, & Mishima-Gomes, 2013) que trabalham a partir da perspectiva winnicotiana defendem que a intervenção psicanalítica pode acontecer em diversos enquadres

[...] que vão desde as oficinas psicoterapêuticas, estruturadas a partir da disponibilização de materialidades mediadoras, até as consultas terapêuticas, passando por várias outras possibilidades que incluem, por exemplo, o cuidado de sujeitos coletivos, tem sido, até este momento, designada por uma única palavra: sustentação (Aiello-Vaisberg, 2003, p. 124).

De acordo com Rodrigues e Mishima-Gomes (2013, p. 92), as consultas terapêuticas são uma modalidade de trabalho orientada pela psicanálise,

[...] que representam uma nova possibilidade de avaliação, intervenção e ajuda psicológica norteada pela escuta, prática e flexibilidade clínica que advêm da teoria do amadurecimento humano. Embasadas nas necessidades do self e de suas efetivações, que, segundo a clínica winnicottiana, exigem a presença de outro ser humano para se cumprirem, são conduzidas no sentido de estabelecer uma comunicação significativa, ou seja, concentram-se na obtenção e manejo dos elementos vitais que possam ajudar o paciente na elaboração de um sofrimento ou dificuldade.

Frente a um contexto de grande diversidade conceptual nos serviços públicos de saúde mental, Brandão Junior e Besset (2012) refletem sobre a especificidade da orientação da psicanálise como base para a construção de encaminhamentos possíveis nesse campo. Destacam contribuições específicas da Psicanálise para exercer a clínica singular de cada caso, especialmente na assistência a crianças e adolescentes. Nesse sentido, consideram fundamental distinguir entre o sofrimento da criança e o de quem traz a criança ao atendimento.

Apesar de existir consenso sobre a importância de incluir a família na assistência à saúde mental infantil, encontramos poucos trabalhos que descrevem intervenções dirigidas a esse grupo. Uma importante experiência de pesquisa e extensão, envolvendo assistência a crianças e suas famílias, vem sendo desenvolvida na Universidade Federal de Uberlândia. Trata-se de atendimentos ambulatoriais a crianças e seus pais. A psicoterapia é conduzida por uma dupla de terapeutas. Paradivini e Chaves (2012) apontam o grande potencial desse trabalho para fortalecer as relações entre pais e filhos. Paradivini, Próchno, Perfeito e Chaves (2009, p. 103) sinalizam que se trata de uma intervenção psicanalítica que pode ser nomeada de intervenção-mediação, onde "a intenção está em promover o enlace simbólico, isto é, intervir a partir de tudo o que se passa no campo de afetação para que os processos de significação possam advir".

Com base na discussão apresentada, o presente estudo tem como objetivo refletir sobre como se dá o cuidado à saúde mental infantil e o fortalecimento dos vínculos familiares em um serviço que recebe crianças acompanhadas de suas famílias e funciona como uma ponte entre a atenção básica e serviços de maior complexidade. Desse modo, busca-se produzir conhecimento que possa ampliar o subsídio às práticas de saúde mental infantil.

 

Método

O presente estudo é uma produção acadêmica com embasamento psicanalítico. Nesse sentido cabe recuperar o posicionamento de Safra (2001), que defende a utilização do método psicanalítico na produção do conhecimento dentro da Universidade e explicita que este não se posiciona na busca de um objetivo determinado, mas como um procedimento processual. Assim, o princípio fundamental da investigação em Psicanálise é que ela é um processo investigativo e não conclusivo.

Também, a partir de Harper e Thompson (2012), é possível afirmar que a presente pesquisa afina-se com uma metodologia qualitativa, preocupada em compreender as experiências e processos, ao invés de estabelecer relações causais. Para os citados autores a pesquisa "Big q" está preocupada com os métodos qualitativos de análise que envolvem também a coleta e o engajamento com os dados de uma maneira reflexiva, que se utiliza de uma relação intersubjetiva entre o pesquisador e o pesquisado. De acordo com essa perspectiva, no presente estudo, são utilizados os relatos dos dez encontros em que a família frequentou o serviço. Após cada atendimento, um membro da equipe produziu um relato sobre o acontecido. Vale destacar que as autoras do presente trabalho também fizeram parte da referida equipe.

Contexto da pesquisa e participantes

O estudo foi desenvolvido no "Crianças e Famílias", nome fictício dado a um projeto de ensino, pesquisa e extensão da Universidade Federal da Bahia (UFBA), cuja proposta e fundamentação teórica será apresentada a seguir. O projeto inspira-se em "La casa de la família" um espaço que funciona em Lima, Peru, o qual foca a prevenção de problemas de socialização e violência, oferecendo uma oportunidade de convivência, na qual a palavra pode auxiliar os pais perante dificuldades com a criação dos filhos (Maza, 2009). Trata-se de uma modalidade de intervenção que teve como primeira referência a "Casa Verde", criada por Françoise Dolto, no ano de 1979, em Paris, e que tinha como objetivo principal ser um espaço de acolhimento para crianças pequenas, de até 3 anos e suas famílias. A casa abria cinco tardes por semana, tendo em cada turno uma equipe de diferentes profissionais. Tinha entre suas funções ser um ambiente que preparasse as crianças para a entrada na creche. Neste espaço, as crianças precisam permanecer acompanhadas de suas mães ou algum outro familiar. O anonimato é preservado, pergunta-se apenas o nome da criança, que é registrado no quadro. Dolto mostra que, embora não sejam feitas intervenções dirigidas às famílias, são visíveis os benefícios que estas obtêm ao frequentar o espaço. É um ambiente onde ambos podem expressar ansiedades sem ser julgados. A citada autora defende que se trata de uma proposta que deve ser expandida nacional e internacionalmente (Dolto 1985/2004).

Funcionando dois turnos por semana, o projeto possui uma equipe formada por uma psicóloga e alguns estagiários de Psicologia, os quais são chamados de acolhedores. As crianças, sempre acompanhadas de suas famílias, são recebidas em um espaço amplo e aconchegante, com brinquedos e materiais gráficos que favorecem a expressão e as interações: as crianças e adultos podem se comunicar e interagir de forma livre. O atendimento acontece entre acolhedores e famílias e a duração é de no máximo três horas. O horário de chegada e saída do projeto fica a critério da família, que também é livre para decidir quando frequentar o espaço.

Quando a família verbaliza demandas espontaneamente, a equipe realiza uma avaliação da criança ao longo de, pelo menos, quatro encontros. A partir do quinto encontro pode ser dada uma devolutiva, na qual o acolhedor responsável por aquela criança dialoga com a família sobre as suas impressões e propõe objetivos para frequentar o serviço, formulando, assim, um projeto terapêutico singular. Em alguns casos, é pontuada a necessidade de avaliações ou tratamentos complementares. Quanto ao processo terapêutico, o foco está no trabalho da acolhida e as intervenções buscam a promoção, prevenção e atenção às queixas em saúde mental.

Assim como "La casa de la família", o projeto inspirador que funciona em Lima, Peru, o "Crianças e Família" se sustenta no conceito de acolhida de Holmes (2012) que se desdobra em quatro dimensões: aceitação, conexão, brincadeira e empoderamento. Na aceitação, os comportamentos dos cuidadores e da criança são (quase) sempre aceitos e apenas os pontos positivos desses comportamentos são comentados, pois o julgamento teria efeito negativo, tanto para a família quanto para o cuidador. O importante é que o sujeito seja pensado na sua singularidade. O conectar faz parte da estratégia terapêutica em um encontro caloroso com entusiasmo entre acolhedores e usuários. O intuito é conectar os sentimentos que envolvem a família e fazer circular a palavra, tendo a criança no centro do diálogo, colocando-a a par do que acontece. As intervenções são sempre para o encorajamento da reflexão. Na brincadeira, por sua vez, os acolhedores e as famílias podem participar. Essa concepção do brincar é pensada por Holmes (2012) da mesma forma que na terapia psicodinâmica, ou seja, é não-estruturada, centrada na criança, não-intrusiva. E, como efeito terapêutico, tem-se o empoderamento, o que promove a autonomia das famílias sem lançar mão de sugestões, conselhos, possibilitando que as pessoas reflitam sobre suas questões.

De acordo com Figueiredo (2009), é possível uma "Teoria Geral do Cuidar" através do atravessamento de paradigmas, saberes e práticas da psicanálise, pois esse atravessar pode fornecer bases para a compreensão dos processos que estão envolvidos no cuidar. Esse autor toma como referência a figura de alteridade, ou seja, o agente de cuidado que pode ser categorizado como presença implicada e presença em reserva. A presença implicada diz respeito a realizar coisas, enquanto que a presença em reserva refere-se à imparcialidade, certo afastamento do objeto de cuidado.

O agente de cuidado, na presença implicada. apresenta-se em três modalidades: sustentar e conter, reconhecer, interpelar e reclamar. Na primeira modalidade, sustentar e conter, o outro se apresenta como ambiente englobante que acolhe, hospeda e sustenta, além de ajudar na transformação daquele que é cuidado. Observa-se, ainda, que indivíduos, grupos – como a família – e ainda instituições podem ajudar nessa transformação.

A segunda modalidade, reconhecer, apresenta-se em dois níveis: o de testemunhar e o de refletir/espelhar, sendo que um depende do outro. Essa modalidade é muito importante para a instalação da autoimagem. Como Figueiredo (2009, p. 138) afirma, "ser capaz de prestar atenção e reconhecer o objeto de cuidado no que ele tem de próprio e singular, dando disso testemunho e, se possível, levando de volta para o sujeito sua própria imagem".

Já no interpelar e reclamar, o agente de cuidados intimida, interpela, reclama, confronta e dá limites, mostrando os fatos da existência, como a morte, a lei, a alteridade. Esse outro se apresenta como uma fonte de questões, chamando o objeto de cuidado à vida, exigindo respostas. Segundo Figueiredo (2009, p. 140), para a instalação da "capacidade de fazer sentido no indivíduo" é imprescindível que essas três modalidades de cuidado coexistam em equilíbrio.

O cuidado exige também uma presença em reserva, na qual o cuidador oferece ao sujeito um espaço criativo para exercitar sua capacidade para brincar, fantasiar, pensar e criar o mundo de acordo com a suas possibilidades. Já o cuidado em excesso, o que Figueiredo (2009) chamou de os extravios e excessos nas funções de cuidado, pode respectivamente: 1) sufocar e não dar sossego ao objeto de cuidado; 2) produzir uma especularidade narcísica, na qual a dependência e a alienação se instauram; 3) gerar um traumatismo crônico, devido ao outro que interpela e reclama em demasia, sendo que o sujeito se vê impotente ou, ainda, constituir-se de um superego severo.

Os conceitos apresentados até aqui orientam o trabalho no contexto pesquisado e, como será visto a seguir, possibilitam a compreensão de como podem acontecer mudanças terapêuticas nos indivíduos e nos vínculos familiares. Desse modo, no presente trabalho, existe uma estreita relação entre a prática clínica e o método de pesquisa.

Técnicas de coleta e análise de dados

Utilizamos os relatos dos atendimentos realizados ao longo do ano de 2013, assim como os psicodiagnósticos construídos. Inicialmente foram selecionados cinco casos típicos. Para o presente artigo foi selecionado um único caso considerado emblemático de processos que são vivenciados pelos frequentadores no contexto do estudo. Trata-se de Marcos (4 anos) e a sua mãe Márcia (28 anos). Ambos frequentaram o serviço durante aproximadamente 5 meses. Márcia aceitou participar da pesquisa e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Os relatos dos atendimentos assim como a ficha de acompanhamento da criança foram analisados dentro da perspectiva da análise temática. Segundo Joffe (2012), a análise temática é um método para identificar e analisar padrões de significação nos dados, envolvendo tanto conteúdos manifestos quanto latentes. A aspiração da análise temática é refletir uma visão integrada dos dados e seus significados dentro de um contexto particular, no lugar de dar muita importância à frequência com que códigos retirados de seu contexto aparecem.

Inicialmente os relatos foram agrupados e uma primeira leitura foi realizada a partir das categorias temáticas chegada, devolutiva e desdobramentos. Tais marcadores ajudariam na compreensão do movimento que a família realizou ao longo dos atendimentos. Posteriormente, para analisar o processo terapêutico optamos por utilizar como categorias temáticas os conceitos de Holmes (2012): aceitação, conexão brincadeira e empoderamento; e de Figueiredo (2009): presença implicada – sustentar e conter, reconhecer, interpelar e reclamar –, e presença em reserva. Os referidos conceitos dão sustentação teórica às intervenções e, ao mesmo tempo, são expressivas dos mecanismos terapêuticos que se procura acionar no projeto.

O projeto de pesquisa que deu origem a este artigo foi aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa da UFBA (Parecer 120.687).

 

Resultados

A seguir apresentamos como se deu o processo terapêutico tendo como marcos temporais: a chegada, a realização da devolutiva e os desdobramentos. Marcos chegou ao projeto "Crianças e Famílias" através de um encaminhamento da escola, uma pequena instituição particular situada em um bairro popular de Salvador-BA. Segundo a diretora da instituição, Marcos necessitava de um atendimento psicológico, pois ao ser abordado reagia de forma emotiva e isso piorou na celebração do dia dos pais. Demonstrava-se choroso, queixava-se de dores, que logo desapareciam, se negava a fazer as atividades ou dizia ter esquecido o que aprendera em sala. Márcia não conta com uma rede familiar, pois é natural de outro estado e veio morar e trabalhar em Salvador quando conheceu o pai de Marcos. Os pais da criança se separaram quando este ainda era pequeno e o pai foi morar em outro estado, não cumprindo o acordo de passar as férias com o filho.

Quando questionada sobre como se sente, Márcia chora e verbaliza que não aguenta mais. Afirma que o filho não era assim, "hoje faço tudo para ele e ele só quer o pai". Ela conta uma situação em que a criança disse que ia para a casa do pai, então ela arrumou as roupas dele numa mochila e disse para ele ir, mas sabia que ele não iria. Relatou que nesse dia sentiu "vontade de jogá-lo pela janela".

Nos quatro primeiros encontros, Márcia se apresenta cansada, permanece deitada nas almofadas e afastada, tanto dos outros participantes quanto do próprio filho. A equipe procura se aproximar e se colocar de modo disponível. Márcia relata que o filho passou a ficar agressivo desde as férias em que o pai não foi buscá-lo. Ao ser questionada sobre como lidava com tais situações, Márcia se diz "magoada" e "com raiva", porque faz tudo pela criança e ainda recebe "malcriações". Nesse momento, a acolhedora lhe retorna que é importante reconhecer os próprios sentimentos para poder lidar com eles. A partir dessa intervenção, que tem por objetivo fazer conexão com os próprios sentimentos, ela relata que, devido à raiva que sentia, acabou sendo "fria" e desatenta com o filho.

Marcos é um menino que circula pelo espaço e gosta de brincar com outras crianças. Márcia se coloca desimplicada no processo, parece haver um desequilíbrio da função de cuidado da presença implicada, pois, mesmo em momentos em que o filho a solicitava, não havia responsividade: "[...] Marcos deita-se bem perto de Márcia, e esta, que estava cochilando nas almofadas, diz ‘com tanto lugar para você ficar tem ser logo em cima de mim?’. Ele se afasta, olha para ela e deita um pouco mais longe" (Relato de atendimento).

Observa-se que alguns mecanismos estão presentes. A aceitação ao funcionamento dessa mãe, o fato de a equipe se colocar disponível, respeitando o espaço dela, podem ser entendidos como presença em reserva. Os acolhedores também funcionam como sustentação para Marcos, pois, mesmo na ausência da mãe, um senso de continuidade do cuidado pode ser oferecido à criança. Marcos pode ser sustentado pela equipe, enquanto esta também apoia a função materna exercida por Márcia.

Estar no projeto com Marcos faz com que Márcia possa observar o filho em interação, sendo que, por conta do trabalho, afirma não ter tempo para fazê-lo em outros momentos. Isso suscita a possibilidade de vê-lo por outra perspectiva que não aquela associada à queixa que o traz. Certa vez, olha para o filho e comenta que o considera um "adultinho" e que, ao vê-lo, percebe que ele já não é mais um bebê, mas também não é uma criança mais velha. A acolhedora pergunta de onde ela acha que vem esse jeito de "adultinho" e ela diz que é dela, porque ela é um "general", assim como o pai da criança também o é. O interpelar e reclamar, juntamente com o exercício de pensar sobre o relacionamento entre ela e a criança – ou seja, a possibilidade do empoderamento – ajuda Márcia a seguir falando de tal relação.

Quando uma acolhedora reforça que tem sido favorável ao fato da família estar frequentando o projeto, Márcia diz que é bom para o filho, mas não para ela. Justifica-se falando se sentir como uma "mãe fracassada", que precisa pedir ajuda a um psicólogo, como se seu filho fosse uma "criança problema" – e se emociona. Márcia afirma tender a ser muito controladora, sendo muito difícil para ela estar nessa posição de falta de controle. Essa passagem ocorre no atendimento seguinte ao que relata sobre sua postura exigente, o que mostra que Márcia segue refletindo sobre o relacionamento com o filho e sobre si. Nesse sentido, o projeto que, inicialmente, se apresentava como um espaço para "descansar", transforma-se em lugar para reflexão.

Márcia menciona para um acolhedor que é criticada pela mãe devido à forma como cuida do filho, afirmando que não tem paciência. Ela se descreve como controladora e impaciente. Fez um acordo com o filho: que quando ele quisesse falar com o pai poderia pedir e ela ligaria. O acolhedor afirmou que o choro pode ser uma forma de Marcos se expressar. Nesse momento, a criança se aproxima e o acolhedor pergunta: "Marcos, sua mãe estava aqui me contando que combinou com você de que quando você quisesse conversar com seu pai você poderia falar pra ela, o que você achou disso?" (Relato de atendimento). Ele parece um pouco envergonhado, dá uma rápida olhada para a mãe e afirma: "eu gostei". Em seguida, se distancia novamente.

O acolhedor, frente ao sentimento de fracasso que essa mãe já vinha apresentando, faz uma intervenção que foca no aspecto positivo do comportamento de Márcia para fortalecer a relação que estabelece com o filho. Ao mesmo tempo, o acolhedor faz com que a família, através do elemento da conexão, possa fazer circular a palavra e os sentimentos.

Os acolhedores brincam de forma livre com Marcos. Na brincadeira de bola, por exemplo, Marcos aparenta ainda não saber contar na sequência, mas o acolhedor prefere continuar brincando em vez de adotar uma função pedagógica, ensinando-lhe os números. A brincadeira se insere em uma perspectiva terapêutica, no sentido de contribuir para a maturação do indivíduo e, através dela, os incômodos podem ser expressos:

Ao passar por cima dos brinquedos de outras crianças, e estas reclamarem, a acolhedora pergunta o porquê de ele fazer aquilo, em seguida pergunta se ele está chateado. Marcos afirma que sim, porque queria ver o pai e estava chateado por não poder vê-lo (Relato de atendimento).

No quinto encontro, Márcia relata que Marcos recebeu reclamações da escola por bater em uma colega. Ela diz que não queria ver o filho com tal agressividade. O acolhedor questiona como ela queria vê-lo e ela responde "seria bom se ele crescesse, seria de bom tamanho". Márcia continua a falar e chora quando diz que sabe que o filho age assim por conta da "ausência paterna e materna". O acolhedor questiona: "ausência materna?" e ela diz que dá pouca atenção ao filho e, quando vai ajudá-lo nas atividades escolares, não tem paciência com ele.

Ao longo dos atendimentos, o acolhimento a essa família e, principalmente, a Márcia, passa pela aceitação e pela conexão. Tais elementos parecem importantes para que o vínculo transferencial seja construído e Márcia possa falar das dificuldades em exercer a função materna não só devido à falta do suporte de um terceiro na relação, mas também pela exigência própria de ser uma mãe ideal.

Alguns momentos de interação entre mãe e filho são relatados por Márcia, como terem ido ao teatro e à praia, sendo que o acordo de que o pai viria buscá-lo no final do ano se manteve. A mudança na interação entre os dois pôde ser observada também no espaço: "Após um tempo, ele me chamou para montar um quebra-cabeça, Marcos fica muito contente quando o quebra-cabeça está completo e chama sua mãe para mostrar. Márcia interage positivamente com ele, manifestando interesse e perguntando quem havia feito" (Relato de atendimento).

Cenas como essa se repetem e Márcia faz elogios ao filho. A disponibilidade para este também pode ser observada quando, em interação com outras crianças, ela já não recusa a aproximação dele. A aceitação destinada a Márcia e o suporte oferecido a Marcos, promovidos pela equipe, parecem ter feito sentido para Márcia, pois demonstra uma posição ativa de cuidado, sustentando e contendo o filho e até outras crianças.

Contente, Márcia relata que o filho tem usado mais as palavras ao invés de apenas chorar e ter comportamentos "manhosos". Importante perceber que ela destaca o aspecto positivo do comportamento do filho. Assim, essa mudança de discurso pode ser pensada a partir das intervenções em que Márcia pôde entrar em contato com os próprios sentimentos, falar sobre eles e a relação dos mesmos com suas dificuldades. Márcia é a última a sair do projeto, o que pode demonstrar um forte vínculo com o espaço.

No momento da devolutiva, buscou-se focar no que havia de positivo na relação, sem deixar de fazer referência à queixa e sua relação com a dinâmica familiar. O acolhedor falou sobre a importância de Marcos poder usar as palavras para expressar seus sentimentos e vontades. Mencionou que a equipe considerava Marcos uma criança bem desenvolvida e que interagia de forma positiva com as demais crianças e os acolhedores. Em seguida, abordou o cuidado que Márcia tem com o filho, buscando ter momentos de interação com ele no projeto e em outros locais. Afirmou que devia ser difícil para ela cuidar de Marcos e, ao mesmo tempo, lidar com outras questões da vida. Quando o acolhedor toca nesse ponto, Márcia chora e diz que era a primeira vez que alguém dizia isso a ela, pois todos só sabiam criticá-la e depreciar o modo como criava o filho.

O momento da devolutiva parece ter tocado em um ponto de fundamental importância para Márcia: ela traz que se sente uma mãe fracassada por estar no projeto solicitando ajuda para Marcos. Nesse momento, buscou-se fortalecer a posição de Márcia como função materna, para que ela pudesse continuar ajudando o filho em seu amadurecimento. Optou-se por cuidar dessa mãe para que ela pudesse fazer o mesmo com sua criança.

Após a devolutiva, a família retorna ao espaço mais cinco vezes. Nos dois últimos atendimentos, Marcos estava feliz, pois iria ver o pai. Pedia à mãe que "tirasse a passagem" e ela imprimiu para ele, assim Marcos podia mostrar às pessoas que viajaria para ver o pai. Márcia relata que entendeu esse pedido como uma forma dele de ter garantia de que iria se encontrar com o pai, demonstrando capacidade em reconhecer e atender as necessidades do filho. Notadamente, há uma melhora na comunicação entre os dois, até mesmo a julgar pelos diálogos que ela relata ter com ele:

Márcia contou que "brinca" com Marcos dizendo coisas do tipo: "você vai me deixar aqui sozinha, né?", e ele responde: "não, você vai ficar com Cati" (vizinha que cuida de Marcos), ao que Márcia diz: "não, Cati vai ficar na casa dela, eu vou ficar aqui sozinha". Marcos, por sua vez, diz: "mas, eu não vou demorar não, logo eu volto" (Relato de atendimento).

Nesse diálogo, nota-se um vínculo mais estreito entre os dois, a ponto de Marcos se sentir seguro em deixar a mãe. Também é interessante perceber como ele mesmo parece cuidar dessa mãe, retribuindo o cuidado que a mesma ofereceu. Márcia mostra-se um pouco triste por Marcos não cogitar a possibilidade de deixá-la sozinha. Quando questionada sobre isso, ela diz que se sente orgulhosa, pois afirma que sua mãe sempre a criou dizendo que ela era a responsável pela própria felicidade e que, de certa forma, ela tinha transmitido isso ao filho.

O "Crianças e Famílias" mostra-se como um espaço no qual Márcia pode falar dessa nova experiência, na qual apresenta sentimento de solidão, ao mesmo tempo que se coloca como presença em reserva para a autonomia do filho. É interessante perceber que, conforme a queixa de Marcos vai sendo elaborada, Márcia apresenta mais tranquilidade para lidar com o filho e pode falar espontaneamente sobre si. Conta que tem tido algumas decepções no trabalho, chora ao afirmar que algumas de suas colegas parecem estar ganhando mais que ela. Os acolhedores se colocam disponíveis para ouvi-la e acolhê-la, até mesmo em relatos que aparentemente não teriam relação com o filho.

Um dia, conversando sobre o desafio de enfrentar experiências novas, Márcia afirma que, como aprendera no projeto, ela não pode "fazer milagres", mas pode fazer o melhor que ela consegue. Isso não foi verbalizado, mas todo o processo da acolhida contribuiu para que ela compreendesse esse ponto importante na relação com o filho. No último contato presencial com a família, Márcia foi ao projeto dizer que Marcos havia viajado para a cidade do pai e que as coisas estavam bem.

 

Discussão e considerações finais

O projeto tem como grande objetivo fortalecer os vínculos familiares. Isso pode implicar na promoção de um espaço em que as pessoas se coloquem mais próximas e disponíveis emocionalmente. Por outro lado, pode também significar a possibilidade de que haja algum afastamento para que os sujeitos se tornem independentes.

Ao refletir sobre a contribuição do projeto para o fortalecimento dessas funções, cabe ressaltar que isso não diz respeito apenas à equipe de acolhedores. O grupo como um todo, devido à possibilidade de trocas e interação, também funciona como agente de cuidado, como um terceiro, ora sendo suporte ora fazendo questionamentos, o que possibilita reflexões entre os participantes.

Cabe ressaltar que as mudanças destacadas não podem ser compreendidas como "cura" e que o projeto "Crianças e Famílias" não oferece garantia da supressão dos sintomas. O serviço busca propiciar a capacidade de fazer sentido da experiência, como afirma Figueiredo (2009).

A partir da revisão realizada no presente relato, foi possível notar que a crescente demanda por assistência em saúde mental para o público infantil não tem sido acompanhada por construções de práticas de cuidado para essa população, denotando uma lacuna, como apontada pela literatura (Couto, & Delgado, 2010). Assim, buscou-se apresentar como estão organizadas as políticas públicas voltadas para a infância e como a família tem sido contemplada nas mesmas. Há, ainda, dificuldade de acesso das famílias a serviços de qualidade, nos quais a atenção seja para ambos – crianças e cuidadores.

É possível avaliar que avanços no cuidado à saúde mental infantil estão acontecendo e a Psicanálise, apesar de ter contribuições específicas e importantes dentro da grande diversidade clínico-assistencial que impera, ainda precisa propor e edificar intervenções dirigidas à criança e sua família. É nesse sentido que se pensam as contribuições da presente pesquisa.

A partir da psicanálise winnicottiana, situou-se a prática de cuidado desenvolvida pelo projeto "Crianças e Famílias". Este tem buscado se posicionar como um ambiente "suficientemente bom", oferecendo sustentação para as famílias num espaço coletivo, ao mesmo tempo que cada sujeito em sua individualidade é escutado. Por meio do caso apresentado, pode-se pensar que o fortalecimento dos vínculos familiares, através das técnicas apresentadas – presença implicada, presença em reserva e os elementos presentes na acolhida – contribui para o fortalecimento da individualidade dos sujeitos, que, inicialmente, só podem assim o ser alienados a outro, mas que também precisam se separar. O intuito é que as crianças e seus cuidadores possam continuar ou retomar seu processo criativo de desenvolvimento.

Certamente existem pontos de encontro com outras experiências em curso na realidade brasileira. Assim como nos trabalhos descritos por Paravidini et al. (2009) e Paravidini e Chaves (2012), aqui mostraram-se as possibilidades terapêuticas de um espaço dirigido a crianças e suas famílias. Ressaltou-se, também, as diferenças, pois o "Crianças e Famílias" acontece em um ambiente grupal, diferentemente do trabalho dos referidos autores, no qual são desenvolvidos atendimentos pontuais com cada criança e sua família, conduzidos por uma dupla de terapeutas.

Nota-se que, na literatura, são escassos os estudos que se detêm em mostrar o processo de trabalho em Psicanálise e os resultados terapêuticos obtidos. Da mesma forma, os estudos que se propõem a mostrar o modo como as intervenções acontecem e seus efeitos (Carvalho, Medida, Bosseto, & Cruz, 2010) não são intervenções com cuidadores e crianças no mesmo espaço.

Espera-se ter mostrado que a perspectiva da acolhida (Holmes, 2012) e a metapsicologia do cuidado (Figueiredo, 2009) ampliam a contribuição de Winnicott sobre a sustentação, pois permitem compreender, a partir de determinadas intervenções, como isso pode ocorrer. Buscou-se refletir sobre uma proposta no campo do cuidado à saúde mental e do desenvolvimento infantil, trazendo evidências de resultados terapêuticos em casos que requerem um cuidado mais intensivo em relação àquele que poderia ser oferecido pela atenção básica, mas que, por outro lado, também não tem características para ser atendido em um serviço como o CAPSIA. Seguramente, será preciso desenvolver novos recortes de pesquisa para continuar refletindo sobre as possibilidades e limitações deste tipo de intervenção.

 

Referências

Aiello Vaisberg, T. M. J. (2003). Ser e fazer: interpretação e intervenção na clínica winnicottiana. Psicologia USP, 14(1), 95-128.         [ Links ]

Amstalden, A. L. F., Hoffmann, M. C. C. L., & Monteiro, T. P. M. (2010). A política de saúde mental infanto-juvenil: seus percursos e desafios. In Lauridsen-Ribeiro, E., & Tanaka, O. Y. (Orgs.), Atenção em saúde mental para crianças e adolescentes no SUS (p. 33-45). São Paulo, SP: Hucitec.

Assis, S. G., Avanci, J. Q., Pires, T. O., & Oliveira R. V. C. (2010). Necessidade e utilização de serviços de saúde mental infantil. In Lauridsen-Ribeiro, E., & Tanaka, O. Y. (Orgs.), Atenção em saúde mental para crianças e adolescentes no SUS (pp. 93-108). São Paulo, SP: Hucitec.

Brandão Junior, P. M., & Besset, V. L. (2012). Psicanálise e saúde mental: contextualizando o atendimento às demandas. Psicologia USP, 23(3), 523-538.         [ Links ]

Brasil [Ministério da Saúde]. (2005). Caminhos para uma política de saúde-mental infanto-juvenil. Brasília, DF: Secretaria de Atenção à Saúde.

Carvalho, C. A. C., Medina, R. M., Bosseto, S., & Cruz, T. A. (2010). Grupo de acolhimento: relato de experiência. In Lauridsen-Ribeiro, E., & Tanaka, O. Y. (Orgs.), Atenção em saúde mental para crianças e adolescentes no SUS (p. 248-260). São Paulo, SP: Hucitec.

Couto, M. C. V., & Delgado, P. G. G. (2010). Intersetorialidade: exigência da clínica com crianças na atenção psicossocial. In Lauridsen-Ribeiro, E., & Tanaka, O. Y. (Orgs.),. Atenção em saúde mental para crianças e adolescentes no SUS (p. 271-279). São Paulo, SP: Hucitec.

Couto, M. C. V., & Delgado, P. G. G. (2015). Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: inclusão tardia, desafios atuais. Psicologia clínica, 27(1), 17- 40.         [ Links ]

Couto, M. C. V., Duarte, C. S., & Delgado, P. G. G. (2008). A saúde mental infantil na Saúde Pública brasileira: situação atual e desafios. Revista Brasileira de Psiquiatria, 30(4), 311-322.         [ Links ]

Figueiredo, L. C. (2009). As diversas faces do cuidar. São Paulo, SP: Escuta.

Dolto, F. (2004). La causa de los niños (2ª ed.). Buenos Aires: Paidós. (Original publicado em 1985)        [ Links ]

Harper, D., & Thompson, A. R. (2012). Introduction. In Harper, D., & Thompson, A. R. (Orgs.), Qualitative research methods in mental health and psychotherapy: a guide for students and practitioners (p. 3-8). West Sussex: Wiley-Blackwell.         [ Links ]

Holmes, J. (2012). A model of intervention at a psychoanalytic parent-child drop-in group in a poor district of Lima-Peru. Peru: Jornal of Child Psychoterapy, 38(2), 170-184.         [ Links ]

Joffe, H. (2012). Thematic Analysis. In Harper, D., & Thompson, A. R. (Orgs.), Qualitative Research Methods in Mental Health and Psychotherapy: a guide for students and practitioners (p. 209-225). West Sussex: Wiley-Blackwell.         [ Links ]

Lauridsen-Ribeiro, E., & Paula, C. S. de. (2013). Política de saúde mental para crianças e adolescentes. In Mateus, M. D.. (Org.). Políticas de saúde mental: baseado no curso Políticas públicas de saúde mental, do CAPS Professor Luiz R. Cerqueira (p. 322-346). São Paulo, SP: Instituto de Saúde.

Maza, B. (2010). Psicoanálisis y precariedad: la experiencia en un barrio marginal de Lima. In Maza¸ B. (Ed.). La Casa de la Familia. una contribución psicoanalítica a la salud pública en el Perú (p. 21-36). Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos.         [ Links ]

Onocko-Campos, R. T. (2012). Psicanálise e saúde coletiva. São Paulo, SP: Hucitec.

Paravidini, J. L. L., & Chaves, L. de S. (2012). Atendimento psicanalítico conjunto pais-crianças: uma investigação teórica, técnica e metodológica. Rev. SPAGESP [online], 13(2), 4 -11.         [ Links ]

Paravidini, J. L. L., Próchno, C. C. S. C., Perfeito H. C. C. S., & Chaves, L. de S. (2009). Atendimento psicoterapêutico conjunto pais-crianças: espaço de circulação de sentidos. Estilos clin., 14(26), 90-105.         [ Links ]

Paula, C. S., Miranda, C. T., & Bordin, I. A. S. (2010). Saúde mental na infância e adolescência: revisão dos estudos epidemiológicos brasileiros. In Lauridsen-Ribeiro, E., & Y. Tanaka, O. (Orgs.), Atenção em saúde mental para crianças e adolescentes no SUS (p. 47-92). São Paulo, SP: Hucitec.

Reis, A. O. A., Delfini, P. S. de S., Dombi-Barbosa, C., & Bertolino Neto, M. M. (2010). Breve história da saúde mental infanto-juvenil. In Lauridsen-Ribeiro, E., & Tanaka, O. Y. (Orgs), Atenção em saúde mental para crianças e adolescentes no SUS (p. 109-130). São Paulo, SP: Hucitec.

Rodrigues, C. M., & Mishima-Gomes, F. K. T. (2013). As flores estão brotando: atendimento infantil em consultas terapêuticas. Psicologia Clínica, 25(1), 89-100.         [ Links ]

Rosa, C. D. (2009) O papel do pai no processo de amadurecimento em Winnicott. Natureza humana, 11(2), 55-96.         [ Links ]

Safra, G. (2001). Investigação em Psicanálise na universidade. Psicologia USP, 12(2), 171-175.         [ Links ]

Wagner, A., Tronco, C., & Armani, A. B. (2011). Os desafios da família contemporânea. In Wagne, A.(Col.), Desafios psicossociais da família contemporânea (p. 19-35). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora (Original publicado em 1971)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1993). Desenvolvimento emocional primitivo. In: D. W. Winnicott [Autor]. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 4 ed. (Original publicado em 1945)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (2005). A família e o desenvolvimento individual. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Original publicado em 1965)

 

 

Recebido em 16 de fevereiro de 2016
Aceito para publicação em 12 de setembro de 2017

Creative Commons License