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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.29 no.3 Rio de Janeiro  2017

 

SEÇÃO LIVRE

 

Trauma e testemunho: uma leitura de Maryan S. Maryan inspirada em Sándor Ferenczi

 

Trauma and testimony: a reading of Maryan S. Maryan inspired by Sándor Ferenczi

 

Trauma y testimonio: una lectura de Maryan S. Maryan inspirada en Sándor Ferenczi

 

 

Alan OsmoI; Daniel KupermannII

IUniversidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, Brasil
IIProfessor Doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

Neste artigo, buscamos explorar as ideias de trauma e testemunho a partir de reflexões teóricas de Sándor Ferenczi e da discussão de desenhos do pintor Maryan S. Maryan, que foram produzidos durante seu tratamento psicanalítico. Ferenczi enfatiza uma dimensão social em sua concepção do trauma, ou seja, haveria um segundo momento do trauma que consiste em uma reação inadequada do meio quando um sujeito tenta se expressar sobre uma experiência de violência que sofreu. A ideia de testemunho, apesar de não ser um conceito propriamente psicanalítico, aponta para a questão da comunicação, que envolve um sujeito que fala e outro(s) que escuta(m), quando alguém tenta se expressar sobre uma experiência traumática. Maryan, um sobrevivente do genocídio perpetrado contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial, encontrou grande dificuldade em seu tratamento psicanalítico para falar e, a partir de uma sugestão de seu psicanalista, recorreu aos desenhos para expressar seu sofrimento relacionado às experiências de violência que viveu.

Palavras-chave: trauma; testemunho; Sándor Ferenczi; Maryan S. Maryan.


ABSTRACT

In this paper, we explore the ideas of trauma and testimony through the theoretical reflections of Sándor Ferenczi and the discussion of drawings of the painter Maryan S. Maryan, produced during his psychoanalytic treatment. Ferenczi emphasizes a social dimension in his conception of trauma, in other words, there would be a second stage of trauma consisting of an inadequate reaction of the environment, when the subject tries to express on an experience of violence suffered. The idea of testimony, despite not being specifically a psychoanalytic concept, points to the issue of communication involving a subject who speaks and other(s) who listen(s), when the subject tries to express about a traumatic experience. Maryan, a survivor of the genocide perpetrated against the Jews during the Second World War, had great difficulty in his psychoanalytic treatment to speak, and, after a suggestion of his psychoanalyst, made use of drawings to express his suffering related to the experiences of violence he lived.

Keywords: trauma; testimony; Sándor Ferenczi; Maryan S. Maryan.


RESUMEN

En este artículo, tratamos de explorar las ideas de trauma y testimonio a partir de reflexiones teóricas de Sándor Ferenczi y de la discusión de dibujos del pintor Maryan S. Maryan, que fueran producidos durante su tratamiento psicoanalítico. Ferenczi enfatiza una dimensión social en su concepción de trauma, o sea, habría un segundo momento del trauma que consiste en una reacción inadecuada del medio cuando el sujeto intenta expresarse acerca de una violencia que sufrió. La idea de testimonio, a pesar de no ser un concepto propiamente psicoanalítico, apunta a la cuestión de la comunicación, que implica un sujeto que habla y un otro(s) que escucha(n), cuando alguien intenta expresarse acerca de una experiencia traumática. Maryan, un sobreviviente del genocidio perpetrado contra los judíos en la Segunda Guerra Mundial, sintió gran dificultad en hablar durante su tratamiento psicoanalítico, y, a partir de una sugerencia de su analista, él recurrió a los dibujos para expresar su sufrimiento relacionado con las experiencias de violencia que vivió.

Palabras clave: trauma; testimonio; Sándor Ferenczi; Maryan S. Maryan.


 

 

Introdução: o sonho de Primo Levi

É bastante conhecido e comentado o sonho que Primo Levi (1988) conta ter sido recorrente durante o período em que esteve em Auschwitz. Levi era um jovem judeu italiano de 24 anos quando foi preso em dezembro de 1943. Ele fazia parte de um grupo de resistência armada contra os nazistas que haviam ocupado o norte da Itália. Foi deportado para Auschwitz em fevereiro de 1944 e ficou preso lá até a chegada dos russos no final de janeiro de 1945. Levi escreveu o livro É isto um homem? em 1947, ou seja, quando já vivia seguro novamente em Turim e apenas pouco tempo depois de ter sido libertado dos horrores perpetrados pelos nazistas. O sonho mencionado é descrito por ele, nesse livro, da seguinte forma:

Aqui está minha irmã, e algum amigo (qual?), e muitas outras pessoas. Todos me escutam, enquanto conto do apito em três notas, da cama dura, do vizinho que gostaria de empurrar para o lado [...]. Conto também a história da nossa fome, e do controle dos piolhos, e do Kapo que me deu um soco no nariz e logo mandou que me lavasse porque sangrava. É uma felicidade interna, física, inefável, estar em minha casa, entre pessoas amigas, e ter tanta coisa para contar, mas bem me apercebo de que eles não me escutam. Parecem indiferentes; falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse. Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em silêncio (Levi, 1988, p. 60).

Levi diz que teve esse sonho muitas vezes durante seu período de confinamento, que ele era acompanhado de angústia, e que tinha um caráter vívido. Há muitos elementos que faziam parte da vida desperta que Levi tinha ali como escravo: o apito que significava o despertar para mais um dia de trabalho extenuante, as humilhações a que os prisioneiros eram submetidos, como o controle de piolhos, ou a violência arbitrária que sofriam dos Kapos, e a fome constante que sentiam (Levi conta que com a ração regular distribuída era possível viver em média apenas três meses, que para continuar sobrevivendo mais tempo era necessário conseguir comida por outros meios).

Esse sonho poderia ser pensado a partir das reflexões realizadas por Freud (1920/2010) a respeito dos sonhos traumáticos. Importantes características descritas por Freud estão presentes no sonho de Levi: o caráter de repetição, o retorno a uma determinada situação do passado, assim como a angústia que é despertada. Primo Levi (1988, p. 60) se questiona: "Por que o sofrimento de cada dia se traduz, constantemente, em nossos sonhos, na cena sempre repetida da narração que os outros não escutam?".

Há, entretanto, algumas especificidades do sonho que chamam a atenção. Diferentemente dos sonhos de neuróticos de guerra, que em momentos de paz sonham que estão vivendo novamente as experiências terríveis que tiveram durante seu passado na guerra, aqui o sujeito sonha em um contexto de enorme privação e sofrimento com um retorno a uma situação de paz e conforto. Ou seja, a vida de vigília de Levi no momento do sonho é a de fome e sede, da rotina extenuante do trabalho escravo, de violências arbitrárias sofridas, de convivência com a morte o tempo todo. E, no sonho, ele se encontra em casa, junto com a família e amigos, com uma felicidade interna, física e inefável. Ainda sim, trata-se de um sonho traumático.

A dor que acompanha o sonho, "dor dessas que fazem chorar as crianças" (Levi, 1988, p. 60), o caráter angustiante parecem ser provocados por outro motivo. A característica marcante do sonho é o fato de que o sujeito não pode ser escutado pelas pessoas próximas, não pode compartilhar as terríveis experiências que estava vivendo. Ele apenas se depara com a indiferença e a insensibilidade dos outros diante de seu sofrimento. Em outro livro, Levi (1990, p. 1) fala novamente desses sonhos que seriam comuns entre os sobreviventes: o de terem voltado para casa e contado sobre "seus sofrimentos passados, dirigindo-se a uma pessoa querida, e de não terem crédito ou mesmo nem serem escutados. Na forma mais típica (e mais cruel), o interlocutor se virava e ia embora silenciosamente".

Kupermann (2009) propõe pensar esse sonho a partir do segundo momento do trauma descrito por Ferenczi. Mais do que qualquer violência sofrida, o elemento efetivamente traumático para o psiquismo é o chamado "desmentido"1 produzido pelo outro a quem se destinou o testemunho. Ou seja, ao passar por experiências de violência e tentar testemunhar o que aconteceu para os outros, o sujeito se depara com indiferença, incompreensão, insensibilidade, e isso faz parte do próprio modo de ação do trauma.

Neste trabalho, buscamos levar adiante essa reflexão, explorando as ideias de trauma e testemunho a partir das teorizações feitas por Sándor Ferenczi. As reflexões teóricas serão, depois, enriquecidas por meio da discussão de desenhos, produzidos durante um tratamento psicanalítico, do pintor Maryan S. Maryan, também um sobrevivente do genocídio perpetrado pelos nazistas contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Nosso objetivo, neste artigo, seguindo o caminho proposto por Endo (2013), é fazer a discussão de algumas concepções em psicanálise que podem contribuir teoricamente nos debates sobre memória social.

 

A comunicação de experiências traumáticas

O conceito de trauma foi uma das preocupações centrais na obra de Ferenczi, que passou novamente a dar importância a acontecimentos reais na compreensão desse problema no interior da psicanálise. A sua concepção de trauma interessa-nos especialmente para os objetivos deste artigo, pois nela há uma ênfase em um componente social: não apenas é importante a reflexão sobre as consequências do trauma no interior do psiquismo de alguém, mas também a relação que se estabelece com as outras pessoas depois que uma experiência de choque aconteceu.

O trauma para Ferenczi se constitui em dois tempos (Osmo, & Kupermann, 2012). O primeiro é o do choque, o da violência propriamente dita. O choque é um acontecimento que abala, que age de forma esmagadora sobre o sujeito, de modo que ele não pode colocar resistências. De acordo com Ferenczi (1934/2011, p. 125), o choque tem um caráter súbito para o qual o sujeito não está preparado e acarreta a "aniquilação do sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defesa do si mesmo".

O sujeito, após o choque, vive um estado de confusão e não consegue a princípio falar sobre o que se passou. Até a sua confiabilidade nos próprios sentidos está abalada, podendo acontecer de ele ficar em dúvida se o que foi vivido foi de fato real. Mas, de todo modo, o sujeito, depois dessa experiência de horror, vai tentar de alguma forma dar sentido ao que foi vivido, buscando para isso o auxílio de pessoas de confiança.

A situação descrita por Ferenczi em sua reflexão sobre o trauma, feita no texto "Confusão de língua entre os adultos e a criança", é a de uma criança que foi vítima de uma violência sexual. Como decorrência desse ato, Ferenczi (1933/2011, p. 117) diz o seguinte: "Se a criança se recupera de tal agressão, ficará sentindo, no entanto, uma enorme confusão; a bem dizer já está dividida, ao mesmo tempo inocente e culpada, e sua confiança no testemunho dos seus próprios sentidos está desfeita". Enquanto isso, o adulto agressor se comporta como se nada houvesse acontecido.

Apesar de Ferenczi referir-se a uma situação específica de violência – o abuso sexual contra uma criança –, ele indica uma dimensão interessante para se pensar acontecimentos traumáticos em geral e o que acontece com o sujeito vítima de violência. A própria compreensão do que aconteceu no momento do choque é muito difícil, o sujeito tem bastante dificuldade de saber o que aconteceu consigo mesmo, pois o efeito da violência ainda se faz sentir sobre seu corpo. Com isso, há o risco de se colocar em dúvida a realidade concreta do que aconteceu: talvez a própria percepção tenha se enganado, ou, então, seja digna de dúvida. O sujeito sozinho não se sente completamente seguro para afirmar a realidade do que aconteceu e necessita para isso do auxílio de pessoas de confiança. É através da relação com o outro que ele poderá se expressar sobre o passado.

A comunicação de experiências traumáticas parece ser um dos pontos importantes das reflexões de Ferenczi a respeito do trauma. Em diversos textos seus aparecem relatos de casos em que o sujeito em análise experimenta estados qualificados como transes, como vivências de intensidade alucinatória. O que acontece neles, portanto, está além de uma simples expressão através da linguagem: algo mais fala. Ferenczi vê esses estados como repetições, reproduções de acontecimentos traumáticos do passado, e faz, no plano teórico, uma retomada da ideia de catarse para refletir sobre a questão.

É claro que é possível questionar se todas essas experiências de transe descritas por Ferenczi na clínica correspondiam de fato a reproduções de acontecimentos traumáticos reais. Ou seja, se esses pacientes necessariamente passaram por esses acontecimentos, se não se tratava apenas de fantasias. De qualquer modo, as contribuições teóricas de Ferenczi sobre esse tipo de comunicação nos parecem interessantes para a reflexão sobre como sujeitos vítimas de violência se expressam sobre seu passado. Muitas vezes, aquilo que é vivido como horror, como pura violência, escapa, e os esforços feitos por meio da linguagem vão permanecer insuficientes para representar o que aconteceu. O corpo tem também um papel central, pois muitas coisas que as palavras silenciam vão se manifestar corporalmente. De acordo com Pinheiro, Jordão e Martins (1998, p. 169), nos estados de regressão descritos por Ferenczi pode-se entrar em contato com a inscrição mnésica corporal presente no sujeito: "somente o corpo guardou a lembrança do trauma e é ele que se exprime nos silêncios durante a regressão".

O método catártico foi objeto de grande interesse por parte de Ferenczi (1933/2011) em determinado momento de sua obra, quando ele chega inclusive a propor que se faça na psicanálise uma regressão tanto de sua técnica quanto de sua teoria. Isso significa que, no plano da técnica, Ferenczi passou a dar valor novamente a algo que acontecia na catarse descrita por Breuer e Freud e, no plano da teoria, aos acontecimentos traumáticos reais. Para Ferenczi, o tratamento catártico foi

a descoberta comum de uma doente genial e de um médico de espírito aberto. A paciente tinha experimentado em si mesma que alguns dos seus sintomas desapareciam quando conseguia relacionar fragmentos de suas falas ou gestos, expressos em estados de exceção, com impressões esquecidas de sua vida anterior. O extraordinário mérito de Breuer foi ter seguido as indicações metódicas de sua paciente e ter também acreditado na realidade das lembranças que surgiam, sem descartá-las de imediato, como era o habitual, como invenção fantasística de uma doente mental (Ferenczi, 1930/2011, p. 62).

Ferenczi, apesar de descrever alguns êxitos catárticos em sua prática como psicanalista, logo aponta limitações para esse método. Quase todos os desaparecimentos de sintomas decorrentes da catarse produziam apenas resultados provisórios, o que fez com que Ferenczi (1933/2011) deixasse de ter um "excessivo otimismo" em relação a essas curas. As repetições quase alucinatórias, que foi acumulando em sua prática clínica, mostraram a ele que "o resultado que se esperava duradouro, não o era, contudo, e na manhã seguinte o doente queixava-se de novo de uma noite pavorosa, redundando a sessão de análise em nova repetição do trauma" (Ferenczi, 1933/2011, p. 112).

De alguma forma, entretanto, os estados de transe pelos quais seus pacientes passavam vão continuar a aparecer em sua prática clínica. Ao se referir a esse tipo de vivência, em uma nota intitulada "A propósito do tema da neocatarse" de 17/08/1930, que foi publicada postumamente entre as "Notas e fragmentos", Ferenczi (1939/2011, p. 275) diz:

Após "o despertar" desse estado de transe, os pacientes sentem-se por algum tempo como que fortalecidos, mas esse estado logo se dissipa e cede diante do sentimento de insegurança e de dúvida que, com frequência, degenera em desespero. "Sim, tudo isso soa muito bem", dizem eles quase sempre, "mas será verdade? Não, jamais terei a certeza da lembrança real".

Em outra nota, escrita em março de 1931, intitulada "Tentativa de resumo", Ferenczi (1939/2011, p. 283), em uma linha parecida, vai dizer a respeito dos estados de transe:

produz-se de maneira surpreendente, após descarga desse gênero, rapidamente, às vezes de imediato, um restabelecimento da dúvida quanto à realidade do que foi vivido durante o estado de transe. Em alguns casos, o bem-estar dura o dia inteiro, mas o sono e o sonho da noite, e em especial o despertar, trazem o restabelecimento completo dos sintomas, a perda total da confiança da véspera, o sentimento completo de desespero. Podem seguir-se então dias e até semanas de resistência total, até que um novo mergulho nas camadas mais profundas das esferas do vivenciado atinja uma vez mais o ponto de experiência em questão, complete-o com novos detalhes convincentes e acarrete um novo reforço do sentimento de realidade com um efeito mais durável. O mergulho na verdadeira esfera do vivenciado exige inevitavelmente o desligamento mais completo possível da realidade atual.

Ferenczi acrescenta que é preciso uma confiança imensa por parte do sujeito "para permitir-se um tal mergulho na presença de uma outra pessoa" (1939/2011, p. 284). Ele deve ter o sentimento de que pode se expressar impunemente "em palavras, em movimentos expressivos, em explosões emocionais, sem que por isso seja, de alguma forma, punido" (Ferenczi, 1939/2011, p. 284); e também de que pode encontrar a compreensão do seu interlocutor.

 

O segundo momento do trauma

Para Ferenczi (1930/2011), é fundamental haver uma atmosfera de confiança sólida entre quem fala e quem escuta ao se darem os estados de transe. Assim, o passado que é reconstruído através desses estados pode aderir muito mais "ao sentimento de realidade e de objetividade (Dinghaftigkeit)" do sujeito que fala (Ferenczi, 1930/2011, p. 71).

Em contraposição à confiança – necessária para que a comunicação de acontecimentos traumáticos se dê de um modo que de fato auxilie o sujeito a reconstruir seu passado – está a reação inadequada por parte dos outros. Trata-se do segundo momento do trauma para Ferenczi, comumente conhecido como desmentido. Um dos aspectos fundamentais da teoria do trauma em Ferenczi (1934/2011) é que a reação das pessoas que são próximas do sujeito que foi vítima de violência faz parte do modo de ação do trauma. O "desmentido" acontece quando a reação dessas pessoas expressa incompreensão, silêncio, quando se age como se nada tivesse acontecido, como se não fosse importante, ou então quando a fala do sujeito que tenta se expressar é desautorizada.

Diante desse tipo de reação, fica muito difícil para o sujeito conseguir sustentar sua própria opinião a respeito do que viveu. Quando as pessoas de sua confiança não podem corresponder às suas expectativas de ser compreendido, de ser auxiliado a representar o que aconteceu, ele próprio passa a ter dificuldade em acreditar em si mesmo (Pinheiro, 1995). Por outro lado, os choques violentos podem ser superados, sem consequências inelutáveis, quando a reação das pessoas exprime compreensão e acolhimento sinceros (Ferenczi, 1931/2011).

A situação descrita por Ferenczi novamente é a da criança que foi vítima de violência e vai depois disso buscar auxílio junto a algum adulto de confiança. Quando ela tenta se expressar sobre o ocorrido, a atitude do outro que a escuta é a de que "não aconteceu nada", desautorizando a versão da criança. As suas alusões acabam sendo ignoradas ou tratadas como irrelevantes e, "diante disso, a criança cede e deixa de poder sustentar sua própria opinião a tal respeito" (Ferenczi, 1990, p. 58). Será justamente essa reação por parte das pessoas de confiança que vai ser decisiva no trauma:

O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática dos pensamentos ou dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico (Ferenczi, 1931/2011, p. 91).

No trecho acima citado, a palavra em alemão que corresponde a "negação" é Verleugnung. Talvez pelo fato de se tratar de uma palavra que é também um conceito psicanalítico de Freud que gera debates em torno de sua tradução, há uma discussão sobre qual palavra em português se adequaria melhor à teoria de Ferenczi. O termo mais difundido é "desmentido", que corresponderia a esse segundo momento do trauma.

A tradução do termo Verleugnung em Ferenczi é discutida em um texto de Miranda (2012). Segundo a autora, na língua alemã Verleugnung é "coloquialmente empregada para negar uma verdade que nem por isso perde o seu caráter de fato" (Miranda, 2012, p. 43). No trecho acima citado de Ferenczi, o termo foi traduzido pelo verbo "deny" em inglês, por "désaveu" em francês e por negação em português.

Há uma diferença do uso que é empregado por Ferenczi naquele trecho e a Verleugnung que é conceito de Freud. Neste, há a ideia de um mecanismo de defesa; trata-se, portanto, de um mecanismo intrapsíquico. Já em Ferenczi, a palavra é usada para descrever uma situação que acontece entre pessoas, ou seja, ela não é um mecanismo interno. Portanto, se em Freud a Verleugnung diz respeito à recusa perversa da castração, em Ferenczi há uma dimensão relacional, indicando um não reconhecimento pelo outro de uma narrativa de sofrimento de um sujeito (Kupermann, 2015).

Miranda (2012, p. 46) vai propor a compreensão da Verleugnung em Ferenczi como "descrédito". Segundo a autora, "Quando Ferenczi fala do abalo psíquico que a criança sofre quando vai contar à mãe a violência sexual, está dizendo que a mãe não lhe dá crédito e que mais grave do que o abuso sofrido é o fato de ser desacreditada pela mãe". A criança tem necessidade de que a mãe acredite nela para poder inscrever e processar o fato, dando-lhe o estatuto de algo que ocorreu e sobre o qual ela tem a possibilidade de falar. "O descrédito da mãe deixa a criança sem chão firme para tornar-se capaz de distinguir entre a veracidade ou a falsidade dos fatos. Não sendo objeto de crédito para a mãe, o fato ficará como inqualificável para a criança" (Miranda, 2012, p. 46).

Pinheiro, Jordão e Martins (1998, p. 162) vão também chamar de descrédito esse segundo momento do trauma. Para os autores, Ferenczi aponta o descrédito da mãe em relação à criança como o fator traumatizante por excelência, e que, entre os resultados dramáticos do trauma, o mais evidente seria a ausência a partir daí da certeza de si mesmo. "O descrédito teria o poder de tirar a certeza das próprias percepções, como se a partir daí a criança não pudesse mais confiar nos próprios sentidos". Se é através do outro que o sujeito se torna capaz de produzir e atribuir sentido, o descrédito interrompe a sua possibilidade de apropriação e tira a certeza do que se percebeu e do que se viveu. E, sem a certeza de si mesmo, o eu se torna refém daquilo que o outro afirma.

Jordão (2009), em uma linha parecida, vai dizer que, diante do descrédito da mãe, restam à criança duas opções: ou desinvestir a mãe ou desinvestir sua própria informação sensorial. Impasse que faz com que a criança opte por desqualificar a realidade sensível. As suas percepções deixam de ser sentidas como fonte segura de informação confiável.

Apesar de não falar diretamente sobre trauma em Ferenczi, Luís Cláudio Figueiredo (2008), ao discutir o termo Verleugnung, ressalta também alguns aspectos interessantes. O autor defende que a Verleugnung deva ser entendida como "desautorização". Esse termo destacaria um aspecto importante que é o da obstrução do caráter processual e transitivo da percepção. A desautorização, para o autor, não incide sobre a percepção propriamente dita, mas sim sobre a possibilidade de ela transitar para outras conservando uma certa continuidade:

O que é contestado na Verleugnung é a autoridade que uma percepção detém de propiciar e mesmo exigir outros passos na cadeia psíquica. Assim, a eficácia de que uma percepção é privada ao ser desautorizada é a sua capacidade de remeter-se e de engendrar outras percepções, ou de levar, em uma dada sequência perceptiva, a certas conclusões ou, ainda, de reativar certas lembranças (Figueiredo, 2008, p. 61).

Sob o impacto da desautorização, a percepção é retirada de uma rede de associações para ser preservada como uma quase-coisa. Nessa condição, ela está destinada a se tornar uma lembrança muito vívida que não se integra ao fluxo psíquico. A desautorização gera essas "quase-coisas" que ficam retornando de forma perturbadora para o sujeito. Elas ficam indigestas e fora de controle, gerando uma atmosfera enevoada, um estado crônico de confusão, ou até mesmo um pânico e uma sensação premente de ameaça. Nesse estado de consciência, o sujeito perde o contato com a realidade no que ela supõe de contínuo e transitivo (Figueiredo, 2008).

Inspirado nessa proposição de Figueiredo a respeito da Verleugnung, Kupermann (2015, p. 42) defende também a ideia de desautorização, buscando, assim, enfatizar "a dimensão de desapropriação subjetiva promovida no sujeito em estado de vulnerabilidade pelo encontro traumático". O traumatismo teria como efeitos nefastos o comprometimento da convicção nas próprias percepções e a anestesia da afetividade.

Jô Gondar (2012, p. 196), ressaltando a dimensão social envolvida no desmentido, vai destacar a característica do não reconhecimento. A autora propõe entender o desmentido como "o não-reconhecimento e a não-validação perceptiva e afetiva da violência sofrida. Trata-se de um descrédito da percepção, do sofrimento e da própria condição de sujeito daquele que vivenciou o trauma". Gondar sublinha que as situações traumáticas são as provocadas por outros seres humanos que não reconhecem seu erro: "É nesses casos que se produzem nas vítimas os sentimentos de aniquilamento dos quais elas dificilmente se recuperam" (Gondar, 2012, p. 198). Essa atitude por parte dos outros faz com que se quebre, nas vítimas, a confiança em si e no mundo.

Nesse sentido, Gondar (2012, p. 200) propõe considerar o reconhecimento como o avesso do "desmentido", o que implica dizer que "os efeitos traumáticos podem ocorrer quando alguém não é reconhecido na sua condição de sujeito". O reconhecimento está relacionado à necessidade do indivíduo de poder ser ouvido e respeitado pelos outros em sua condição de sujeito, levando em consideração sua sensibilidade, seus gostos, a sua integridade corporal e psíquica. Nesse sentido, a autora formula que "o desmentido, enquanto não validação das percepções e dos afetos de um sujeito, pode ser entendido como um reconhecimento recusado" (Gondar, 2012, p. 200).

Através dessa discussão sobre diferentes palavras em português relacionadas à ideia de Verleugnung em Ferenczi – tais como "desmentido", "descrédito", "desautorização" e "não reconhecimento" –, nossa intenção aqui não foi a de escolher uma e de propor a melhor tradução2, mas sim a de preservar a polissemia, enfatizando os diversos aspectos relacionados ao segundo momento do trauma que esses termos apontam. Acreditamos que essa diversidade de termos reflete a riqueza da situação descrita por Ferenczi. A concepção de trauma de Ferenczi envolve um componente intersubjetivo que é bastante complexo e que diz respeito a como o meio ao redor do sujeito vítima de violência reage a respeito daquilo que viveu e sobre o que tenta se expressar.

No que diz respeito mais especificamente a sujeitos que foram vítimas de violência, o desafio é pensar como estabelecer um contraste entre o presente em que o sujeito tenta se expressar e o passado traumático. O risco é o de se repetir a reação inadequada que ocorreu então, ou seja, de se continuar agindo como se "não aconteceu nada", não fosse algo importante, ou no sentido de desacreditar, desautorizar ou não reconhecer o sujeito que testemunha. Um ambiente marcado pela confiança e sinceridade pode permitir que se ajude a lidar com o passado de violência. Já quando, ao contrário, o que predomina é a hipocrisia, entendida aqui como a desautorização das experiências do outro, repete-se justamente a situação que prevaleceu por ocasião do choque traumático.

 

O testemunho de Maryan

Maryan foi um pintor da segunda metade do século XX que nasceu em 1927 na Polônia com o nome Pinchas Burstein. De família judia, depois da invasão nazista da Polônia em 1939, ele e sua família foram presos. Pinchas passou por diversos campos de concentração e acabou sendo o único membro de sua família que sobreviveu. Durante sua prisão nos campos, sobreviveu a uma sessão de fuzilamento em que chegou a tomar dois tiros, e em outra ocasião foi ferido e acabou tendo uma de suas pernas amputadas. Após a guerra, Pinchas emigrou para o recém-criado Estado de Israel e depois para a França, onde estudou artes e iniciou sua carreira como pintor. Na década de 1960, mudou-se para os Estados Unidos, onde oficialmente mudou seu nome para Maryan S. Maryan. Ele morreu em 1977 vítima de um ataque cardíaco.

A saúde física e psíquica de Maryan se deteriorou no final da década de 1960. Nesse período, iniciou um tratamento psicanalítico. Seu psicanalista, ao notar a grande dificuldade de Maryan em falar, sugeriu que ele desenhasse para se expressar. Por um ano, entre 1971 e 1972, Maryan preencheu nove cadernos com desenhos. São ao todo 478 desenhos que vieram a público na íntegra em 2013, em uma exposição realizada em Paris (Maryan, 2013a). Os desenhos de forma alguma constituem uma narrativa linear autobiográfica do artista. Eles antes se mostram como uma expressão livre de Maryan que aborda os mais variados temas que o atormentavam.

Não há dúvida nenhuma de que a obra de Maryan, bem como seus desenhos feitos na ocasião de sua análise, são profundamente marcados pelas experiências terríveis que passou em sua vida. Eles não procuram ser uma representação objetiva e fiel dos acontecimentos que o artista sofreu nos campos de concentração e nas guerras que viveu. Ainda assim, esses trabalhos podem ser vistos como testemunhos da dimensão do horror que provocou profundos impactos na subjetividade de Maryan e que encontrou expressão pela via da arte e dos desenhos.

Os desenhos de seus cadernos misturam, portanto, medos, fantasias, acontecimentos vividos, sendo que diferentes períodos da vida do artista são representados. A própria situação analítica aparece em seus desenhos, como na Figura 1.

 

 

É possível identificar, nesse desenho (Figura 1), uma experiência de guerra, um sujeito em profundo sofrimento, a palavra "vomitando" (vomiting) repetida duas vezes e, embaixo, a exclamação: "vômito psicanalítico" (Psychoanalitic vomit). Chama a atenção que a experiência analítica é associada ao vomitar, a um colocar para fora uma coisa que não pode ser expressa por meio de palavras, a algo que é ainda bastante corporal e se associa a excreções (além do vômito, há também as fezes no canto direito). O vômito e a náusea são recorrentes em diversos desenhos seus e parecem estar relacionados a um mal-estar em estado bruto, a algo que não é, aparentemente, passível de simbolização.

No desenho representado na Figura 2, é também possível distinguir a situação analítica sendo representada. Vemos um sujeito deitado e um outro atrás despendendo atenção a ele. Há ainda um quadro pendurado no ambiente, decoração bastante comum em diversos consultórios de psicanalistas. Entretanto, a situação é representada de forma toda distorcida e macabra. O sujeito não está deitado em um divã confortável, mas em uma maca de madeira. Ele está amarrado e enrolado em uma espécie de lençol ou mortalha. As palavras no canto direito acima, "Confissão de um homem morto" (Confession of a dead man), sugerem que ele está morto, mas, ainda assim, confessa algo. Sua postura meio retorcida parece dar a impressão tanto de alguém que foi morto em situação sofrida, quanto alguém que está se contorcendo, agonizando, tentando expressar algo ou pedir ajuda. O "analista" é representado meio como boneco, meio como uma caveira, de qualquer modo não parece ser alguém que possa compreender o sofrimento de quem está agonizando. Ainda assim, é possível distinguir lágrimas caindo dos olhos desse psicanalista.

 

 

Para a reflexão sobre os desenhos do Maryan, consideramos importante nos deter um pouco sobre o conceito de testemunho, que é o modo que optamos por abordá-los. O testemunho, apesar de não ser propriamente um conceito psicanalítico, pareceu-nos também uma ideia interessante de ser trabalhada, por dizer respeito a como o sujeito pode se expressar sobre uma experiência traumática. Assim, é enfatizada uma dimensão da comunicação, que envolve um sujeito que fala e outro(s) que escuta(m), ou de alguém que se expressa e um meio que recebe. Para Ferenczi, no momento em que o sujeito tenta se expressar sobre a violência que sofreu, caso as pessoas ao seu redor ajam como se nada tivesse acontecido, ou como se não fosse algo importante, acontece o que tem sido denominado "desmentido", e é o desmentido que vai exercer o papel preponderante na ocorrência do trauma.

Uma coisa a ser considerada, no entanto, é que muitas reflexões, utilizadas a seguir a respeito do conceito de testemunho, foram elaboradas tendo em vista textos literários ou testemunhos orais. Ou seja, com frequência se aborda o testemunho supondo que se trata de alguma manifestação verbal. No caso dos desenhos de Maryan, há a importante especificidade de ser utilizada a expressão pela via da imagem, ainda que associada com palavras.

Uma primeira característica importante do testemunho a ser considerada é a sua relação com a realidade. Seligmann-Silva (2013a, p. 374) traz considerações interessantes, propondo que o testemunho existe "no espaço entre as palavras e as ‘coisas’". A relação da literatura, da arte e de outras formas de testemunho com a realidade é complexa, já que o limite entre a ficção e a "realidade" não pode ser bem delimitado. Há, no entanto, a reivindicação pelo testemunho de uma relação com o "mundo fenomênico", ou seja, há um comprometimento com o "real". Segundo Seligmann-Silva (2013a, p. 375), "o testemunho justamente quer resgatar o que existe de mais terrível no ‘real’ para apresentá-lo".

Ao se referir à literatura de testemunho, Seligmann-Silva (2013a) traz contribuições para se pensar os desenhos de Maryan ao dizer que não se trata de uma imitação da realidade, "mas sim de uma espécie de ‘manifestação’ do ‘real’" (Seligmann-Silva, 2013a, p. 382). É evidente, porém, que não existe uma transposição imediata do "real". Se o "real" pode ser pensado como um "desencontro", como algo que nos escapa, então o testemunho busca esse encontro impossível (Seligmann-Silva, 2010).

A importância do outro que escuta o testemunho é enfatizada por Dori Laub (1992), a partir de seu trabalho com testemunhos orais no "Arquivo de Yale de vídeos de testemunhos do Holocausto" (Video Archive for Holocaust Testimonies at Yale). Para o autor, aquele que escuta a narrativa de uma dor humana extrema se depara com uma situação em que se busca algo que ainda está por ser feito. O testemunho, dessa forma, inclui o ouvinte, que assume uma responsabilidade que anteriormente o sobrevivente sentia que carregava sozinho. Para Laub (1992a), é o encontro entre o sobrevivente e o ouvinte que torna possível o ato de testemunhar. Esse outro, que participa do testemunho, tem um papel na luta do sujeito em não se perder e em não submergir no trauma.

Comentando esse papel descrito por Laub, Hartman (2000) diz que a produção do testemunho envolve uma audiência ativa. A importância dessa escuta ganha a dimensão de um ato social, ainda que temporário e precário, na medida em que "devolve para os sobreviventes alguma confiança na comunicabilidade, tanto com eles mesmos, por meio de suas memórias, quanto com um mundo que permanece um lugar inseguro" (Hartman, 2000, p. 212). Hartman considera o testemunho como um processo humanizador que "atua sobre o passado resgatando o ‘individual, com rosto e nome próprios’, do lugar do terror no qual aquele rosto e aquele nome foram levados embora" (Hartman, 2000, p. 215).

Laub (1992) chama a atenção para que, no caso de sujeitos que passaram por experiências de violência extrema, o próprio ato de falar sobre o passado pode se tornar bastante traumatizante, pois há a possibilidade de se reviver o trauma. Nesse sentido, o autor fala de riscos que envolvem o testemunho: "se alguém fala sobre o trauma sem ser verdadeiramente ouvido ou escutado, o próprio ato de falar pode ser vivido como um retorno do trauma" (Laub, 1992, p. 67; tradução nossa). Laub (1992) afirma ainda que a ausência de um outro endereçável, de um ouvinte empático que "pode ouvir a angústia das memórias de alguém e assim afirmar e reconhecer sua realidade" (Laub, 1992, p. 68; tradução nossa), solapa o testemunho.

Para se pensar a especificidade dos desenhos de Maryan, que constituem uma expressão predominantemente não verbal, talvez seja interessante trazer a ideia de figurabilidade tal como discutida por Gondar e Antonello (2016). A figurabilidade, segundo os autores, consiste "na possibilidade de expressar alguma coisa, por meio de imagens" (Gondar, & Antonello, 2016, p. 17). Estas se constituem a partir de algo que existia antes apenas enquanto expressão sem forma. Os autores pensam a figurabilidade em relação a vivências traumáticas como "um processo que faz um primeiro tipo de enlace de uma intensidade que se encontrava em estado bruto" (Gondar, & Antonello, 2016, p. 17). Figurar é, portanto, dar uma forma a uma vivência traumática por meio de imagens. Por meio delas, a vivência terrível pode ser evocada, descrita e transmitida, tornando visível algo que até então não tinha forma.

Nesse sentido, Bojarska (2013) aponta que a tarefa dos desenhos de Maryan pode ser vista como a de estabelecer um registro, de tentar transpor uma posição muda do sobrevivente em uma linguagem visual. Os desenhos podem ser vistos como um meio de lidar com o silêncio que permaneceu depois do extermínio da família do artista, um silêncio que resulta da falta de narrativas sobre a morte deles e sobre a sobrevivência do próprio Maryan.

Em seu Caderno 9 de desenhos, Maryan (2013b) mostra com frequência um sujeito pedindo ajuda, enquanto a reação dos outros é a de incompreensão, de indiferença e até mesmo de zombaria e de escárnio.

O desenho de Maryan, representado na Figura 3, tem em seu centro um sujeito deitado com sua boca aberta, de onde sai vômito e também a frase "a náusea me deixa louco" (The nausea drives me crazy). Aparece, portanto, a questão de um profundo mal-estar corporal, um sentimento que chega a ser enlouquecedor. As outras duas pessoas representadas (talvez seria melhor dizer criaturas) aparecem com a língua para fora, uma delas sorrindo e a outra gritando "ridículo!" (Ridiculous!). O mal-estar do sujeito não apenas não encontra compreensão e acolhimento, como, ao contrário, se depara com o "escárnio" (mockery), palavra que aparece escrita no canto abaixo à direita. Essa composição do desenho – o sujeito que pede ajuda e o escárnio dos outros – parece sugerir que haja não uma reação de causa e efeito entre uma coisa e a outra (uma sendo anterior à outra), mas que a própria reação ofensiva por parte dos outros alimenta a náusea do sujeito. Ou seja, o sujeito que já está em sofrimento busca o auxílio dos outros, mas como apenas encontra o escárnio, seu mal-estar aumenta ainda mais, gerando uma situação sem fim que parece nunca poder se apaziguar. O quadro se repete no desenho representado na Figura 4.

 

 

 

 

O "vômito" não é compreendido por ninguém e todos estão rindo (Figura 4). O riso dos outros parece fazer aumentar a sensação de incompreensão, assim como a náusea. A situação representada se dá entre pessoas: uma delas tenta – mas não consegue – comunicar algo que é da ordem de um sofrimento profundo; enquanto as outras não podem ou não querem compreendê-la.

Relacionando os desenhos de Maryan à concepção de trauma de Ferenczi, percebe-se que eles operam como uma espécie de ilustração ou até mesmo como um material que pode enriquecer aspectos da teoria ferencziana. Ao conhecermos a biografia de Maryan, bem como algumas de suas obras artísticas, é inevitável reconhecer que sua arte expressa a tentativa de representar as experiências de uma vida inexoravelmente marcada pelos traumas provocados pela guerra e por violências terríveis cometidas pelo Estado – Maryan teve seus pais assassinados por serem judeus, passou por guerras, ele próprio sobrevivendo a experiências em campos de concentração e a ferimentos sérios.

A nosso ver, a discussão acerca da ideia do segundo momento do trauma, descrito por Ferenczi, pode ser bastante rica quando refletimos sobre violências de Estado, guerras e genocídios em que há uma ameaça de negação ou de uma deformação dos fatos por parte da história oficial. Quais implicações pode haver para o sujeito quando o próprio Estado é quem promove as práticas de horror e, em seguida, se esforça deliberada e sistematicamente para esconder as evidências, para difundir um esquecimento oficial e para criar uma outra versão para o que ocorreu? Quais implicações pode haver para o sujeito quando ele não encontra nenhum espaço social para tentar se expressar sobre o horror vivido, quando já não importa quanto ele fale e o que ele fale, pois isso sempre vai ser uma mentira risível aos olhos de uma "verdade oficial"?

No desenho de Maryan da Figura 5, vemos representado, fazendo o papel do outro que ridiculariza, um sujeito com uma cabeça de caveira e um chapéu com uma suástica nazista. Hoje sabemos que fazia parte do próprio projeto de destruição e aniquilamento do Estado nazista a tentativa de apagar todos os vestígios dos crimes cometidos. O Estado não apenas assassinava, mas ao mesmo tempo negava que assassinava. Os sobreviventes, além de terem que continuar lidando com as terríveis experiências traumáticas que viveram, se deparavam muitas vezes com a dificuldade de não encontrar provas materiais (pois muitos delas haviam sido apagadas) para amparar suas falas. Tinham, assim, caso quisessem comunicar as experiências que viveram, contar com a compreensão, o crédito e a confiança das outras pessoas (apoiados, evidentemente, sobre fragmentos do que efetivamente se sabia). Entretanto, não é o que acontece com o sujeito representado nos desenhos de Maryan. Ele não apenas encontra incompreensão, indiferença e escárnio, como o próprio outro que reage dessa maneira se confunde com o responsável pela experiência traumática.

 

 

Seligmann-Silva (2013b, p. 78) traz considerações sobre o negacionismo do Holocausto interessantes, ao dizer que os negacionistas e revisionistas "querem seja minimizar o papel das atrocidades – substituindo e deslocando o seu local –, seja negar a sua existência". Ao negar que o fato tenha ocorrido, é de alguma forma como se o assassinato se repetisse. O autor enfatiza que se encontrava no próprio cerne da "empreitada nazista de aniquilação dos judeus o ato de apagar qualquer traço desse assassinato" (Seligmann-Silva, 2013b, p. 78). Devido à ausência de traços e de cadáveres nesse genocídio, tanto o historiador como aquele que quer rememorar encontram-se diante de uma tarefa difícil. Segundo Seligmann-Silva (2010, p. 10), "o negacionismo é também perverso, porque toca no sentimento de irrealidade da situação vivida". Vimos em Ferenczi como o trauma tem o poder de abalar o sentimento de realidade do sujeito que foi vítima de violência. Nesses casos, em que há um desmentido social na forma de negacionismo sobre o passado traumático, existe o risco ainda maior de que o sujeito vítima de violência viva com um sentimento de irrealidade, tanto sobre o que aconteceu consigo próprio, quanto sobre a confiança no mundo ao seu redor.

É interessante, nesse sentido, pensar os esforços de testemunho de Primo Levi em contraposição a tendências negacionistas. De acordo com Barbosa e Kupermann (2016), no final dos anos 1970 e no começo dos 1980, houve a publicação de textos com viés negacionista que afetaram Levi profundamente. O autor, que dedicou bastante de sua vida e de sua obra num esforço testemunhal a respeito das barbáries cometidas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, sentiu que se deparava com uma parcela da cultura que era surda ao seu relato. Desse modo, o trauma de Primo Levi se reatualizava e se incrementava pela ferida de não ser entendido, acompanhada de uma impotência diante de um meio que parecia não estar disposto a lhe dar ouvidos.

Para concluir, acreditamos que os desenhos de Maryan podem ser vistos como fragmentos profundamente ligados às experiências traumáticas vividas, que ele conseguiu expressar por meio de imagens e palavras. Os desenhos muitas vezes não mostram relações diretas com acontecimentos do passado, mas ainda assim são bastante marcados pela violência de experiências vividas por Maryan. São, portanto, testemunhos que figuram em imagens junto com palavras algo que antes não tinha forma, que permanecia em estado bruto. Há ainda outro aspecto marcante, no caso desse testemunho, que é o fato de ele ser endereçado a alguém, mais especificamente a um psicanalista. Os desenhos se situam, portanto, dentro de um contexto de tratamento, sendo eles próprios uma demanda por ajuda, um pedido para que o sofrimento e a angústia sejam aplacados.

 

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Notas

1 O termo "desmentido" para se referir ao segundo momento do trauma descrito por Ferenczi foi utilizado em importantes trabalhos sobre o autor publicados no Brasil, tais como em Pinheiro (1995), em Kupermann (2003) e em Sabourin (1988), e se tornou o termo mais difundido para se referir à palavra em alemão Verleugnung, utilizada por Ferenczi. Como será exposto mais adiante neste artigo, alguns trabalhos mais recentemente passaram a questionar essa opção de tradução. Neste trabalho, utilizamos algumas vezes, para nos referirmos ao segundo momento do trauma em Ferenczi, a palavra "desmentido", pois essa é a palavra mais difundida, mas temos consciência de que essa escolha apresenta problemas.

2 Para uma discussão que tivesse um enfoque na tradução, acreditamos que seria importante de se levar em conta que se trata de uma palavra que Ferenczi utiliza muito pouco, mesmo em suas reflexões sobre o trauma. Em duas edições consultadas da obra de Ferenczi em alemão, e também no texto do Diário clínico nessa língua, a palavra Verleugnung não consta no índice de palavras do final dos volumes. Diferentemente, portanto, de Freud que trabalhou detidamente em alguns textos o conceito de Verleugnung, Ferenczi parece que não buscou usar essa palavra para cunhar um conceito psicanalítico rigoroso. Por outro lado, há diversas ocasiões em que Ferenczi descreve a situação em que um sujeito, após ser vítima de violência, vai buscar um auxílio de um terceiro, mas este reage de um modo inadequado, sendo que muitas vezes o autor não usa a palavra Verleugnung para se referir a essa situação.

 

 

Recebido em 21 de fevereiro de 2016
Aceito para publicação em 04 de maio de 2017

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