SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 issue1Logic of submission and commandment: from S. milgram experiment to the slogan powerThe other pluralized in the subjective constitution process author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.1 Rio de Janeiro  2018

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n01A04 

ARTIGOS : TEMAS SOBRE PSICOLOGIA CLÍNICA

 

A cidade dos homens: tragédia de um édipo suspenso

 

The city of men: tragedy of a oedipus suspended

 

La ciudad de los hombres: tragedia de un edipo en suspensión

 

 

Carlos VelázquezI; Marilia Romero CamposII

IPós-Doutor em Estudos Culturais na Universidade de Aveiro (UA), Portugal, Coordenador do Movimento Investigativo Transdisciplinar do Homem - MITHO, Universidade de Fortaleza (Unifor), Fortaleza, CE, Brasil
IIProfessora Assistente da Universidade de Fortaleza (Unifor), Fortaleza, CE, Brasil

 

 


RESUMO

O homem, ao nascer, confronta-se com o desamparo como marca definitiva da sua condição. Diferente de outros animais que nascem mais ou menos capazes de enfrentar as intempéries da natureza, o homem, também afetado pela fragilidade do corpo e pelas diversas dificuldades impostas pelo relacionamento com outro, necessita de uma bolsa externa, não biológica, mas cultural. Essa necessidade faz com que o homem busque abrigo e se organize em favor de um ecossistema próprio: a cultura. A metrópole moderna, como um habitat específico da cultura, desenvolveu-se como órgão protetor da humanidade em oposição à hostilidade natural; no entanto, contemporaneamente ela se torna violenta e opressiva. Sobre substrato paradigmático junguiano, induzimos, perante um corpo literário interdisciplinar, a hipótese de que a cidade, enquanto símbolo de proteção materna, abriga a cultura moderna como um filho que se apropriou da potência criativa do pai, mas não reinvestiu essa potência na própria adaptação ao meio. Concluímos que essa suspensão edípica tem perenizado, na cultura moderna, uma condição infantil, hoje insustentável tanto internamente quanto no meio natural.

Palavras-chave: complexo de Édipo; velha sábia; pai; metrópole.


ABSTRACT

At birth, human being faces his helplessness as the definitive mark of his condition, unlike other animals that are born somehow capable of facing the nature's obstacles. Every human being is affected by the fragility of the human body and the variety of difficulties imposed not only by the environment, but also by the relationships each person needs to create with others. For this reason, humankind needs an external non-biological bag, but cultural bag. This necessity makes the man to seek shelter and organize himself in favor of an ecosystem of his own: culture. Modern metropolis is the culture's specific environment and it has developed as a shield to humankind in opposition to its natural hostility. However, it becomes violent and oppressive. Inferring above the Jungian paradigm substratum and before an interdisciplinary literary body, the hypothesis that the city, as a symbol of maternal shelter, it protects Modern Culture as a child who borrowed his father's creative power. Despite that, the child did not redirect the power in his own adaptation to the environment. Therefore, we conclude this oedipal suspension has imprinted in modern culture a childish condition, unsustainable both internally and in the environment.

Keywords: Oedipus complex; elder woman; father; metropolis.


RESUMEN

El hombre, al nascer, se confronta con el desamparo como marca definitiva de su condición. Diferente de otros animales que nascen más o menos capaces de enfrentar las intemperies de la naturaleza, el hombre, también afectado por la fragilidad del cuerpo y por las diversas dificultades que la alteridad le impone, necesita de una bolsa externa, no biológica, mas cultural. Esa necesidad obliga al hombre a buscar abrigo y a organizarse a favor de un ecosistema propio: la cultura. La metrópolis moderna se desenvolvió como órgano protector de la humanidad en oposición a la hostilidad natural; sin embargo, actualmente la ciudad se torna violenta y opresiva. Sobre substrato paradigmático junguiano, inducimos, ante un cuerpo literario interdisciplinar, la hipótesis de que la urbe, como símbolo de protección materna, abriga a la cultura moderna como un hijo que se apropió de la potencia creativa del padre, pero no invirtió esa potencia en su propia adaptación al medio natural. Concluimos que esta suspensión edípica ha prolongado, en la cultura moderna, una condición infantil, hoy insustentable tanto interna, cuanto ambientalmente.

Palabras clave: complejo de Édipo; vieja sabia; padre; metrópolis.


 

 

Ah, look at all the lonely people

[] All the lonely people, where do they all come from?

All the lonely people, where do they all belong?

 

Introdução

Para além de estruturações subjetivas e de linhagem, partimos do pressuposto de que o Complexo de Édipo engendra uma dinâmica pulsional criativa que está à base constitutiva da cultura, entendendo-a como resposta humana à hostilidade natural e incluindo seus desdobramentos e reformulações internos. Em oposição à vida rural, familiarizada com os ciclos naturais, a metrópole moderna, enquanto cultura, apresenta-se como um produto dessa dinâmica edípica. No entanto, se a cidade foi desejada, planejada e construída com a finalidade de atuar como um órgão protetor, como construção auxiliar, por que contemporaneamente tornou-se ela tão violenta e opressiva?

Propomo-nos investigar a possível relação dessa transformação com as respostas que a sociedade ocidental moderna historicamente tem oferecido ao complexo edípico, tanto quanto as possibilidades de reestruturação que da mesma relação possam surgir. Para o efeito, induzimos, perante um corpo literário multidisciplinar, a hipótese de que a modernidade ocidental encontrou na vida urbana uma simbolização de proteção materna e, apesar de, pelo assassínio, ter incorporado a potência do pai simbólico, estagnou nesse refúgio maternal. O filho-modernidade que penetrou a mãe não ressurgiu para consumar um novo acordo com o meio natural, mantendo, em compulsão obsessiva, sua condição de infante protegido. As transformações que constatamos na atualidade estariam a sinalizar o esgotamento desse engodo e, consequentemente, a conclamar com urgência a retomada do processo.

Dada nossa condição de moradores urbanos, para além do corpo bibliográfico, nossas motivações e materiais empíricos nutrem-se fundamentalmente de experiências próprias e observações diretas. Entretanto, cientes da inevitável elaboração subjetiva desse material, procedemos intensivamente ao confronto intersubjetivo, incluindo apreciações de sujeitos que não participaram diretamente da escrita desta reflexão. Essa forma de proceder, própria da pesquisa qualitativa de paradigma junguiano (Maroni, 2006; Penna, 2004), convoca, pela soma de subjetividades, o próprio objeto a determinar e a articular suas perspectivas de análise, tanto quanto os métodos específicos e os instrumentos a serem empregados, resultando no estabelecimento de um campo interdisciplinar que nos libera de corpos bibliográficos preestabelecidos ou de métodos e instrumentos que precedem o objeto. Na prática, o fato de seguir o paradigma junguiano não apenas não nos impede de visitar outros autores de posturas e disciplinas diferentes, como nos obriga a articular referências que possam nos aproximar da natureza do objeto. Eis por que neste texto, que repousa sobre conceitos junguianos, encontramos recurso à psicanálise, à história, antropologia, sociologia, filosofia, linguística e estudos culturais.

Mesmo havendo confirmado a plausibilidade de nossa hipótese perante a literatura consultada, reconhecemos o caráter parcial de nossos achados, reforçado pelos riscos inerentes às generalizações exigidas pelo tratamento da cultura ocidental moderna como uma categoria que suspende particularidades étnicas. Acreditamos que nossa contribuição reside na possibilidade de que a leitura crítica de nossas posturas suscite novas ponderações.

 

Era uma vez um quarto de brinquedos

Em 1899, na intenção implícita de garantir claridade à formulação de suas ideias, Sigmund Freud percorreu os espaços finais de sua revolucionária publicação sobre a interpretação dos sonhos sob um tópico que adverte: "Tenho apenas mais uma coisa". A seguir, destacamos uma passagem desse texto, pois, como é próprio de um trabalho influente, parece-nos portadora de indícios que permitem uma continuidade especulativa dirigida à atualização de seus achados.

Os sonhos, que realizam seus desejos pelo atalho da regressão, simplesmente preservam para nós, nesse aspecto, uma amostra do método primário de funcionamento do aparelho psíquico, método este que foi abandonado por ser ineficaz. O que um dia dominou a vida de vigília, quando a psique ainda era jovem e incompetente, parece agora ter sido banido para a noite - tal como as armas primitivas abandonadas pelos homens adultos, os arcos e flechas ressurgem no quarto de brinquedos (Freud, 1899/1969, p. 544).

Instiga-nos, em primeiro lugar, o exemplo tecnológico que Freud escolheu para representar a suposta obsolescência de um sistema psíquico arcaico: o arco e a flecha. Esta arma é de fato um aparelho de constituição simples, se comparada à tecnologia de uma balestra, por exemplo, e Freud se utiliza dessa imagem para nos dar a ideia de uma estrutura psíquica igualmente primária. No entanto, acreditamos que a relação de correspondência entre as duas imagens não é direta, mas inversamente proporcional. Segundo Couto (2009), a besta ou balestra era recorrente nos exércitos medievais, dado que um curto treinamento habilitaria qualquer soldado a seu uso; em contrapartida, o uso de arco e flechas requeria um treinamento longo e especializado, pois exigia grande força e habilidade por parte do usuário. Explicita-se aqui uma relação que nos parece lógica: quanto mais a tecnologia consegue poupar esforços, menos o usuário deve empenhar-se em desenvolver suas habilidades.

Freud parece pressupor que a sofisticação tecnológica é um indício de desenvolvimento humano, como, aliás, muito se pressupõe contemporaneamente. No pequeno trecho citado, o médico coloca e reitera que o aparelho psíquico arcaico era ineficaz, incompetente; portanto suas soluções tecnológicas teriam sido relegadas às habilidades pueris de nosso tempo, teriam se tornado brinquedos. Seria interessante investigar se o tiro preciso com arco e flecha é uma atividade ao alcance das crianças da atualidade; porém, mais intrigante ainda é o que Freud supunha ser uma psique competente. Não seria lícito avaliar essa competência em termos de sobrevivência, pois ainda hoje existem sociedades que remanescem de tempos arcaicos apesar de não terem sofisticado suas tecnologias, pois ainda caçam com arco e flecha. Ironicamente, muitas dessas comunidades acusam a civilização industrial de ter causado a crise ecológica em que nos encontramos em nível planetário, dado o caráter abusivo de suas tecnologias de extração e produção.

Gostamos de pensar que a sociedade da qual fazemos parte supera em inteligência e praticidade qualquer outra civilização que tenha adotado soluções diferentes. Não obstante, existem numerosos exemplos históricos que, vistos com maior equanimidade, ajudar-nos-iam a compreender que se trata apenas disso, de escolhas e posturas diferentes, atendentes a concursos circunstanciais diferenciados. Podemos tomar como ilustração o caso da Eolípila de Heron, literalmente um motor a vapor inventado no século III d. C., em Alexandria, e que não foi aplicado à substituição da força de trabalho humano a fim de preservar o equilíbrio econômico de que o Império Romano gozava na época (Velázquez, 2015, p. 225-255). Descobertas de que nos ufanamos eram conhecidas por culturas que consideramos menos evoluídas, embora não tenham sido desenvolvidas no mesmo sentido nosso, em função de ponderações que talvez não estaríamos em medida de levantar no embalo dos tempos modernos e pós ou hipermodernos. Não podemos passar por alto que as linhas em questão foram escritas por um jovem Freud involucrado pelo ímpeto progressista burguês da segunda revolução industrial, cujo emblema era justamente a aplicação da máquina a vapor à substituição da força humana nos processos industriais de produção.

Em suma, parece-nos que a ideia de eficiência que assoma das entrelinhas do texto freudiano consiste na clássica e primária fórmula do aumento de ganhos com menor esforço. Interessa-nos desvendar essa ideia de fundo dado que ela constitui o princípio motor do fenômeno que analisamos. Ora, o aumento de ganhos com mínimo esforço, enquanto reminiscência experiencial capaz de nortear o desenvolvimento "eficaz" da psique, encontra-se na vida intrauterina. É como diz Jung (1973/2011), perante qualquer desafio imposto por uma necessidade, a libido, à procura de substrato que fundamente uma resposta resolutiva, experimenta um movimento regressivo que reativa referências parentais primitivas, dentre as quais a figura materna é proeminente. A fantasia de penetrar a mãe, que está no cerne constitutivo do complexo edípico, corresponde à procura por proteção perante os desafios impostos pelo meio.

O ser humano, ao nascer, encontra-se confrontado com um desamparo radical - "a natureza da gente não cabe em certeza nenhuma" (Rosa, 2006, p. 417). O tema do desamparo apresenta-se no início da obra freudiana fazendo referência à incapacidade performativa do infans de satisfazer, através de seus próprios recursos, as exigências impostas por suas necessidades fundamentais e, assim, garantir a si mesmo a sobrevivência. Nada no sistema genético ou neurológico do homem define-lhe previamente o objeto capaz de aplacar a sua tensão, ou ainda, que ação executar para combatê-la. Incapaz de locomover-se - à falta de recursos biológicos suficientes - fica permanentemente exposto às necessidades, sem a possibilidade de defini-las, expressá-las claramente ou satisfazê-las sem o auxílio de um outro. Essa vivência de desamparo, análoga ao exílio e à estrangeiridade, origina-se a partir da separação do útero materno, lugar onde as condições de sobrevivência estavam asseguradas - "A dor do parto é também de quem nasce. Todo parto decreta um pesaroso abandono. Nascer é afastar-se - em lágrimas - do paraíso, é condenar-se à liberdade" (Queirós, 2011, p. 8). A questão do desamparo, entretanto, não faz referência somente ao estado de insuficiência do infans, mas, sobretudo, à própria condição humana - uma condição marcada pela precariedade e a falta de garantias, muito completa de vazios e sem eternidades (cf. Barros, 2010).

Diferente de outros animais que nascem mais ou menos capazes de enfrentar a intempérie natural, os marsupiais caracterizam um processo singular: os fetos em formação abandonam o útero materno para completar o processo de gestação ao abrigo de uma bolsa externa. O caso dos seres humanos se assemelha ao dos marsupiais no sentido do abandono prematuro do útero materno, no entanto a bolsa externa não é biológica, mas cultural (Campbell, 2005). Um bebê humano que recém abandonou o útero materno encontrar-se-ia completamente desprovido e indefeso a não ser por conta dos cuidados que podemos infringi-lhe com ajuda de arte-fatos, é dizer, feitos de arte, matérias-primas modificadas por ação técnica. À falta de penugem, transformamos fibras em linhas, tecidos e roupas que possam regular a temperatura vital do recém-nascido e, com ajuda de um pano, uma sacola, uma cesta ou um carrinho, transportamos o novo ser incapaz de se locomover por si ou sequer segurar-se no dorso de um adulto.

O homem, por si só, é "nonada" - animal frágil, desamparado, sabedor de sua condição para a morte, solitário e, ao mesmo tempo, incapaz de viver na solidão. Afetados pela fragilidade do corpo, pela força impiedosa da natureza e pelas inúmeras dificuldades impostas pelo relacionamento com o outro, "a vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós" (Freud, 1930/1987, p. 93). A cultura teria se constituído com o propósito de suportar o homem em seu desamparo e estabelecer um laço social - atuaria como uma prótese, suplantando a precariedade humana, protegendo-o das ameaças da natureza, oferecendo-lhe abrigo e ordenando os seus relacionamentos mútuos. Assim, apesar de que inúmeras formulações institucionais complexificam e/ou restringem contemporaneamente o conceito de cultura (cf. Williams, 1980/2001; Bauman, 2012; Lévi-Strauss, 2010), atemo-nos à etimologia da palavra: cultus + ura, que em latim significa ação de refinar (Gómez de Silva, 1998), isto é, ação de modificar o natural. Cultura, no corpo desta reflexão, designa o conjunto de modificações que a espécie humana infringe à natureza a fim de, primeiramente, sobreviver a ela, e, seguidamente, adaptá-la a si. Ora, modificar a natureza exige simultaneamente o protagonismo do sujeito e a discriminação dos objetos à sua volta; dito de outro modo, exige a quebra da indiferenciação primária pela nomeação objetal (Piaget, 1964/1975), pela significação do entorno, e esse processo, por sua vez, exige uma relação sinérgica entre linguagem, dimensão simbólica e tecnologia.

Como resposta aos desafios impostos pela necessidade do nascimento, ao mítico afastar-se - em lágrimas - do paraíso, a espécie humana oferece a cultura; mas essa resposta, como observou Lacan, exige um fundamento da ordem do absurdo: em suas palavras, um mito. Como dissemos, aos desafios impostos pelas necessidades responde-se com um movimento regressivo, uma fuga à procura da proteção materna. No entanto, o retorno à placenta implica o risco de ser reassimilado pelo poder transformador do útero, isto é, implica o risco de "ser devorado" (Lacan, 1995, p. 199) (cf. Jung, 1973/2011, p. 328-460). Surge, em meio a essa indefinição, o princípio ativo, o pai simbólico que, enquanto portador do falo, é restritor do limiar materno, mas também é potência geradora (Chevalier, & Gheerbrant, 1982/2001). Do assassínio e deglutição do pai simbólico, é dizer, da incorporação de seu poder gerador, surge a potência criativa para responder ao meio. O absurdo nessa dinâmica é que, se a cultura constitui uma resposta criativa que define a espécie humana e por isso permite sua subsistência, ela supõe que, "para que os pais subsistam, é preciso que o verdadeiro pai, o pai singular, o pai único, esteja antes do surgimento da história, e que seja o pai morto" (Lacan, 1995, p. 215). Sigmund Freud, em sua obra "Totem e tabu" (1923/1996), dedicou-se a esse problema: o totem ritual seria uma concretização do pai simbólico, o verdadeiro, o pai assassinado antes do surgimento da história; ou melhor, o pai que, através de seu sacrifício, deu origem à história. Assim, se aceitarmos esse mito como fundamento, poderemos reconhecer no surgimento da cultura uma dinâmica edípica: uma espécie desprovida de recursos para suportar a intempérie; a impossibilidade de retorno à mãe natureza sob pena de ser devorado; e o consequente assassínio da ordem vigente a fim de formular uma nova, mais conivente com nossas fragilidades. Como diz Lacan (1995, p. 236), a "substituição daquilo que é real por algo de mais belo e maior".

Se o próprio nível de protagonismo resulta inapreensível à mente racional na formulação da resposta cultural, o mesmo não acontece em seus desdobramentos. O que a clínica tradicional designa como complexo edipiano corresponde às etapas esperadas na estruturação de uma criança, e seu grau de maturação é estimado em função da instrumentalização do infante para, autonomamente, responder ao meio. Discriminação objetal, aquisição de linguagem, posicionamento familiar, identidade sexual são aquisições que paulatinamente habilitam o sujeito a formular respostas ou, no dizer de López Quintás (2010), tornam o sujeito capaz de responder ao meio, isto é, tornam-no responsável. Porém, dada a incapacidade humana de responder à natureza em estado bruto, nossas respostas são criativas, culturais, porque ensejam transformação. Em perspectiva religiosa, o pai primordial é o criador, portanto seus filhos, à imagem e semelhança, somos transformadores, o que é dizer, criativos.

Para muitos povos à margem da civilização ocidental, a cultura se assemelha à bolsa da mãe marsupial que mencionamos. Ela tem a função de completar a gestação, isto é, desenvolver as potencialidades físicas e intelectuais aliadas à instrumentação tecnológica, a fim de tornar o infante responsável, individual e coletivamente, perante o meio natural. Há, nessas civilizações, a preocupação implícita de reconhecer e favorecer as respostas que melhor equilibrem a relação entre o sujeito, a comunidade e o entorno natural (cf. Bonfim, 2014; Campbell, 2008; Eliade, 2001; Lévi-Strauss, 2010). O tiro com arco e flecha que ilustra a abertura desta reflexão, é um recurso tecnológico que exige preparo físico, intelectual e perceptivo e que, com base na exigência de esforço, também tende a regular a extração de recursos naturais, assim como o nível destrutivo que com seu uso possa infringir-se. Na civilização ocidental, porém, a trajetória da modernidade parece ter tomado outro rumo. Como diz Elias (1990), em oposição à nobreza feudal, a burguesia renascentista iniciou um processo civilizatório empenhado em criar um mundo no qual fosse possível viver como se a animalidade e seu entorno natural não existissem. Tudo na natureza é adverso, se não fosse assim não estaríamos tão engajados na cultura, reitera Flusser (2011). Queremos salientar que a modernidade ocidental, com seus desdobramentos contemporâneos, enfaticamente a partir da mecanização da indústria, parece ter cifrado seus esforços na instrumentalização tecnológica, a despeito de sua interlocução com o meio e o consequente despropósito do esforço: motivo e potência de maturação integral. À questão que deixamos aberta sobre a capacidade das crianças contemporâneas para realizar um tiro preciso com arco e flecha poderíamos convocar, a guisa de ampla resposta, a declaração do prof. Carlos Neto: "estamos a criar crianças 'totós', de uma imaturidade inacreditável" (Ferreira, 2015, p. 01).

De acordo com Le Goff (2013), em consequência da industrialização dos meios de produção, amplos círculos populacionais viram-se desenraizados e aglomerados em centros urbanos. Na medida em que a vida rural foi descaracterizada, a cidade, revestida de promessas industriais de conforto - aumento de ganhos com menor esforço - constituiu-se como indubitável órgão protetor, o centro substitutivo dessa inadequação fundamental que marca a condição de desamparo do homem (Freud, 1930/1987). A situação é análoga: aos desafios impostos pela descaracterização da vida rural correspondeu um movimento regressivo à procura de proteção. Não obstante, dada a proibição do incesto, a imagem materna em suas qualidades naturais mostrou-se desconfortável para a psique adulta, donde a libido sofreu um desvio para uma imagem substitutiva, um símbolo, um objeto qualitativamente comparável à caracterização em jogo (Jung, 1973/2011, p. 246-260). Destarte, qualquer forma de recipiente, como uma taça, uma arca, uma casa ou uma cidade, dada sua concavidade apta a receber, esconder e abrigar, pode simbolizar a almejada proteção cultural-materna. Se considerarmos a etimologia da palavra metrópole, nos aproximaremos ainda mais dessa possível relação: a palavra metrópole deriva do grego métra, que significa matriz, útero, ventre, e pólis, cidade. Metrópolis significa, portanto, cidade mãe.

Evidentemente, esse processo de simbolização não é exclusividade da idade moderna ocidental. Exemplos multiplicam-se geográfica e historicamente e dentre eles escolhemos como ilustração o mosaico da saída sul da catedral de Santa Sofia, em Bizâncio, que representa a Theotokos (Mãe portadora de Deus) sendo oferendada com as muralhas bizantinas, por parte do Imperador Constantino, e a igreja ortodoxa, por parte do Imperador Justiniano. (Figura 1)

 

 

Mas devemos reconhecer que essa escolha não se beneficiou do acaso. Parece-nos lícito pensar que essas simbolizações indiciam movimentos psíquicos coletivos, próprios de sociedades teocráticas às quais opôs-se a modernidade em matéria econômica, mas das quais herdou ao menos o substrato de suas tradições. Nessa perspectiva, vale lembrar que a oficialização do cristianismo, no séc. IV d. C., a partir da grande metrópole de Bizâncio, tornou absoluta a virgem Maria, mãe protetora e sempre indulgente, a despeito dos dois outros aspectos da tradicional mãe tríplice pagã. A jovem divina, mãe sedutora que atrai à reprodução e à renovação cíclica (parâmetros muito presentes na vida rural) e a velha sábia, mãe terrível que expulsa o filho de sua proteção a fim de expô-lo aos desafios da natureza, foram retiradas da liturgia (Velázquez, 2014, p. 141-144). É como se o útero de Maria tivesse sido revirado para fora e esticado como manto até deixar fora de vista a animalidade sedutora de Maria Madalena e a assustadora e velha natureza de Santa Ana.

É certo que tratamos aqui de um fato da antiguidade, porém, como confirma Elias (1990), citado anteriormente, foi a burguesia renascentista a que inaugurou a era moderna, e a renascença deve seu nome à recuperação do progressismo greco-romano, temporariamente suspenso pela organicidade rural - feudal - que o homem moderno depreciativamente designa como obscurantismo medieval.

Se a proeminência da figura materna fomentou o hermetismo do Império Bizantino e dos feudos ocidentais durante a Idade Média, o fato ainda não foi suficiente para apagar seu papel misterioso e ameaçador em cujo interior se esconde o liame com o pai primevo, o criador, de quem bebemos a energia criativa para responder ao meio. A vida rural, orientada pela cíclica natural, prevaleceu dominante, da mesma forma que os rituais pagãos dedicados à velha sábia e à jovem divina mantiveram-se em voga, apesar das proibições da igreja (Barros, 2001, p. 143-157). Foram a tecnologia agropecuária, que procurou responder à superpopulação feudal que precedeu às cruzadas, aliada ao comércio em grande escala possibilitado pelas comunicações abertas sob o avanço dos exércitos cruzados, os fatores que, de fato, marcaram a paulatina suplantação da vida rural pela concentração urbana (Le Goff, 2011).

Vimos que tecnologias sofisticadas como o motor a vapor já eram conhecidas em épocas que incluso antecederam o Império Bizantino, ao qual fizemos referência, mas não por isso a vida rural foi tão radicalmente afastada como o caracterizamos na era moderna. O comércio, por sua vez, tampouco era novo na baixa Idade Média. A novidade foi que a economia monetária, outrora ativa entre os lídios e os helênicos, tornou-se, por primeira vez, recurso das classes menos abastadas e mais populosas do sistema feudal. Rapidamente destacou-se da população operária a classe burguesa de comerciários, cujo fundamento de ganho de poder é o dinheiro: um valor abstrato que não mais se reporta, enquanto signo, a seu objeto real, pois seu fundamento é a crença, a promessa de retribuir a mercadoria com outras promessas de retribuição (cf. Le Goff, 2011). Assim, emancipada do real e instrumentada tecnologicamente, não é difícil entender que a sociedade moderna tenha investido a energia criativa do pai no prolongamento do refúgio materno, a despeito da negociação bilateral e reestruturante com a ordem natural. Em obsessão compulsiva, o puer da modernidade adapta e readapta, reforma e estica um refúgio uterino cada vez menos apto a abrigá-lo. A criança cresce e o útero retrai, sob o peso de tão prolongado esforço perde elasticidade e força, tornou-se estéril, ressecado e quebradiço. Não há mais espaço, a cidade se torna asfixiante. As paredes que outrora ofereciam proteção estreitam-se esmagadoras, como mandíbulas que ameaçam consumar o que há tanto tempo vem sendo adiado: o ser devorado.

 

Considerações finais

Do pai incorporamos a potência; mas o mistério da transformação habita a mãe: somos a forma que seu ventre fez transcender à semente paterna. É mister penetrar esse mistério e o preço é a autoimolação, dar-se à destruição, matar a estrutura atual para que nossa matéria, imbuída de poder metamórfico, possa reformular-se em uma melhor resposta (cf. Jung, 1973/2011). Mas as mandíbulas desta velha sábia esperaram tempo demais, ficaram ressequidas e quebradiças enquanto flutuava, à deriva, no oceano do recalcado. De nossa parte, dar-se à destruição requer coragem; mas a coragem exige esforço. Um esforço posto há muito tempo em tecnologias para poupar o esforço, para adiar o salto ao interior do abismo dentado sob promessa de renascimento.

Regenera-se o filho, o novo pai, e com ele regenera-se também o mistério metamórfico. A jovem divina acode à recepção da nova semente, a nova potência, e conduze-a pela transformação para gerar um novo arranjo, um novo pacto, um novo filho (cf. Jung, & Kerényi, 1941/2011). Mas o filho moderno não quer ser pai. O preceito central da modernidade é infantil: o aumento de ganhos com menor esforço, a capitalização, o consumo, o engordar para sempre e sem retribuição. Mas não há corpo que resista, como não existe um seio que possa, eternamente, produzir sustento. A cidade-mãe asfixia debilitada, ao tempo que nos constringe por saturação. No entanto, apesar de seu desgaste abnegado, a mãe amorosa, em desespero, começa a ceder ao imperativo de encarnar a velha sábia, a bruxa devoradora que se esconde no fundo da floresta, a maga, do grego maiá, que significa fermentação e que é radical de mayeutiké, a arte socrática: a maga da floresta detém o mistério da fermentação, isto é, o mistério do crescimento.

Talvez, por ventura, a velha sábia da modernidade consiga mastigar antes que a própria floresta, também consumida e debilitada, em surto, engula a espécie, mesmo que, para o efeito, ela também definhe.

 

Referências

Barros, M. N. A. de. (2001). As deusas, as bruxas e a Igreja: séculos de perseguição. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos.         [ Links ]

Barros, M. (2010). Poesia completa. São Paulo: Leya.         [ Links ]

Bauman, Z. (2012). Ensaios sobre o conceito de cultura (Digital). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Bonfim, J. M. (2014). O desaninhador de pássaros. In Velázquez, C. (Ed.), Sob o olhar do Mitho (p. 125-139). Saarbrücken: NEA.         [ Links ]

Campbell, J. (2005). As máscaras de Deus (7a ed.). São Paulo: Palas Athena.         [ Links ]

Campbell, J. (2008). Mito e transformação. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (2001). Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio. (Original publicado em 1982)        [ Links ]

Couto, S. P. (2009). Almanaque das guerras: os fatos mais importantes dos grandes conflitos da história da humanidade. São Paulo: Ideia & Ação.         [ Links ]

Eliade, M. (2001). Nacimiento y renacimiento (1a ed.). Barcelona: Kairós.         [ Links ]

Elias, N. (1990). O processo civilizador; uma história dos costumes, v. I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Ferreira, R. (2015). Entrevista com Carlos Neto: estamos a criar crianças totós, de uma imaturidade inacreditável. Observador. Recuperado em 28 jul. 2015 de <http://observador.pt/especiais/estamosacriarcriancastotosdeumaimaturidadein acreditavel/>         [ Links ].

Flusser, V. (2011). Natural:mente - Vários acessos ao significado de natureza. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Freud, S. (1969). A interpretação dos sonhos. São Paulo: Imago. (Original publicado em 1899)        [ Links ]

Freud, S. (1987). O mal-estar na civilização. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (2a ed.), v. 21. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1930)        [ Links ]

Freud, S. (1996). Totem et tabou. Saint Amand, France: Payot. (Original publicado em 1923)        [ Links ]

Gómez de Silva, G. (1998). Breve diccionario etimológico de la lengua española (2a ed.). México: FCE.         [ Links ]

Jung, C. G. (2011). Símbolos da transformação (7a ed.). Petrópolis: Vozes. (Original publicado em 1973)        [ Links ]

Jung, C. G., & Kerényi, K. (2011). A criança divina: uma introdução à essência da mitologia. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Lacan, J. (1995). O seminário, livro 4: a relação do objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Le Goff, J. (2011). Marchands et banquiers du Moyen Âge (1a ed.). Paris: Quadrige / Puf.         [ Links ]

Le Goff, J. (2013). Para uma outra Idade Média - Tempo, trabalho e cultura no ocidente. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Lévi-Strauss, C. (2010). O cru e o cozido (2a ed.). São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

López Quintás, A. (2010). La experiencia estética y su poder formativo (2a ed.). Bilbao: Deusto publicaciones.         [ Links ]

Maroni, A. (2006). Psicanálise e ciências sociais: tecendo novos caminhos de pesquisa. Jornal de Psicanálise, 39(71), 231-246. Recuperado em 26 mar. 2010 de <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0103-58352006000200014&script=sci_arttext>         [ Links ].

Penna, E. M. D. (2004). O paradigma junguiano no contexto da metodologia qualitativa de pesquisa. Psicologia USP, 16(C), 71-94.         [ Links ]

Piaget, J. (1975). A formação do símbolo na criança - Imitação, jogo e sono, imagem e representação (2a ed.). Rio de Janeiro: Zahar. (Original publicado em 1964)        [ Links ]

Queirós, B. C. (2011). Vermelho amargo. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Rosa, J. G. (2006). Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Velázquez, C. (2014). Valente atualização mítica - Alvo: individuação. In Velázquez, C. (Ed.), Sob o olhar do Mitho (p. 141-155). Saarbrücken: NEA.         [ Links ]

Velázquez, C. (2015). Mas afinal, o que é estética? Por uma redescoberta da educação sensível. Lisboa: Chiado Editora.         [ Links ]

Williams, R. (2001). Cultura y sociedad 1780-1950 (1a ed.). Buenos Aires: Nueva visión. (Original publicado em 1980)        [ Links ]

 

 

Recebido em 19 de maio de 2016
Aceito para publicação em 18 de outubro de 2017

Creative Commons License