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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.1 Rio de Janeiro  2018

http://dx.doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n01A06 

ARTIGOS : TEMAS SOBRE PSICOLOGIA CLÍNICA

 

Um comentário sobre a "experiência" na objetividade científica e no sintoma psicanalítico

 

A comment on "experience" in scientific objectivity and in the psychoanalytical approach of the symptom

 

Un comentario acerca de la "experiencia" en la objetividad científica y en el síntoma psicoanalítico

 

 

Amandio J. Gomes

Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


RESUMO

O texto discute a noção de "experiência" no pensamento filosófico e científico moderno, partindo de sua análise na Crítica da Razão Pura, de Kant, e a "experiência" em questão na psicanálise, visando enfim a elaboração de Lacan sobre o sintoma psicanalítico. Tratamos inicialmente da "Coisa-em-si" na Crítica da Razão Pura enquanto algo de real e alheio ao sujeito do conhecimento. Essa "Coisa-em-si" cede aí seu lugar à "Ideia da Razão", que vai finalmente garantir a orientação em jogo no progresso infinito da ciência. Já a "orientação do real" em Lacan conduz a uma abordagem do sintoma que permite discernir o campo próprio da psicanálise no mundo da ciência, cujo limite real e inultrapassável ele testemunha. Enfim, nas conferências de Lacan sobre James Joyce e no seminário Le sinthome, pelo modo que ele compreende a produção científica em sua "emergência histórica", destaca-se uma aproximação surpreendente com a experiência do sintoma a que uma análise conduz, enquanto modo de "amarração" ou "escrita" do real.

Palavras-chave: coisa-em-si; real; ciência; psicanálise; sintoma.


ABSTRACT

The article discusses the notion of "experience" in modern philosophical and scientific thought, as we find it in Kant's Critique of Pure Reason, and in pshychoanalysis, aiming at Jacques Lacan's elaboration on the psychoanalytical symptom. Initially we deal with the "Thing-in-itself" in the Critique of Pure Reason as something real, alien to the subject of knowledge. The "Thing-in-itself" gives way to the "Idea of Reason", which will finally grant science its due orientation towards infinite progress. On the other hand, Lacan's "orientation of the real" leads him to an understanding of the psychoanalytical symptom that will allow for a proper demarcation of the field of psychoanalysis within the world of science, whose real and insurmountable limitations are thus evidenced. Finally, in Lacan's conferences on James Joyce and in the seminar Le sinthome, as we follow his views on science in its "historical emergence", we can find a surprising convergence between scientific production and the experience of the symptom, as both engage in a sort of "tying" or "writing" of the real.

Keywords: thing-in-itself; real; science; psychoanalysis; symptom.


RESUMEN

El texto discute la noción de "experiencia" en el pensamiento filosófico y científico moderno desde su análisis en la Crítica de la Razón Pura, de Kant, y la "experiencia" en el psicoanálisis, tiendo como objetivo final la elaboración de Lacan sobre el síntoma psicoanalítico. Tratamos inicialmente de la "cosa-en-si" en la Crítica de la Razón Pura como algo real y ajeno al sujeto del conocimiento. Esa "cosa-en-si" da su lugar a la "idea de razón", que finalmente podrá asegurar la orientación que se encuentra en el progreso infinito de la ciencia. Ya la "orientación del real" en Lacan conduce a un enfoque del síntoma que permite discernir el campo del psicoanálisis en el mundo de la ciencia, cuyo límite real e insuperable testifica. Por último, en las conferencias de Lacan sobre James Joyce y en el seminario le sinthome, por la forma como entiende la producción científica en su "emergencia histórica", destacamos una sorprendente aproximación con la experiencia del síntoma a que un análisis conduce, como modo de atar o escribir el real.

Palabras clave: cosa-en-si; real; ciencia; psicoanálisis; síntoma.


 

 

O ponto de partida da "experiência"

A noção de experiência se apresenta no contexto da virada para o mundo moderno como fundamento incontornável tanto para a filosofia quanto para a ciência. Para o empirismo, ela é fonte de todo o conhecimento que se pretende legítimo e base de toda a crítica ao obscurantismo religioso, à metafísica, à filosofia antiga e moderna, ao racionalismo cartesiano, tal como a encontramos no Tratado da natureza humana de Hume. Fruto e semente dessa revolução moderna, a ciência provava que a experiência, para além de sua dimensão subjetiva, era constituída formalmente, matematicamente - como demonstraram Descartes e depois Kant. A ciência, como matemática da natureza, partia obrigatoriamente dos dados da experiência, separando o que nela era relativo à subjetividade e o que nela se deixava apreender por uma formalização matemática, isto é, como objetividade. Sem o conteúdo da experiência todo o trabalho da razão seria vão, vazio, estéril. Na psicanálise também, a referência à "experiência", desde o início, foi fundamental. Havia na experiência clínica de Freud algo inabordável pelo saber médico, e que ele levou a sério: o sintoma histérico e o sofrimento nele implicado. Mesmo empenhado, desde o início, em produzir uma psicologia como "ciência natural", Freud foi sensível aos limites de uma abordagem científica dos sintomas realmente experimentados por seus pacientes. Em "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1996), confrontado com os achados que sua clínica lhe impunha, finalmente descreve a experiência mais fundamental em jogo na constituição do sujeito e que comanda, de modo silencioso e implacável, os processos psíquicos: uma compulsão à repetição que é "mais primitivo, mais elementar, mais instintual do que o princípio do prazer, que ela domina" (Freud, 1920/2006, p. 33). Tal experiência, já antecipada em "O estranho" ("Das Unheimliche"), de 1919 (Freud, 1919/2006), não desafiava só a evidência, até então admitida na psicanálise, do "princípio do prazer" como guia dos processos psíquicos. De modo mais radical ainda, desafiava o próprio projeto de ciência, de que Freud não abria mão1.

Embora a "experiência", em cada um desses campos discursivos, seja bem diferente, há um ponto comum que a nós interessa destacar. O recurso à experiência remete sempre a algo que implica uma "certa submissão do eu" (Alquié, 1957, p. 3) a algo com que ele se choca, algo que lhe é irredutível, a um real que não pode resultar de alguma operação subjetiva, de construção, interpretação, compreensão, etc. É por essa razão que, nas palavras do filósofo, famoso comentador de Descartes, F. Alquié, a "experiência" está em geral ligada a alguma espécie de fracasso e "frequentemente a dor parece necessária para nos levar a modificar nossa atitude diante da vida" (Alquié, 1957, p. 4).

De um modo geral, também os dicionários ensinam que "experiência", do mesmo modo que "experiente", nas línguas latinas, como também em inglês, supõe inicialmente um conhecimento adquirido por acúmulo e repetição. Tal como se diz ordinariamente que fulano tem muita experiência, é um sujeito muito experiente, tem muita experiência em tal ou qual ofício... Etimologicamente a preposição "per" que encontramos em "experiência" está sempre ligada ao verbo atravessar, aponta para um percurso e um perigo (periculum), um risco a ser encontrado "fora", como indica o "ex" de "experiência". Trata-se do mesmo per latino de "perigo", de "perito" (peritus), de experto (expertus), e até o de pirata ou peirates (em grego). E o per latino corresponde ao grego πεῖρα (peira), como em ἐμπειρία (empeiria). A esse per se remete igualmente o alemão fahr, que encontramos em Erfahrung (experiência), erfahren (experiente, experto) e em Gefahr (perigo)2.

 

Da "experiência" à "experiência de objeto"

Mas esse ponto em comum, que parece ser o compromisso inicial no mundo moderno quando se recorre à "experiência", como algo de estranho ao sujeito, algo de fora, cede progressivamente lugar a outra significação na racionalidade científica. Em Descartes, a experiência do sujeito como substância pensante, como consciência de si, e da matemática de suas representações, garante a objetividade científica e torna desnecessário seu remetimento ao real que lhe seria exterior. Só a aposta cartesiana num Deus que não engana permite admitir que a objetividade deve poder corresponder a esse real exterior a que o sujeito mesmo não tem mais acesso. Subjetividade e objetividade convergem também em Kant na experiência dos objetos ou experiência possível, experiência da qual se poderia falar dentro dos limites do sentido: de um lado, dos limites da sensibilidade (o que nos é dado diretamente pelos sentidos, pela intuição sensível); de outro, da sensatez (a coerência formal que condiciona a experiência dos objetos). Em seus limites e condições, a experiência que temos dos objetos empíricos é tecida na mesma trama categorial, simbólica, por assim dizer, que torna possível a ciência física e seus objetos. Na matemática da natureza que é a física, tanto quanto na experiência comum dos objetos, o corte está feito. A verdade, i.e., o que se poderia falar do ser, é então lançada para fora do campo que pode ser iluminado pela ciência. A objetividade científica toma seu lugar, preenche ao mesmo tempo que aprofunda a fissura. Da finitude do sujeito e da parcialidade que constitui a objetividade releva-se o progresso em direção ao ideal de um saber total, que orienta o avanço da ciência e o de suas aplicações técnicas, face à impossibilidade de se ter acesso à verdade das coisas como elas são, ao seu ser. O "fora" do sujeito do conhecimento reduz-se a um exterior apenas espacial, portanto interno a esse sujeito, enquanto conjunto de regras que constituem a objetividade.

É desse modo que Kant, na análise da experiência (Erfahrung) em sua Crítica da razão pura, separa o dado bruto e cego da intuição sensível dos elementos formais (formas da sensibilidade - espaço e tempo - e formas do entendimento - conceitos puros do entendimento ou categorias). E são tais elementos formais no sujeito do conhecimento que tornam possível a experiência enquanto experiência dos objetos. Essa separação supõe no entanto o corte que lança para "fora" - um "fora" diferente da relação de exterioridade que o espaço formalmente estabelece - o real ou o ser da Coisa-em-si. A intuição sensível se situa "do lado de dentro" do campo do conhecimento, já que é sempre "interior" às formas subjetivas da sensibilidade, à intuição formal do espaço e do tempo. E Kant se vê obrigado, na Introdução da Crítica da razão pura, a admitir nesse "fora" (um outro que o "fora" espacial) a "causa" (uma outra "causa", diferente da causalidade objetiva, que resulta de uma determinação categorial) das intuições sensíveis: a coisa em si, uma vez que o homem é um ser finito, e que só pode pensar algo que é dado, sendo do pensamento desse dado que resulta o objeto da experiência, não podendo ele próprio em sua finitude criar o ser desse dado. Tal constrangimento, contudo, não impede o filósofo de gradual e progressivamente abandonar a Coisa enquanto real para tomá-la idealmente como o limite posto pelo próprio entendimento na consideração de sua finitude. A Coisa é assim rejeitada como um real inapreensível, porque fora do regramento cognitivo pelo sujeito do conhecimento se poderia dizer qualquer loucura. Embora pareça um gesto extremo, tal operação de rejeição da Coisa é condição para que se constitua o mundo da ciência. É por isso que Lacan poderá dizer que "o discurso da ciência rejeita a presença da Coisa, uma vez que em sua perspectiva se delineia o ideal do saber absoluto, isto é, de algo que estabelece, no entanto, a Coisa, não a levando ao mesmo tempo em conta" (Lacan, 1978/2008, p. 160).

Da "experiência" que envolve conhecimento por acúmulo, repetição, que exige uma volta, um percurso, um risco, um certo confronto com o perigo nesse percurso, à "experiência" que faz abstração do real na rejeição da Coisa, como a experiência do objeto, algo se perde. À psicanálise coube justamente a tarefa de recuperar e fazer presente a perda depois de realizado o corte.

É razoável pensar que há de fato uma "metamorfose" da noção de Coisa-em-si no sistema da Crítica da razão pura3. Depois de esvaziada do ser ou do real que inicialmente nela se situaria, tal como ela é tratada em sua "Introdução" e na Estética transcendental, e depois de sua transformação em Númeno (a ideia no sentido platônico) na Lógica transcendental, como limite que o próprio entendimento se dá, Kant, num terceiro momento, coloca no lugar da Coisa-em-si a Ideia da razão, que ele faz funcionar como um ideal. Em outras palavras, primeiro a Coisa-em-si comparece como (1) algo irredutível, incondicionado (fora das condições formais do conhecimento, poderíamos dizer, fora do simbólico), algo realmente estranho ao conhecimento; mas é depois considerada substitutivamente como (2) Númeno, num gesto de limitação da razão por ela própria, de modo que assim se revele seu trabalho (diríamos de "simbolização"), estabelecendo seus próprios limites e o fora que ele põe; e é finalmente tomada como (3) Ideia da razão, quando a Coisa, como o incondicionado, fora da parcialidade constitutiva da experiência possível, e por conseguinte fora do conhecimento científico, é na verdade convocada a jogar em favor do próprio trabalho do conhecimento, como Ideal a ser perseguido por um trabalho sem fim no sentido de buscar sempre uma maior extensão e uma maior unidade. Com isso, enfim, a Coisa-em-si deixa de ser um problema para o conhecimento científico e, enquanto Ideia da razão, ganha

um uso regulador que é excelente e necessariamente indispensavelmente, o de dirigir orientar o entendimento para um certo fim, onde convergem num ponto as linhas diretivas de todas suas regras e que, embora seja apenas uma Ideia (focus imaginarius), isto é, um ponto de onde não partem na realidade os conceitos do entendimento, porquanto fica totalmente fora dos limites da experiência possível, serve todavia para lhes conferir a maior unidade e, simultaneamente, a maior extensão [Apêndice da Dialética transcendental na Crítica da razão pura] (Kant, 1989, p. 534).

Nessa perspectiva, o que na experiência compareceria como real, como um resto do ser "no" ou "para" o sujeito, no mundo da ciência, como falha, como buraco no terreno do conhecimento objetivo, é remetido ao Ideal que comanda o seu progresso. Há sempre uma aposta, uma esperança sempre renovada de se ultrapassar as particularidades relativas ao indivíduo, sua finitude sensível, o subjetivismo, os prestígios imaginários da experiência. Ou seja, conforme se nos impõe, conforme impõe o discurso da ciência, a experiência diz respeito à realidade em sua parcialidade, mas cujos limites podem ser sempre mais alargados, já que o limite é considerado como relativo à dimensão sensível da experiência, ou mais precisamente: imaginária. É como se o avanço da ciência dependesse da consideração apenas do exterior imaginário dos limites de seu território. O que não é ainda recoberto pela ciência comparece como um limite a ser superado, com o avanço da precisão, da sofisticação da pesquisa e da tecnologia. Afinal - pretende-se - tudo seria virtualmente simbolizável, ainda que necessariamente a produção científica seja sempre parcial, atualmente limitada. A objetividade científica avança sobre o subjetivismo, sobre o imaginário, como se o que constituísse problema e fizesse obstáculo a esse avanço fosse apenas o que do imaginário constitui o sujeito, ou ainda, o sujeito em sua particularidade subjetiva. O que é muito diferente daquilo que, no, ou para o sujeito, como um "pedaço" de real, se dá como uma irredutível singularidade, algo a que nada se liga, como um "caroço indigerível".

 

O retorno do Real: o sintoma na experiência psicanalítica

Mas teria sido exatamente essa a via seguida por Freud, ao escutar o sintoma histérico, na fundação da psicanálise? A psicanálise, insiste Lacan, só poderia surgir no mundo da ciência, no mundo do saber que se formaliza. "O fato de a psicanálise haver nascido da ciência é patente. Que pudesse ter surgido de outro campo é inconcebível" (Lacan, 1966/1998, p. 232). A formalização científica, esse retorno do idealismo platônico na física-matemática, também levou Freud a abandonar o realismo ingênuo da experiência comum e seus prestígios imaginários. Nem psicologia nem fisiologia, porque ainda comprometidas com o privilégio atribuído ao Eu como seu "pivô essencial" (Lacan, 1981/2008, p. 47-48). Freud, empenhado em fazer ciência, segue sua via, a do simbólico, e a articulação que nele faz o sintoma histérico. Articulação que se torna possível numa análise, quando um sujeito fala mais do que acha que sabe, conscientemente, inserido que está o sintoma numa trama, num saber inconsciente. É justamente por isso que, mesmo encarnado no corpo, o sintoma se interpreta. O sintoma - tal como o sonho - revelava-se alheio, estranho à consciência. Ambos eram inexplicáveis recorrendo-se à dimensão imaginária da experiência do sofrimento e do estranhamento aí implicados. A descoberta de sua articulação inconsciente ou simbólica foi certamente importante. O espírito científico estava aí presente. Tal como o objeto na experiência possível, essas formações do inconsciente são (sobre)determinadas por uma trama simbólica, de que a consciência em sua dimensão meramente imaginária não pode dar conta.

Também para Lacan o simbólico se impõe como universal desde sua instauração. O universo é simbólico, e o simbólico é universal. A realidade a que se tem acesso é sempre "a estrutura humanizada do real" (Lacan, 1981/2008, p. 232). Uma falha na introdução do mundo dos significantes pela instância que desempenha a função de um pai no complexo de Édipo, uma falha portanto na constituição dessa realidade que é simbólica, nessa instauração do universo, como acontece no caso da psicose, condena o sujeito e seu mundo a viver sob a ameaça da ruína, mesmo quando se consegue algum anteparo delirante. Ou ainda, quando a realidade não se estrutura pelo significante, quando o simbólico não enlaça o real em sua trama, é toda a realidade que está comprometida: o perigo da irrupção de um real sem intermediação é mortal e irremediável.

Mas no mundo da ciência, no universo que simbolicamente se constitui, o sintoma de que trata a psicanálise constitui-se justamente como uma falha na formalização, diz Lacan, e seu saber diz respeito a um sujeito. A dimensão do sintoma "se articula por representar o retorno da verdade como tal na falha de um saber" (Lacan, 1966/1998, p. 234). Retorno da verdade ao qual Marx já fora sensível, localizando na "bela ordem" formal, a perturbação da matéria, que Lacan retoma como encarnada no sintoma.

O sintoma tinha um ar impreciso de representar alguma irrupção da verdade. A rigor, ele é verdade, por ser talhado na mesma madeira de que ela é feita, se afirmarmos materialisticamente que a verdade é aquilo que se instaura a partir da cadeia significante (Lacan, 1966/1998, p. 235).

A rigor, a psicanálise não introduz portanto uma novidade quando sustenta que a realidade é a realidade que o simbólico constitui, como diz Lacan já em seus primeiros seminários. O que funda de fato a psicanálise em sua radicalidade é a possibilidade de se escutar essa perturbação, formulada nos termos freudianos, por exemplo, como o "umbigo do sonho".

Num sonho, diz Freud, há sempre um ponto absolutamente não apreensível, do âmbito do desconhecido - ele denomina isto umbigo do sonho. Não se costuma salientar essas coisas em seu texto porque, provavelmente, se imagina que se trata de poesia. Não é não. Isso significa que há no fenômeno um ponto que não é apreensível, o ponto de surgimento de relação do sujeito com o simbólico. O que denomino ser é esta palavra derradeira, que não nos é certamente acessível na posição científica, mas cuja direção nos é indicada nos fenômenos de nossa experiência (Lacan, 1978/1985, p. 138).

A novidade da psicanálise está em situar o simbólico em sua articulação, em seu enlaçamento com o real e em compreender o que era atribuído ao psiquismo em suas condições ditas normal e patológicas - anteriormente explicadas por distúrbios de ordem psicológica ou orgânica como modos específicos de entrada do sujeito nesse universo (neurose, perversão, psicose e autismo) e pelos respectivos retornos ou efeitos de real que daí resultam. São esses efeitos do real, à medida que são recolhidos numa clínica, que nos permitem discernir no mundo da ciência a experiência própria ao campo da psicanálise. A experiência na psicanálise resulta então não do trabalho das categorias do entendimento, ou, analogamente, das costuras simbólicas que surgem na associação livre e que dão alguma compreensão ou significação aos sonhos ou aos sintomas, mas do trabalho de tornar dizível, de trazer às palavras o que lhes é alheio, de fazê-las dizer o real que as causa, sendo-lhes no entanto estranho, extraneus, de outro lugar. O trabalho do sonho não é apenas o trabalho de determinação da realidade onírica por um saber inconsciente, em oposição à determinação categorial ou conceitual da realidade objetiva. O inconsciente, Unbewusste, diz Lacan, "no limite é o Unbegriff, não o não-conceito mas o conceito da falta" (Lacan, 1973/1979, p. 30). No limite, o inconsciente é portanto fenda ou falha na tessitura da realidade - uma experiência que se produz numa análise, ainda que a fenda esteja dada de partida como condição do sujeito. "O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se4, se apresenta como um achado. É assim, de começo, que a exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente" (Lacan, 1973/1979, p. 30). Nesse sentido, trata-se da experiência do inconsciente como experiência não de um real, que permanece inumano, mas de seu efeito enquanto fenda, no que manca, e que é a causa da realidade propriamente humana.

Desse modo a experiência psicanalítica é produzida e ao mesmo tempo recuperada como experiência da divisão do sujeito como divisão entre saber e verdade e coloca o limite como irremediável. A divisão do sujeito (faça ele ciência ou não) é a própria divisão entre o saber e a verdade em seu sintoma, no que de real ele porta, força, causa o que realiza no mundo humano, da linguagem, mantendo-se aí como o irredutível que insiste no sintoma, como a "verdade" do sujeito, como esse lugar onde o sujeito se realiza, no vazio de sua significação. "Ela [a função que eu concedo à linguagem na teoria] me parece compatível com um materialismo histórico que deixa aí um vazio"(Lacan, 1966/1998, p. 890).

 

O real do sintoma, o real da ciência em Lacan

Ao avançar na orientação deixada por Freud, no que diz respeito ao real, Lacan se empenha no trabalho da formalização, de "matemização" da psicanálise. Mas o real que se coloca aí não serve aos propósitos de um ideal, antes permanecendo sempre como um "caroço":

o ideal do matema é que tudo se corresponda [...] Com efeito, essa correspondência não é o fim do real, ao contrário do que se imagina, sem saber bem por quê [...]. O real, aquele de que se trata no que é chamado meu pensamento, é sempre um pedaço, um caroço. É, com certeza, um caroço em torno do qual o pensamento divaga, mas seu estigma, o do real como tal, consiste em não se ligar a nada (Lacan, 2005/2007, p. 119).

O matema lacaniano borda, dá uma certa forma ao real que orienta a psicanálise. De certo modo também a leitura que o próprio Lacan faz da ciência, nesse momento de sua obra, como "emergência histórica", introduz uma interessante inflexão, a partir da qual o que emerge como produto do trabalho do cientista é o real que sua teoria amarra. Se consideramos a ciência pela via kantiana, que inicialmente abordamos aqui, a construção da objetividade se faz em detrimento do real, remetendo-se ao contrário ao conhecimento científico como parcialidade que avança sempre em direção ao Ideal de um saber total. Uma produção científica é sempre a inauguração de um "programa de pesquisa", o estabelecimento de um campo de questões que põem os cientistas a trabalhar, mas cujos resultados efetivamente conquistados são sempre secundários em relação à exigência de ultrapassamento, de progresso. Ou seja, para a atividade científica é o progresso que se impõe como "indispensavelmente necessário", como já dissera Kant. E, assim, o Real que uma teoria científica amarra em sua "emergência histórica" e como técnica se perde na aposta necessariamente renovada de uma maior "unidade e extensão" (ver citação de Kant acima) da objetivação, num progresso ad infinitum.

A psicanálise só é possível no mundo da ciência, mas seu campo é o campo do sintoma. Segundo o testemunho de Joyce, o sintoma é aí "o que há de singular em cada indivíduo" (Lacan, 2005/2007, p. 163). O individual (em inglês, no texto) a que se refere Lacan, não exatamente se regozija (Re-Joyce) com seu sintoma, talvez nem aí se reconheça, ainda que tenha (art-gueil) certo orgulho de sua arte. À Finnegans Wake, sua obra maior, diz Lacan, Joyce reservou a função de ser seu "escabeau", diz Lacan em francês, literalmente "escabelo" em português (Lacan, 2007, p. 161). Com sua "publixação" ("poubellication"), Joyce garante seu escabelo - um "assento" ou um "apoio ou banco pequeno" -, garante seu sustento, sua sustentação no mundo. Apesar de sua importância na cultura, a obra de Joyce é para Lacan ainda, e sobretudo, litteratura (lixo-escrita).

Se, por um lado, a epistemologia e a história do pensamento científico privilegiaram os limites do universo físico de Newton, o progresso que significou o universo físico de Einstein, em sua extensão e precisão, Lacan, por outro, apontou os efeitos inquietantes de uma teoria científica em sua própria época, justamente em seu momento histórico, à medida que atinge algo do real.

Pelo menos é assim que concebo o real [...]. Há pequenas emergências históricas disso. Um dia, um tal de Newton achou um pedaço de real. Isso provocou frio na espinha ["ça a foutu salement les foies" - no original] de todos aqueles que pensavam, nomeadamente um certo Kant, a respeito de quem se pode dizer que fez de Newton uma doença. Aliás, todo mundo, todos os seres pensantes da época fizeram isso [...]. De todo modo, é extraordinário que chegar a um pedaço de real provoque esse efeito. Mas isso é justamente sinal de que chegamos num caroço. É daí que é preciso partir (Lacan, 2007, p. 119-120).

Esse "caroço" é o mesmo que se encontra no sintoma em sua raiz, para o qual não há terapêutica, melhora ou progresso, embora seja disso que se trata numa clínica psicanalítica. É o que parece Lacan finalmente enfatizar no sintoma, até mais ainda do que aquilo que ele porta como falha. Do sintoma como "falha na formalização" ao sintoma tal como Joyce nos deu, "em seu aparelho, sua essência, sua abstração", tal como ele próprio o encarnou - "Joyce, o Sintoma" (Lacan, 1987) parece radicalizar, parece insistir na própria raiz do sintoma, no sintoma em sua raiz. Do caroço, indigerível, algo pode brotar, como brota do lixo. Fica indicado aí ao que conduz uma análise, a partir do que nela se dá como experiência do sintoma: do que vai mal (queixa) ao que não vai (insistência da repetição) e com o que não vai, se faz alguma outra coisa.

Mas do sintoma assim formulado, como Joyce no-lo deu, o que se pode afinal saber? O que se pode dizer dele? Joyce "o sinthoma" não é Joyce o símbolo. "O sintoma, o símbolo, o abole", diz Lacan (Lacan, 2005/2007, p. 160). Em Joyce (mais particularmente em Finnegans wake) agarra-se apenas o gozo daquele que o escreveu. Nenhuma interpretação aí é possível. Sugere-se assim que cabe ao analista se orientar pelo que do sintoma Joyce nos deu "em seu aparelho, sua essência, sua abstração"? (Lacan, 2005/2007, p. 161). Como pensar então a operação do analista senão no limite de sua inoperância? Interpreta-se o sintoma ou no limite real do sintoma? Será que uma análise se orienta pelo que de presente o analisando pode dar como seu sintoma? "Où es ton cadeau...?", pergunta Lacan (Lacan, 2005/2007, p. 162), ou "Onde és-está teu presente...?". Presente que a nada nem a ninguém serve mas que se torna público pela linguagem, como Joyce provou ser possível:

o sintoma é puramente o que lalíngua condiciona, mas de certa maneira Joyce o eleva à potência da linguagem, sem torná-lo com isso analisável. [...] É o que impressiona, e literalmente interdita, no sentido em que se diz je reste interdit5 [...]. Empregar a palavra interdire para dizer ficar estupefato (Lacan, 2007, p. 163).

Enfim, a partir de Joyce, Lacan privilegia a insuperável singularidade do sintoma psicanalítico, que ainda se dirige ao outro, se publica ou "poubellica" (poubelle, lixo em francês + publica), para usar sua expressão, sem no entanto se comunicar, sem comprometer-se com o sentido. Encontra-se aí, no sintoma assim elaborado, o resto de uma análise, na borda do que pode o simbólico agarrar do real, inanalisável portanto. Da experiência desse resto inultrapassável no sintoma o sujeito pode vir a dar um testemunho, o testemunho de que houve uma análise e um limite do que se pode analisar. Qual poderia ser o lugar desse real na ciência? Como se poderia conciliar um tal limite, um tal resto inultrapassável, com o ideal de progresso constitutivo do trabalho do cientista? A perturbação que a ciência pode produzir, como vemos na perspectiva que abre Lacan no final de sua obra, ao fazer surgir um "pedaço de real" em sua "emergência histórica", é logo aplacada pela promessa de um amanhã livre dessa perturbação. A aposta da ciência face à experiência de qualquer mal-estar sempre nos remete a um futuro de bem-aventurança. A experiência decantada desse mal-estar a que nos leva uma psicanálise nos confronta com um resto sem redenção, "um caroço", para o qual não há terapêutica, mas do qual algo de novo pode brotar.

 

Referências

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Enviado para publicação em 11 de março de 2016
Aceito para publicação em 21 de novembro de 2017

 

 

1 O termo usado por Freud em "Além do princípio do prazer", em muitas passagens neste artigo, não é exatamente Erfahrung, literalmente "experiência" em alemão, mas sim Erlebnis, "vivência", como a tradição fenomenológica o tem traduzido. Na Standard Edition das obras de S. Freud, J. Strachey traduziu tanto Erlebnis quanto Erfahrung como experience em inglês. Na subsequente edição brasileira das obras de Freud, da Imago, encontramos igualmente "experiência" tanto para as passagens em que Freud usou o termo Erlebnis quanto para aquelas em que ele usou o termo Erfahrung. Vale observar que o termo Erlebnis aparece na língua alemã no século XIX ligado a certa rejeição do pensamento iluminista e remete sempre a um si, ao que seria uma experiência de vida (Leben), não mediatizada pela reflexividade da consciência ou pela razão. São muitas as implicações filosóficas e psicológicas em jogo no uso que faz Freud dos termos Erfahrung e Erlebnis. O uso desses termos por Freud nesse artigo e sua tradução como "experiência" ou, alternativamente, "vivência", têm muitas implicações. Por hora, ficaremos apenas com a hipótese de que o uso do termo Erlebnis por Freud, em lugar de Erfahrung, tinha o propósito de evitar que sua elaboração sobre esse momento fundamental da constituição do sujeito fosse lida a partir da "experiência", que pressupõe um sujeito do conhecimento, e portanto da perspectiva da racionalidade científica justamente aqui tomada em seu limite.
2 Nossa referência aqui é o Indogermanischer Etymologischer Wörterbuch, de Julius Pokorny. <https://archive.org/details/indogermanisches01pokouoft> (para o primeiro volume, 02 para o segundo e 03 para o terceiro).
3 É o que sugere A. Philonenko, L'ouvre de Kant - Paris: Vrin, 1997, v. I, p. 135 em diante.
4 Vale ressaltar que em latim producere é literalmente trazer, guiar ou conduzir para frente, fazer avançar algo.
5 Para interdire encontramos também a seguinte definição: troubler fortement, mettre dans un état de stupeur que prive de la faculté de parler ou d'agir. Dicionário online do CNTRL (Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales).

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